BIBLIOTHECA ESCOLHIDA XXIII ROMANCE III A MORGADINHA DE+OS CANNAVIAES Vol. I CENTRO TIPOGRAFICO COLONIAL LARGO BORDALO PINHEIRO , 27 E28 TELEPHONE2337 JULIO DINIZ A MORGADINHA DE+OS CANNAVIAES ( CHRONICA DE+A ALDEIA ) decima-setima EDIÇÃO LISBOA J. Rodrigues & C.a , EDITORES 186 -- Rua Aurea-188 1920 Ao cair de uma tarde de dezembro , de sincero e genuino dezembro , chuvoso , frio , açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera , subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda , que pretenciosamente gosava das honras de estrada , á falta de competidora , em que melhor coubessem . Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracissima provincia começa já a resentir- se , senão ainda nos valles e planuras , nos visos dos outeiros pelo menos , da vizinhança de sua irmã , a alpestre e severa Traz-os-Montes . O sitio , n ' aquelle ponto , tinha o aspecto solitario , melancolico , e , n ' essa tarde , quasi sinistro . D ' alli a qualquer povoação importante , e com nome em carta corographica , estendiam-se milhas de pouco transitaveis caminhos . Vestigios de existencia humana raro se encontravam . Só de longe em longe , a choça do pegureiro ou a cabana do rachador , mas estas tão ermas e desamparadas , que mais entristeciam do que a absoluta solidão . Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes , que dissemos . Um , o mais moço e pela apparencia o de mais grada posição social , era transportado n ' um pouco esculptural , mas possante muar , de inquietas orelhas , musculos de marmore e articulações fieis ; o outro seguia a pé , ao lado d' elle , competindo , nas grandes passadas que devoravam o caminho , com a quadrupedante alimaria , cujos brios , além d' isso , excitava por estimulos menos brandos do que os da simples e nobre emulação . Contra o que seria plausivel esperar d' este desigual processo de transporte , dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada não se pode dizer que fôsse o cavalleiro . A postura de abatimento que lhe tomára o corpo , o olhar melancolico , fito nas orelhas do macho , a indifferença , a taciturnidade ou o manifesto mau humor , que nem as bellezas e accidentes da paizagem natural conseguiam já desvanecer , o obstinado silencio que apenas de quando em quando interrompia com uma phrase curta mas energica , com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada , contrastavam com a viveza de gestos e desempenado jôgo de membros do pedestre , com a sua torrencial verbosidade , a que não oppunha diques , e com as joviaes cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo , por meio das quaes se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbatico companheiro . Explica-se bem esta differença , dizendo que o cavalleiro era um elegante rapaz de Lisboa , que fazia então a sua primeira jornada , e o outro um almocreve de profissão . O leitor provavelmente ha de ter jornadeado alguma vez ; sabe portanto que o grato e quasi voluptuoso alvoroço , com que se concebe e planisa qualquer projecto de viagem , assim como a suave recordação que d' ella guardamos depois , são coisas de incomparavelmente muito maiores delicias , do que as impressões experimentadas no proprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens , e mórmente nas classicas estalagens das nossas provincias . As pequenas impertinencias , em que se não pensa antes , que se esquecem depois , ou que a saudade consegue até dourar e poetisar a seu modo ; esses microscopicos martyrios , que de longe não avultam , actuam-nos , na occasião , a ponto de nos inhabilitar para o gôso do que é realmente bello . A dureza do colchão , em que se dorme , do albardão ou selim sobre que se monta , o tempêro ou destempêro do heteróclito cozinhado com que se enche o estomago , a lama que nos encrusta até os cabellos , o pó que se nos insinua até os pulmões , o frio que nos inteiriça os membros , o sol que nos congestiona o cerebro , tudo então nos desafina o espirito , que traziamos na tensão necessaria para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte . Só pelo preço de muitas jornadas se compra o habito de ficar impassivel no meio dos episodios d' estas pequenas odyssêas , que atormentam e exhaurem o animo dos Ulysses novatos ; mas ai , quando se adquire esse habito , tambem nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as commoções do bello . Examina-se com mais minuciosidade , mas com menos enthusiasmo ; analysa-se mais e melhor ; porém a propria analyse é a prova de que se sente menos . Onde domina o sentimento e a imaginação , mal teem cabida a paciencia e phleúgma , necessarias aos processos analyticos . O homem positivo e frio recolhe de qualquer excursão á patria com a carteira cheia de apontamentos ; o enthusiasta e poeta nem uma data regista . Viu menos , sentiu mais . Mas Henrique de Souzellasque era este o nome do cavalleirofôra educado e passado da infancia á plena juventude , em Lisboa , levantando-se por avançada manhã , frequentando o theatro , o Gremio , as camaras , parolando no Chiado ou no Rocio , e indo alguns dias no anno a Cintra , ou qualquer praia de banhos , desenfadar-se da monotonia da capital . Desde que fazia perfeito e consciente uso da razão , fôra esta jornada , em que o encontramos , a primeira levada a effeito , e logo sob tão maus auspicios , que era para suffocar-lhe á nascença os instinctos de touriste , se porventura quizessem despertar n ' elle . Havia dois dias que cavalgava aquelle rocinante , unico vehiculo accommodado aos caminhos por que passára . E então que dois dias ! D ' aquelles , durante os quaes o céo , uniformemente pardo , parece desfazer-se em agua , e a chuva cae sem interrupção e com uma teimosia e constancia impacientadoras ; d' aquelles em que a terra saciada rejeita já a agua que recebe , a qual escorre nos declives , transborda dos algares , e encharca-se nos terrenos baixos , transformando em brejos as lezirias ; em que as lufadas do sul vergam e torcem os ramos , melancolicamente despidos , dos álamos e sobreiros , e emprestam aos pinheiraes a voz dos mares ; em que os campos se mostram desertos , a noite se anticipa , e tão densas nuvens cobrem o firmamento , que parece tomar-nos a persuasão de que nunca mais o veremos com as suas formosas vestes de azul . Vejam se , n ' estas circumstancias , o pobre rapaz podia deixar de ir cabisbaixo , triste e dando ao diabo a viagem que commettera . E para quê e por quê a commettera elle assim ? Em poucas palavras procuraremos satisfazer a natural interrogação , que é de suppôr nos dirigissem os leitores , se podessem fazel- o . Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos , vivendo , como dissémos , aquella enlanguescedora vida da capital , e dividindo as attenções do espiri Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos , vivendo , como dissémos , aquella enlanguescedora vida da capital , e dividindo as attenções do espirito pela politica , pela litteratura e pelos destinos do theatro de S. Carlos , do qual estava habilitado a fazer circumstanciada chronica , que abrangesse os ultimos dez annos . Não concebia vida fóra d' aquillo . O mundo para elle era Lisboa . Não sentia desejos , nem imaginava possibilidade de visitar a Europa , quanto mais a provincia ; o que seria maior façanha . Não que lhe faltassem recursos para realisar qualquer projecto d' esta natureza . Henrique herdára dos paes rendimentos bastantes , dos quaes vivia folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia . Mas a indolencia lisbonense manietava-o alli . A poucos ia tão direita a apostrophe de Garrett aos seus " queridos alfacinhas " , a qual se pode ler no livro setimo das Viagens . De certo tempo em deante começou , porém , a incommodal- o uma especie de vácuo interior , um mal-estar , doença infallivel nos celibatarios sem familia , quando chegam á idade a que chegou Henrique , e passam a vida como elle . Tudo lhe causava fastio . Bocejava em S. Carlos , bocejava nas camaras , bocejava no Gremio , bocejava no Suisso , no Chiado e nos circulos dos seus amigos , os quaes principiaram tambem a achal- o insupportavel de insipidez ; porque poucas coisas ha que mais perturbem o espirito , do que o espectaculo d' um homem que boceja ou dorme , onde e quando os outros forcejam por divertir-se . O demonio da hypocondria , esse demonio negro e lugubre , implacavel verdugo dos ociosos e egoistas , o qual havia muito o espiava , apoderou-se d' elle em corpo e alma . Ahi temos , desde esse instante , Henrique muito preoccupado com a sua pessoa , imaginando-se victima de mil e uma molestias , as mais disparatadas e incompativeis , suspeitando-se conjunctamente predestinado para a apoplexia e para a phtisica , para o cancro e para a alienação , para a cegueira e para as aneurismas , tremendo á leitura do obituario da semana , folheando livros de medicina , construindo theorias physiologicas , consultando todos os medicos da capital , experimentando todo o arsenal pharmaceutico e todos os annuncios , em parangona , da quarta pagina dos periodicos , e elevando as crenças do seu espirito amedrontado até ás mysteriosas e nevoentas alturas do credo homoepathico ! Ao mesmo tempo manifestou-se n ' elle uma progressiva degeneração de gôsto ; não podia ler uma pagina dos livros que lhe eram predilectos ; desfazia-se sem desgôsto de quadros , móveis , estatuas e objectos curiosos que colleccionára com paixão ; detestava a musica , o theatro , n ' uma palavra , tornára- se um dos maiores flagellos , que podem pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o supplicio dos medicos que os aturam . Foram estes os que , em parte de boa fé , em parte com o desculpavel intuito de sacudirem de si tal pesadelo , lhe deram um dia de conselho , que fôsse viajar . Henrique de Souzellas julgou ouvir uma heresia n ' esta palavra : viajar . Viajar ? E as suas aneurismas ? E as suas imminencias apopleticas ? E as suas disposições para tantas outras enfermidades ? Pois um homem pode lá viajar com esta bagagem pathologica ? E se lhe désse+esse alguma coisa pelo caminho ? Recusou com mau humor a receita , e ficou na capital . Exacerbaram-se os padecimentos , repetiram-se as consultas , e os medicos , como se para isso apostados , a insistirem em que saisse de Lisboa . -- O senhor não tem nada -- diziam alguns . Henrique perdia a cabeça , ao ouvir isto . Prolongou-se este estado de coisas , até que um dia o hypocondriaco rapaz persuadiu-se muito sériamente de que estava chegada a sua hora extrema . Um medico velho e grave , que por essa occasião o escutou , em vez de se rir d' elle , disse-lhe , muito sisudo : -- Homem ! O senhor está realmente mal . Esse estado de imaginação não pode prolongar-se mais tempo , sem romper por ahi em alguma doença que o sacrifique . Se quizer salvar-se , saia-me d' aqui , emquanto é tempo . Quebre por todos os habitos , e escolha entre as fortes impressões de uma grande capital , como Paris ou Londres , ou as mornas sensações de um completo viver de aldeia . Os revulsivos e os emollientes curam por meios oppostos às vezes as mesmas molestias . Ora succedeu que n ' esse mesmo dia recebesse Henrique um presente de fructa de uma sua tia , santa creatura que elle , desde creança , não tornára a vêr . Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho onde na idade de cinco annos Henrique passára alguns mezes na companhia de sua mãe . Aquelle presente frugal recordára- lhe esse tempo , já meio apagado na memoria , e conseguira fazer-lhe saudades . D ' ahi uns vagos desejos de voltar a vêr aquelles sitios . Por isso ao ouvir o conselho do doutor , Henrique nomeou-lhe a aldeia , em que esta sua parenta vivia . O velho facultativo applaudiu a ideia e instou para que fôsse abraçada . O sobrinho escreveu então á tia , e , passados dias , punha-se a caminho . Mil vezes se arrependeu , depois da resolução tomada ; mil vezes mandou ao diabo o conselho do medico e phantasiou horriveis exacerbações em todos os seus males . Os inconvenientes de uma jornada , feita ainda segundo os velhos processos , com malas , coldres e pistolas , botas de montar e almocreve , ampliava-lh ' os a proporções estupendas , o prisma da hypocondria . No momento em que nos associámos ao cavalleiro , caira elle n ' um desalento profundo , n ' um quasi convencimento de proxima anniquilação , do qual nem a loquacidade do almocreve , condimentada , como era , de pragas eloquentes e de cantigas pouco edificantes , o conseguia arrancar . Havia mais de uma hora que estavam luctando com as difficuldades da ascensão do ingreme e escabroso caminho , que torneava o monte como as voltas de uma helice . Era este monte uma como irregular pyramide , levantada no meio da amplissima bacia , onde tinha assento a aldeia que Henrique demandava ; por isso o estafado rapaz não podia atinar a razão de conveniencia pela qual , tendo de procurar o valle , assim porfiavam em descrever as fastidiosas curvas da quasi interminavel espiral , que os approximava do vertice . Não se concebe uma estrada menos logica do que aquella . No nosso paiz são porém frequentes estas faltas de logica nas estradas . O almocreve havia-se separado por momentos de Henrique com o fim de encurtar distancias , seguindo por um atalho só franqueavel a gente de pé . Henrique nem desviára os olhos para o fundo valle , que se abria á esquerda , velado pela densa nevoa d' aquella atmosphera saturada de humidade , nem prestava attenção á agreste e selvatica paizagem , do lado direito , toda encrespada de pinheiraes nascentes e de espinhosas tojeiras . Os olhos procuravam , em anciosa interrogação , o mais alto da flexuosa ladeira que subia , no sitio em que ella , formando um cotovello , furtava á vista o seguimento ulterior . N ' estas curvas das estradas sorri sempre de longe ao viajante , cançado e aborrecido , que pela primeira vez as trilha , uma promettedora esperança . -- D ' alli verei talvez o termo do caminho -- pensa elle . Mas quantas vezes , ao approximar-se , esta esperança lhe foge ! Assim aconteceu a Henrique , que , ao chegar á almejada inflexão e quando esperava principiar emfim a descer para o valle e approximar-se da aldeia , viu que o macho , pratico no caminho , e á disposição de cujo instincto elle collocára a razão , dobrava ainda para a direita e continuava a contornar e a subir o monte . A espiral não terminára ainda . Henrique olhou em torno de si , profundou a vista nas sombras do valle , nada pôde descobrir , que lhe promettesse a aldeia procurada . Muita arvore , povoação nenhuma ! Teve um paroxismo de impaciencia ! -- Isto não é estrada ! -- exclamou elle , exasperado . -- São os nove circulos do Inferno de Dante virados para fóra . E a luz do dia a fugir cada vez mais , e a chuva a augmentar , a calar através do grosso gabão de jornada que Henrique vestia ! O desgraçado vergava sob o pêso da sua consternação . Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve , assobiando com fleugma desesperadora . -- Com um milhão de demonios ! -- bradou-lhe Henrique , não podendo conter-se . -- Essa maldicta terra foge deante de nós , homem ! -- Estamos quasi lá , meu patrão . É alli logo adeante -- respondeu o almocreve , sem se alterar . Vê aquella capellinha branca em cima d' aquelle monte ? pois fica já para além da povoação . É a ermida da Senhora||_da|_Saude da||_da|_Saude Saude|_da|_Saude . É um instante . -- Desde as duas horas da tarde que me dizes que é um instante , e eu estou acreditando que cada vez nos afastamos mais . Pois se a aldeia fica alli em baixo , para que diabo subimos nós ? Ás voltas que temos dado , estou persuadido de que vamos tão adeantados como quando principiámos a subir . -- Pois olha que dúvida ! Se se fôsse a direito lá por baixo , era mais perto , mas ... -- Mas foi então pelo prazer de trepar , que me trouxeste por aqui ? -- Não é isso , patrão ; mas bem vê v. s.a que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos , e é preciso dar taes voltas , que a final fica mais longe . Depois , com a chuva que tem caído , faz lá ideia de que o caminho lá por baixo é todo cortado por quintas e campos , e é preciso dar taes voltas , que a final fica mais longe . Depois , com a chuva que tem caído , faz lá ideia de como estão os riachos por lá ! Só o esteiro do almargeal é para uma pessoa se afogar . Mas tenha o patrão paciencia , que pouco falta agora . Vê v. s.a aquelle tronco de sobreiro que parece , visto d' aqui , um frade de capuz ? -- É alli ? -- Não , senhor -- disse o homem , rindo ; -- mas vêem-se d' aquelle sitio as primeiras casas da aldeia . -- As primeiras ! -- murmurou Henrique em tom lastimoso ; e penderam-lhe os braços com mais desalento e augmentou-se-lhe a flexão da columna vertebral . O almocreve proseguiu , para o distrair : -- Tenho passado por estes sitios muita vez com neve de se cortar á faca e de noite . E olhe que nunca tive mêdo . Qual historia ! Mêdo ? Isso sim ! E vamos lá ! o sitio não é dos mais seguros . Vê o senhor essa cruz preta , ahi á sua mão direita , pregada no tronco d' esse pinheiro ? Pois ahi mesmo mataram um homem , que vinha com uns centos de mil réis da feira franca de Vizeu , fez pelo S. Miguel um anno . E ainda hoje se está para saber quem foi . N ' um ermo d' estes só os santos podem valer a uma creatura . Henrique sentiu-se pouco á vontade com as elucidações do cicerone ; olhou para elle com desconfiança e quasi julgou vêr moverem-se sombras suspeitas por entre os troncos dos pinheiros . Apalpou nos coldres os cabos das pistolas , e approximou as esporas dos ilhaes da cavalgadura . Dentro em pouco attingiam o indicado tronco de sobreiro , de junto do qual deviam avistar a aldeia . Henrique olhou ; viu lá no fundo do valle muitas arvores , mas continuou a não enxergar vestigios de casas . -- Onde está a aldeia que dizias , homem ? -- D ' ahi já se vê -- disse o almocreve , correndo para alcançar o cavalleiro . -- Não vê v. s.a , além , além , aquelles pinheiraes mansos ? -- Vejo , sim . -- Pois já são da freguezia . Se fôsse mais claro havia de avistar a casa do guarda . É a tapada dos Bajuncos , que pertence á morgadinha dos Cannaviaes . Henrique não respondeu . A distancia a que ficava ainda a tal tapada fel- o suspirar . Emfim , passados minutos , principiaram a descer para o valle , costeando sempre obliquamente o monte . Cem passos andados , fez-lhe o almocreve notar um pequeno ponto branco , que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo , mas já indistinctamente , em virtude do adeantado da hora e da intensidade da neblina . -- Lá está a capella da freguezia -- dizia o homem . -- Alli ? É um seculo para lá chegar ! -- Qual ! Estamos aqui , estamos lá . Eh , russo ! E applicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho , que accelerou o passo . O homem continuou : -- Até se fôsse mais dia podia-se vêr d' aqui a pedra , que está no cemiterio novo , e que é da familia da morgadinha dos Cannaviaes . Foi a mãe d' ella a primeira pessoa que lá se enterrou , e até hoje mais ninguem . O povo , como o outro que diz , tem sua aquella em se enterrar fóra da egreja . Elle , a falar a verdade ... Eu bem sei que tudo vae do costume ... mas emfim a gente foi creada n ' isto ... Mas a pedra é coisa asseada . É como as que estão na cidade . Henrique , transido de frio , quebrado de desalento , já nem attendia ao que o homem ia dizendo . Cerrára- se a noite de todo , quando attingiram emfim o valle . O terreno mudava agora de aspecto . Appareciam já , aqui e alli , alguns indicios de cultura , annunciando a proximidade de um povoado . Os caminhos estreitavam , internando-se no valle , e seguiam tortuosamente por entre muros tôscos de pedra ensossa , silvados e sebes naturaes . A chuva , que não cessára de cair , transformára estes caminhos , onde o declive não dava escoamento ás aguas , em charcos e tremedaes . Novos indicios da vizinhança da aldeia iam successivamente apparecendo . Aqui era uma manada de bois soltos , em direcção do curral , guiados por uma creança de palhoça e pernas nuas , os quaes paravam a olhar com aquella expressão de composta curiosidade , que lhes é peculiar , para o recem-chegado visitante da aldeia . Não faltou receio a Henrique , que suppôz a estes bonacheirões quadrupedes a indole travêssa e bravia dos touros , a cuja chegada tantas vezes fôra assistir em Lisboa . Mais adeante passava por elles uma fileira de carros a vergarem sob o pêso do matto e atroando os ares com o chiar incómmodo das rodas sob o eixo , incómmodo para os ouvidos cidadãos de Henrique , cujos nervos se irritavam com elle , mas apparentemente agradabilissimo para os conductores aldeãos , que ou dormiam ou cantavam com aquelle acompanhamento . N ' um e n ' outro ponto deparavam-se-lhe já algumas casas de tectos de colmo , de cujas innumeras fendas saía um fumo espêsso , que a atmosphera humida mal deixava elevar nos ares . No olfacto deshabituado de Henrique de Souzellas o cheiro resinoso e activo das pinhas e das agulhas sêccas dos pinheiros , queimadas no lar , produziam sensações muito