OBRAS DE J. B. DE A. GARRETT . VIII . ( PRIMEIRO DE+AS VIAGENS ) VIAGENS EM+A MINHA TERRA POR J. B. De Almeida-Garrett . I LISBOA EM+A TYPOGRAPHIA DE+A GAZETA DE+OS TRIBUNAIS . 1846 . Qu ' il est glorieux d' ouvrir une nouvelle carrière , et de paraitre tout- a coup dans le monde savant un livre de découvertes a la main , comme une cométe inattendue étincelle dans l ' espace ! X. De MAISTRE . De como o auctor d' este erudito livro se resolveu a viajar na sua terra , depois de ter viajado no seu quarto ; e como resolveu immortalizar-se escrevendo éstas suas viagens . Parte para Santarem . Chega ao Terreiro-do-Paço , imbarca no vapor de Villa-Nova ; e o que ahi lhe succede . A Deducção-Chronologica e a Baixa de Lisboa . Lord Byron e um bom charuto . Travam-se de razões os Ilhavos e os Bordas-d' agua : os da calça larga levam a melhor . Que viage á roda do seu quarto quem está á beira dos Alpes , de hynverno , em Turim , que é quasi tam frio como San'Petersburgo -- intende-se . Mas com este clima , com este ar que Deus nos deu , onde a laranjeira cresce na horta , e o mato é de murta , o proprio Xavier de Maistre , que aqui escrevesse , ao menos ia até o quintal . Eu muitas vezes , n ' estas suffocadas noites d' estio , viajo até á minha janella para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua , e me inganar com uns verdes de árvores que alli vegetam sua laboriosa infancia nos intulhos do Caes-do-Sodré . E nunca escrevi éstas minhas viagens nem as suas impressões : pois tinham muito que ver ! Foi sempre ambiciosa a minha penna : pobre e suberba , quer assumpto mais largo . Pois hei de dar-lh ' o . Vou nada menos que a Santarem : e protesto que de quanto vir e ouvir , de quanto eu pensar e sentir se hade fazer chronica . Era uma idea vaga , mais desejo que tenção , que eu tinha ha muito de ir conhecer as riccas varzeas d' esse Ribatejo , e saudar em seu alto cume a mais historica e monumental das nossas villas . Aballam-me as instancias de um amigo , decidem-se as tonterias de um jornal , que por mexeriquice quiz incabeçar em designio politico determinado a minha visita . Pois por isso mesmo vou : -- pronunciei-me . São 17 d' este mez de julho , anno de graça de 1843 , uma segunda-feira , dia sem nota e de boa estrea . Seis horas da manham a dar em San'Paulo , e eu a caminhar para o Terreiro-do-Paço . Chego muito a horas , invergonhei os meus madrugadores dos meus companheiros de viagem , que todos se prezam de mais matutinos homens que eu . Ja vou quasi no fim da praça , quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d' ancien règime : é o nosso chefe e commandante , o capitão da impreza , o Sr.||_C._da_T. C.|_C._da_T. da|_C._da_T. T.|_C._da_T. que chega em estado . Tambem são chegados os outros companheiros : o sino dá o último rebate . Partimos . N ' uma regata de vapores o nosso barco não ganhava decerto o premio . E se , no andar do progresso , se chegarem a instituir alguns isthmicos ou olympicos para este genero de carreiras -- e se para ellas houver algum Pindaro ancioso de correr , em strophes e antistrophes , atraz do vencedor que vai coroar de seus hymnos immortaes -- não cabe nem um triste minguado epodo a este cançado corredor de Villa-nova . É um barco serio e sizudo que se não mette n ' essas andanças . Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pittoresco amphitheatro de Lisboa oriental , que é , vista de fóra , a mais bella e grandiosa parte da cidade , a mais characteristica , e onde , aqui e alli , algumas raras feições se percebem , ou mais exactamente se adivinham , da nossa velha e boa Lisboa das chronicas . Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguez , chato , vulgar e semsabor como um periodo da Deducção Chronologica , aqui e alli assoprado n ' uma tentativa ao grandioso do mau gôsto , como alguma oitava menos rasteira do Oriente . Assim o povo , que tem sempre melhor gôsto e mais puro do que essa escuma descórada que anda ao decima das populações , e que se chama a si mesma por excellencia a Sociedade , os seus passeios favoritos são a Madre-de-Deus e o Beato e Xabregas e Marvilla e as hortas de Chellas . A um lado a immensa majestade do Tejo em sua maior extensão e podêr , que alli mais parece um pequeno mar mediterraneo ; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores , palacios , mosteiros , sitios consagrados todos a recordações grandes ou queridas . Que outra sahida tem Lisboa que se compare em belleza com ésta ? Tirado Bellem , nenhuma . E ainda assim , Bellem é mais arido . Já saudámos Alhandra , a toireira ; Villa-franca , a que foi de Xira , e depois da Restauração , e depois outra vez de Xira , quando a tal restauração cahiu , como a todas as restaurações sempre succede e hade succeder , em odio e execração tal que nem uma pobre villa a quiz para sobrenome . -- ' A questão não era de restaurar nem de não restaurar , mas de se livrar a gente de um govérno de patuscos , que é o mais odioso e ingulhoso dos governos possiveis . ' É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viajem accudiu ao princípio de ponderação que eu ia involuntariamente fazendo a respeito de Villa-franca . Mas eu não tenho odio nenhum a Villa-franca , nem a esse famoso cirio que lá foi fazer à velha monarchia . Era uma coisa que estava na ordem das coisas , e que por fôrça havia de succeder . Este necessario e inevitavel reviramento por que vai passando o mundo , hade levar muito tempo , hade ser contrastado por muita reacção antes de completar-se ... No entretanto vamos accender os nossos charutos , e deixemos os precintos aristocraticos da ré : á proa , que é paiz de cigarro livre ! Não me lembra que lord||_Byron Byron|_Byron celebrasse nunca o prazer de fummar a bórdo ." notavel esquecimento no poeta mais imbarcadiço , mais marujo que ainda houve , e que até cantou o injôo , a mais prosaica e nauseante das miserias da vida ! Pois n ' um dia d' estes , sentir na face e nos cabellos a brisa refrigerante que passou por cima da agua , em quanto se aspiram mollemente as narcoticas exhalações de um bom cigarro da Havana , é uma das poucas coisas sinceramente boas que ha n ' este mundo . Fummemos ! Aqui está um campino fummando gravemente o seu cigarro de papel , que me vai imprestar lume . ' dou-lh ' o eu , senhor ... ' accode cortezmente outra figura mui diversa , cujas feições , trajo e modos singularmente contrastam com os do musarabe ribatejano . Accenderam-se os charutos , e attentámos mais de vagar na companhia em que estavamos . Era com effeito notavel e interessante o grupo a que nos tinhamos chegado , e destacava pittorescamente do resto dos passageiros , mistura hybrida