O MONGE DE CISTÉR OU A ÉPOCA DE D. JOÃO I ( SEGUNDA EDIÇÃO ) TOMO I. LISBOA EM+A IMPRENSA NACIONAL . 1859 De varios livros , pergaminhos , e papeis ajuntei algumas cousas an tigas , que estavam já postas de par te , conjecturando , que ordenadas , e vestidas de novas cores podiam tor nar á praça , e não parecer mal , como arvores de outono com seu renovo . G. Estaço , Var . Ant. Prol . Como debaixo dos pés de cada geração que passa na terra dormem as cinzas de muitas gerações que a precederam , assim debaixo dos fundamentos de cada cidade grande e populosa das velhas nações da Europa jazem alastrados os ossos das cidades que foram antes dela . Como de paes a filhos as diversas gerações se continuam e entretecem sem divisão , semelhantes á tunica inconsutil do Christo , assim a cidade antiga se transmuda imperceptivelmente na nova cidade ; e como o octogenario na visinhança do tumulo não vê á roda de si , nem pae , nem irmãos , nem amigos da infancia , mas filhos , mas netos , mas existencias todas virentes , todas cheias de vida , e sente com amargura que o seu seculo já repousa em paz , e espera por elle que tarda ; assim o ultimo edificio da cidade que passou , quando pendido ameaça desabar , olhando á roda de si não vê nenhum daqueles que , ahi perto campeavam senhoris e formosos no tempo em que ele tambem o era . Então , quando a noite de inverno ruge tempestuosa , e a chuva sussurra nas arvores , e estrepita nas torrentes , ouve-se um ruido subito , semelhante ao bater no chão de homem de guerra que morre . É o edificio que solta o seu ultimo arranco , e vae ajuntar mais uma ossada a milhares delas , que jazem sob os pés da povoação recente . A obra do homem é como o homem ; com a differença , porém , de que o periodo da renovação do genero-humano conta-se por annos , o da cidade por seculos : mas os annos e os seculos confundem-se e egualam-se diante da vida perpetua do Universo , vigoroso e bello , hoje , ámanhan , daqui , talvez , a milhares de eras , como no dia da creação . Entre todas essas cidades herdeiras do nome das suas antepassadas é a nossa Lisboa uma daquelas cujo tronco é mais antigo , e cujas renovações tem sido mais frequentes . Além das mudanças que nella devia produzir a successão dos tempos , terremotos , incendios , guerras a visitaram tantas vezes , que apenas lhe restam raros e quasi apagados vestigios dessas existencias de larga vida , desses edificios monumentaes , que nas outras cidades da Europa contam o passado ao presente . Se quereis saber as convulsões violentas , as agonias de trances mortaes em que se tem debatido a filha dos Phenicios , embrenhae-vos no velhissimo bairro da Alfama ; afirontae-vos com os seus becos tortuosos , sombrios , lodacentos ; perdei-vos no seu labyrintho de terreirinhos , escadas , pateos , arcos , passagens , indelineaveis e enredados como meada , a que se perdeu o fio . O aspecto daquele grande vulto de casas , que parecem atiradas para ahi cegamente em lucta de gigantes , vos-ha crer que lá , nas visceras dessa especie de povoação estranha , embebida no amago de Lisboa , ha uma vida antiga , um monumento de cada epocha , de cada era , de cada decada . vos-heis , todavia . Apenas sobre um portal lereis alguma inscripção mutilada em caracteres monachaes , e em portuguez do seculo XIV ; apenas vereis uma lapida partida , onde a custo descortinareis algumas letras inclusas e disformes dos seculos XII e XIII , e difficultoso será que as bellas fórmas dos caracteres assentados dos la tinos vos venham lembrar que o solo que pizaes é o de um municipio romano . Se , ao cabo de muita lida , a boa-ventura vos deparar um arco ponteagudo do puro gothico , uma verga florida do renascimento , uma volta de ferradura arabe , acha-la heis mettida e approveitada , ou desapproveitada , em edificio de hontem , ou vê-la heis prestes a desabar em pardieiro velho . Tudo o que haveis de encontrar são folhas rasgadas de um livro precioso e unico . Depois , ajudando-vos a imaginação de artista e o faro de antiquario , muito fareis , se , como os commentadores da litteratura classica , ajuntardes com essas palavras soltas um capitulo do livro perdido . vos-heis então na vossa obra ; mas porventura cuidando que reconstruis um pedaço de historia da arte ou dos homens , não fareis senão compor um fragmento de novella . Mas seja historia ou novella o fructo dos trabalhos daquele que conversa o passado , que se apresse ! -- Com a rapidez da cholera ou da peste corre por todos os angulos de Portugal , e encasa-se em todos os povoados uma cousa hedionda e torpe , que , inimiga do passado e do futuro , se chama illustração , que tendo por logica o escarneo , por syllogismo o camartello , se chama philosophia . Deus a mandou ao mundo como mandou Attila ou a Inquisição , como um verbo de morte . Seu mister é apagar todos os sanctos afectos da alma , e incarnar no coração , em logar deles , um cancro para o qual nossos avós não tinham nome , e que estranhos designaram pela palavra egoismo . Que se apresse aquelle que quizer guardar alguns fragmentos do passado para as saudades do futuro ; porque a illustração do vapor e do atheismo social ahi vae livelando o que foi pelo que é , a gloria pela infamia , a fraternidade do amor da patria pela fraternidade dos bandos civis , as memorias da historia gigante do velho Portugal pelo areal plano e pallido da nossa historia presente , a obra artistica pelos algarismos do orçamento , o templo do Christo pela espelunca do rebatedor . Que se apresse ; porque esses rastos de antepassados que o tempo e os incendios , e os terremotos nos deixaram , não nos-los deixará o descrer brutal deste seculo , que a historia distinguirá pelo epitheto de bota- abaixo , e cujo legado monumental para os seculos que virão apoz elle será um cemiterio immenso ; mas cemiterio sobre o qual não se elevará sequer a humilde distincção de uma cruz . É por isso ; é porque vejo o marco assentado no fim do caminho por onde esta geração se escoa , que muitas vezes passo horas largas diante de um portal de capelinha carcomida como velha enrugada ; diante de uma hombreira partida , onde apenas se divisam causados e gastos lavores da arte da idade media . Se eu fosse rico , iria comprar a capelinha , iria comprar o pardieiro onde houvesse a hombreira gothica : os homens do progresso me-hiam isso tudo , porque os havia d' enganar ; porque havia de prometter-lhes que converteria aquella em lupanar ; este em casa de cambio . Depois , eu , que já não tenho pae para afagar nos tedios e dores da decrepidez , tomaria a meu cargo essas pobres ruinas , ampará- las hia como um filho , livrá- las hia dos olhos dos que hoje tudo podem e tudo ousam , e como os christãos primitivos só a seus irmãos revelavam a existencia do altar das catacumbas , assim neste quinto imperio de mentecaptos dissertadores e mechediços , só aos poetas , aos que ainda crêem na arte e em Deus revelaria a existencia do meu thesouro escondido . Mas eu que não sou abastado , que posso fazer ? Ajuntar uma assignatura desconhecida ao protesto lavrado pelos homens de entendimento e virtude contra a barbaria do seculo , para que os meus restos esquecidos não sejam in quietados pelas maldicções dos vindouros . Foi uma dessas meditações artisticas que gerou o pensamento deste livro , o transmittir aos vindouros alguns fragmentos do passado . Um dia em que atravessava da Lisboa arabe para a Lisboa romana , da Alfama para o Castello , não sei como passei pelo sitio onde existiu o convento dos Bons Homens de Villar , ou Conegos do Evangelista , e parei a examiná-lo . o meu exame foi demorado e consciencioso , como se costuma dizer nos dous logares onde raro entra a consciencia -- nas camaras legislativas e na imprensa politica . Todas as indagações que fiz para descubrir algum vestigio do edificio primitivo , cuja origem o leitor verá no primeiro capitulo desta historia , foram , porém , baldadas : os conegos tinham transfor mado o antigo collegio do bispo D. Domingos Jardo em sumptuoso convento , de cuja gran deza se pode formar cabal idéa lançando os olhos para a estampa de Lisboa publicada na Viagem a Portugal de Philippe II , escripta pelo chronista Lavanha . Veio depois o terremoto e converteu tudo em ruinas . Nestas se aninhou , passado meio seculo , a Guarda Real da Policia , e , por morte desta , a sua successora e herdeira a Guarda Municipal . Triste por ter perdido assim inutilmente o tempo e o trabalho , ia a seguir meu caminho , quando me lembrei de um velho manuscripto que lêra , e que fallava miudamente de certo successo que Fernão Lopes transmittiu á posteridade na chronica de D. João I. Este successo terrivel , cujo desfecho apenas narra o chronista , e que vinha explicado naquella escriptura inedita com todas as suas causas e circumstancias , está ligado com a historia desse collegio do bispo de Lisboa . Passou-me então pela mente fazer uma desfeita aos conegos e ao terremoto , e dar de novo vida áquilo que hoje é só um nome . Procurei colligir as minhas recordações , e quando voltei a casa tinha pouco mais ou menos delineado e disposto os materiaes que constituem o amago e substancia da narração seguinte . É o que resta a quem é pobre . -- Não póde tirar os monumentos das garras dos politicos ; mas tem liberdade plena de reconstruir e po voar aquelles que já não existem . Dos politicos e de nós se condoa o Senhor ; porque tanto nós como eles disso havemos mister . O COLLEGIO DE S.