longe de serem agradaveis . Augmentava- se-lhe com tudo isto a funda melancolia que já lhe tomára o animo . -- Tantas fadigas para este resultado ! -- pensava elle . -- Sair de Lisboa para me enterrar n ' esta aldeia escura e suja ! Enganou-se o parvo do doutor . Cuidava que me salvava e matou-me . Eu morro por certo aqui . Deus lhe perdôe o homicidio . Os caminhos succediam-se aos caminhos , qual mais tortuoso e incómmodo de trilhar ; as curvas complicavam-se como as ruas de um labyrintho . Aqui subiam ; desciam mais além , para subir outra vez . Umas vezes caminhavam em terreno descoberto , outras penetravam em tão estreitas quelhas , apertadas entre paredes argilosas e humidas e toldadas de ramos entrelaçados , que só o instincto do animal podia evitar-lhes os perigos . Ora soavam as patas do macho como em chão lageado , ora amortecia-lhes o som um terreno , que a chuva encharcava , e a agua lamacenta vinha salpicar o rosto do cavalleiro . As casas eram já frequentes , e algumas de menos humilde apparencia . Os cães , que , pelo timbre de voz , mostravam ser gigantes , ladravam raivosos por dentro dos portões ou de sobre os muros das quintas , ao ouvirem os passos da cavalgadura ou a voz do almocreve , que falava ou cantava sempre . Outras vezes era um inharmonico grunhir suino que accusava a vizinhança das córtes ou , partindo de um casebre rustico , o chorar de creanças , entremeado com os ralhos das mães e com as pragas dos chefes de familia . O almocreve não desistira das suas funcções de cicerone , que sómente interrompia para saudar alguns conhecidos seus , a cuja porta passavam . -- Estes campos e lameiros -- ia dizendo -- são da morgadinha dos Cannaviaes ; andam arrendados a um compadre meu . E exclamava para dentro de uma casa terrea , escassamente allumiada por uma candeia : -- Boas noites , tia||_Escolastica Escolastica|_Escolastica . Como vae a pequenada ? -- Ai , é vossemecê , sr.||_José José|_José ? Então não entra ? -- respondia-lhe uma voz feminina . -- Agora , não , ámanhã . E proseguiu para Henrique : -- É uma santa creatura . A morgadinha ... Henrique interrompeu-o : -- Onde fica a final , a quinta de Alvapenha ? onde mora minha tia ? Não me dirás ? -- É logo ahi adeante , meu patrão . Em nós passando umas casas amarellas que ha ahi ... é logo ao pé . Essas casas que digo são tambem da morgadinha , mas ha uma demanda pelos modos . O almocreve falava pela decima ou undecima vez na morgadinha . Até esta periodica referencia a uma personagem que elle não conhecia , impacientava Henrique de Souzellas . E continuavam a succeder-se em enredado dedalo as quelhas e azinhagas , a ponto de fazer perder toda a orientação . Umas vezes ouviam o ruido das levadas , que as ultimas chuvas tinham engrossado ; adeante , transpunham uma ponte rustica , escutando das profundezas do despenhadeiro , que ella atravessava , o fragor das cascatas nos açudes ou o ranger das rodas dos moinhos . Henrique a cada momento imaginava cair n ' um abysmo . -- São os açudes do Casal -- dizia o almocreve berrando para se fazer ouvir através do estrondo da torrente . -- Pertencem á morgadinha dos Cannaviaes . Henrique nem alento já tinha para falar . Ao triste e quasi sinistro aspecto d' aquella aldeia tão cerrada lhe envolveu o coração a nuvem de melancolia , que cedeu sem resistencia ao crescente torpor que o invadia , como o que desespera da vida e da salvação . Mais adeante , excitou-lhe ainda as attenções uma toada plangente , melancolica , monotona , que exacerbou estes effeitos . -- É uma fiada em casa do Tapadas -- disse o almocreve . -- É um dos maiores amigos do pae da morgadinha . Vê aquelle muro acolá ? -- Eu não vejo nada . Deixa-me ! -- Pois pertence já á quinta dos Cannaviaes , que a morgadinha ... -- Outra vez ! Cala-te para ahi com essa morgadinha -- exclamou Henrique . Era evidente emfim que estavam em pleno coração do povoado . As casas appareciam mais juntas . De algumas saía um surdo rumor de vozes que tinha o que quer que era de lugubre . Era a corôa rezada em familia a Nossa Senhora . A voz grave do lavrador casava-se com a voz quebrada e trémula do avô , com a voz sonora e fresca da mãe , e a juvenil das raparigas e creanças n ' aquelle piedoso côro , produzindo um effeito que acabou por levar ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante . -- Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha , que não a acabamos de attingir ? O almocreve d' esta vez nem respondeu ; sacudiu uma chicotada sibilante junto ás orelhas do muar , o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira orlada de arvores , volveu á direita e , á voz do almocreve , estacou em frente de um portão de quinta resguardado por um telheiro rustico . -- É aqui -- disse o guia . -- Até que emfim ! -- exclamou Henrique , suspirando . Suspiro -- conforto e de tristeza ao mesmo tempo , como o do homem cançado da vida , quando antevê o repouso do tumulo . Em Henrique era intima a convicção de que a quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemiterio . O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no solido portão de castanho , deante do qual tinham parado . As primeiras vozes , a responderem-lhe , foram as de dois cães , que acudiram de longe ao signal e vieram ladrar á porta com furia , que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção que o esperava . De facto as intenções dos quadrupedes não pareciam demasiado hospitaleiras . O almocreve divertia-se excitando-os de fóra com uma vara de vime , apesar de quantas recommendações de prudencia lhe fazia Henrique , não em demasia socegado . A final ouviu-se uma voz aspera e rouca , chamando os cães á ordem , se é licito , sem irreverencia , empregar n ' este caso a phrase consagrada para outro genero de algazarra . Henrique ouviu rodar a chave , correr os ferrolhos , levantar a aldraba , gemerem os gonzos , e emfim um homem de lavoura alto e magro , trazendo em punho um lampeão de frouxissima luz , appareceu-lhes á porta e saudou-os com a fórmula do estylo : -- Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites . E , levantando a luz á altura do rosto de Henrique , poz-se a miral- o com a menos ceremoniosa curiosidade . -- É o sobrinho cá da senhora , não é verdade ? -- Sou eu mesmo . -- Está um tempo muito azêdo . Eu já julgava que não vinham . Entre . Henrique não se resolvia a acceitar o convite , porque lhe continuavam a impôr respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois façanhosos quadrupedes , cuja má vontade era a custo refreada . -- Entre , entre -- insistia o homem . -- Mas esses animalejos ? ... -- Ah ! isto não faz mal . Sae- te p ' ra lá , Lobo : passa , Tyranno ! Lobo ! Tyranno ! Que nomes ! E dizia o homem que não faziam mal ! -- C ' os diabos ! ti ' Manuel -- disse o almocreve -- em occasião de se esperarem hospedes , não se soltam assim os cães . Os diabos não são nenhuns cordeiros . Olhe no outro dia o sr.||_Joãosinho_das_Perdizes Joãosinho|_Joãosinho_das_Perdizes das|_Joãosinho_das_Perdizes Perdizes|_Joãosinho_das_Perdizes , que por pouco lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas . -- Forte perca ! -- resmoneou o outro . -- Não trouxesse cá os d' elle . Não tem dúvida ; entre o senhor , que elles não lhe fazem mal . -- Não entro ; assim é que não entro -- teimou Henrique , a quem as palavras do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução . O homem em vista d' isto encolheu os hombros e bradou : -- Ó Luiz ! Uma creança de cinco annos , e quasi nua , correu ao chamamento . -- Enxota para lá esses cães , que aqui o senhor tem mêdo . A creança , á palavra mêdo , fitou Henrique com uns olhos espantados , e tomando do chão um tronco de tojo , deu-se a zurzir desapiedadamente nas feras , que , com todos os signaes de respeito , de orelha baixa e cauda abatida , fugiram deante d' ella . O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um tanto maltratado com o desfecho da scena ; mas a prudencia consolava-o , dizendo-lhe que andára ajuizadamente . -- Agora vossemecê -- disse o camponez para o almocreve -- arranje-se como puder e mais a bêsta ahi pelas lojas , emquanto eu ensino o caminho ao senhor . -- Vão , vão com Nossa Senhora , que eu cá me arranjarei . Muito boas noites , sr. Henriquinho . -- Adeus , José -- disse Henrique , passando para a mão do guia a esportula da gorgeta , e após seguiu , com as pernas trôpegas de cavalgar , o homem do lampeão . Não era para dissipar a impressão penosa , que subjugava o espirito de Henrique , o aspecto que lhe offerecia , áquella hora da noite , a parte da quinta , por onde era conduzido para a casa de Alvapenha . Primeiro , trilhou o pavimento molle de um quinteiro ou eido , estradado de altas camadas de matto e embebido de chuva , d' onde se exhalava um cheiro de cortumes , pouco de lisonjear o olfacto mal habituado a estes aromas campezinos . A luz do lampeão a custo conseguiu evitar a Henrique o tropeçar n ' um carro desapparelhado , n ' uma dorna , n ' uma pia para gallinhas , e em outros objectos que atrancavam o quinteiro . Transpondo a cancella que terminava este , seguiram por uma rua de folhas ; atravessaram diagonalmente a horta , pelo carreiro que a dividia ; ladearam a eira e a casa do cabanal , e , effectuados mais alguns rodeios , acharam-se finalmente junto da escadaria de pedra , por onde se subia para uma especie de patamar ou varanda alpendrada , que servia de um modesto portico á casa de Alvapenha . A propriedade da tia de Henrique era um genuino typo de casa rustica , á moda do Minho . Ao subir as escadas , e apesar de mal poder divisar os objectos á escassa luz que os allumiava , recebeu Henrique a primeira impressão agradavel de toda aquella mal estreada excursão . Estas escadas , esta varanda de pedra e este alpendre avivaram n ' elle memorias , quasi apagadas . Lembrava-se agora vagamente de ter brincado alli , a cavallo n ' esse mesmo parapeito , então , como agora , enfeitado de uma formidavel cohorte de aboboras meninas , victimas votadas ás festas do proximo Natal . A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um grande vaso de louça , que elle , havia vinte e tantos annos , conhecera , e ao qual tinha a ideia vaga de haver quebrado uma aza ; abaixou-se no intento de se certificar , e viu que de facto ainda lhe faltava a aza , sendo este o unico estrago que após tanto tempo o velho utensilio soffrêra . -- É admiravel ! -- não pôde deixar de exclamar Henrique ao fazer a descoberta , vendo que em oito dias operava maior reforma