de trajos e feições descharacterizadas e vulgares -- que abunda nos arredores de uma grande cidade maritima e commercial . -- Não assim este grupo mais separado com que fomos topar . Constava elle de uns dôze homens ; cinco eram d' esses famosos athletas da Alhandra que vão todos os domingos colher o pulverem olympicum da praça de Sanct'Anna , e que , á voz soberana e irresistivel de : á unha , á unha , á cernelha ! ... correm a arcar com mais generosos , não mais possantes , animaes que elles , ao som das immensas palmas , e a trôco dos raros pintos por que se manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio enthusiasmo das multidões . Voltavam á sua terra os meus cinco luctadores ainda em trajo de praça , ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da vespera . Mas aopé d' estes cinco e de altercação com elles -- ja direi porquê -- estavam seis ou sette homens que em tudo pareciam os seus antipodas . Emvez do calção amarello e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do forcado , estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos , e o tabardo arrequifado siciliano de panno de varas . O campino , assim como o saloio , tem o cunho da raça africana ; estes são da familia pelasga : feições regulares e moveis , a fórma agil . Ora os homens do norte estavam disputando com os homens do sul : a questão fôra interrompida com a nossa chegada á proa do barco . Mas um dos Ilhavos -- bella e poetica figura de homem -- voltando-se para nós , disse n ' aquelle seu tom accentuado : -- ' Ora aqui está quem hade decidir : vejam-n* ' os senhores . Elles , por agarrar um toiro , cuidam que são mais que ninguem , que não ha quem lhes chegue . E os senhores , a serem ca de Lisboa , hãode dizer que sim . Mas nós ... ' -- Nenhum de nós é de Lisboa : so este senhor que aqui vem agora . Era o C. da T. que chegava . -- ' Este conheço eu ; este é dos nossos ( bradou um homem de forcado , assim que o viu ) . Isto é um fidalgo como se quer . Nunca o vi n ' uma ferra , isso é verdade ; mas aqui de Vallada a Almeirim ninguem corre mais do que elle por sol e por chuva , e hade saber o que é um boi de lei , e o que é lidar com gado . ' -- ' Pois oiçamos lá a questão . ' -- ` Não é questão ' -- tornou o Ilhavo : ' mas se este senhor fidalgo anda por Almeirim , para Almeirim vamos nós , que era uma charneca o outro dia , e hoje é um jardim , benza-o Deus ! -- mas não foram os campinos que o fizeram , foi a nossa gente que o sachou e plantou , e o fez o que é , e fez terra das areas da charneca . ' -- ` Lá isso é verdade ' . -- ' Não , não é ! Que está forte habilidade fazer dar trigo aqui aos nateiros do Tejo , que é como quem semeia em manteiga . É uma lavoira que a faz Deus por sua mão , regar e adubar e tudo : e o que Deus não faz , não fazem elles , que nem sabem ter mão n ' esses monchões c'o plantio das arvores : so lá por cima é que algumas teem mettido , e é bem pouco para o rio que é , e as riccas terras que lhes levam as inchentes . -- Mas nós , pe no barco pe na terra , tam depressa estamos a sachar o milho na charneca , como vimos por ahi abaixo com a vara no peito , e o saveiro a pegar n ' area por não haver agua ... mas sempre labutando pela vida ' . -- ` A fôrça é que se falla ' -- tornou o campino para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha . -- ' A fôrça é que se falla : um homem do campo que se deita alli á cernelha de um toiro que uma companha inteira de varinos lhe não pegava , com perdão dos senhores pelo rabo ! . . ' E reforçou o argumento com uma gargalhada triumphante , que achou echo nos interessados circumstantes que ja se tinham apinhado a ouvir os debates . Os Ilhavos ficaram um tanto abatidos ; sem perderem a consciencia da sua superioridade , mas acanhados pela algazarra . Parecia a esquerda de um parlamento quando ve sumir-se , no borburinho acintoso das turbas ministeriaes , as melhores phrases e as mais fortes razões dos seus oradores . Mas o orador ilhavo não era homem de se dar assim por derrotado . Olhou para os seus , como quem os consultava e animava , com um gesto expressivo , e voltando-se a nós , com a direita estendida aos seus antagonistas : -- ' Então agora como é de fôrça , quero eu saber , e estes senhores que digam , qual é que tem mais fôrça , se é um toiro ou se é o mar ' . -- ' Essa agora ! . . ' -- ` Queriamos saber ' . -- ` É o mar ' . -- ' Pois nós que brigâmos com o mar , oito e dez dias a fio n ' uma tormenta , de Aveiro a Lisboa , e estes que brigam uma tarde com um toiro , qual é que tem mais fôrça ? ' Os campinos ficaram cabisbaixos ; o publico imparcial applaudiu por ésta vez a opposição , e o Vouga triumphou do Tejo . Declaram-se typicas , symbolicas e mythicas éstas viagens . Faz o A. modestamente o seu proprio elogio . Da marcha da civilização ; e mostra-se como ella é dirigida pelo cavalleiro da Mancha D. Quixote , e por seu escudeiro Sancho Pança . -- Chegada a Villa-Nova-da-Rainha , Supplicio de Tantalo . -- A virtude galardão de si mesma ; e sophisma de Jeremias Bentham . -- Azambuja . Éstas minhas interessantes viagens hãode ser uma obra prima , erudita , brilhante de pensamentos novos , uma coisa digna do seculo . Preciso de o dizer ao leitor , paraque elle esteja previnido ; não cuide que são quaesquer d' essas rabiscaduras da moda que , com o titulo de Impressões de Viagem , ou outro que tal , fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da sciencia e do adiantamento da especie . Primeiro que tudo , a minha obra é um symbolo ... é um mytho , palavra grega , e de moda germanica , que se mette hoje em tudo e com que se explica tudo ... quanto se não sabe explicar . É um mytho porque -- porque ... Ja agora rasgo o veo , e declaro abertamente ao benevolo leitor a profunda idea que está occulta debaixo d' esta ligeira apparencia de uma viagemzita que parece feita a brincar , e no fim de contas é uma coisa séria , grave , pensada com um livro novo da feira de Leipsick , não das taes brochurinhas dos boulevards de Paris . Houve aqui ha annos um profundo e cavo philosopho d' alêm Rheno , que escreveu uma obra sôbre a marcha da civilização , do intellecto -- o que diriamos , para nos intenderem todos melhor , o Progresso . Descobriu elle que ha dois principios no mundo : o espiritualista , que marcha sem attender á parte material e terrena d' esta vida , com os olhos fittos em suas grandes e abstractas theorias , hirto , sêcco , duro , inflexivel , e que póde bem personalizar-se , symbolizar-se pelo famoso mytho do cavalleiro da Mancha , D. Quixote ; -- o materialista , que , sem fazer caso nem cabedal d' essas theorias , em que não crè , e