||_PAULO PAULO|_PAULO . Ora vede que door seria pera o triste do pay . Dr. João de Barros -- Espelho de Casados . " Vamos , Fr. Vasco , em que scismas ? Ha mais de meia hora que levas os olhos pregados na corrente do rio . Ergue-os para o céu . Olha como é formoso ! Imagem do empyreo , onde mora aquelle que só te póde dar , que só te ha dado consolação e esperança . Vamos , filho ; é necessario que por uma vez acabem essas tristezas , que denotam estar ainda muito enraizada na tua alma uma paixão mundana . " " Oh meu segundo pae , oh meu mestre , oh vós , que mil vezes me tendes salvado de mim mesmo , perdoae-me . Uma idéa sinistra e má me passava agora pela cabeça . Affigurava- se-me neste momento que D. Leonor estava junto de mim : via-a , aqui mesmo ao meu lado ; via-lhe o sorrir suave ; ouvia-lhe o respirar sereno ; sentia o brando cheiro dos perfumes dos seus cabellos dourados . Ai ! e sabeis qual era a minha idéa ? Era apertá-la ainda entre estes braços de que fugiu como uma van sombra , e então ... atirar-me com ella a esse rio , que vae rapido como o envelhecer desta alma , fundo , como a amargura do meu coração ! Depois , " -- proseguiu ele com voz atada -- " depois ... que viesse o inferno . " " Jesus , Vasco ! Estás doudo ? Blasphe mas ? Assassinares uma fraca mulher , assas sinar-te a ti proprio , e renegares da vida eterna ? " " Uma fraca mulher , dizeis vós , reverendo nonno ? Uma fraca mulher ? ! ... Fraqueza de vibora , que vos toma atraiçoadamente quando dormis , e vos morde , e vos envenena sem re medio a essencia da vida . Essa fraca mulher teve força para me calcar aos pés este pobre coração , que era bom , que nascêra para amar tudo o que o rodeava ! Homem de Deus , vós não sabeis o que é ver cerrar diante de nós o mundo no primeiro quartel da vida , quando a imaginação povôa esse mundo de gosos , de gloria , de felicidade ! Vós não sabeis que mysterio infernal se passa cá dentro , quando a uma risada de mulher , que suppúnhamos um anjo , e que era um demonio , a vemos tomar nas mãos o nosso futuro e esmigalhá-lo em terra ! Assassinar uma fraca mulher ? ! E ella não me assassi nou a mim ? Que sou eu debaixo deste habito de estamenha ? Um morto , que falla , e anda , e chora , mas já não vive ; porque o viver nada disso é Padre , padre , Deus me livre de mim mesmo ! ... Mas vós choraes ? Oh não , não ! ... O pobre Vasco está louco . Dissestes bem Esquecei-vos de seus desvarios . Prometto á Virgem jejuar tres dias a pão e agua , cuberto de cilicios , logo que cheguemos ao nosso mosteiro , para que Deus me perdôe as blasphemias que tenho dicto . Vós tambem me perdoareis . Não é assim , bom Fr. Lourenço ? " " Sim , sim , meu irmão , perdôo-te o escan dalo que me déste . Tambem eu cubrirei a minha cabeça de vaso ; cingirei os meus rins de cilicio , e te-hei a implorar a misericordia do Senhor , para que te allumie , e affaste do teu espirito as tentações de Satanaz . " " Oh , como sois bom , meu nonno ! -- disse entre soluços o outro interlocutor , lançando-se a seus pés , e beijando-lhe a fimbria do grosseiro habito . Depois ergueu-se , e assentou-se-lhe ao lado , apertàndo-lhe uma das mãos entre as suas , e derramando sobre elas lagrymas como punhos , que caíam a espaços , quentes qual lume ; porque do intimo vinham elas . Mas quem eram estes dous homens ? -- Onde estavam ? -- D ' onde vinham ? -- Para onde íam ? -- Em que tempo era isto ? -- Na tural é que o leitor faça taes perguntas , ás quaes temos obrigação de responder . As duas personagens , entre as quaes se travára o dialogo com que começámos esta mui veridica historia , eram dous monges de Cister , ou de S.||_Bernardo Bernardo|_Bernardo . O mais moço , de cuja boca saíam as expressões de desesperação que acima ficam transcriptas , era mancebo de vinte e dous a vinte e cinco annos , bem proporcionado e robusto , tez morena , e cabello negro , basto e crespo , feições talvez não formosas , mas , sem dúvida , attractivas . Os seus olhos eram portuguezes ; isto é , reflexo perenne dos intimos pensamentos ; tempestuosos com as procellas do coração , serenos com a calma dele . No rosto do mancebo estava escripto o nome da sua terra natal : era um filho das Hespanhas : a cor , o gesto , o olhar , tudo dizia que ahi dentro havia o espirito de um godo , e ao mesmo tempo que nessas veias corria o sangue de um arabe . O outro monge era homem de idade robusta . Tinha os cabelos espessos e grisalhos ; testa espaçosa , nariz aquilino , os olhos fundos , vivos , e pequenos . Jejuns e meditações lhe haviam emmarelecido e encovado as faces . O todo do seu aspecto era severo e triste , mas quem lh'o observasse attento lá enxergaria , por baixo dessa superficial tristeza , a alegria que gera uma boa consciencia . Quando o velho erguia os olhos ao céu crer-se-hia , que , atravez da abobada azul , divisava a patria do repouso , que ele ía conquistando com vigilias e sofrimento sob o peso da cruz . Tumulto ou quietação , angustias ou gosos da vida eram para elle o mesmo que para o peregrino o fumosinho da aldêa do valle , onde apenas dormiu uma noite , visto da cumiada da serra que lh'o vae esconder para sempre : eram uma lembrança , uma saudade duvidosa de juventude ; porque o mundo ía lá muito longe dele , meneando-se orgulhoso e senhoril em suas miserias ou grandezas . Das paixões , que este ou alimenta ou gera , só uma restava a Fr. Lourenço ; era a paixão que ensina o evangelho : o amor do genero humano . Fr. Lourenço , chamado o Bacharel , por ter estudado degredos ou canones na universidade de Lisboa , entrára na ordem de Cister já homem feito , e ahi fôra recebido com os braços abertos , não só pela reputação de sabedor e letrado de que gosava , mas tambem por ser pessoa de virtude , e bondoso . O abbade de Alcobaça , D. João d'Ornellas , o nomeára procurador daquele célebre mosteiro , que já gosava de certa supremacia sobre os outros da mesma ordem , apesar de na sua origem todos serem independentes uns dos outros . Os negocios fradescos obrigavam , por tanto , Fr. Lourenço a residir na côrte ; e como então os cisterciences occupassem o collegio ou estudaria de S.||_Paulo Paulo|_Paulo e S.||_Eloi Eloi|_Eloi ( depois convento dos bons homens de Villar ) , que fôra fundado pelo bispo D. Domingos Jardo em tempo de D. Diniz , e por isso fossem obrigados a ter ahi lentes ou ledores de diversas materias , Fr. Lourenço , quando se via desappressado de negocios , ora ensinava ali as doutrinas das decretaes , sciencia tão séria , tão util , tão profunda , e tão cultivada nesses tempos como a econo mia politica , o magnetismo ou a craneologia nestes nossos , ora lia aos escholares , que muitos lá andavam , a sancta theologia , no que tambem o bom do bernardo era poço sem fundo . Chamámos bom a Fr. Lourenço , e com razão lhe démos tal nome . Apesar das emburilhadas e demandas em que frequentes vezes o mettia o despotico , violento , cubiçoso , e ao mesmo tempo perdulario D. João d'Ornellas ; apesar dos trabalhos escholasticos , que não pouco lhe quebravam a cabeça , Fr. Lourenço Bacharel ainda sabia achar tempo para gastar em obras de caridade . Onde havia um desgraçado que soccorrer ou consolar , lá estava o nosso cisterciense : rico de sua casa , e abastado de sollayros , ou ordenados , que recebia como ledor da estudaria ( e não eram máus os que deixára D. Domingos Jardo para sustentaçom dos proves escolasticos ) , todos os seus haveres gastava com os necessitados , e nenhum se af fastava dele com as mãos vasias , " juxta illud " , ( dizia Fr. Lourenço ) que lemos na escriptura , demerge ta orelha ou prove , sem nem uma acidia , e da- lhe sa divida . O povo o tinha em conta de sancto ; a côrte o respeitava , e até , quando o seu cargo de procurador o obrigava a fulminar perante os juizes os inimigos da sua ordem , sabia-o fazer com tal modestia , que o tom das suas palavras ainda lhe dava maior realce á eloquencia , do que a fôrça da sua dialectica vigorosa . Emfim era , como todos diziam então dele , na linguagem garrafal daquele tempo , barom triguosamente endereçante sa carreira per mui vertuosas vertudes a perduravil einacalçamento em vida eternal . No momento em que esta historia começa dava elle uma prova mais do seu ardente amor do proximo . Nesse dia pela manhan recebêra um recado , em que se lhe pedia fosse ouvir de confissão uma pobre mulher quasi moribunda , que vivia na aldea de Restello , uma legoa de Lisboa para a banda do mar , á beira do Téjo . Como era dia de S.||_Philippe Philippe|_Philippe e S.