nos seus aposentos em Lisboa , do que n ' um quarto de seculo se realisava em Alvapenha . O hortelão bateu á porta e disse para dentro que era o sobrinho da senhora que chegava . Seguiu-se um mexer de cadeiras , um trocar de vozes , um arrastar de passos ; moveu-se a chave na fechadura ; abriram-se as portas e no limiar appareceu de braços abertos a tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa , e por traz d' ella , elevando a luz acima do hombro da ama , a criada Maria de Jesus , a que , havia trinta annos , lhe era companheira e interessada em lagrimas e pesares . Já Henrique lhe andára ao collo no tempo em que estivera creança na quinta . Deante da figura esbelta , do typo varonil e do comprido bigode de Henrique , a sr.a||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa reprimiu as suas expansões e quasi recuou . Nunca mais vira Henrique desde que este , aos cinco annos , deixára Alvapenha , e dir-se-hia que esperava ainda encontrar os mesmos cabellos louros e annelados e o mesmo rosto menineiro da travêssa creança de outros tempos , em vez do homem feito , em que os vinte e tantos annos volvidos o tinham transformado . Ha d' estas illusões na gente . A mais segura razão não está precavida contra ellas ; a infundada surpreza invade-nos de subito , e os labios não podem prender a exclamação que a denuncia . -- Pois na verdade tu és o Henriquinho ? ! -- disse espantada a boa senhora . -- Eu julgo que sim , tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa . -- Tu ! Ai como estás um homem ! Ó Maria de Jesus , você não quer vêr isto ! ? -- Parece mesmo um soldado ! -- disse a criada , igualmente estupefacta . -- Credo , mulher ! Santissima Trindade ! Você que está a dizer ? Nossa Senhora nos livre de tal ! -- exclamou a ama , em cujo conceito o soldado estabelecia a transição do homem para o diabo . No entretanto Henrique de Souzellas abraçava a tia , que havia tanto tempo que não vira , e ella correspondia-lhe , beijando-o com todo o carinho e chorando . Chorando por quê ? Por quê ? Pela muita bondade que tinha n ' aquella alma . A bondade é um rico manancial , que brota lagrimas ao toque da menor commoção . Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se dos roxeados amplexos e mais provas de affecto de sua tia , quando se sentiu prêso em novos laços . Era Maria de Jesus , que o abraçava tambem e lhe pespegava nas faces dois beijos muito chiados , como aquelles que veem a ferver do coração , e isto acompanhado de um -- Ai o meu rico filho ! -- tão eloquente como os beijos . Henrique , habituado ás etiquetas da civilisação urbana , que estabelece entre amos e criados distancias desconhecidas na aldeia , extranhou um pouco a familiaridade , mas sujeitou-se a ella sem reflexões . Maria de Jesus dizia , ainda admirada : -- Ó senhora ! Não que uma coisa assim ! Pois é este o menino que vinha á cozinha limpar o tacho , em que se fazia a marmelada ! -- É verdade ! E que boa marmelada cá se fazia ! -- Lambareiro ! -- disse a tia , sorrindo . -- Se eu soubesse que eras assim , não tinha mandado lavar o tacho do dôce , que ainda hoje serviu . -- Sim ? Então ainda se faz dôce cá em casa , como d' antes ? -- perguntou Henrique . -- Pois então ? todos os annos . Mas valha-me Deus ! E não querem vêr nós aqui postas á palestra ! Entra , menino , entra cá para dentro , que está frio e tu deves vir cançado . -- Um pouco , um pouco , tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa . E Henrique entrou para a sala . Demoremo-nos no limiar para informar o leitor sobre as pessoas , em cuja casa se vae alojar com Henrique de Souzellas . Não se imagina a santa paz de espirito , a placidez de paraiso , que estas duas mulheres -- D. Dorothéa e Maria de Jesus , ama e criada -- gosavam na quinta de Alvapenha , onde Henrique de Souzellas ia procurar allivio aos seus muitos e variados males . Ambas da mesma idade , ambas muito aferradas aos seus habitos , ambas muito tementes a Deus e amigas do proximo , as duas celibatarias passavam alli uma vida , rescendente a um suave perfume de santidade , como o da alfazema e do rosmaninho , que lhes aromatizava as gavetas e de que se repassava toda a roupa branca , objecto muito dos seus cuidados . A inalteravel harmonia , mantida havia tantos annos entre as duas , poderia ser exemplo á maior parte das familias d' este mundo . Entre velhas , que nunca tiveram filhos , circumstancia que em geral faz o humor mais acre e desabrido , era tanto mais para admirar o caso . Tinham ellas porém a precisa tolerancia para fazerem mutuas concessões ; cada uma fechava os olhos aos pequenos caprichos da outra , e tudo corria bem . Nunca a dentro d' aquellas paredes se ouviu uma só palavra , que , por mais alto pronunciada ou por menos expressiva de paciencia , destoasse da invariavel monotonia dos seus habituaes dialogos . Eram um exemplo edificante para os vizinhos , que , pela maior parte , devorados por demandas entre primos e irmãos , paes e filhos , marido e mulher , mostravam infelizmente ser esta abençoada semente caída em improductivo terreno . As discordias intestinas nas familias do seu conhecimento affligiam as duas sexagenarias e augmentavam o numero de Padre-Nossos com que todas as noites se faziam lembrar dos santos , de quem eram validas , pedindo-lhes a felicidade dos outros tanto ou mais do que a sua propria . Ouvir rezar as duas santas velhas -- e era essa a occupação dos seus curtos serões -- equivalia a escutar uma resenha das differentes calamidades , que perseguem e apoquentam o genero humano , e que ellas , d' esta maneira , pretendiam evitar . -- Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria a S.||_Marçal Marçal|_Marçal , para que nos livre do fogo -- dizia D. Dorothéa , e seguia-se o Padre-Nosso . -- Outro a Santa Luzia milagrosa , para que nos dê vista e claridade na alma e no corpo ; outro a S.||_Braz Braz|_Braz , para que nos proteja da garganta ; outro a S. Vicente , por causa das bexigas , etc. Seguia-se um Padre-Nosso por todos os que andam sobre as aguas do mar ; outro por os pobres sem abrigo nem alimento ; outro por os orphãos ; outro pelos doentes ; um pelos vivos ; outro pelos mortos ; um pelos justos ; outro pelas almas do purgatorio , não hesitando até a sua caridade em transpôr as portas do inferno e pedir tambem a remissão dos condemnados . E ainda depois d' esta minuciosa e longa enumeração , um ultimo Padre-Nosso fechava a primeira serie , comprehendendo todos os não contemplados por esquecidos , ou por não terem logar na classificação . Compunha a segunda serie a menção especial de cada uma das pessoas fallecidas das suas relações : parentes , amigos e conhecidos , por cujo " eterno descanço entre os resplendores da luz perpetua " oravam com verdadeira compunção . N ' esta phalange ia tambem D. João VI , por quem , havia quarenta annos , se costumára a rezar D. Dorothéa , e não era ella mulher que rompesse com habitos semi-seculares . Era esse talvez o unico Padre-Nosso que a alma do monarcha recebia no Céo , com procedencia do seu antigo reino . Quanto ás qualidades physicas , a imaginação dos leitores pintar-lh ' as- ha melhor do que a minha descripção . Forçosamente conheceram uma d' estas boas velhas , para quem nos sentimos attrahidos ; a quem se estima e com quem se brinca ao mesmo tempo ; que nos podem inspirar sacrificios e simultaneamente nos tentam a travessura ; a quem mystificamos agora e logo beijamos respeitosamente a mão ; contra quem não reprimimos impaciencias , escutando depois submissos os seus nunca terminados sermões . Ora estas velhas assim teem quasi sempre um typo uniforme , que é o reflexo exterior da bondade do coração ; esse era o typo da tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa com o seu vestido rôxo , o seu lenço castamente cruzado no peito , a sua touca de folhos alvissimos e de fitas escuras , o mólho de chaves á cinta , o livro de orações na algibeira e os oculos a marcarem no livro a reza habitual . Maria de Jesus de igual maneira . Era apenas uma edição popular da mesma alma . Succedêra de mais com ellas o que é sempre de esperar de uma longa e intima convivencia ; haviam reciprocamente adoptado maneiras e modos de pensar e de vêr e de dizer as coisas uma da outra , a ponto de qualquer d' ellas ser como que uma premissa d' onde a modo de conclusão , se deduzia a outra facilmente . Tudo isto percebeu logo Henrique de Souzellas ao primeiro exame que fez das duas santas mulheres . Entremos agora com elle para dentro da sala . Quem , vinte annos antes , tivesse visitado a casa de Alvapenha e ahi voltasse de novo com Henrique julgaria , á vista da uniforme disposição de coisas mantida alli dentro em tão distantes épocas , que todo esse tempo não fôra mais do que um sonho de momentos . Encontraria os mesmos móveis , na mesma collocação ; as mesmas cobertas nos leitos , apenas mais desbotadas ; as mesmas ou iguaes cortinas nas janellas ; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosphera dos quartos , os mesmos quadros na parede , as mesmas jarras nas cómmodas . A memoria de Henrique , aquella inconstante e leviana memoria de rapaz estouvado , sentia-se acordar , á vista d' aquillo tudo . A sala tinha uma physionomia caracteristica . Supponha- se uma não muito ampla quadra de pouca altura , toda pintada a óca , e alumiada por duas mal rasgadas janellas de peitoril , com os seus competentes assentos de pedra , um defronte do outro , com meias cortinas de cambraia sempre corridas -- pleonasmo de discrição que se não justificava , visto que as janelas , abrindo para a quinta , não tinham vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-se . O tecto era de almofadas de castanho , em tempos pintado de azul , agora de uma côr duvidosa . Havia quinze annos que D. Dorothéa falava em o mandar retocar , mas o projecto , momentoso como era , ia sendo adiado de primavera para primavera . Orlava a sala , no alto , um friso ou cornija saliente , onde coroadas maçãs de inverno aguardavam , em vistosa fileira , a completa maturação , e derramavam no aposento o mais agradavel aroma . O pavimento , apesar de muito picado de caruncho , andava limpo e escafunado -- termo do vocabulario de casa -- que mettia gôsto vêl- o . Cada parede era um museu de estampas de devoção . Poucos santos e santas da côrte celestial não estavam alli representados e com um colorido , que era o maior peccado , a que estes bemaventurados haviam dado logar cá no mundo . Cá se via Santa Quiteria e as suas sete companheiras ; Santa Anna ensinando Nossa Senhora a ler ; o Senhor||_dos|_Passos dos||_dos|_Passos Passos|_dos|_Passos , venerado em S.