cujas impossiveis applicações declara todas utopias , póde bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho , Sancho Pança . Mas , como na historia do malicioso Cervantes , estes dois principios tam avessos , tam desincontrados , andam comtudo junctos sempre ; ora um mais atraz , ora outro mais adiante , impecendo-se muitas vezes , coadjuvando-se poucas , mas progredindo sempre . E aqui está o que é possivel ao progresso humano . E eisaqui a chronica do passado , a historia do presente , o programma do futuro . Hoje o mundo é uma vasta Barataria , em que domina elrei Sancho . Depois hade vir D. Quixote . O senso commum virá para o millenio : reinado dos filhos de Deus ! Está promettido nas divinas promessas ... como elrei de Prussia prometteu uma constituição ; e não faltou ainda , porque -- porque o contracto não tem dia ; prometteu mas não disse para quando . Ora n ' esta minha viagem Tejo-a-riba está symbolizada a marcha do nosso progresso social : espero que o leitor intendesse agora . Tomarei cuidado de lh'o lembrar de vez em quando , porque receio muito que se esqueça . Somos chegados ao triste desimbarcadoiro de Villa-Nova-da-Rainha , que é o mais feio pedaço de terra alluvial em que ainda poisei os meus pés . O sol arde como ainda não ardeu este anno . Um immenso arraial de caleças , de machinhos , de burros e arrieiros , nos espera n ' aquelle descampado africano . É forçoso optar entre os dois martyrios da caleça ou do macho . Do mal o menos ... seja este . E acolá -- oh supplício de Tantalo ! -- vejo duas possantes e nedeas mulas castelhanas jungidas a um vehiculo que , n ' estas paragens e ao pé d' aquell ' outros , me parece mais esplendido do que um landaw de Hyde-Park , mais elegante que um caleche de Long-champs , mais commodo e elastico do que o mais acrio briska da princeza Hellena . E com tudo -- oh magico podêr das situações ! -- elle não é senão , uma substancial e bem apessoada traquitana de cortinas . Togados manes dos antigos desimbargadores , venerandas cabelleiras de anneis e castanhola , que direis , ó respeitadas sombras , se d' esse limbo onde estais esperando pela resurreição do Pêgas ... e do livro quinto -- vêdes este degenerado e espurio successor vosso , em calças largas , frak verde , chapeu branco , gravata de côr , chicotinho de caoutchoc na mão , prompto a cavalgar em mulinha de Palito-Metrico como um garraio estudantinho do segundo anno , e deitando olhos invejosos para esse natural , proprio e adscripticio modo de conducção desimbargatoria ? Oh que direis vós ! Com que justo desprêzo não olhareis para tanta degradação e derogação ! Eu commungava silenciosamente commigo n ' estas graves meditações , e revolvia incertamente no ânimo a ponderosa dúvida : -- se o administrar justiça direita aos povos valia a pena de andar um desimbargador a pé ! ... Luctava no meu ser o Sancho Pança da carne com o D. Quixote do espirito -- quando a Providencia , que nos maiores apertos e tentações nos não abandona nunca , me trouxe a generosa offerta de um amigo e companheiro do vapor , o Sr. L. S. : era sua a invejada carroça , e n ' ella me deu logar até á Azambuja . A virtude é o galardão de si mesma , disse um philosopho antigo ; e eu não creio no famoso ditto de Bentham , que sabedoria antiga seja um sophisma . O mais moderno é o mais velho , não ha dúvida ; mas o antigo que dura ainda , é porque tem achado na experiencia a confirmação que o moderno não tem . Jeremias Bentham tambem fazia o seu sophisma como qualquer outro . Vamos percorrendo lentamente aquelle mal-composto marachão que poucos palmos se eleva do nivel baixo e salgadiço do solo : de hynverno não se passará sem perigo ; ainda agora se não anda sem incómmodo e receio . Estamos em Villa-Nova e ás portas do nojento caravanseray , unico asylo do viajante n ' esta , hoje , a mais frequentada das estradas do reino . Parece-me estar mais deserto e sujo , mais abandonado e em ruinas este asqueroso logarejo , desde que alli aopé tem a estação dos vapôres , que são a commodidade , a vida , a alma do Ribatéjo . Imagino que uma aldeia -- Alarves nas faldas do Atlas deve ser mais limpa e commoda . Oh ! Sancho , Sancho , nem siquer tu reinarás entre nós ! Cahiu o carunchoso throno de teu predecessor , antagonista e às vezes amo ; açoitaram-te essas nadegas para desincantar a formosa del Toboso , proclamaram-te depois rei em Barataria , e n ' esta tua provincia lusitana nem o paternal govêrno de teu estupido materialismo póde estabelecer-se para commodo e salvação do corpo ; ja que a alma ... oh ! a alma ... Fallemos n ' outra coisa . Fujamos depressa d' este monturo . -- É monótona , arida e sem frescura de árvores a estrada : apenas alguma rara oliveira mal-medrada , a longos e desiguaes espaços , mostra o seu tronco rachitico e braços contorcidos , ornados de ramusculos doentes , em que o natural verde-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado que o costume . O solo porêm , com raras excepções , é optimo , e a trôco de pouco trabalho e insignificante despeza , daria uma estrada tam boa como as melhores da Europa . Dizia um secretario d' Estado meu amigo que para se repartir com egualdade o melhoramento das ruas por toda Lisboa , deviam ser obrigados os ministros a mudar de rua e bairro todos os tres mezes . Quando se fizer a lei de responsabilidade ministerial , para as kalendas gregas , eu heide propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino -- Portugal ao menos uma vez cada anno , como a desobriga . Ahi está a Azambuja , pequena mas não triste povoação , com visiveis signaes de vida , aceadas e com ar de confôrto as suas casas . É a primeira povoação que dá indicio de estarmos nas ferteis margens do Nilo portuguez . Corrémos a apear-nos no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumulla as tres distinctas funcções , de hotel , de restaurant e de café da terra . Sancto Deus ! que bruxa que está á porta ! que antro lá dentro ! ... Cai-me a penna da mão . Acha-se desappontado o leitor com a prosaica sinceridade do A. d' estas viagens . o que devia ser uma estalagem nas nossas eras de litteratura romantica ? -- Suspende-se o exame d' esta grave questão para tractar , em prosa e verso , um mui difficil ponto de economia- politica e de moral social . -- Quantas almas é preciso dar ao diabo , e quantos corpos se teem de intregar no cemiterio para fazer um ricco n ' este mundo . -- Como se veio a descobrir que a sciencia d' este seculo era uma grandessissima tola . -- Rei de facto , e rei de direito . -- Belleza e mentira não cabem n ' um sacco . -- Põe-se o A. a caminho para o pinhal da Azambuja . Vou desappontar