||_Thiago Thiago|_Thiago , e não havia eschola , Fr. Lourenço não hesitou um momento : disse missa , chamou o escholar seu predilecto Fr. Vasco , partiu com ele do collegio , veio pela Rua-nova abaixo , e passada a fonte de D. Sancho II , saíu pela porta da Oura , chegou á praia , afretou uma barca , e lo correndo ao longo da margem , caminho da aldea de Restello . Fôra dentro dessa barca , que se travára o mysterioso dialogo , que acima fica transcripto , sem mudar uma palavra , pospor ou antepor uma virgula . Agora cumpre voltar um pouco atraz para sabermos quem era o companheiro do mestre de theologia . Haveria seis mezes , depois que Fr. Lourenço residia na estudaria de S.||_Paulo Paulo|_Paulo , quando certo dia um cavalleiro moço e gentil-homem chegou sósinho á porta da crasta , e perguntou por Fr. Lourenço . Levado , por ordem do reverendo , á sua estreita cella , demorou-se a sós com elle por horas largas : o que ahi se passou ninguem soube ; mas notou o porteiro que , quando o mancebo saíu , o velho veiu acompanhá-lo , e que tanto o desconhecido como Fr. Lourenço tinham as faces banhadas em lagrymas . Abraçaram-se á despedida , e apenas o frade disse ao cavaleiro quando partia : " Filho , constancia em teu sancto proposito ! " -- Depois ninguem mais tornou a ver o mancebo ; mas todos pensaram que era algum desgraçado peccador , que , não podendo sofrer o peso de suas culpas , viera depositar no seio do virtuoso monge a confissão de passados erros , e aquietar remordimentos da consciencia pedindo perdão ao céu . Passou mais um anno : certo dia , pela volta da tarde , o converso Fr. Julião , que desem penhava havia bem um quarto de seculo as funcções de porteiro da estudaria , veiu correndo á cella do mestre de theologia , e disse da parte de fóra : Benedicite , pater doctor . " " Entrae , Fr. Julião . O converso , ou barbato , como então chamavam aos leigos , ergueu a aldrava ; e com as mãos cruzadas sobre o peito , esperou que o padre mestre o mandasse falar . " Que me quereis , irmão ? " " Uma carta do Domno de Alcobaça . " -- Dizendo estas palavras o converso punha nas mãos do monge um papel fechado , e selado com o sello do abbade de Alcobaça , a quem por seu cargo competia , segundo a regra de S. Bento , seguida pelos cistercienses , o titulo de dominus , ou no romance daquele tempo domno . " Quem traz esta carta ? " Um monge do habito do nosso padre||_S. S.|_S. Bernardo . E voto a Christo , que me parece o mesmo mancebo que vos aqui procurou ha um 311110 . ... " " Basta ! Não jureis em vão o sancto nome de Deus . Ide , e guiae para esta cella o recemchegado . " Quando este entrou no aposento de Fr. Lourenço logo ele viu que o converso se não enganára . O bom do monge correu a abraçá-lo : " Parabens , parabens ! " -- exclamou Fr. Lourenço cheio de jubilo . -- " Este sancto habito que trazeis , senhor cavalleiro ... não digo bem ... irmão Fr. Vasco , me diz que Deus vos fez triumphar dos tres grandes inimigos da huma nal geração , mundo , diabo , e carne . Soccorrestes-vos ao Senhor no dia da vossa afilicção , e o Senhor vos abriu o porto bonançoso onde podeis rir-vos das procellas da vida . Sois monge de Cister , e agora ... " " Sou monge de Cister ! " -- repetiu o moço frade , escondendo a cabeça no seio de Fr. Lourenço , que breve sentiu as suas lagrymas ardentes e abundantes traspassarem-lhe a grosseira estamenha do escapulario e da tunica , e humedecerem-lhe o peito . O accento com que o mancebo proferiu aquellas palavras fazia que elas significassem exactamente o contrario do que soavam . De monge havia nelle , é verdade , o habito e a cogula ; mas o coração ? ! No coração de Fr. Vasco estavam ainda todas as paixões do seculo , tumultuosas , fervidas , incisivas , como quando , em vez dessa tela grosseira , cubria os membros robustos com o arnez de cavalleiro . Se ahi havia alguma diferença , era que essas paixões violentissimas , comprimidas por um anno de noviciado , por um anno de abjecção , de silencio , de contradicções , de sugeição , emfim , a todos os actos exteriores de humildade , de doçura , e de resignação , se tinham tornado mais asperas , e azedado mais aquella alma lacerada por dores fundas e talvez eternas . Fr. Lourenço , a quem elle buscára havia um anno , em dia no qual a desesperação passára a meta do sofrimento , lhe aconselhára o claustro , como remedio unico ao mal que o roía . O pobre frade , pouco entendido nas tempestades do mundo , cria que havia outro ádito cerrado ao tumultuar das paixões , que não fosse a lousa da sepultura ; cria que esse ádito milagroso era a portaria de um convento ! Se quereis saber se elle errava ou acertava , perguntaeo a qualquer desses que ahi viveram , se ainda algum ha a quem a fome deixe contar historias dos tempos que já lá vão . " Mas , filho , " -- dizia Fr. Lourenço , levantando brandamente a cabeça de Fr. Vasco , e encostando-a outra vez sobre o hombro , de modo que o halito ardente do mancebo quasi que lhe crestava a face -- " cria eu que a misericordia divina e a virtude do nosso sancto habito vos houvesse arredado do espirito essas negras imaginações . Mas , emfim , com o tempo ; com o tempo ! Fiae-vos de mim : de mim em quem achareis um irmão : mais que um irmão , um amigo ! " " Oh sim ! foi por isso : foi para vos ouvir , para dar alguns instantes de frescor a este espirito requeimado , que , apenas fiz meus votos , pedi ao domno de Alcobaça- me mandasse para Lisboa estudar . Estudar ! ... Que posso eu aprender ? ou que me importa ? É falar com o homem que me comprehende , que eu quero : é pedir-vos palavras de consolação e de esperança ; que me apagueis esta chamma que me consome a alma ; que me deis triaga contra a peçonha que me lavra no coração . Homem de Deus , o mundo vos chama um sancto ! Paz e esquecimento ! paz e esquecimento ! ... " Mais se confirmou Fr. Lourenço , por este desalinhado discurso , que a virtude mirifica do sancto habito nada aproveitára em Fr. Vasco : mas , por um movimento de orgulho involuntario , lembrou-se de que com desesperados como este a força da sua eloquencia tinha supprido a pouca eficacia da graça divina . Fez então assentar o moço , e obrigou-o a to mar alguma refeição em quanto descançava ; depois do que , lhe disse , pondo-lhe a mão no hombro : " Vamos , irmão Vasco , contae-me outra vez a vossa historia . Choraremos ambos ! As lagrimas da piedade consolam , quando é um amigo que as derrama . Se bem me lembra , dissestes-me ha um anno ... " O frade pensou avisadamente que , fallando repetidas vezes a Fr. Vasco nos dolorosos successos da sua vida , lhe chegaria a embotar na memoria o sentimento deles . E , em verdade , assim é feito o coração humano . Nunca vereis viuva que falle muitas vezes no marido defuncto , e muito chore a sua falta , que não case cedo . É porque a dor , como a materia bruta , gasta-se com o uso . São mysterios desta especie de animal chamado homem , a que eu e tu , leitor , temos a honra de pertencer . " Disse-vos , -- proseguiu o mancebo , tomando a mão immediatamente ; -- disse-vos que , filho de um cavalleiro nobre e honrado , segui as armas mui-moço . Ha tres annos , não longe da morada de meu velho pae , em Aljubarrota , pelejava eu na ala dos namorados , por livrá-lo a elle e a terra da patria do estranho dominio : pelejava na ala de Mem Rodrigues , porque amava a nobre donzella Leonor ; e vós sabeis que Mem Rodrigues só dava entrada naquella ala aos que tinham uma dama dos seus pensamentos . Vencemos essa memoravel peleja . Segui , depois , o pendão do Condestavel . Passados alguns mezes de recontros e pelejas , voltei á terra onde nasci . Pulava-me o coração ao ver ao longe o campanario da nossa abbadia . Ia ainda ver o meu pobre pae , rezar um pater juncto á lousa de minha mãe , abraçar Beatriz minha irman , tão linda ! tão meiga ! e que eu amava quasi como Leonor . Oh ! e tambem ía vê-la a ella , que por certo nem um só dia deixára de se lembrar de mim ; ía contar-lhe , não os feitos d' armas , mas as saudades do seu cavaleiro ! Ribeiros , fazia-os galgar de um pulo ao meu ginete ; veigas , fazia-lhe&lhes+as desapparecer debaixo dos pés ; outeiros , obrigava-o a transpô-los como se fossem plainos . O ultimo tinha-o descido , quando o sol envolto na sua vermelhidão da tarde entestava com a terra lá no horisonte . Sente-se , mas não se diz o que eu então sen tia . Cheguei . A entrada da povoação era a abbadia : a igreja estava fechada , e o sacristão á porta com as chaves na mão . Já não era o do meu tempo : fez-me isso tristeza . Perguntei sem saber porque : -- " O abbade vela , ou jaz ? " -- " Em trintario cerrado hi dentro é com outros clerigos . " -- " Por quem é o trintario ? " -- prosegui eu inquieto . -- " Por um bom fidalgo da visinhança que morreu , segundo dizem , de pena , porque uma filha que tinha , e muito amava , fugiu com um cavaleiro , a quem passando por aqui ele dera gasalhado por algum tempo . Nunca mais comeu nem bebeu , e como era velho finou-se . -- " Fazendo assim , fôra moço e se finára : " -- disse eu sorrindo descuidado , em quanto procurava na memoria quem seria o fidalgo . Nenhum que eu soubesse nos arredores tinha filha donzella , senão meu pae e o de Leonor ; mas que fosse algum