||_João_Novo João|_João_Novo Novo|_João_Novo , no Porto ; o Bom Jesus de Bouças , representação da imagem , que , segundo reza a respectiva chronica , é obra das mãos de José de Nicodemus ; os Santos Martyres de Marrocos , da igreja de S. Francisco , etc. , etc. Sobre a cómmoda de pau preto era devotamente venerado o mais rubicundo , menineiro e bem disposto Santo Antonio , que ainda modelaram as mãos de santeiro afamado . E seja dito de passagem que não sei por que a tradição popular dá a este austero franciscano o aspecto chorudo de um moderno reitor de farta abbadia de aldeia . No interior da redoma onde se abrigava o santo estava estabelecido o museu de raridades da tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa . Eram flores artificiaes , concharinhas e caramujos , um rosario de caroços de azeitonas , uns poucos de vintens de prata , enfiados e pendentes do braço do menino Jesus , que o santo sustentava ao collo , veronicas , escapularios , uma campainha benta , uma medida do braço do Senhor||_de|_Mattosinhos de||_de|_Mattosinhos Mattosinhos|_de|_Mattosinhos , um pão do sacco de Santa Isabel , que vae na procissão de Cinza , no Porto , e outros objectos curiosos . A mobilia da sala consistia em cadeiras de palhinha , que gemiam quando entravam em serviço , como militar , cujas articulações o rheumatismo invadiu ; mesas cobertas com colchas de chita ; bahús cravados de pregaria amarella , disposta em lettras e arabescos ; uma papeleira de pau santo , e uma gaiola com um canario decrepito , objecto , havia muitos annos , das tentações de um gato , mais decrepito do que elle e pertencente ás classes inactivas . Henrique , adivinhando por todo aquelle cheiro de beatitude e de antiguidade que alli se respirava , os habitos da casa , sentia já certo desconfôrto , como de quem é arrancado de subito ao ambiente , em que se educou e vive , e engolfado n ' um ambiente extranho ; especie de asphyxia moral , não menos angustiosa do que a do peixe fóra da agua . A saudade que ao principio sentira , dissipára- se já . O perfume da saudade é como o de certas flores , que só se percebe quando de longe o recebemos . Se , illudidos , as tentamos aspirar de perto , dissipa-se . Acontecera isto com Henrique . Cada vez portanto se lhe radicava mais funda a crença de que não seria por muito tempo que se demoraria alli . -- Os emollientes do doutor -- pensava elle , emquanto sua tia falava -- serão efficazes para quem os pudér soffrer sem enjôo , mas para mim ... No entretanto sentou-se . -- Ora o Henriquinho ! -- dizia ainda D. Dorothéa , pondo-se de braços cruzados em contemplação defronte d' elle . -- Ó menino , onde foste tu arranjar esses bigodes tamanhos ? Então isso agora usa-se ? Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique . -- Quem quer usar , usa , tia . Não é obrigação -- respondeu elle , com leve mau humor . -- Em nome do Padre e do Filho ! -- dizia Maria de Jesus , benzendo-se e tomando logar ao lado da ama . -- Até nem sei que parece , lembrar-se a gente que trouxe este marmanjão ao collo ! O termo " marmanjão " não soou bem a Henrique . Principiava tambem a impaciental- o o vêr as duas embasbacadas deante d' elle ; um homem sujeito a uma exposição d' estas , por mais que faça , não atina com o modo de arrostar com ella , que não seja ridiculo . Ora Henrique , como todo o homem da sociedade , o que mais que tudo temia n ' este mundo era o ridiculo . Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa , que fez perceber á criada a conveniencia de ir preparando a ceia de Henrique , que havia de querer recolher-se . Henrique , apesar de não costumar cear , acceitou a ideia , porque o frio , as fadigas e a má alimentação dos ultimos dias , haviam-lhe desafiado o appetite . Demais , o espanto de D. Dorothéa , quando lhe ouviu dizer que as ceias não entravam nos seus habitos , foi tal que lhe tirou o animo de rejeitar . -- Não ceias ! Ó menino , que me dizes ? então vaes-te deitar sem ceia ? Ora essa ! Por isso vocês são uns pelens . Vejam lá que arranjo este ! ficar toda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento ao estomago , que aconchegue . Nada , nada ; a ceinha em todo o caso . E tu has de tambem querer mudar de fato ? -- Eu venho bastante molhado . -- Ai , então depressa , menino , que não ha nada peor do que a roupa molhada no corpo . Ó Maria ... ou deixe estar , eu vou ... Anda , Henriquinho , anda lá , que eu guio-te ao teu quarto para te arranjares . Meia hora depois , Henrique banhado , enxugado e commodamente vestido , saboreava uma gorda gallinha de canja , sobre uma mesa coberta de toalha lavada , e na melhor louça da copeira . Elle que tinha sempre severidades de critica contra os mais afamados cozinheiros de Lisboa , estava achando deliciosa aquella comida primitiva , com que o regalava a tia . Esta sentou-se a vêl- o comer , e com a mesma familiaridade , que Henrique já anteriormente extranhára , Maria de Jesus sentou-se ao lado da ama . Ambas tinham ceado já ; pois que o faziam ao cerrar da noite . Emquanto Henrique comia , ellas , sem deixarem de o observar com a natural curiosidade de quem havia tanto tempo não tivera um hospede , faziam-lhe perguntas , ás quaes elle ia respondendo conforme lhe era possivel . -- Tu dizias-me na tua carta que estavas doente ; pois olha que na cara não o parece . -- Não -- concordou a criada -- tem boas côres , e , vamos , a magreza inda não é lá essas coisas . Era este o ponto fraco de Henrique ; respondeu logo ao reclamo . -- Não me digam isso ! Então não vêem como estou ? Pois isto é lá côr de saude ? de febre , será . Gordo ? pois acham-me gordo ? ! -- Gordo , não digo , mas assim , assim ... E depois como vieste de jornada ... Mas a final que molestia é a tua , menino ? -- Eu sei lá , tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa ? Nem os medicos a conhecem bem . É , entre outras coisas , uma tristeza , uma melancolia , que me não deixa , que me persegue por toda a parte . Ás vezes parece-me que sinto apertar-se-me dolorosamente o coração ; outras , são palpitações , ancias ... Tenho quasi vontade de chorar , irrito-me , impaciento-me , não quero que me falem , nada quero vêr , nada quero ouvir ; não leio , não durmo , não como . Finalmente todo eu sou doença e tristeza . A boa tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa olhava com sisudez e attenção para o sobrinho , emquanto elle falava , e na physionomia iam-se-lhe desenhando , ao ouvil- o , os mais expressivos signaes de espanto e consternação . Assim que Henrique terminou a exposição , ella disse-lhe com uma adoravel candura : -- Então é assim uma especie de mania ! Á palavra " mania " Henrique sobresaltou-se . Seria a consciencia que se sentiu ferida ? -- Mania ? Ó tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa ! Mania ! Veja bem , olhe que o termo é forte ? Mania ! -- Sim , menino -- insistiu ingenuamente a boa senhora -- pois olha que não é outra coisa . Pois isto de estar triste sem ter de quê ... sim ... porque não te morrendo ninguem , nem te doendo nada ... Ó poetas devaneiadores , ó almas melancolicas , que percebeis no sussurrar das brisas , no ciciar das folhas , no murmurar dos arroios , queixas occultas de dryades e de nayades , sentidas vibrações das harpas de fadas aereas , que vivem em palacios de nuvens ; ó corações inoculados de poesia , que vos confrangeis e gottejaes lagrimas sinceras ao desmaiar do dia , ao desfolhar das arvores no outomno ; poetas , que escutaes , com Victor Hugo , as vozes interiores , os cantos do crepusculo , e com elle adivinhaes os mysterios dos raios e das sombras , perdoae a involuntaria blasphemia da tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa , que não contem o menor fermento de malicia ; perdoae-lhe a dura expressão de que ella se serviu para caracterisar os vossos arroubamentos , as vossas tristezas vagas , os vossos devaneios , e crêde que , apesar da phrase , terieis n ' ella uma alma mais afinada para sympathisar comvosco , do que tantas que por ahi fazem gala de vos comprehender melhor . Henrique não podia porém digerir a expressão , de que se servira a tia , para diagnosticar o seu mal . -- Mania ! -- repetia elle -- essa agora ! Sempre é forte de mais . Mania , não , tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa , lá isso não . Mania ! -- Eu lhe digo -- acudiu a criada . -- Não vá sem resposta ; que está quasi como o cunhado da Rosa do Bacello . A senhora não se lembra ? Andou aquella alminha por ahi sempre triste , sempre a falar só , até que a final lá foi parar ... -- Aonde ? -- perguntou Henrique , erguendo os olhos interrogadoramente para a criada . -- Lá foi parar a Rilhafolles -- concluiu esta , espevitando a véla o mais naturalmente d' este mundo . Henrique de Souzellas pulou com a sinceridade . Nem acabou de sorver a ultima colhér de caldo de arroz , que lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera . -- Então não comes mais ? -- perguntou a tia . -- Muito agradecido ; eu o mais que tenho é somno . -- Pois sim , mas é preciso fazer por comer -- insistiu ella . -- Ora vá mais este côxão -- disse a criada . -- Não é possivel -- teimou Henrique , e insistiu para se recolher ao quarto . -- Tens razão , tens -- concordou a tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa -- deves estar fatigado . Vae com Nossa Senhora , menino . E deixa-te lá de pensar e estar triste , que isso não é bom . É fazer por espairecer . Come , bebe , passeia , que é o que dá saude . Nada de malucar . -- Sim -- accrescentou a criada -- e não queira estar doente , que não tem graça nenhuma . -- E olha , Henriquinho , tu tens por ahi com quem te podes distrahir . O brazileiro Seabra , que tem uma casa como um palacio ; o Augustito do doutor , que é um bom mocinho . E depois vae dar um passeio por ahi , um dia até os moinhos outro dia até á ermida da Senhora||_da|_Saude da||_da|_Saude Saude|_da|_Saude . Agora me lembra : a Lenita já mandou ahi outra vez saber se tinha chegado o hospede -- disse D. Dorothéa . -- Não foi só a morgadinha ... -- Ahi está você a chamar-lhe tambem a morgadinha . -- Então , senhora ? ! isto é o costume . Mas todas as outras senhoras mandaram tambem o Torquato saber do sr.||_Henrique Henrique|_Henrique . A sr.a||_D._Victoria D.