decerto o leitor benevolo ; vou perder , pela minha fatal sinceridade , quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros capitulos d' esta interessante viagem . Pois que esperava elle de mim agora , de mim que ousei declarar-me escriptor n ' estas eras de romantismo , seculo das fortes sensações , das descripções a traços largos e incisivos que se intalham n ' alma e entram com sangue no coração ? No fim do capitulo precedente parámos á porta de uma estalagem : que estalagem deve ser ésta , hoje no anno de 1843 , ás barbas de Victor Hugo , com o Doutor||_Fausto Fausto|_Fausto a trotar na cabeça da gente , com os Mysterios de Paris nas mãos de todo o mundo ? Ha paladar que supporte hoje a classica posada do Cervantes com o seu mesonero gordo e grave , as pulhas dos seus arrieiros , e o mantear de algum pobre lorpa de algum Sancho ! Sancho , o invisivel rei do seculo , aquelle por quem hoje os reis reinam e os fazedores de leis decretam e afferem o justo ! Sancho manteado por vis muleteiros ! Não é da epocha . Não : plantae batatas , ó geração de vapor e de pó de pedra , macadamisae estradas , fazei caminhos de ferro , construí passarolas de Icaro , para andar a qual mais depressa , éstas horas contadas de uma vida toda material , massuda e grossa como tendes feito ésta que Deus nos deu tam differente do que a hoje vivemos . Andae , ganha-pães , andae ; reduzi tudo a cifras , todas as considerações d' este mundo a equações de interêsse corporal , comprae , vendei , agiotae . -- No fim de tudo isto , o que lucrou a especie humana ? Que ha mais umas poucas de duzias de homens riccos . E eu pergunto aos economistas-politicos , aos moralistas , se ja calcularam o número de individuos que é forçoso condemnar á miseria , ao trabalho desproporcionado , á desmoralização , á infamia , á ignorancia crapulosa , á desgraça invencivel , á penuria absoluta , para produzir um ricco ? -- Que lh'o digam no Parlamento inglez , onde , depois de tantas commissões de inquérito , ja deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo , o número de corpos que se tem de intregar antes do tempo ao cemiterio para fazer um tecelão ricco e fidalgo como Sir Robert Peel , um mineiro , um banqueiro , um grangeeiro -- seja o que for : cada homem ricco , abastado , custa centos de infelizes , de miseraveis . Logo a nação mais feliz não é a mais ricca . Logo o princípio utilitario é a mamona da injustiça e da reprovação . Logo ... A sciencia d' este seculo é uma grandessissima tola . E como tal , presumpçosa e cheia do orgulho dos nescios . Vamos á descripção da estalagem . Não póde ser classica ; assoviam-me todos esses rapazes de pera , bigode e charuto , que fazem litteratura cava e funda desde a porta do Marrare até ao café de Moscow ... Mas aqui é que me apparece uma incoherencia inexplicavel . A sociedade é materialista ; e a litteratura , que é a expressão da sociedade , é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista ! Sancho rei de facto , Quixote rei de direito ! Pois é assim ; e explica-se . -- É a litteratura que é uma hypocrita : tem religião nos versos , charidade nos romances , fé nos artigos de jornal -- como os que dão esmolas para pôr no Diario , que amparam orphans na Gazeta , e sustentam viuvas nos cartazes dos theatros . E fallam no Evangelho ! Deve ser por escarneo . Se o leem , hãode ver lá que nem a esquerda deve saber o que faz a direita ... Vamos á descripção da estalagem ; e acabemos com tanta digressão . Não póde ser classica , está visto , a tal descripção . -- Seja romantica . -- Tambem não póde ser . Porque não ? É pôr-lhe lá um Chourineur a amolar um facão de palmo e meio para espatifar rez e homem , quanto incontrar , -- uma Fleur-de-Marie para dizer e fazer pieguices com uma rozeirinha pequenina , bonitinha , que morreu , coitadinha ! -- e um principe allemão incoberto , forte no sôcco britannico , immenso em libras sterlinas , profundo em gyria de cegos e ladrões ... e ahi fica a Azambuja com uma estalagem que não tem que invejar á mais pintada e da moda n ' este seculo elegante , delicado , verdadeiro , natural ! É como eu devia fazer a descripção : bem o sei . Mas ha um impedimento fatal , invencivel -- egual ao d' aquella famosa salva que se não deu ... é que nada d' isso lá havia . E eu não quero calumniar a boa gente da Azambuja . Que me não leam os taes , porque eu heide viver e morrer na fé de Boileau : Rien n ' est beau que le vrai . Ja se diz ha muito anno que honra e proveito não cabem n ' um sacco ; eu digo que belleza e mentira tambem lá não cabem : e é a mais portugueza traducção que creio que se possa fazer d' aquelle ímmortal e evangelico hemystichio . A maior parte das bellezas da litteratura actual fazem-me lembrar aquellas formosuras que tentavam os sanctos eremitas na Thebaida . O pobre de Sancto Antão ou de S.||_Pacomio Pacomio|_Pacomio ( Pacomio é melhor aqui ) ficavam imbasbacados ao princípio ; mas dava-lhe o coração uma pancada , olhavam-lhe para os pés ... -- Cruzes maldicto ! Os pés não podia elle incobrir . E ao primeiro abrenuntio do sancto , dissipava-se a belleza em muito fummo de inxofre , e ficava o diabo negro feio e cabrum como quem é , e sempre foi o pae da mentira . Nada , nada , verdade e mais verdade . Na estalagem da Azambuja o que havia era uma pobre velha a quem eu chamei bruxa , porque emfim que havia de eu chamar á velha suja e maltrapida que estava á porta d' aquella asquerosa casa ? Havia lá ésta velha , com a sua môça mais môça mas não menos nojenta de ver que ella , e um velho meio paralytico meio demente que alli estava para um canto com todo o geito e traça de quem vem folgar agora na taberna porque ja bebeu o que havia de beber n ' ella . Matava-nos a sêde ; mas a agua alli é beber quartans . O vinho era atroz . Limonada ? Não ha limões nem assucar . -- Mandou-se um proprio á tenda no fim da villa . Vieram tres limões que me pareceram de uns que pendiam , quando eu vinha a férias , á porta do famoso botequim de Leiria . O assucar podia servir na última scena de M. de Pourceaugnac muito melhor que n ' uma limonada . Mas misturou-se tudo com a agua das sezões , bebémos , pozemo-nos em marcha , e até agora não nos fez mal , com ser a mais abominavel , antipathica e suja beberagem que se póde imaginar . Caminhámos na mesma ordem até chegar ao famoso pinhal da Azambuja . De como o A. foi pensando e divagando , e em que pensava e divagava elle , no caminho da villa da Azambuja até o famoso pinhal do mesmo nome . -- Do poeta grego e philosopho Démades , e do poeta e philosopho inglez Addison , da casaca de penneiros e do palio atheniense , e de outros importantes