deles claro estava que era impossivel . Ia a apertar ainda uma vez os acicates ao ginete , para chegar antes da noite á ponte levadiça dos meus paços acastellados , mas por demais perguntei ao sacristão o nome do morto que jazia em trintario . Era o de meu pae ! ... Uma faisca de lume me centelhou diante dos olhos : de um pulo eu estava pegado com a porta da igreja : as escamas das minhas manoplas bateram nella como um vaivem , e , com um som que se prolongou pelas naves , eu a vi aberta , e lá no meio uma tumba cercada de brandões accesos , e ao redor padres que resavam latim . Logo me achei ao pé deles : abri a tumba : era meu velho pae era elle com os olhos fechados , não me viu os labios cerrados , não me sorriu as mãos cruzadas sobre o peito , não me abençoou ! Arrojei-me sobre elle : beijei-o ; era como uma pedra gelada ! Um dos que ahi estavam disse não sei o que , chegou-se a mim , e quiz arrancar-me dalli . Estendi com furia o braço : a minha manopla tornou a encontrar o que quer que foi . Ouvi um grito rouco , e como um corpo de homem que caía desamparado sobre as lageas do pavimento . Não percebi mais nada ; porque nesse momento perdi os sentidos . " Aqui Fr. Vasco fez uma larga pausa , correndo a mão pela testa , como quem afastava uma idea dolorosa . Tinha os labios brancos , e nos olhos bailavam-lhe duas lagrymas . Pelas faces de Fr. Lourenço já outras duas tinham escorregado . TUDO DESVENTURA ! Tristesa , dor e cuydado , leixae-me : -- que mais quereys ? porventura nam sabeys , que sou já desesperado ? Cancion . De Resende . -- Trov , de " L. Henriques . " Quando tornei a mim -- proseguiu o moço cisterciense -- estava em cima da cama , em um aposento dos meus paços . A primeira cousa que me lembrou foi chamar por meu pae e por minha irman . Depois recordei-me de que já nem pae nem irman tinha : calei-me . Ao lado do meu leito estava um padre : era o velho abbade , que me baptisára e me ensinára a ler . Elle percebeu que tornára a mim : pozse em pé : eu estendi para elle as mãos : deu-me uma das suas ; apertei-a entre as minhas , e levei-a á boca , e beijei-a : era descarnada e enrugada como devia ser a de meu pobre pae . Nem elle me dizia nada ; nem eu a elle . Eu por mim , não tinha nada que dizer : porque o que me estava na alma não era cousa que com palavras se dissesse , nem a que com palavras se respondesse . Depois de largo tempo , ouviram os meus ouvidos a minha boca perguntar : -- " Que horas são ? " -- " Quarto de prima : " -- respondeu o abbade . Com efeito , o sol começava a tingir-me a cama de todas as cores das vidraças de uma fresta que me ficava fronteira . E eu olhava para a fresta com os olhos fitos : parecia tranquillo ; porém cá dentro ía um tumulto medonho . A imagem de meu pae defunto , de minha irman deshonrada queimava-me o cerebro . Vingança ! Esta palavra sentia-a soar , palpava-a , via-a escripta , afigurava-se-me convertida em efeito . Um cavalleiro estava por terra , o seu peito arquejava debaixo da minha joelheira de ferro , e um punhal me reluzia na mão erguido sobre a garganta do roubador de minha irman . Era um prazer horroroso ! ... Desde então para cá sempre cri que podia haver um momento de deleite no meio dos tractos do inferno . Até ahi nem o nome , nem a imagem de Leonor me tinha passado pelo espirito . Foi depois disso que este nome e esta imagem me appareceram como um pensamento do céu . Rebentaram-me então dos olhos as lagrymas : as minhas mãos apertaram com ancia as mãos do abbade , e o pulso bateu-me com vigor febril . Senti que estava em um leito , em um aposento , ante a luz de Deus , entre os homens , na vida . Disse algumas palavras ao abbade . Este sancto homem me contou então que eu passára a noite inteira em espantoso delirio e que ele se encarregára de me vigiar desde a meia noite . Ponderou-me que era necessario tomar algum alimento : recusei : instou . Pedi-lhe então que me chamasse Brites . Primeiro que tudo queria falar com ella . Brites era uma velha dona , que fôra minha ama , e que ficára depois servindo de cuvilheira de minha mãe . Quando esta faleceu era eu mui-moço e Beatriz uma criança . Meu pae a encarregou do governo domestico : nós nos habituáramos a tê-la em conta de uma segunda mãe : tambem ella nos amava como filhos . Apesar de perturbado , notei com dissabor não a ver ao pé de mim . " Mas Brites " . disse o abbade titubeando : e calou-se . " Mas Brites , " -- repliquei -- " devia estar junto ao pobre Vasco , que , segundo dizia , tanto amava . Tambem ella foge de mim ? " " Não , senhor . Eu fui que não consenti que ela aqui estivesse . De que podia servirvos a pobre dona , senão de accrescentar-vos agastamentos no coração ? " " Bem pelo contrario ! " -- atalhei eu . -- " É a unica pessoa que está aqui da minha fa a dizer familia ... lembrei-me ainda outra vez de que não a tinha . Em fim -- prosegui em tom de quem quer ser obedecido -- que Brites venha cá . " O abbade cravou em mim os olhos : parecia irresoluto e aflicto : um gesto de impaciencia que me viu no rosto o resolveu . Saíu vagarosamente . Daí a pouco pareceu-me ouvir no aposento immediato a voz de Brites , que cantava : Boa festa , sancta festa , Em que se canta latim : De festa vestida , ás bôdas , As bôdas cantando vim . " Arripiaram- se-me os cabellos . Um cio ! prolongado cortou a cantiga . Brites entrou : o abbade a trazia agarrada pelo braço . Custou-me a conhecer-lhe as feições : estava inteiramente demudada : tinha os olhos esgazeados , as faces pallidas e encova das , e por cima de tudo isto um como veu de riso convulso . O abbade olhava para ella com aspecto severo . " Meu criado , " -- gritou Brites apenas me viu , -- " mandae embora , este máu homem . Tem cara de castelhano . Hoje que é o dia do vosso casamento todos devem ter cara de riso . O Senhor||_Vasqueannes Vasqueannes|_Vasqueannes , " -- continuou a desgraçada , chegando-se ao pé do leito , e fallando em voz baixa , como quem me dizia um segredo , -- " está lá fóra deitado em uma cama preta . E sabeis o mais gracioso ? Muitos padres estão ao redor da cama a falar-lhe em latim ; mas bem faz elle que finge dormir , e não lhes responde nada . Creio que espera por vós para ir á igreja . O abbade interrompeu-a : -- " Está varrida , " -- disse , voltando-se para mim . -- " Depois que a senhora Beatriz fugiu de casa , começou a enlouquecer . Com a morte de vosso pae perdeu de todo o siso . Quizestes que ela viesse : pensei que se conteria diante de vós ; mas vejo que os meus receios eram fundados . Ide-vos embora , Brites ! " " Não ! " -- acudi eu , que sem pestanejar olhava para o aquelle doloroso espectaculo . -- " Não ! Vem cá , Brites : abraça-me : fala-me de meu pae ... de meu pae só ... e dize o que quizeres . " -- Não sei o que em mim se passava . A dor , começava a causar-me uma especie de prazer . Brites deitou-me os braços ao redor do pescoço , e deu-me um beijo na testa . -- " Vamos , meu criado , " -- disse depois ; -- " olhae que é tarde , e D. Leonor estará esperando . Vós já não sois Vasco da Silva , sois Lopo Mendes . Já não sois mancebo florido ; mas homem grave e mui rico . Não é assim ? E : oh que é ! Parvos ! Suppunham que D. Leonor era donzella que , casasse com outro ; os pobresinhos não sabem que mudastes de pessoa ! Vamos , erguei-vos daí . " -- Acabando de dizer isto deu uma gargalhada . Eu tinha coado cada uma das suas palavras pelo coração . Ergui-me de um pulo : em pé no meio do aposento , o meu aspecto devia ser infernal . -- " Velha maldicta , " -- gritei furioso , -- " que infamias estás ahi dizendo ? Que casamento de Leonor ? Que Lopo ? Falla ou te faço calar para sempre . " Procurava o meu punhal na cincta ; mas já não estava armado . " Não o sabieis ? ! Oh que não o sabieis ! ... Meu Deus ! Meu Deus ! " -- Isto dizia o abbade , que em um relance se me havia arrojado aos pés , e soluçando me abraçava pelos joelhos . Brites se arredára , cruzára os braços , e olhando para mim com ar de compaixão , repetia muitas vezes : -- " Coitadinho ! enlouqueceu ! " Talvez fallava verdade , Todavia , apesar da especie de phrenesi , em que me lançaram as palavras de Brites , a postura e os soluços do veneravel sacerdote me chegaram ao vivo . Procurei vencer a minha desesperação : ergui-o , e disse-lhe com apparente tranquillidade : " Não ! não o sabia . Contae me tudo . " : O velho sacerdote alevantou os olhos para os meus , e viu nelles cousa que o fez hesitar . " Contae-me tudo " ; -- repeti eu . Da primeira vez o som da minha voz era o da voz de um homem : da segunda , a meus proprios ouvidos pareceu que assim devia ser a de um demonio . Ao abbade pareceu , por certo , o mesmo . Não hesitou mais . Eis-aqui o que ele me disse . Ficou-me bem estampado na memoria . " Mezes havia já que Mem Viégas deixára de frequentar a casa do vosso pae . Aquela inteira amisade , que por tantos annos os uníra , começou a esfriar grandemente . Todos os dias , segundo o antigo costume , vinha eu passar o serão com o senhor||_Vasqueannes Vasqueannes|_Vasqueannes , que com Deus é ; todos os dias parafusavamos ambos sobre o motivo desta novidade , e não podiamos atinar com elle . Salvo se era a necessidade de fazer companhia a um cavalleiro de Lisboa , homem já de idade grave , mas de aprasivel presença , que viera ser seu hospede . Este motivo , porém , não era suficiente para desculpar o pae de D. Leonor . O casamento de sua filha comvosco , ajustado entre ele e vosso pae , devia ainda tornar mais robusta a amisade inalteravel de tantos annos . Quando ao anoitecer , assentados ao redor do leito do senhor||_Vasqueannes Vasqueannes|_Vasqueannes , que , por sua avançada idade , se recolhia ao pôr do sol , eu , vossa ... digo a senhora||_D._Beatriz D.