|_D._Victoria Victoria|_D._Victoria e a Christininha . -- Ai , pois cuidadosas são ellas ! Tu has de te entender com aquella gente . É uma gente muito dada e sem ceremonia . É preciso lá ir . Olha , ámanhã podes ir visital-as . É um passeio bonito . Henrique , que tinha estado distrahido durante a conversa das duas , nem se dava ao trabalho de intervir no dialogo em que ellas dispunham já do seu tempo e traçavam-lhe planos de vida . -- Mas vae descançar , menino , vae e faze por dormir . Olha lá , tu costumas dormir com luz ? -- Não , tia , não costumo . -- É porque n ' esse caso ... Ó Maria , onde está aquella lamparina , que me serviu quando eu estive doente , ha seis annos ? -- Está lá dentro , senhora ; se a senhora quer eu ... -- Vê lá , menino ... -- Não tia , não quero . -- Ha pessoas que não podem dormir ás escuras -- dizia a criada . -- Eu , graças a Deus , durmo bem de qualquer fórma . -- Pois sim , mas nem todos são como você . Olha , ó Henriquinho , has de vêr se queres o travesseiro mais alto ou ... -- Muito agradecido , tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa , tudo deve estar bom -- disse Henrique , procurando fugir ás muitas reflexões , perguntas e conselhos , com que as duas o iam perseguindo até o quarto . -- Olha , ó menino , tu bebes agua de noite ? -- Ás vezes . -- Você poz-lhe agua no quarto , Maria ? -- Puz , sim , minha senhora ; pois então ? Já minha mãezinha dizia , que antes sem luz do que sem agua . -- Bem , então está bom . Então muito boa noite , menino . -- Boa noite , tia . -- Ai , é verdade . Has de vêr se queres mais roupa na cama . -- Não hei de querer , não , tia . -- Olha que está muito frio . Você quantos cobertores lhe deitou , ó Maria ? -- Cinco , senhora . -- Cinco ! -- exclamou Henrique , quasi horrorisado . -- Cinco cobertores ! -- É pouco ? -- Pouco ? -- É de morrer esmagado debaixo d' elles . -- Ai , quer não ! Olha que está muito frio . -- Bem , bem ; eu cá me arranjarei . -- Então , muito boa noite . -- Muito boa noite , tia . E Henrique ia a fechar a porta . -- Olha ... -- disse ainda a tia . Henrique parou . -- Não sei o que é que me esquece ... -- Não ha de ser nada , tia ; boa noite . -- Não esquecerá ? ... Eu sei ? ... Emfim ... boa noite . Ai , é verdade ... Sempre é bom ficar com lumes promptos . -- Ai , sim ; lá isso sempre é bom . -- Vês ? não que bem me parecia . -- Já lá estão , senhora -- disse a criada de longe . -- Melhor ; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor , menino . -- Muito boa noite , tia . E Henrique conseguiu fechar a porta . Estava finalmente só . -- Que desastrada lembrança a minha ! -- disse o pobre rapaz , ao fechar a porta sobre si . -- Como posso eu viver com esta santa e virtuosa gente , que chama manias aos meus padecimentos ? Que futuro de impertinencias me espera ! Ai , Lisboa , Lisboa , e pensar eu que só posso voltar para ti á custa de outra jornada ! O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade . Um alto leito de almofadas na cabeceira e rodapé de chita , tão alto que se não dispensava o auxilio de cadeira para trepar acima d' elle , uma commoda com um pequeno espelho , um bahú , um lavatorio e duas cadeiras mais , constituiam a mobilia toda . Henrique de Souzellas sentiu a falta de mil pequenos objectos de toucador , a que estava habituado . Aquelle estrictamente necessario não lhe promettia grandes confortos . Deitou-se . A roupa da cama era de linho alvissimo e respirava um asseio e frescura convidativos : os travesseiros , de largos folhos engommados , possuiam uma molleza agradavel ás faces ; o colchão de pennas abatia-se suavemente sob o peso do corpo fatigado . Henrique conchegou a roupa a si ; á falta de velador , pousou o castiçal no travesseiro , e , abrindo um livro que trouxera de Lisboa , poz-se a ler , para obedecer a um habito adquirido . Não teria ainda lido um quarto de pagina , quando ouviu a voz da tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa , que lhe dizia de fóra da porta : -- Ó menino , tu já te deitaste ? -- Já , sim , tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa . -- Olha se tens cautela com a luz . Eu tenho um mêdo de fogos ! -- Esteja descançada , tia . Eu apago já . -- Então será melhor . S.||_Marçal Marçal|_Marçal nos acuda . E afastou-se , rezando ao santo . Henrique continuou a ler . D ' ahi a pouco a mesma voz : -- Tu já dormes , Henriquinho ? -- Não , tia , ainda não durmo . -- Olha que não vás adormecer sem apagar a luz . Eu tenho um mêdo de fogos ! Não descanço , emquanto não vejo tudo apagado em casa . Henrique perdeu a paciencia . -- Pois pode socegar , olhe . E apagou a véla , meio zangado . -- Fizeste bem , fizeste bem ; isto já é tarde , e é melhor fazer por dormir . Então , muito boas noites . -- Muito boas noites -- respondeu Henrique quasi amuado ; e ageitando- se na cama , dizia comsigo : -- E esta ! Já vejo que nem ler me é permittido aqui . Olhem que vida me espera ! É isto o que me devia curar ? Que fatalidade ! Dentro em pouco , os dois felpudos cobertores de papa , unicos que conservava dos cinco primitivos , começaram a fazer o seu effeito , insinuando nos membros cançados da jornada um agradavel calor . Convidavam ao somno o som da agua n ' um tanque que ficava por debaixo das janellas do quarto e as gottas da chuva , que dos beiraes do telhado caíam compassadas na taboa do peitoril . A noite socegára . De quando em quando apenas algumas lufadas de vento , já menos impetuosas , faziam bater as vidraças . Eram como estes estados , que succedem a um choro aberto . Correm ainda algumas lagrimas nas faces , mas já não brotam novas dos olhos : saem ainda do peito os soluços , porém mais espaçados ; dentro em pouco será completa a serenidade . Henrique começou a experimentar uma languidez , um delicioso bem-estar n ' aquelle confortavel leito e no meio d' aquelle socego ; fecharam-se-lhe enfraquecidos os olhos , e deslisou suave , insensivelmente , no mais profundo , tranquillo e restaurador somno , que , havia muito tempo , tinha dormido . Ao romper da manhã , quando a consciencia principia , pouco a pouco , a acudir aos sentidos , até então tomados pelo torpôr de um somno profundo , Henrique de Souzellas sonhava-se commodamente sentado em uma cadeira de S. Carlos , disposto a assistir ao desempenho de uma opera favorita . Moviam-se os arcos nas cordas dos violinos , violoncellos e contrabassos ; sopravam , a plena bôca , os tocadores dos instrumentos de vento ; agitavam descompostamente os braços os ruidosos timbaleiros ; dedos amestrados faziam vibrar as cordas da harpa ; a batuta do mestre fendia airosamente os ares , e comtudo não chegava aos ouvidos de Henrique , de toda esta riqueza de instrumentação , mais do que uma nota unica , arrastada , continua , plangente , baixando e subindo na escala dos tons , e sem formar uma só phrase musical . Era de desesperar um dilettante como elle ; torcia-se na cadeira , inclinava convenientemente a cabeça , fazia das mãos cornetas acusticas , e sempre o mesmo resultado ! Este violento estado de attenção , este esforço do sensorio , principiou n ' elle a obra de despertar ; principiou pois pelos ouvidos , mas cêdo se transmittiu a todos os outros orgãos . Antes de dar a si proprio conta do que era aquelle som , e quasi esquecido ainda do logar em que estava , Henrique abriu os olhos . A luz do dia penetrava já pelas frestas mal vedadas das janellas e espalhava no aposento uma tenue claridade . Veio então a Henrique a consciencia do logar em que estava , e uma alegria profunda lhe dilatou o coração . O leitor se ainda não padeceu de insomnias , de pesadêlos , ou de somnos febris , não avalia por certo o contentamento intimo , que se apossa das desgraçadas victimas d' esses demonios nocturnos , quando por excepção elles as deixam em paz , e lhes respeitam o somno de uma noite completa . Acordar só aos raios da aurora é um dos mais ineffaveis prazeres , a que elles aspiram na vida . Penetra-lhes então nos membros um insolito vigor ; a arca do peito expande-se-lhes mais livre e as sombras do espirito dissipam-se-lhes com aquelle clarão matinal . Foi o que succedeu a Henrique . Pela primeira vez depois de muitos mezes , dormira de um somno a noite inteira . Sentia-se com isto tão bom , tão vigoroso , tão contente que teve vontade de cantar . Mas o som , que o acordára , aquella nota unica , em que se confundiam todas as notas da sonhada orchestra , ainda lhe soava aos ouvidos . Prestando-lhe a attenção de acordado , conheceu que era o chiar dos carros -- o mesmo som , que na vespera o irritára , agora assim a distancia , estava-lhe agradando , como nota extrahida por mão habil das cordas de um violino . Não resistiu mais tempo ao impulso que n ' aquella manhã o incitava ao exercicio , rara disposição no indolente filho da capital , que tinha por habito ouvir o meio dia na cama . Ergueu-se e abriu as janellas . Não é licita a comparação entre a mais surprehendente transmutação de uma d' essas apparatosas magicas , que tanto extasiam as multidões embasbacadas nas plateias e camarotes de um theatro , e as que de instante para instante , realisa a natureza . Descerrando o véo de nuvens que encobre o fulgor do sol , elevando , acima do horizonte , esse magestoso lampadario do mundo , ou o brilhante reflectidor que illumina as noites desanuviadas , a natureza opéra , a cada momento , as mais admiraveis e completas metamorphoses . Durante o somno de Henrique realisára- se um d' esses effeitos magicos . Abrandára gradualmente a violencia do sul ; o vento , mudando , voltou em sentido opposto a grimpa do campanario ; dispersaram-se as nuvens ; luziram trémulas por momentos as estrellas , empallideceram perante o alvor do dia , e quando o sol assomou por sobre a crista das serras , estendia-se-lhe deante um vasto manto azul , tapetando a estrada , que tinha a percorrer . Só , muito para o occidente , ainda algumas nuvens amontoadas formavam uma como franja , que o astro nascente em breve tingiu de carmim e de ouro . Foi pois a luz de um dia esplendido e a brisa , cheia de aromas , que vem dos campos nas alvoradas serenas que penetraram no quarto de Henrique , quando elle abriu as janellas . A inesperada surpreza quasi- lhe soltava do peito uma exclamação de prazer ! A aldeia , aquella mesma aldeia , escura e triste que , com o coração apertado , atravessára na vespera , parecia outra . O sol da manhã baixára sobre ella , dissipára- lhe as sombras , colorira-lhe as verduras , reflectira-se-lhe nas presas , dispersára- se em iris cambiantes na espuma das torrentes e cascatas naturaes , perfumára- a de aromas , animára- a de cantos , transformára-a emfim na mais risonha paizagem , em que os olhos de Henrique , pouco habituados ás esplendidas galas do Minho , tinham nunca repousado . O inverno despojára parte d' essas galas ; embora ! Até da propria nudez de algumas arvores resultavam encantos . As folhas crestadas , os ramos despidos , as moitas sem flores infundem tristeza ; mas não tem a tristeza poesia tambem ? Pode haver completa paizagem onde não haja uns tons escuros de melancolia ? Henrique de Souzellas , debruçado na varanda de pedra do quarto , não se cançava de admirar aquella scena . Parecia-lhe estar assistindo a um milagre de fadas , que , n ' um momento , elevam , nos ermos , jardins e paços , como os de Armida e Alcina . Pois era esta a mesma aldeia , através da qual elle cavalgára de noite ? Os accidentes do terreno , aquelles accidentes , que tão do fundo da alma amaldiçoára na vespera , produziam , vistos então d' alli , os mais pittorescos effeitos . Abatia-se-lhe aos pés um não muito profundo valle , opulento em vegetação , e que a certa distancia se continuava insensivel e gradualmente com uma amenissima collina . Além , um bello bosque de carvalhos seculares , que o inverno , privando-os de folhas , tingira quasi da côr da violeta , contrastava com a fronde sempre verde das laranjeiras nos pomares vizinhos , fronde por entre a qual se divisavam abundantes os dourados fructos , poupados pela mão do lavrador . As copas , como umbelladas dos pinheiros mansos , desenhavam nas encostas e eminencias fronteiras as mais suaves ondulações . Dispersos aqui e alli , e entremeiados com a verdura , grupos de casas campestres , alvejantes á luz do sol , moinhos e azenhas , noras toldadas de ramadas conicas , eiras , pontes rusticas , as mesmas talvez que com mau humor trilhára na vespera , tão sinistras então , como graciosas agora ; extensas e virentes campinas e lameiros , onde pastavam numerosas manadas de gado . Mais longe a igreja com a sua alameda á entrada e o cemiterio , onde um só mausoléo avultava ainda ; uma ou outra casa apalaçada , ennegrecida pelo tempo ; algumas ruinas , consolidadas pelas heras , revestidas de musgos , douradas de lichens ; finalmente , tudo o que tenta os paizagistas , tudo o que exalça os poetas , tudo quanto suspende os passos ao viajante ; e , encobrindo todo o quadro , um tenuissimo sendal de vapores azulados , dando-lhe a apparencia de uma das mimosas composições a pastel da mão de Pillement . A mudança de aspecto da scena operou não menor mudança nos sentimentos e disposição do enlevado espectador que das varandas de Alvapenha a estava observando . -- É preciso sair ! é preciso sair ! -- disse Henrique comsigo . -- Quero vêr isto de perto ; quero entranhar-me n ' estes bosques , quero trepar por aquelles montes , debruçar-me d' aquellas ribanceiras . E vestindo-se á pressa , e sem sentir a necessidade de uma escrupulosa toilette , saiu do quarto . Encontrou nos corredores a tia||_Dorothéa Dorothéa|_Dorothéa , que o saudou amavelmente . -- Muito bons dias , menino , então como passaste tu a noite ? -- Deliciosamente minha querida tia -- respondeu elle , abraçando-a com maior affecto e bom humor do que na vespera . O que é sentir-se a gente bem ! -- Então não estranhaste ? -- Estranhei immenso ! -- Sim ? ! -- disse a tia , mortificada . -- Dormi a noite de um somno , e acordei bem disposto ; o que para mim é a mais estranha das occorrencias . A tia sorriu satisfeita . -- Pois antes assim . E agora ... -- E agora quero sair , quero vêr esta terra , que me está parecendo um paraiso terreal . -- Espera , menino . Não vás sem almoçar . -- Almoçar ! Pois que horas são ? -- Não é cêdo ; são já sete horas . -- Já sete horas ! E Henrique insensivelmente desviou os olhos para a janella , para vêr como era a natureza , a uma hora a que raras vezes a examinava . -- E então acha que se pode almoçar ás sete horas ? -- Por que não ? Se está já prompto . -- Bom ; almocemos . O doutor disse-me que tomasse os habitos da aldeia . Principiemos por este . Entrando para a sala do jantar , Henrique viu deante de si uma taça de leite espumante , tépido , odorifero , extrahido de pouco tempo . Foi por elle que principiou o almoço . Pela primeira vez na sua vida disse elle ter bebido o leite verdadeiro , o leite que não faz mentir a analyse dos chimicos , de que os physiologistas exaltam as qualidades nutritivas , de que os poetas das georgicas cantam as delicias e virtudes ; só agora os comprehendeu elle , que bem differente d' aquillo era o aguado e quantas vezes derrancado sôro , a que estava habituado na cidade . D. Dorothéa , almoçando , e Maria de Jesus , servindo , falaram , segundo o costume , continuadamente . Henrique , d' esta vez , falou tanto como ellas . Ouvia-as já com mais attenção e respondia-lhes com mais vontade e paciencia . Falaram em muitas coisas . A tia deu parte ao sobrinho de que varias pessoas da vizinhança , sabendo-o chegado , lhe tinham mandado presentes de gallinhas , offerecendo-se , ao mesmo tempo , para lhe mostrarem as raridades da terra ; disse mais que as senhoras da quinta do Mosteiro tambem tinham já mandado saber d' elle , Henrique , e lembrou que seria delicado ir visital-as aquella manhã . Henrique concordou em tudo , quasi sem reparar em quê , e terminando o almoço apressou-se a sair para o campo . -- E se te perdes , menino ? -- lembrou a tia . -- Se me perder , farei por achar-me . Riram-se muito as boas mulheres e deixaram-o ir . Dentro em pouco , Henrique atravessava a quinta , que tambem então lhe parecia graciosa , de uma graça bucolica , a que não estava habituado . O aspecto melancolico da vespera desvanecera-se . Até para ser completa a mudança , estavam encadeados nas casotas o Lobo e o Tyranno , cujas boas graças comtudo procurou conquistar , atirando-lhes biscoutos . Foi um passeio delicioso o que elle deu . Tudo quanto via lhe era novidade , tudo lhe captivava a attenção e o distrahia dos seus lugubres pensamentos . Depois de muito andar , de subir collinas , de descer valles e costear ribeiros , foi sair a um pequeno largo , ao fim do qual havia uma casa terrea , caiada de branco , com portas verdes e janellas envidraçadas , sendo os vidros em alguns dos caixilhos substituidos por papel . Á porta d' esta casa estava muita gente parada ; mulheres , velhos , moços , creanças , uns sentados , outros deitados , outros a pé e encostados á umbreira , e todos apparentemente aguardando alguma coisa ou alguem do lado de uma das ruas , que vinha terminar no largo , e para a qual se dirigiam todos os olhares . Henrique approximou-se d' esta casa com alguma curiosidade , que cêdo satisfez , vendo em uma taboleta , suspensa no alto da janella , a seguinte pomposa inscripção : " Repartição do correio " , e , como a confirmar o distico , um córte feito na porta para a recepção das cartas . Lembrando-se da conveniencia de avisar o empregado do correio para lhe serem remettidas a Alvapenha as cartas que lhe viessem de Lisboa , Henrique entrou na repartição . Consistia esta n ' uma loja apenas , mobilada com um banco de pinho e dividida por um mostrador , para dentro do qual se alojava todo o pessoal do serviço , isto é , um homem por junto ; e era este o sr.||_Bento_Pertunhas Bento|_Bento_Pertunhas Pertunhas|_Bento_Pertunhas , personagem importante na terra , e a cuja intelligencia e solicitude estavam confiadas mais do que uma funcção . Além de servir , em interinidade permanente , como muitas vezes são as interinidades do nosso paiz , este cargo , dito por elle , de " director do correio " , estava de posse s . s.a de uma das cadeiras de latim e de latinidade , com que se procura em Portugal fomentar nos concelhos ruraes o gôsto pelas lettras antigas ; era ainda regente e director da philarmonica da terra , armador de igreja em dias festivos , ensaiador de autos e entremezes populares , e , quando Deus queria , auctor de alguns tambem . Vendo entrar Henrique nos seus dominios , o illustre funccionario tirou cortezmente o seu bonnet de pelle de lontra e ergueu-se da banca para cumprimentar tão honrosa visita . Nos cumprimentos que formulou disse o nome de Henrique . Admirado por ser já conhecido , Henrique interrogou o latinista e , achando-o muito informado de tudo quanto lhe dizia respeito , convenceu-se de que estava na presença de um esmerilhador de vidas alheias do mais fino quilate e de um falador de assustar . Com o fim de cortar a divagação , em que o homem entrára a respeito de certa viagem que fizera a Lisboa , perguntou-lhe Henrique se o correio não chegára ainda . -- Saiba v. s.a que ainda não -- respondeu o sr.||_Bento_Pertunhas Bento|_Bento_Pertunhas Pertunhas|_Bento_Pertunhas -- mas não deve tardar ; o homem que d' aqui vae buscar as malas á villa , se bem andasse , já cá podia estar . Esse formigueiro de gente , que v. s.a ahi vê á porta , está á espera d' elle . Hoje então , que chegam as cartas do Brazil , ninguem pára com este povo . Dão-me cabo da paciencia . Isto é um inferno ! Eu sirvo este logar interinamente , emquanto o empregado está paralytico ; porque eu tenho outro cargo publico ; sou professor de latinidade . -- Ah ! ... -- É verdade , mas a minha vocação era para as artes . Meu pae queria que eu fôsse padre e mandou-me ensinar latim ; mas já então a minha paixão era a musica . Eu ainda queria que v. s.a me ouvisse tocar trompa , que é o instrumento que mais tenho estudado ... Se v. s.a se demorar ha de fazer-me o favor ... -- Com muito gôsto . -- Não poder um homem seguir no mundo a sua vocação ! -- Ainda assim não se pode queixar muito . O cultivo das lettras latinas deve-lhe proporcionar gosos ; porque emfim para quem possue instinctos de arte , a leitura dos poetas já é um lenitivo contra as agruras da vida . O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos muito abertos . -- Os poetas ? Os poetas latinos ! Ora essa ! Então parece-lhe que pode achar-se gôsto em lêl-os ? Ai , meu caro senhor , eu por mim tenho-lhe uma vontade ! ... O latim ! ... a mais destemperada e desesperadora lingua que se tem falado no mundo ! Se é que se falou -- accrescentou em voz baixa . -- Então duvida que se falasse latim ? -- perguntou Henrique , sorrindo . -- Eu duvido . Não sei como os homens se podessem entender com aquella endiabrada contradança de palavras , com aquella desafinação que faz dar volta ao juizo de uma pessoa . Sabe o senhor o que é uma casa desarranjada , onde ninguem se lembra onde tem as suas coisas quando precisa d' ellas e passa o tempo todo a procural-as ? Pois é o que é o latim . Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e vae dizendo : " As armas , o homem e eu , canto , de Troia , e primeiro , das praias . " Quem percebe isto ! Ora agora peguem n ' estas palavras e em outras , que elles punham às vezes em casa do diabo , e façam uma coisa que se entenda ! É quasi uma adivinha . Ora adeus ! E depois -- continuou elle , enthusiasmado com o riso de Henrique , suppondo-o de approvação -- e depois as differentes maneiras de chamar a um objecto ? Isso tambem tem graça . Nós cá dizemos por exemplo : " reino e reinos " e está acabado ; lá não senhor ; diz-se regnum e regna e regni e regno e regnis e até regnorum . Ora venham-me cá elogiar a tal lingua ! Henrique estava achando delicioso o odio entranhado de mestre Bento Pertunhas á latinidade que ensinava com a proficiencia , que o leitor pode imaginar , depois do que ouviu . -- Ai , meu caro senhor -- continuou o atribulado magister -- eu se me vejo um dia livre d' este amaldiçoado latim , faço uma fogueira , na qual me hei de regalar de vêr arder o Tito Livio e os Virgilios todos tres . É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural , ao referir-se a Virgilio . Quer-me parecer que para este interprete da litteratura latina tinham de facto existido tres Virgilios , provavelmente irmãos , e cada um auctor de cada um dos tres volumes da edição , que lhe servia de texto . Dizia Virgilio 1.º , 2.º e 3.º , como quem se refere aos monarchas homonymos , que succederam n ' um mesmo reino . -- Não me salvo se morro mestre de latim -- proseguia elle . -- Afunda-me no inferno o trambolho da syntaxe . Ia continuar , quando toda a gente , que Henrique viu fóra da porta , principiou em desordenada azafama a entrar para a loja , que em breve não comportava mais ninguem . -- Ahi vem o homem , sr.||_Pertunhas Pertunhas|_Pertunhas ; ahi vem . Graças a Deus , que ahi vem ! -- diziam todos á uma . O funccionario principiou a impacientar-se . -- Então ! então ! Por onde ha de elle entrar , fazem favor de me dizer ? Saiam , saiam . Não ouvem ? Então não fazem caso das minhas ordens ? Dêem logar . Não vêem que estão molestando este senhor ? Cada um dos reprehendidos n ' estes termos indignava-se , ao vêr que os outros não obedeciam ás ordens , mas , pela sua parte , não cedia um passo , como se lhe valesse algum especial privilegio . -- Saia você , mulher -- dizia um . -- E você por que não sae ? Olha agora ! -- A todos ha de chegar a vez . Descance . Se tiver carta lh'a darão . Lá por estar aqui não é que ... -- Pois então saia tambem . Ora essa ! -- Ó santinha , não empurre . -- Ó filho , quem é que lhe faz mal ? -- Por onde é que se quer metter , homem de Deus ? -- Eu não sou menos que os outros . -- Que quereis vós d' aqui , canalhada ? -- Não bata , que ninguem lhe tocou , seu velhote . -- Espera que eu te falo . Estas e analogas vozes abafavam n ' um rumor tumultuoso as agudas declamações do " director do correio " , o qual obrigou Henrique a passar para dentro da teia , para se salvar das ondas populares . Henrique estava achando igualmente curiosa a indignação do homem e a alvoroçada anciedade do povo . Ha de facto poucas scenas tão animadas , como a da chegada do correio e da distribuição das cartas em uma terra pequena . Durante a leitura dos sobrescriptos , feita em voz alta pelo empregado respectivo , um observador , que estude attento as impressões que essa leitura opéra nos semblantes dos que ávidos a escutam , como que vê levantar-se uma ponta de cortina , corrida a occultar-nos as scenas da comedia ou da tragedia da vida de cada um . Que hora de commoções aquella , em que se abrem as malas , onde veem encerrados porventura os destinos de tantas pobres familias ! Quantas vezes verdadeira boceta de Pandora , d' onde se espalham as desgraças e os pezares ! Nas grandes cidades se estas commoções ; se no recato dos gabinetes de cada um . Lembrem-se porém das vezes , em que teem segurado com mão trémula na correspondencia , que o correio lhes traz ; no anciar do coração com que lhe rasgam o sêllo ; nas lagrimas ou sorrisos com que lhe interrompem a leitura ; no irresistivel movimento de desespero com que a amarrotam depois , ou nas expansões apaixonadas com que beijaram o nome que a subscreve ; lembrem-se d' isso , multipliquem depois esses affectos todos , despojem-os das reservas que a etiqueta impõe ás classes mais civilisadas , façam-os manifestarem-se n ' um mesmo momento e n ' um mesmo logar , e digam se concebem muitas outras scenas , em que mais sentimentos e paixões se agitem em lucta travada . Chegou emfim o homem das cartas , e a custo conseguiu romper até ao mostrador , onde pousou a mala . O " director " , depois de tossir , de assoar-se , de suspirar e de limpar os oculos com umas delongas , que formavam com a anciedade do povo um contraste desesperador , abriu fleugmaticamente o sacco , extrahiu um não muito volumoso masso de cartas , que despejou n ' um cesto de vime , e tomou apontamentos . Era digno do pincel de um artista aquelle grupo de physionomias , que seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento . Olhos e bôcas abertas , mãos juntas , pescoços estendidos , a cabeça inclinada para receber o menor som , tudo caracterisava profundamente a anciedade que lhes dominava os animos . Mestre Bento Pertunhas achou a occasião apropriada para dizer a Henrique : -- Pois , senhor , eu nasci para artista . Quasi sem mestre aprendi a tocar trompa e , não é por me gabar , mas prezo-me de tocar com certo mimo e expressão . Henrique volveu o olhar para o auditorio ; apiedou-o a consternação d' aquellas physionomias . Resolveu valer-lhe . -- Tem a bondade de vêr se ha alguma carta para mim ? -- Ah ! pois já as espera hoje ? -- Não é provavel ; porém ... Mestre Bento Pertunhas , em vista d' isto , começou em voz lenta e fanhosa a leitura dos sobrescriptos . Seguiu-se novo e não menos interessante espectaculo . A cada nome proferido , erguia-se quasi sempre uma voz , às vezes um grito ; estendia-se por cima das cabeças um braço , e , podemos accrescentar ainda que se não visse , alvorotava-se um coração . Outros , os não nomeados ainda , olhavam com anciedade para o masso , que diminuia , e cada vez mais se lhes assombrava o semblante . -- Luiza Escolastica , do logar dos Cójos -- lia mestre Pertunhas . -- Sou eu , senhor , sou eu ; ai , o meu rico homem ! -- exclamou uma mulher joven , apoderando-se ávidamente da carta . -- Joanna Pedrosa , de Serzedo -- continuava elle . -- Aqui estou ; será do meu Antonio , senhor ? -- disse uma velha , pobremente vestida . -- Será do seu Antonio , será -- respondeu o insensivel funccionario ; -- o que lhe posso dizer é que traz obreia preta . A mulher , que já tremia ao receber a carta , deixou-a cair , ouvindo aquellas sinistras palavras . apanharam-lh ' a ; e ella , tomando-a , saiu da loja , a chorar lastimosamente . -- Se foi o filho que lhe morreu , não sei o que ha de ser d' ella -- disse um dos circumstantes . -- Coisas do mundo ! -- respondeu outro . Estes commentarios foram interrompidos pela continuação da leitura . -- João Carrasqueiro . -- Prompto , senhor -- bradou um velho . -- A mezada , hein ? -- disse Bento Pertunhas , fitando-o por cima dos oculos . -- O rapaz não se esquece . -- Deus Nosso Senhor o ajude , que bem bom filho tem saido . -- D. Magdalena Adelaide de ... -- É a morgadinha , é a morgadinha -- disseram a um tempo muitas vozes . -- Agradecido pela novidade ; era cá muito precisa a explicação -- disse o Pertunhas : e passando a carta para uma mulher , que era a encarregada de fazer a distribuição a quem a podia gratificar , accrescentou : -- leve-lh ' a a casa . E proseguiu : -- Augusto Gabriel ... -- É o mestre-escola ... -- Ora fazem o favor de estar calados ! Esta ... como elle vem por aqui ... pode ficar ... ainda que ... será melhor levar-lh ' a a casa , leve , leve tambem ... -- João Cancella . -- É o João Herodes . -- Esse foi a Lisboa . -- Então , quando vier , que appareça . -- O tio||_Zé_P Zé|_Zé_P P|_Zé_P ' reira ficou de receber as cartas . É compadre d' elle . -- Eu não quero saber de compadrices . O tio||_Zé_P Zé|_Zé_P P|_Zé_P ' reira que se occupe com o seu zabumba e deixe lá os outros . A leitura mais ou menos acompanhada d' estes dialogos proseguiu , redobrando de momento para momento a anciedade dos que iam ficando . Um fundo suspiro , unisono , melancolico , expressivo de desalento , seguiu-se á leitura do ultimo nome e ás poucas palavras , com que o funccionario fechou a tarefa . -- E acabou-se . Os que ainda estavam na loja sairam cabisbaixos , morosos e com tão má vontade , como se ainda tivessem esperança de commover a inexoravel sorte . Henrique , ficando só com Bento Pertunhas , teve de lhe escutar ainda , por muito tempo , a narração dos seus passados triumphos artisticos , das suas amarguras presentes no magisterio , e das suas esperanças em melhoramentos futuros . Entre as ambições mais inquietas do mestre , a de obter o logar de recebedor de comarca , proximo a vagar por a morte imminente do respectivo empregado , figurava em primeira linha . Depois de varias tentativas , Henrique conseguiu deixar o seu interlocutor , e continuou o passeio que este episodio interrompera , tão satisfeito e distrahido , que nem apprehensões lhe causava a ideia de trazer as botas humedecidas pelas hervas do caminho , ideia que , em outra occasião , bastaria para o fazer doente . Ladeava elle um campo , cingido de altas silvas , a procurar saida para a deveza , da qual um fundo vallado o separava , quando lhe pareceu ouvir um rumor de vozes , como de alguem , que conversasse perto d' alli . Parou a certificar-se . Não se enganára . Era do outro lado da sebe , e na deveza , para onde tentava passar , que se estava falando . Espreitou por entre as folhas do silvado que o encobria , e viu uma scena , que lhe moveu a curiosidade . Um grupo de creanças e de mulheres do povo escutavam em pleno ar e com religiosa attenção , a leitura que uma senhora joven e elegante lhes fazia das cartas , que ellas para esse fim lhe davam . A senhora estava montada , não como romantica amazona , em hacanêa fogosa , mas modesta e simplesmente n ' um digno exemplar d' aquelles pacificos animaes , a que Sterne não duvidou dedicar algumas palavras de sympathia nas suas paginas mais humoristicas , e que Pelletan incluiu entre os collaboradores da humanidade na grande obra do progresso , ou , deixando a periphrase , em uma possante e bem apparelhada jumenta .