assumptos em que o A. quiz mostrar a sua profunda erudição . -- Discute-se a materia gravissima se é necessario que um ministro d' estado seja ignorante e leigarraz . -- Admiraveis reflexões de zigzag em que se tracta de re politica e de re amatoria . -- Descobre-se porfim que o A. estivera a sonhar em todo este capitulo , e pede-se ao leitor benevolo que volte a folha e passe ao seguinte . Eu darei sempre o primeiro logar á modestia entre todas as bellas qualidades . -- Ainda sôbre a innocencia ? -- Ainda sim . A innocencia basta uma falta para a perder , da modestia so culpas graves , so crimes verdadeiros podem privar . Um accidente , um acaso podem destruir aquella , a ésta so uma acção propria , determinada e voluntaria . Bem me lembram ainda os dois versos do poeta Démades que são forte argumento de auctoridade contra a minha theoria ; cuidei que tinha mais infeliz memoria . Heide pô-los aqui para que não falte a ésta grande obra das minhas viagens o merito da erudição , e lhe não chamem livrinho da moda : estou resolvido a fazer a minha reputação com este livro . Mas a auctoridade responde-se com auctoridade , e a texto com texto . E eu trago aqui na algibeira o meu Addison -- um dos poucos livros que não largo nunca -- e atiro com o philosopho inglez ao philosopho grego e fico triumphante : porque Addison não põe nada acima da modestia ; e Addison , apezar da sua casaca de penneiros , é muito maior philosopho do que foi Démades com a sua tunica e o seu palio atheniense . O erudito e amavel leitor escapará d' ésta vez a mais citações : compre um Spectator , que é livro sem que se não póde estar , e veja passim . Eu gósto , bem se ve , de ir ao incôntro das objecções que me podem fazer ; lembro-as eu mesmo paraque depois me não digam : -- ' Ah , ah ! vinha a ver se pegava ! ' -- Não senhor , não é o meu genero esse . Francamente pois ... eis-ahi o que poderão dizer : -- ' Addison foi secretario d' Estado , e então ... ' -- Então o quê ? Não concebem um secretario d' Estado philosopho , um ministro poeta , escriptor elegante , cheio de graça e de talento ? Não , bem vejo que não : teem a idea fixa de que um ministro -- Estado hade ser por fôrça algum semsaborão , malcriado e petulante . Mas isto é nos paizes adiantados em que ja é indifferente para a coisa-pública , em que povo nem principe lhes não importa ja , em que mãos se intregam , a que cabeças se confiam . Em Inglaterra não é assim , nem era assim no tempo de Addison . Fossem lá á rainha||_Anna Anna|_Anna que deixasse entrar no seu gabinete quatro calças de coiro sem criação nem instrucção , e não mais senão so porque este sabía jogar nos fundos , aquelle tinha boas tretas para o canvassing de umas eleições , o outro era figura importante no Freemasson ' s-hall ! Ja se ve que em nada d' isto ha a minima allusão ao feliz systema que nos rege : estou fallando de modestia , e nós vivemos em Portugal . A modestia comtudo quando é excessiva e se aproxima do acanhamento , do que no mundo se chama falta de uso -- póde ser n ' um homem quasi defeito inteiro . Na mulher é sempre virtude , realce de belleza ás formosas , disfarce de fealdade ás que o não são . Por mim , não conheço objecto mais lindo em toda a natureza , mais feiticeiro , mais capaz de arrebatar o espirito e inflammar o coração do que é uma joven donzella quando a modestia lhe faz subir o rubor ás faces , e o pejo lhe carrega brandamente nas palpebras ... Pouco lume que tenha nos olhos , pouco regular que seja o semblante , menos airosa que seja a figura , vos-ha n ' esse momento um anjo . E anjo é a virgem modesta , que traz no rosto debuxado sempre um ceo de virtudes ... -- De alguma belleza sei eu cujos olhos côr da noite ou de saphyra ( dialec . poet.vet. ) , cujas faces de leite e rosas , dentes de pérolas , collo de marfim , transas de ebano ( a allusão é surtida , ha onde escolher ) davam larga materia a boas grozas de sonetos -- no antigo regimen dos sonetos , e hoje inspirariam myriadas de canções descabelladas e vaporosas , choradas na harpa ou gemidas no alahude . Comtanto que não seja lyra , que é classico , todo o instrumento , inclusivamente a bandurra , é egual deante da lei romantica . Ora pois , mas a tal belleza , por certo ar ala-moda , certo não-sei-quê de atrevido nos olhos , de deslavado na cara , e de descomposto nos ademanes , perde toda a graça e quasi a propria formosura de que a dotára a natureza ... Vêde- me aquelles labios de carmim . Ha maio florido que tam lindo botão de rosa apresente ao alvorecer da madrugada ? ... Mas olhae agora como o riso da malicia lh'o desfolha tam feiamente n ' uma desconcertada risada ... Desvaneceu-se o prestigio . Não havia moço nem velho , homem do mundo ou sabio de gabinete que não désse+esse metade dos seus prazeres , dos seus livros , da sua vida por um so beijo d' aquella bôcca ... Agora talvez nem repetidos avances lhe façam obter um namorante de profissão e officio ... E hade pagá-lo adeantado , e porque preço ! ... Mas o que terá tudo isto com a jornada da Azambuja ao Cartaxo ? A mais íntima e verdadeira relação que é possivel . É que a pensar ou a sonhar n ' estas coisas fui eu todo o caminho , até me achar no meio do pinhal da Azambuja . Ahi parámos , e acordei eu . Sou sujeito a éstas distracções , a este sonhar acordado . Que lhe heide eu fazer ? Andando , escrevendo , sonho e ando , sonho e fallo , sonho e escrevo . Francamente me confesso de somnambulo , de somniloquo , de ... Não , fica melhor com seu ar de grego ( tenho hoje a bossa hellenica n ' um estado de tumescencia pasmosa ! ) ; digamos somnilogo , somnigrapho ... A minha opinião sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar éstas folhas , e passar ao capitulo seguinte , que é outra casta de capitulo . Chega o A. ao pinhal da Azambuja , e não o acha . Trabalha-se por explicar este phenomeno pasmoso . Bello rasgo de stylo romantico . -- Receita para fazer litteratura original com pouco trabalho . -- Transição classica : Orpheu e o bosque do Ménalo . -- Desce o A. d' estas grandes e sublimes considerações para as realidades materiaes da vida : é desamparado pela hospitaleira traquitana e tem de cavalgar na triste mula de arrieiro . -- Admiravel choito do animal . Memorias do marquez do F. que adorava o choito . Este é que é o pinhal da Azambuja ? Não póde ser . Ésta , aquella antiga selva , temida quasi religiosamente como um bosque druidico ! E eu que , em pequeno , nunca ouvia contar historia de Pedro de Mallas-artes , que logo , em imaginação , lhe não pozesse a scena aqui perto ! ... Eu que esperava topar a cada passo com a cova do capitão||_Roldão Roldão|_Roldão e da