|_D._Beatriz Beatriz|_D._Beatriz , e o infame D. Vivaldo o conversavamos ácerca deste successo , buscavamos a causa de tal mudança ; mas depois de muito scismar e adivinhar , concluiamos sempre que era impossivel achar o motivo de semelhante proceder . Um domingo pela manhan , tinha eu acabado de dizer missa , e estava na sacristia desrevestindo-me , quando o sacristão veiu avisar-me de que um pagem de Mem Viégas estava ahi , e me buscava . Mandei-o entrar . Disse-me que seu senhor precisava de falar-me , e que trazia uma hacanea para eu cavalgar até o paço , Respondi-lhe que estava prestes . Partimos . Chegando á ponte levadiça notei que pagens e escudeiros estavam vestidos ricamente das cores de Lopo Mendes , o hospede de Mem Viégas . Fez-me isso estranheza ; porque era signal de noivado . Entrei . O fidalgo me veiu receber á sala d' armas , fez-me assentar , e disse-me : " Mandei-vos chamar , reverendo abbade , para que lanceis a benção nupcial na capella destes paços a dous noivos que lá estão . Hoje passareis o dia com+nós . " " Poderei já saber , meu illustre senhor , quem são os noivos ? " " Porque não ? ! -- tornou Mem Viégas , sorrindo . -- " O noivo sabereis já quem é pelas cores de que os meus estão vestidos : a noiva , ninguem aqui o póde ser de tão nobre , rico , e esforçado cavalleiro , senão a minha Leonor . " Estremeci , Havia poucos dias que tinha fallado com o senhor||_Vasqueannes Vasqueannes|_Vasqueannes do vosso casamento com D. Leonor . Levantei-me , e , em tom severo disse ao velho cavalleiro : " Quereis por ventura gracejar comigo , senhor||_Mem_Viégas Mem|_Mem_Viégas Viégas|_Mem_Viégas ? Vossa filha deve casar com Vasco da Silva , logo que ele volte da hoste de Nunalvares . A palavra de vossa mercê ... " Deve ? ! " -- interrompeu Mem Viégas , dando uma risada , -- " Creio que sou nobre e livre , e que minha filha é minha filha . A palavra de Mem Viégas , dizeis vós ? Se a minha palavra estivesse dada , não a quebrára eu , nem que fôra ao proprio Satanaz . Mas não a dei a ninguem . Verdade é que Vasqueannes me falou nisso , e que não achei estranha a proposta : mas Leonor prefere Lopo Mendes ; mudou de amores : tambem eu na mocidade mudei mais de uma vez. Além disso o meu futuro genro é mais rico , mais nobre ; e o que eu prefiro a tudo é a felicidade de Leonor . " " Embora , senhor cavalleiro , embora ! " -- tornei eu . -- " Dae- me licença para duvidar de que vossa filha troque de bom grado pelo segundo o seu primeiro noivo . Sei que se amavam muito ; porque vi nascer e crescer o seu amor . Não ; não é possivel semelhante mudança . " " Vê-lo heis já : " -- interrompeu " Mem Viégas . -- " Ella está na capella : examinae bem seu gesto e suas palavras , e julgareis por vossos proprios olhos se ahi ha outro constrangimento , que não seja o de pudor de donzella , que vae trocar a sua corôa virginal pelo grave titulo de dona . " " Se assim é , " -- repliquei , -- " não posso exercitar meu ministerio nestes paços . Em vez de abençoar , eu amaldiçoaria : amaldiçoá- la hia a ella ; porque assassina sem piedade um valente mancebo , o meu desgraçado pupillo , o filho do honrado e bom cavalleiro Vasqueannes . " Dizendo estas palavras , encaminhei-me para a porta da sala . Não queria demorar-me alli mais . " Alto lá , dom abbade ; o -- gritou Mem Viégas , aferrando-me por um braço . -- " Lembrae-vos de que estaes ante um nobre cavalleiro da Estremadura ! Ouvi , sem irritar-me , reprehensões , em que ultrapassastes a liberdade que vos dá o vosso ministerio ; mas á fé , que não vos ouvirei mais nenhuma . Não quereis abençoar minha filha ? Paciencia ! O meu capellão o fará . Tambem era honra que vós , filho e neto de mesteiraes e vilãos , não merecieis . Todavia não saíreis d' aqui para irdes contar o que vistes e ouvistes a Vasqueannes ; porque não quero que esse velho tonto faça alguma loucura . Amanhan pela manhan partiremos para a côrte , e vós podereis relatar ao vosso amigo o que se passou . Servireis ao menos de testemunha : " -- proseguiu com um sorriso de escarneo . -- " Não é assim ? Pagens , o nosso abbade padece de gota : talvez lhe custe ca minhar até a capella . Se ele não podér ir só , ajudae-o ! " Ergueu-se , fez-me uma cortezia , e partiu . Conheci que se empregaria a força se resistisse . Dirigi-me por tanto á capella . Dirvos- hei o que ahi se passou ? Não . Vós o adivinhaes . Mem Viégas dissera a verdade . Leonor entregava de bom grado alma e corpo a Lopo Mendes ! Elle era mais rico e mais illustre que vós ! " Neste ponto da sua narrativa o abbade parou . Eu olhava para elle immovel . O velho sacerdote proseguiu : " Andei todo o dia livremente pelos paços ; mas notei que os bésteiros e homens d' armas de Mem Viégas me vigiavam os passos . Ao caír das trevas guiaram-me para o aposento , onde devia passar a noite : era o alto de uma das torres que olham para o poente . Deixaram-me só , e senti daí a pouco correr os grossos ferrolhos da porta que dava para as quadras do palacio . Rezei : deitei-me ; mas não pude dormir . Vinha a manhan rompendo , quando percebi ruido de cavallos no pateo interior do paço . Passado um breve instante abriram a porta da minha prisão . Entrou um pagem , e disse-me que podia saír quando bem me approuvesse . Desci á sala d' armas : estava deserta . Saí então : atravessei a ponte levadiça , onde não vi mais que dous bésteiros , alguns servos mouros , e o mordomo que passeava pela borda da carcova . Ao longe , pela estrada , enxerguei uma formosa cavalgada de cavaleiros e damas em ginetes e palafrens . Entendi o que era . Sem dizer palavra , sem olhar para trás , endireitei para a abbadia . Joanne , o antigo sacristão , que ainda a esse tempo era vivo , correu a mim de subito apenas me avistou . Tinha ido bater á porta da residencia , e vendo que eu não abria , estava inquieto ; porém quando me conheceu ao longe ficou espantado . Contei-lhe tudo : não me queria acreditar . Incumbi-lhe varias cousas relativas á igreja , e parti immediatamente para os paços do senhor vosso pae , que em gloria está . Achei as portas abertas . Peões e bésteiros de cavallo corriam para um e outro lado . Tudo mostrava que ahi havia já notícia do que succedêra . -- " E eu que compunha medidas palavras para minorar a impressão dolorosa que tão extraordinario acontecimento deve produzir em Vasqueannes ! -- " Eis o que eu dizia falando comigo mesmo . Entrei : ninguem reparou em mim : todos andavam como pasmados . Sem falar com pessoa alguma cheguei á camara de vosso pae . Parece-me que o estou vendo ! Assentado em um escabello , com as faces entre os punhos , os olhos fitos no ladrilho do aposento , e o respirar alto e rapido . Aquella grande alma vergava debaixo do peso da afilicção . Cheguei-me a elle sem que me sentisse : bati-lhe de manso no hombro : olhou para mim , e sorriu-se . Este sorriso traspassou-me o coração . Depois o seu gesto recobrou as rugas de uma dor funda ... Elle não me dizia nada . Fui eu o primeiro que falei . " Senhor||_Vasqueannes Vasqueannes|_Vasqueannes , o homem põe , e Deus dispõe . Seja feita a sua vontade . " " E a sua vontade será que se commettam crimes infames , e que um pobre velho seja deshonrado , quando tem já os pés mettidos dentro do ataúde ? " " A sua vontade é que o bom pague com amarguras do mundo as culpas de que ninguem é exempto ; e que o máu folgue e ria cá emcima ; porque a sua conta tem de ser saldada no inferno . " " Oh ! mas a deshonra ! ... " " A deshonra é para quem commette feitos vis . O que deles padece esse não é deshonrado . " " Isso dizeis vós outros , " -- atalhou com energia vosso pae , -- " os que não herdastes um nome antigo , que se fiou de vós como deposito , para o traspassardes sem nodoa aos vossos herdeiros . Vós não tendes herdeiros ! Meu Vasco ; meu Vasco ! onde estás , cavalleiro , filho e neto de cavalleiros , onde estás tu ? ! Olha que o meu montante enferrujado já não póde saír da bainha : olha que as pernas tropegas de um velho já não podem apertar as ilhargas de um ginete ! Vem ! Olha que cuspiram no brasão de teus avós . Lava esta nodoa com sangue . " Quando o abbade repetiu estas palavras de meu pae , a sua voz se me converteu na dele ; e eu rugi por entre os dentes cerrados : -- " Meu pae , serás satisfeito ! " -- Um mar de sangue parecia correr diante de mim . " Sempre eu pensára , " -- proseguiu o abbade -- " que a traição de Mem Viégas faria vivo abalo no animo de vosso pae ; mas tanto , custava-me a crê-lo . O meu ministerio era consolá-lo , e para a consolação recorri á fonte de todas elas : lembrei-lhe o justo , o filho de Deus cuberto de afrontas , perdoando na cruz aos seus perseguidores : lembrei-lhe que mais de uma vez , por obra e palavra , o Crucificado ensinára o perdão das injurias . " Mas elle era Deus ! Mas ele não tinha uma filha que muito amasse ; que fosse como uma flor de innocencia , um anjo de amor , e se convertesse ... n ' uma barregan refece e torpe . Um Judas houve entre os seus , como o que entrou nesta casa ; mas esse onde está ? No inferno . E este ? Folga e ri de mim velho . Ah que este velho tem um filho ! Vingança , Vasco ! Vingança ! " Eu olhava para vosso pae : não sabia se ele delirava , se nestas palavras havia algum mysterio ininteligivel para mim . Um pagem , que entrou nesse instante , me fez ver que vosso pae não delirava . " O pagem estava no meio da casa , como um criminoso : os olhos pregados no chão , e os braços pendentes . " Então ? " -- disse o senhor||_Vasqueannes Vasqueannes|_Vasqueannes com voz de mortal angustia . -- " Todos os besteiros e homens d' armas , " -- respondeu o pagem , -- " acabam de chegar . Correram quatro leguas por diferentes caminhos . Não encontraram a senhora||_D._Beatriz D.