dama||_Leonarda Leonarda|_Leonarda ! ... Oh ! que ainda me faltava perder mais ésta illusão ... Por quantas maldicções e infernos adornam o stylo d' um verdadeiro escriptor romantico , digam-me , digam-me : onde estão os arvoredos fechados , os sitios medonhos d' esta espessura . Pois isto é possivel , pois o pinhal da Azambuja é isto ? ... Eu que os trazia promptos e recortados para os collocar aqui todos os amaveis salteadores de Schiller , e os elegantes facinorosos do Auberge-des-Adrets , eu heide perder os meus chefes-d' obra ! Que é perdê-los isto -- não ter onde os pôr ! ... Sim , leitor benevolo , e por ésta occasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa litteratura . Ja me não importa guardar segredo , depois d' esta desgraça não me importa ja nada . Saberás pois , ó leitor , como nós outros fazemos o que te fazemos ler . Tracta-se de um romance , de um drama -- cuidas que vamos estudar a historia , a natureza , os monumentos , as pinturas , os sepulchros , os edificios , as memorias da epocha ? Não seja pateta , senhor leitor , nem cuide que nós o somos . Desenhar characteres e situações do vivo da natureza , collori-los das côres verdadeiras da historia ... isso é trabalho difficil , longo , delicado , exige um estudo , um talento , e sôbretudo um tacto ! ... Não senhor : a coisa faz-se muito mais facilmente . Eu lhe explico . Todo o drama e todo o romance precisa de : Uma ou duas damas , Um pae , Dois ou tres filhos , de dezanove a trinta annos , Um criado velho , Um monstro , incarregado de fazer as maldades , Varios tractantes , e algumas pessoas capazes para intermedios . Ora bem ; vai-se aos figurinos francezes de Dumas , de Eug . Sue , de Victor-Hugo , e recorta a gente , de cadaum d' elles , as figuras que precisa , gruda-as sôbre uma folha de papel da côr da moda , verde , pardo , azul -- como fazem as raparigas inglezas aos seus albums e scrapbooks ; fórma com ellas os grupos e situações que lhe parece ; não importa que sejam mais ou menos disparatados . Depois vai-se ás chronicas , tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos ; com os nomes chrismam-se os figurões , com os palavrões illuminam-se ... ( stylo de pintor pinta-monos ) . -- E aqui está como nós fazemos a nossa litteratura original . E aqui está o precioso trabalho que eu agora perdi ! Isto não póde ser ! Uns poucos de pinheiros raros e infezados atravez dos quaes se estão quasi vendo as vinhas e olivedos circumstantes ! ... É o desapontamento mais chapado e solemne que nunca tive na minha vida -- uma verdadeira logração em boa e antiga phrase portugueza . E comtudo aqui é que devia ser , aqui é que é , geographica e topographicamente fallando , o bem conhecido e confrontado sitio do pinhal da Azambuja ... Passaria por aqui algum Orpheu que , pelos magicos podêres da sua lyra , levasse atraz de si as árvores d' este antigo e classico Menalo dos salteadores lusitanos ? Eu não sou muito difficil em admittir prodigios quando não sei explicar os phenomenos por outro modo . O pinhal da Azambuja mudou-se . Qual , de entre tantos Orpheus que a gente por ahi ve e ouve , foi o que obrou a maravilha , isso é mais difficil de dizer . Elles são tantos , e cantam todos tão bem ! Quem sabe ? Juntar-se-hiam , fariam uma companhia por acções , e negociariam um emprestimo harmonico com que facilmente se obraria então o milagre . É como hoje se faz tudo ; é como se passou o thesoiro para o banco , o banco para as companhias de confiança ... porque se não faria o mesmo com o pinhal da Azambuja ? Mas aonde está elle então ? faz favor de me dizer ... Sim senhor , digo : está consolidado . E se não sabe o que isto quer dizer , leia os orçamentos , veja a lista dos tributos , passe pelos olhos os votos de confiança ; e se depois d' isto , não souber aonde e como se consolidou o pinhal d' Azambuja , abandone a geographia que visivelmente não é a sua especialidade , e deite-se a finança , que tem bossa ; -- fazemos-lo eleger ahi por Arcozello ou pela cidade eterna -- é o mesmo -- vai para a commissão de fazenda -- depois lord do thesoiro , ministro : é escalla , não offendia nem a rabujenta constituição de 38 , quanto mais a carta ... O peior é que no meio d' estes campos onde Troia fôra , no meio d' estas areias onde se acoitavam d' antes os pallidos medos do pinhal da Azambuja , a minha querida e bemfazeja traquitana abandonou-me ; fiquei como o bom Xavier de Maistre quando , a meia jornada do seu quarto , lhe perdeu a cadeira o equilibrio , e elle cahiu -- ou ia caindo , ja me não lembro bem -- estatellado no chão . Ao chão estive eu para me atirar , como criança amuada , quando vi voltar para a Azambuja o nosso commodo vehiculo , e deante de mim a infezada mulinha asneira que -- ai triste ! -- tinha de ser o meu transporte d' alli até Santarem . Emfim o que hade ser , hade ser , e tem muita fôrça . Consolado com este tam verdadeiro quanto elegante proverbio , levantei o ânimo á altura da situação e resolvi fazer próva de homem forte e supportador de trabalhos . Bifurquei-me resignadamente sôbre o cilicio do esfarrapado albardão , tomei na esquerda as impermeaveis redeas de coiro cru , e lancei o animalejo ao seu mais largo trote , que era um confortavel e amenissimo choito , digno de fazer as delicias do meu respeitavel e excentrico amigo , o marquez do F. Tinha a bossa , a paixão , a mania , a furia de choitar aquelle notavel fidalgo -- o último fidalgo homem de lettras que deu ésta terra . Mas adorava o choito o nobre marquez . Conheci-o em París nos ultimos tempos da sua vida , ja octogenario ou perto d' isso : deixava a sua carruagem ingleza toda mollas e confortos para ir passear n ' um certo cabriolet de praça que elle tinha marcado pelo sêcco e duro movimento vertical com que sacudia a gente . Obrigou-me um dia a experimenta-lo : era admiravel . Communicava-se da velha horsa normanda aos varaes , e dos varaes á concha do carro , tam inteiro e tam sem diminuição , o choito do execravel Babiéca ! Nunca vi coisa assim . O marquez achava-lhe propriedades toni-purgativos , eu classifiquei-o de violentissimo drastico . Foi um dos homens mais extraordinarios e o portuguez mais notavel que tenho conhecido , aquelle fidalgo . Era feio como o peccado , elegante como um bugio , e as mulheres adoravam-n* ' o . Filho segundo , vivia de seus ordenados nas missões por que sempre andou , tractava-se grandiosamente , e legou valores consideraveis por sua morte . Imprimia uma obra sua , mandava tirar um unico exemplar , guardava-o e desmanchava as fòrmas ... -- Não acabo se coméço a contar historias do marquez do F. Piquemos para o Cartaxo , que são horas . Próva- se como o velho Camões não teve outro remedio senão misturar o maravilhoso da mythologia com o do christianismo . -- Da se razão , e tira-se depois , ao padre||_José_Agostinho José|_José_Agostinho Agostinho|_José_Agostinho . -- No meio d' estas disceptações academico-litterarias vem o A. a descobrir que para tudo é preciso ter fé n ' este mundo . Diz-se n ' este mundo , porque , quanto ao outro ja era sabido . -- Os Lusíadas , Fausto e a Divina-Comedia . -- Desgraça do Camões em ter nascido antes do romantismo . -- Mostra-se como a Styge e o Cocyto sempre são melhores sitios que o Inferno e o Purgatorio . -- Vai o A. em procura do marquez de Pombal , e dá com elle nas ilhas Beatas do poeta Alceu . -- Partida de Whist entre os illustres finados . -- Compaixão do marquez pelos pobres homens de Ricardo Smith e J. B. Say . -- Resposta d' elle e da sua luneta ás perguntas peralvilhas do A. -- Chegada a este mundo e ao Cartaxo . O mais notavel , e não sei se diga , se continuarei aomenos a dizer , o mais indesculpavel defeito que até aqui esgravataram criticos e zoilos na Iliada dos povos modernos , os immortaes Lusiadas , é sem-dúvida a heterogenea e heterodoxa mistura da theologia com a mythologia , do maravilhoso allegorico do paganismo , com os graves symbolos do christianismo . A fallar a verdade , e por mais figas que a gente queira fazer ao padre||_José_Agustinho José|_José_Agustinho Agustinho|_José_Agustinho -- ainda assim ! ver o padre||_Baccho Baccho|_Baccho revestido in pontificalibus deante de um retabulo , não me lembra de que sancto , dizendo o seu dominus vobiscum provavelmente a algum acholyto bacchante ou corybante , que lhe responde o et cum spiritu tuo ! . . não se póde ; é uma que realmente ... E então aquelle famoso conceito com que elle acaba , digno da Phenix-Renascida : O falso deus adora o verdadeiro ! Desde que me intendo , que leio , que admiro os Lusiadas ; interneço-me , chóro , insuberbeço-me com a maior obra de ingenho que ainda appareceu no mundo , desde a Divina-Comedia até ao Fausto ... O italiano tinha fé em Deus , o allemão no scepticismo , o portuguez na sua patria . É preciso crer em alguma coisa para ser grande -- não so poeta -- grande seja no que for . Uma Brizida velha que eu tive , quando era pequeno , era famosa chronista de historias da carochinha , porque sinceramente cria em bruxas . Napoleão cria na sua estrella , Lafayette creu na republicarei de Luiz-Philippe ; e , para que ousemos tambem celebrare domestica facta , todos os nossos grandes homens ainda hoje creem , um na juncta do crédito , outro nas classes inactivas , outro no mestre Adonirão , outro finalmente na belleza e realidade do systema constitucional que felizmente nos rege . Mas essas crenças são para os que se fizeram grandes com ellas . A um pobre homem o que lhe fica para crer ? Eu , apezar dos criticos , ainda creio no nosso Camões : sempre cri . E comtudo , desde a edade da innocencia em que tanto me divertiam aquellas batalhas , aquellas aventuras , aquellas historias d' amores , aquellas scenas todas , tam naturaes , tam bem pintadas -- até ésta fatal edade da experiencia , edade prosaica em que as mais bellas creações do espirito parecem macaquices deante das realidades do mundo , e os nobres movimentos do coração chymeras de enthusiastas -- até ésta edade de saudades do passado e esperanças no futuro , mas sem gosos no presente -- em que o amor da patria ( tambem isto será phantasmagoria ? ) , e o sentimento intimo do bello me dão na leitura dos Lusiadas outro deleite diverso , mas não inferior ao que n ' outro tempo me deram -- eu senti sempre aquelle grande defeito do nosso grande poema : e nunca pude , por mais que buscasse , achar-lhe , justificação não digo -- nem siquer desculpa . Mas até morrer aprender , diz o adagio : e assim é . E tambem é aphorismo de moral , applicavel outrosim a coisas litterarias : que para a gente achar a desculpa aos defeitos alheios , é considerar -- é pôr-se uma pessoa nas mesmas circumstancias , ver-se involvido nas mesmas difficuldades . Aqui estou eu agora dando toda a desculpa ao pobre Camões , com vontade de o justificar , e prompto ( assim são as charidades d' este mundo ) a sahir a campo de lança em reste e a quebrá-la com todo o antagonista que por aquelle fraco o atacar . -- E porque será isto ? Porque chegou a minha hora ; e -- si parva licet componnere magnis ( a bossa proeminente hoje é a latina ) , aqui me acho eu com este meu capitulo nas mesmas difficuldades em que o nosso bardo se viu com o seu poema . Ja preveni as observações com o texto acima : bem sei quem era Camões , e quem sou eu ; mas tracta-se da intalação , que é a mesma apezar da differença dos intalados . O auctor dos Lusiadas viu-se intalado entre a crença do seu paiz e as brilhantes tradições da poesia classica que tinha por mestra e modêlo . Não havia ainda então romanticos nem romantismo , o seculo estava muito atrazado . As odes de Victor-Hugo não tinham ainda desbancado as de Horacio ; achavam-se mais lyricos e mais poeticos os esconjurios de Canidia , do que os pesadelos de um inforcado no oratorio ; chorava-se com os Tristes de Ovidio , porque se não lagrimejava com as meditações de Lamartine . Andromacha despedindo-se de Heitor ás portas de Troia , Priamo supplicante aos pés do matador do seu filho , Helena luctando entre o remorso do seu crime e o amor de Páris , não tinham ainda sido eclipsados pelas declamações da mãe||_Eva Eva|_Eva ás grades do paraizo terreal . O combate de Achilles e Heitor , das hostes argivas com as troianas , não tinha sido mettido n ' um chinello pelas batalhas campaes dos anjos bons e dos anjos maus á metralhada por essas nuvens . Dido chorando por Eneas não tinha sido reduzida a donzella choramigas d' Alfama carpindo pelo seu Manel que vae para a India ... Realmente o seculo estava muito atrazado : Milton não se tinha ainda sentado no logar de Homero , Shakspeare no de Euripedes , e lord||_Byron Byron|_Byron acima de todos : emfim não estava ainda anglizado o mundo , portanto a marcha do intellecto no mesmo terreno , é tudo uma miseria . Ora pois , o nosso Camões , creador da epopea , e -- depois do Dante -- da poesia moderna , viu-se atrapalhado ; misturou a sua crença religiosa com o seu credo poetico e fez , tranchons le mot , uma semsaboria . E aqui direi eu com o vate Elmano : Vou fazer outra semsaboria eu , n ' este bello capitulo da minha obra-prima . Que remedio ! Preciso fallar com um illustre finado , preciso de evocar a sombra de um grande genio que hoje habita com os mortos . E onde irei eu ? Ao inferno ? Espero que a divina justiça se apiedasse d' elle na hora