|_D._Beatriz Beatriz|_D._Beatriz , nem " D. Vivaldo . " Vasco ! " -- foi o ultimo grito de vosso pae : e caiu desfalecido . " Então percebi tudo ; confesso que tambem nesse instante me passou pelo espirito um pensamento impio ! " Poucas horas antes de eu sair da prisão , em que me retivera Mem Viégas , D. Beatriz tinha fugido com o miseravel D. Vivaldo . Este homem , indigno do nome de cavalleiro , passando por aqui , falsa ou verdadeiramente enfermo , pedira e recebêra gasalhado de vosso pae . Dentro de poucos dias percebi que os olhos de D. Beatriz se encontravam frequentes vezes com os dele . Julguei que , devendo partir brevemente , se alguma afeição ía nascendo entre os dous , se desfaria com o apartamento . Entretanto D. Vivaldo , com seus modos cortezãos e de primor , captivava cada dia mais o animo de vosso pae . A noite lia-nos o Amadis do nobre Lobeira , que o senhor||_Vasqueannes Vasqueannes|_Vasqueannes muito gostava de ouvir , e de que tinha um traslado dado pelo proprio auctor . Quasi que vosso pae não podia estar uma hora sem D. Vivaldo . Encostado ao seu braço passeava tardes inteiras com elle , ora na mata de carvalhos , ora no horto contiguo . D. Beatriz o acompanhava , e este amor , que me parecia em começo , já estava convertido em incendio violento . Minto : esse homem não era mais que um seductor infame ! Se tivesse pedido D. Beatriz a vosso pae elle lh'a houvera dado por mulher . Certo que o amava muito ! Pobre que fosse , ou de menos puro sangue , Era uma cegueira do honrado fidalgo ; e aquelle miseravel devia ser o seu assassino ! " Desde este dia vosso pae não disse mais palavra , nem quiz mais comer . As vezes viam-se-lhe borbulhar nos olhos as lagrymas ; mas enxugavam-se-lhe logo . Durou assim alguns dias . Uma febre violenta o sustentava . Este fatal alimento faltou-lhe por fim , e espirou . O nome unico por que chamou , pouco antes de morrer , foi o de seu filho . " Aqui o abbade calou-se . Estava em pé diante de mim ; e eu olhava para ele fito : Brites , que tinha escutado tudo immovel como eu , me tirou daquele torpor , saíndo do aposento e cantando : Já , porém , este medonho contraste de uma voz de alegria no meio do ambiente de ferro que me cercava , não me fazia abalo . A dor passára o termo até onde lhe é dado ír esmagando o coração humano : o meu era ermo , nu , petrificado . Mas ahi estava gravada pela voz de meu pae uma palavra que não se podia apagar -- Vingança ! " Que me deem algum alimento . No pateo um ginete enfreado e sellado . A minha armadura e a minha espada bem limpas na salla d' armas ! Um pagem para me acompanhar . " " Senhor||_Deus Deus|_Deus , Jesu-Christo ! " -- exclamou o abbade , com um gesto de terror , que , não sei porque , nelle tinham causado estas palavras . " Que me deem algum alimento . No pateo um ginete enfreado e selado . A minha armadura e a minha espada bem limpas na sala d' armas . Um pagem para me acompanhar ! " Os meus pensamentos eram immutaveis como de bronze : as minhas palavras como um dobre por finado , innegaveis , indestructiveis . Creio que comi : senti renovarem-se-me as forças . Creio que vesti a armadura : ouvi o tenir do fraldão de malha sobre os coxotes , e o jogar destes e das grevas debaixo das joelheiras . Creio que cingi a espada : o coração percebeu que o instrumento da vingança estava encostado ao peito . Creio que cavalguei o meu ginete : conheci que escarvava a terra diante da planicie , que se alargava em frente dos paços , já meus , como em dia de peleja no campo da lide . Tambem um pagem , cavalgando uma hacanea , estava ao pé de mim : trazia-me a lança , e ás costas o meu escudo mettido em uma funda . como se outras armas houvesse ahi mais que a espada ou o punhal para quem quer vingar-se ; outro escudo mais que uma vontade , um pensamento perspicaz , tranquillo , unico , incapaz de errar o alvo , semelhante a uma tenção damnada de Belzebuth ! " Sabes onde são os paços do cavalleiro que esteve aqui ? " -- perguntei eu ao pagem . " Qual , senhor ? " " D. Vivaldo , cão maldicto ! " " Não , senhor . Mas ouvi que seguia a côrte . " " Para Lisboa ! " Partimos . Caminhavamos em quanto os ca vallos se podiam menear , e ficavamos onde nos colhia a noite . Aproximamo-nos certo dia de uma povoação : era domingo : o sino tocava á missa : o povo apinhava-se á porta da igreja . Cheguei ahi , e passei . Não me importou o dever de christão , e não senti remorsos . Percebi então como um pensamento póde fazer um reprobo . As mãos estavam ainda puras : a alma já era negra . Entrei em Lisboa . Ao cruzar a porta da Cruz , experimentei o mesmo goso que sentira ao descer o outeiro , que jaz á entrada da minha terra natal : lá , pae , irman , amante ; aqui todas as minhas victimas ! Prazer de homem ahi : prazer de demonio cá . Mas que importava ? A intensidade era a mesma . A minha boa espada tinha de ir bater sobre uma cabeça criminosa , como uma maldicção paterna lançada do leito da morte ; como os pelouros desses trons ruidosos com que os castelhanos rareavam nossas alas em Aljubarrota , sem haver arnez que lhes resistisse , elmo que , ao perpassar deles , não voasse em rachas com o craneo de seu dono . Qual devia ser a primeira ? Hesitei . Lembrei-me da palavra que me legára meu pae : procurei o seductor de Beatriz . Debalde . Ninguem conhecia D. Vivaldo . Entre os cavalleiros d' elrei nenhum havia tal nome . A febre da desesperação começava a consumir-me . insupportavel era para mim e para os outros a minha melancholia ... Certa manhan corria eu ao acaso as ruas e terreiros de Lisboa , sem saber aonde ir , ou a quem perguntar por esse nome vão , por essa sombra fugitiva , que o meu sonho de vingança parecia trazer-me perto dos olhos , e que a realidade me punha cada dia mais fóra do alcance . Saíndo da pousada , no extremo do bairro dos escholares , passei pelos paços dos Infantes , e cheguei ao terreiro da Sé . Ainda ahi estava o engenho , com que os populares tinham , em tempo de D. Fernando , despedaçado um traidor . Negro , meio podre , cuberto de limos tinha-o esquecido o povo ! O monumento sancto , o monumento da vingança não importava a ninguem ! Apertei contra o coração o punho da espada . Ela não havia de esquecer me nunca : só me tardava o dia , em que podesse pendurá-la no logar mais alto da sala d' honra dos meus paços , entre as armas ferrugentas de Vasqueannes , e depois ir ajunctarmais um cadaver no carneiro de meus avós . Com os braços cruzados e os olhos fitos no engenho arruinado , deixava-me ir ao som dos meus desvarios , quando vozes confusas vieram despertar-me . Olhei : o povo estava apinhado juncto á torre da Sé , que deita para a banda do aguião . Encaminhei-me para lá , sem saber porque : arrastava-me uma especie de instinrto . Quando me aproximei logo vi o que era . Um truão mouro divertia o povo cantando arremedilhos , fazendo momos e visagens , e saltando como endemoninhado ao som de um adufe . D ' ahi a poucos instantes um estrupido de cavallos soou do lado dos paços d' elrei : o povo afastou-se , e dous cavalleiros , acompanhados de seus pagens , chegaram perto da torre , pegado com a qual o bom do truão trabalhava por divertir a gentalha . Um deles era homem d' idade madura , mas d' aspecto aprazivel ; o outro mancebo e gentil-homem . Embebido em seus momos o jovial folião continuou a saltar , tocando o adufe , com pantomimas lubricas , e cantigas obscenas ; mas os dous cavalleiros , vendo que o actor do drama popular era um mouro , bradaram a uma voz : " Arreda-te , cão " --e picando os acicates , senhores e pagens saltaram por cima do pobre mouro , que rolou pelo chão , dando agudos gemidos . O truão alevantou-se : olhou de roda espantado por alguns momentos , e depois cravando os olhos no céu , com um aspecto emque se misturavam signaes de colera e de angustia , exclamou ! " A maldicção do propheta caia sobre vós , infiéis ! " Ouvindo isto , o povo , em vez de se compadecer dele , começou a dizer-lhe injurias , e a atirar-lhe pedradas e lixo , dando grandes risadas . " Perro , porque não fugiste ? " -- gritavam uns . " Arriba , e dança no monturo ! " -- bradavam-lhe outros . Um anno antes teria rido , como os mais , da desventura daquele mesquinho ; mas tudo em mim estava mudado . Acreditareis , virtuoso Fr. Lourenço , que eu , cavaleiro de Christo , tive dó de um mouro , e amaldiçoei os dous nobres ? " Vis sandeus , -- disse em voz baixa -- deixam passar os poderosos que opprimem , e escarnecem do aggravado , porque é um pobre mouro ! " -- Por ventura esta reflexão nascia de que eu tambem era oppresso . Tambem cavalleiros me haviam calcado como ao pobre maninello . A minha reflexão foi ouvida por um velho , que estava ao pé de mim . Mediu-me com a vista , e sorrindo-se , disse-me : " A fé , senhor , que tenho setenta annos , e é a primeira vez que ouço um cavalleiro doerse de um vilão . Dos melhores são esses que vedes , e apesar de tudo ahi tendes o que fizeram ao triste jogral . " " Conheceis-los ? " -- perguntei eu . " E quem não conhece , tornou o velho , o mui nobre e esforçado Lopo Mendes , e Fernando Afonso , o camareiro d' elrei ? " O nome de Lopo Mendes vibrou nos meus ouvidos , como um trovão , que houvesse estourado subitamente . Fiquei calado por algum tempo : uma tempestade de paixões tumultuosas e encontradas me dilaceravam o coração . D. Vivaldo ofendêra a honra , Lopo Mendes o amor . As minhas diligencias para encontrar D. Vivaldo tinham , porém , sido baldadas , e eu , que só vivia para sangue , coava dias apoz dias inuteis no mundo . O seductor de Beatriz ti nha o primeiro logar : era a victima de meu pae e a minha ; mas o marido de Leonor passára diante de mim senhoril , orgulhoso , feliz no seu amor detestavel ; interpunha-se entre o tigre e a prea . Deus tinha contado os seus dias . Devia morrer mais cedo do que eu proprio imaginara . Estes pensamentos vieram-me como um relampago ; mas a resolução que geraram foi immutavel . Voltei-me para o velho , e perguntei-lhe com apparente tranquillidade : " E onde pousa ora " Lopo Mendes ? " " Nas casas de Alvaro Pires , juncto ao muro que desce da Trindade para Valverde , perto da torre Alvaro Paes . " . Felizmente tinham-me ensinado a escrever . Parti . Nesse dia , ao pôr do sol , Lopo Mendes recebia um papel , fechado com uma cinta preta , em que havia estas palavras : " Um cavalleiro , que te aborrece com as véras da alma , te requesta e repta para um duello a todo o trance . Amanhan no Campo-da-lide , a hora de prima , com cota e braçaes , estoque e misericordia . Na primeira deveza , além do pinhal da esquerda o acharás . Vil e refece , mais que sua infame mulher , é Lopo Mendes , se ahi não estiver a hora de prima . Não leva firma : daqui a poucas horas me has de conhecer . " O pagem , que levára esta carta , a recebeu outra vez aberta , e aberta m ' a entregou . Trazia no alto escripto : " Quem quer que sejas , vilão , põe ahi teu nome , para que te faça açoutar como a um mouro perro e fugidiço . -- Lopo Mendes . " Ri-me . A CAÇADA . Hora devees de saber que aquel boom alaão de Bravor , comprido dardimento e de boomdades , se gundo saa naturesa , era assi acos tumado , que nem porco nem husso , nem outra animalia com que se encontrasse , nom avia de travar em ella , a menos de lhe&lhes+o mandarem fazer . FERNÃO LOPES -- Chr. de D. Fern . , Cap. 99 . Vinte dias e outras tantas noites , -- proseguiu Fr. Vasco , -- com uma cota de malha vestida por baixo do pelote e da capa , e com o meu punhal na cincta , vagueei horas inteiras em redor da pousada de Lopo Mendes . Muitas vezes o vi saír e descer para a banda de Valverde , ao longo da muralha do norte . Seguia-o de longe , até o ver sumir-se nas ruas tortuosas e escuras do coração da cidade . Eu subia então outra vez a encosta , e vinha curtir tardanças da hora de sangue nas cercanias das casas de Alvaro Pires . Finalmente essa hora suspirada bateu . Era pela manhan cedo de um dia de fevereiro . O tempo ía sereno , posto que frio . Aquella noite , bem como as outras , mal passára pelo somno , e ainda este povoado de sonhos horrendos . Apenas rompeu a alva , montei a cavallo , e , seguido do meu pagem , voltei á occupação quotidiana . Atravessei a cidade , saí pela porta de Santa Catharina , e corri com o muro ao longo da barbacan . Quando cheguei defronte do postigo de Alvaro Paes vi cousa que me fez parar . Montado em um corredor ruço-pombo , e vestido de monte , Lopo Mendes saía para o arrabalde . Acompanhava-o um pagem , e o falcoeiro , com um galgo e um alão atrellados , e um nebrí em punho . Cortejou-me ao perpassar . Com um movimento convulso apertei o conto do meu punhal , e tambem o saudei . Partiu . Segui-o de longe : por montes e ladeiras , por logares selvosos e chãos rasos , nunca o perdi de vista . Ele perseguia as aves e alimarias innocentes : eu perseguia-o a elle . Qual de nós seria mais feliz ? Nem eu o sabia , nem elle . Por bicadas de montes e por barrocaes , por entre os silvados e olivedos entremeados de vinhas , que se penduram pelas encostas até as margens do Alcantara , nunca me alonguei dele . Tinha deixado o meu cavallo ao pagem ; tambem elle deixára o corredor ao seu . Só com o falcoeiro , mettia-se por brenhas , e saía ás clareiras . Eu , como o seu anjo mau , ía muitas vezes bem perto dele , cosido com os comoros e sebes , ou sumido pelos algares das torrentes , ou pelos corregos das quebradas . Chegou a uma ponte de madeira , e atravessou o rio para a banda do occidente . A serra fronteira , calva aqui e acolá , é pela maior parte enredada de urzes e tojos , por entre os quaes apenas se encontram estreitas trilhas de pastores . E talvez este o unico sitio dos arredores , a que se possa chamar um ermo . Deixei-o embrenhar , e transpuz o rio apoz elle . Por alguns momentos julguei que o tinha per dido , mas divisei-o por fim sobre um penedo a meia serra . Acerquei-me o mais perto que era possivel . Escutei : batia-me o coração com força . Ouvi-o gritar : Bravor , ao fojo ! Era ao galgo que fallava . Vi partir este destrellado , por entre penedias : uma lebre corria adiante ; o cão a ía alcançar . De repente um e outro animal desappareceram , como se a terra os houvera engulido . Lembrei-me então de me haverem contado , que por toda esta serra se encontram caminhos subterraneos , cuja origem se ignora . Uns os suppõem obra da natureza , outros dos homens . Tinham-me dicto que os caçadores , usados a frequentar estes sitios , conheciam as entradas e saídas desses corredores tortuosos e escuros , e que muitas vezes se aproveitavam disto para lançarem os lebreus por um cabo , e dividirem-se para lhes tomar as saídas . Começára a desanimar ; mas esta lembrança me avigorou a esperança . Não me enganei . Ouvi Lopo Mendes fallar com o falcoeiro , e vi partir este , levando o nebrí em punho , e o alão atrellado . O cavalleiro seguiu a pista do galgo , e , como elle , desappareceu entre o fraguedo . Ajoelhei . Dava graças ao céu , que rejeitava a minha gratidão blasphema . Erguendo-me , parecia-me que o coração se me dilatava . Tinha as mãos , o rosto , os joelhos feridos e ensanguentados ; mas já não era preciso arrastar-me por mais tempo , como a vibora , por vallados , balsas e carças . O tigre arrojava-se acima da prea com a fronte erguida , com o bramido do contentamento , e diante da luz do sol . Este havia começado a sua declinação diaria , quando cheguei áquellas concavidades , cujo ádito escondido entre a penedia , só divisei ao dar de rosto com elle . Era virado ao occidente , e a claridade da tarde , já bastante amortecida , batendo nas paredes irregulares da primeira gruta , penetrava indecisa até meia área da caverna immediata , por um arco de pedras , amarelladas e brutescas como o resto do covão . No meio daquele arco um vulto de homem , curvado para diante , e firmando as mãos sobre os joelhos , parecia tentar o ver alguma cousa atravez das sombras que tinha diante de si . Escusado é dizer-vos cujo era esse vulto . Com os braços cruzados contemplei-o immovel da entrada do subterraneo : estava tão embebido em esperar o seu lebreu , que não deu tino de mim . Entrei : o chão era barrento e humido . Ajudado por esta circumstancia caminhei com passos lentos e subtis , por tal modo que estava junto de Lopo Mendes , e ele não me sentia . Aferrei-o por um hombro sem dizer palavra : ele apenas pôde voltar meio corpo , dando um estremeção . " Que me quereis ? Quem sois ? " -- perguntou perturbado . " Um vilão que vem dizer-te o seu nome , para o mandares açoutar como um mouro fugidiço . " . " Entendo , senhor cavalleiro ! Mas escolhestes máu logar e hora para renovar requesta . Em tanto aqui a acceito , se me disserdes vosso nome ... " " O meu nome ? " -- gritei eu . -- " O meu nome é Vasco da Silva ! Conhéces- lo ? Requesta já t ' a fiz : não a acceitaste . Querias o meu nome para atirar-me a cabeça aos pés do algoz ? Tu és vil , Lopo Mendes ; vil como tua mulher , que se prostituiu a ti , atraiçoando-me , porque tinhas mais dous avós , mais dous punhados de dobras . Repto ! ... É tarde para falar nisso . " Dizendo estas palavras levei a mão á cincta , e arranquei meio punhal . " Mas é um assassinio ! " " Adivinhaste ! " Lopo Mendes pertendeu desembaraçar-se . Pobre cortezão ! Os ossos do hombro rangeram-lhe debaixo da minha mão ensanguentada pelas urzes e silvados : vergou , e caíu de joe lhe&lhes+os . -- " Por vosso pae , por vossa irman , Vasco da Silva , que não me assassineis ! " " Meu pae , " -- tornei-lhe eu com uma tranquillidade que devia ser horrivel , -- " foi morto por um homem tão vil como tu : irman já não a tenho ; converteu-se numa barregan tão infame como tua mulher . " " Por Deus , que não queiraes lançar a minha alma no inferno ! Não me mateis sem confissão ! " Não lhe respondi : sentia na boca um gosto de sangue : côr de sangue me parecia a frouxa luz que me allumiava . Ergui o punhal , e craveilho duas vezes no peito : caíu . Ajoelhei ao pé dele , curvando-me , e gritando-lhe ao ouvido : " No inferno nos encontraremos ! " Quando saí da caverna o sol ía-se pondo ; quando passei o Alcantara , tocava o sino da oração . Chegando ao logar onde deixára o pagem com o ginete , cavalguei sem dizer palavra : atravessei os campos e as ruas da cidade já desertas , e tanto que entrei na pousada , sem tomar nenhum alimento , sem saber o que fazia , encerrei-me na minha camara . Que noite , padre ! que noite ! Estes cabellos não estavam brancos no outro dia ; mas a alma tinha-me envelhecido vinte annos . Acordado , com os olhos abertos , via Lopo Mendes , ensanguentado , entre chammas , em pé diante de mim ; os seus olhos eram dous carvões accesos , que se lhe revolviam á flor do rosto . Cerrava os meus ; via-o atravez das palpebras , immovel , silencioso ! O suor corria-me da fronte em bagas . A oração fôra o meu unico refugio naquella afrontosa agonia ; mas não havia uma só palavra de oração de que o espirito se recordasse , ou que os labios podessem repetir . O resar é para os innocentes : eu tinha escripto o meu nome com sangue no livro maldicto dos grandes criminosos . No outro dia , com a luz , com o tumulto da vida , os meus terrores asserenaram . Recobrei o sentimento da vingança ; mas já não era tão inteiro e violento , porque com ele se misturavam remorsos . O pagem que comigo trouxera , mandei-o voltar para o meu castello , tomando por pretexto algumas ordens , que tinha de communicar ao mordomo do solar . A morte de Lopo Mendes devia divulgar-se , e eu temia que as desconfianças estouvadas do pagem me atraiçoassem . Não receava o castigo ; mas considerava-me como ligado á missão de sangue , que meu pae me incumbíra na hora da morte . Desempenhada esta , nada me importava morrer , e pouco mais que o logar da agonia fosse uma cama de frouxel e telas alvas , ou o cepo , duro e cuberto de lucto , do cadafalso . Era pelo fim da tarde quando saída pou sada . Encaminhei-me para o sitio da morada de Lopo Mendes : queria saber o que se pas sára , e a ninguem podia encarregar disso sem alevantar suspeitas . Quando ahi cheguei , já o crepusculo da noite mal deixava enxergar os objectos . Pelas frestas das casas contiguas ás de Alvaro Pires bruxuleava o clarão das candeias e tochas , mas nessa habitação tudo estava fechado e escuro como um sepulchro . Pelo profundo portal do edificio entravam e saíam vultos negros , e silenciosos . Cheguei mais perto , e então percebi distinctamente os chóros e prantos das carpideiras , misturados com os psalmos religiosos , e com as orações pelos finados . Transpirando atravez das vidraças e portas cerradas , estes sons frouxos e discordes vinham bater-me nos ouvidos , e em vez de me causarem prazer , como eu imaginára nos meus sonhos de vingança , esmagavam-me o coração , e faziam-me eriçar os cabellos . Era evidente que o cadaver de Lopo Mendes tinha sido encontrado ; mas importava-me saber o como , e se havia algumas suspeitas ácerca do matador . Dirigi-me a um daqueles vultos que incessantemente entravam e saíam , e perguntei-lhe o motivo dos prantos que ouvia . Soube então que o falcoeiro voltára em busca de seu senhor , e que encontrando-o assassinado , corrêra á cidade como louco , a dar conta daquele successo ; que a justiça , guiada por elle , fizera conduzir o cadaver para ser sepultado , o que nessa noite se verificava ; que a principio algumas suspeitas tinham recaído so bre o falcoeiro ; mas que estas se haviam des vanecido , attendendo a que era um antigo e leal servo , e a que , se tivesse sido o assassino , não seria elle que por si proprio se viesse offerecer ao castigo ; que , todavia , tinha sido posto a ferros até se averiguar quem havia commettido aquele homicidio , o que ainda era um mysterio . Ainda bem não tinha acabado de ouvir esta narração , quando a luz viva de muitas tochas allumiou subitamente as escadarias , e pateo da casa , e os prantos e hymnos reboaram distinctamente pelas abobadas . Era o saímento que descia . Encostei-me para o angulo do edificio , e dalli contemplei a minha obra infernal . Os frades de S. Francisco vinham adiante com os capuzes mettidos na cabeça e tochas accesas nas mãos , resando em voz baixa e soturna : seguia-se a tumba , levada em collos de homens , e cuberta de pannos negros . O suor corria-me em fio da fronte ; os dentes batiamme uns contra os outros . Porque estava eu alli ? Não o sabia . Oh , veneravel Fr. Lourenço , era o meu crime que me tinha de sua mão : era ele que não me deixava tirar os olhos daquela horrivel tumba ! Vergava-me o coração debaixo do peso dos remorsos , e , todavia , lembrava-me de que ainda me faltavam mais victimas ! " Neste ponto da sua narrativa o monge calou-se por alguns momentos , como quem buscava atar o fio partido das ideas , e trabalhava por cobrar novas forças para proseguir . O mestre de theologia tinha os olhos fitos nelle sem pestanejar , e nas suas feições transparecia o horror em que lhe afogava o animo tão medonha e abominavel historia . " A tumba havia passado os umbraes da casa , -- continuou o moço frade -- e ainda eu a seguia com os olhos , quando apoz tantos vultos negros um alvejar de roupas atraz do ataúde , me distraiu . Era ella : era Leonor ! Pendia-lhe da cabeça um longo capuz de vaso , fluctuando sobre a tunica de almafega alvacenta , que lhe arrastava até o chão . Chorava e soluçava pelo morto ! E eu alli ; trahido , esquecido , miseravel , criminoso por ella ! Era ainda formosa : mais , por ventura , que no tempo dos nossos amores ! Não sei o que me reteve , que não me arrojasse a seus pés , e lh'os beijasse , e lhe pedisse perdão , e depois a apunhalasse . O meu arquejar devia soar bem longe : mas não disse nada . Padeci e sofri . Donas , donzellas e cavalleiros tambem vestidos de burel branco , e com as cabeças cubertas de vaso , rodeavam Leonor . Apoz elles mais nada , senão algum povo , que começava a ajuntar-se . O portal ficou deserto , e apenas se ouvia , lá em cima nos aposentos , o choro das pranteadeiras , que provavelmente não tinham ousado acompanhar o morto , com suas lagrymas venaes . Metti-me entre o povo , e segui o saímento , Aquele complexo de frades e cavaleiros e donas e donzellas e hymnos e resar baixo e soluçar e carpir , entre cujo mover incerto e lento , entre cujo ruido soturno e temeroso , eu via a menor acção de Leonor , ouvia o menor accento da sua magoa acerba e afogada em choro , era como um redemoinho que me arrastava e embebia em si irresistivelmente . Vago e monstruoso , como aquelle longo vulto de muitos vultos , como aquelle vozear de muitas vozes , era o que se passava em mim : se aflicção ou prazer ; remorsos do crime , ou contentamentos da vingança ; sede de mais sangue , ou desejo de perdão ; odio immenso , ou amor desperto de novo com dobrada ancia , é o que não saberei dizer-vos . Por ventura era isso tudo , que a coração . um tempo me assaltava , e despedaçava o Chegando á igreja de S. Francisco o saímento atravessou o portal do meio , e seguiu ao longo da nave central . No cruzeiro estava um estrado cuberto de negro : depositaram em cima o ataude ; abriram-o , e os psalmos da morte , momentaneamente interrompidos , reboaram de novo por aquelas fundas arcadas . Havia-me encostado a uma das columnas das naves , para alli ir bebendo golo a golo o meu calix de amargura . Quando abriram o ataúde , lancei para lá os olhos , sem saber o que fazia . Vi a face livida do morto : tinha os dentes cerrados , as feições contrahidas , e de cada canto da boca pendía- lhe um fio de sangue negro e gelado , como devia estar o que eu lhe deixára nas veias . Voltei os olhos num relance , mas continuei a vê-lo ... então ... depois ... agora mesmo ... talvez para sempre ... talvez na hora tremenda da derradeira agonia ! " O moço frade não disse , murmurou , ou antes rugiu estas ultimas palavras : afastou-se com impeto de Fr. Lourenço , apertou a testa com as mãos ambas , e exclamou :