dos ultimos arrependimentos . Ao purgatorio , ao empyreo ? Apezar do exemplo da Divina Comedia , não me atrevo a fazer comedias com taes logares de scena , -- e não sei , não gósto de brincar com essas coisas . Não lhe vejo remedio senão recorrer ao bem parado dos Elysios , da Styge , do Cocyto e seu termo : são terrenos neutros em que se póde parlamentar com os mortos sem compromettimento serio , e Eis-me ahi no êrro de Camões -- e nas unhas dos criticos ; e as zagunchadas a ferver em cima de mim , que fiz , que aconteci Mas , senhores , ponderem , venham ca : o que hade um homem fazer ? O Dante não sei que gyria teve que baptisou Publio Virgilio Marão para lhe servir de cicerone nas regiões do inferno , do paraizo e do purgatorio christão , e teve tam boa fortuna que nem o queimou a Inquisição nem o descompoz a Crusca , nem siquer o mutilaram os censores , nem o perseguiram delegados por abuso de liberdade de imprensa , nem o mandaram para os dignos pares ... Não se tinham ainda descoberto as mangações liberaes que se usam hoje : e as cartas que o povo tinha era a liberdade ganha e sustentada á ponta da espada , com muito coração e poucas palavras , muito patriotismo , poucas leis ... e menos relatorios . Não havia em Florença nem gazeta para louvar as tolices dos ministros , nem ministros para pagar as tolices da gazeta . O Dante foi proscripto e exilado , mas não se ficou a escrever , deu catanada que se regallou nos inimigos da liberdade da sua patria . Quem dera ca um batalhão de poetas como aquelle ! Que fosse porêm um triste vate de hoje escrever no seculo das luzes o que escrevia o Dante no seculo das trevas ! Os proprios philosophos gritavam : Que escandalo ! Atheus professos clamavam contra a irreverencia ; gentes que não teem religião , nem a de Mafoma , bradavam pela religião : entravam a pôr carapuças nas cabeças uns dos outros , cahiam depois todos sôbre o poeta , e -- se o não podessem inforcar , pelo menos declaravam-n* ' o republicano , que dizem elles que é uma injúria muito grande . Nada ! viva o nosso Camões e o seu maravilhoso mistiforio ; é a mais commoda invenção d' este mundo : vou-me com ella , e ralhe a crítica quanto quizer . Quero procurar no reino das sombras não menor pessoa que o marquez de Pombal : tenho que lhe fazer uma pergunta séria antes de chegar ao Cartaxo . E nós ja vamos por entre as riccas vinhas que o circundam com uma zona de verdura e alegria . Depressa o ramo de oiro que me abra ao pensamento as portas fataes -- depressa a unctuosa sopetarra com que heide atirar ás tres gargantas do canzarrão . Vamos ... Mas em que districto d' aquellas regiões acharei eu o primeiro ministro d' elrei D. José ? Por onde está Ixion e Tantalo , por onde demora Sysipho e outros maganões que taes ? Não ; esse é um bairro muito triste , e arrisca-se a ter por administrador algum escandecido que me atice as orelhas . Nos Elysios com o pae||_Anchises Anchises|_Anchises e outros barbaças classicos do mesmo jaez ? Eu sei ? tambem isso não . Hade ser n ' aquellas ilhas bemaventuradas de que falla o poeta Alceu e onde elle poz a passear , por eternas verduras , as almas tyrannicidas de Harmódio e Aristógiton ... Oh ! ésta agora ! ... Sebastião José de Carvalho e Mello , conde de Oeiras , marquez de Pombal , de companhia com os seus inimigos politicos ! ... Ahi é que se ingánam ; não ha amigos nem inimigos politicos em se largando o mando e as pretenções a elle . Ora , passados os umbraes da eternidade , é de fé que se não pensa mais n ' isso . C. J. X. , que morreu a assignar uma portaria , ja tinha largado a penna quando chegou alli pelos Prazeres ; quanto mais ! ... O homem hade estar nas ilhas beatas . Vamos lá ... E lo alli : lá está o bom do marquez a jogar o whist com o barão de Bidefeld , com o imperador||_Leopoldo Leopoldo|_Leopoldo e com o poeta Diniz . A partida deve de ser interessante , talvez aposta essa gente toda -- esses manes todos que estão á roda . Que cara que fez o marquez a um finadinho que lhe foi metter o nariz nas cartas ! Quem havia de ser ! O intromettido de M. de Talleyrand . Estava-lhe cahindo . Mas não viu nada : o nobre marquez sempre soube esconder o seu jôgo . A mim é que elle ja me viu . ' Que diz ? Ah ! ... Sim senhor , sou portuguez ; e venho fazer uma pergunta a V. Exa. , esclarecer-me sôbre um ponto importante . ' Deitou-me a tremenda luneta . -- ' Para que mandou V. Exa. arrancar as vinhas do Ribatejo ? ' Apertou a luneta no sobrôlho e sorriu-se . -- ' Ellas ahi estão centuplicadas , que até ja invadiram o pinhal de Azambuja . Fez V. Exa. um despotismo inutil ; e agora ... ' ' Agora quem bebe por lá todo esse vinho ? ' Não sabía o que lhe havia de responder . Elle sacudiu a cabelleira de anneis , virou-me as costas , deu o braço a Colbert , passou por- pé de Ricardo Smith e de J. Baptista Say , que estavam a disputar , incolheu os hombros em ar de compaixão , e foi-se por uma alameda muito viçosa que ia por aquelles deliciosos jardins dentro , e sumiu-se da nossa vista . Eu surdi ca n ' este mundo , e achei-me emcima da azemola , aopé do grande café do Cartaxo . Reflexões importantes sôbre o Bois-de-Boulogne , as carruagens de mollas , Tortoni , e o café do Cartaxo . -- Dos cafés em geral , e de como são o characteristico da civilização de um paiz . -- O Alfageme . -- Hecatombe involuntaria immolada pelo A. -- Historia do Cartaxo . -- Demonstra-se como a Gran ' Bretanha deveu sempre toda a sua fôrça e toda a sua glória a Portugal . -- Shakspeare e Laffitte , Milton e Chateaumargot , Nelson e o principe de Joinville . -- Próva- se evidentemente que M. Guizot é a ruina de Albion e do Cartaxo . Voltar á meia-noite do Bois-de-Boulogne -- o bosque por excellencia , descer , entre nuvens de poeira , o longo stadio dos Campos-Elysios , entrever , na rapida carreira , o obelisco de Luxor , as árvores das Tulherias , a columna da praça Vandomma , a magnificencia heteroclyta da ` Magdalena ' , e emfim sentir parar , de uma soffreada magistral , os dois possantes inglezes que nos trouxeram quasi de um folego até ao ` boulevard de Gand' ; ahi entreabrir mollemente os olhos , levantando meio corpo dos regallados cochins de seda , e dizer : ' Ah ! estamos em Tortoni ... que delicia um sorvete com este calor ! ' -- é seguramente , é dos prazeres maiores d' este mundo , sente-se a gente viver ; é meia hora de existencia que vale dez annos de ser rei em qualquer outra parte do mundo . Pois acredite-me o leitor amigo , que sei alguma coisa dos sabores e dissabores d' este mundo , fie-se na minha palavra , que é de homem experimentado : o prazer de chegar por aquelle modo a Tortoni , o apear da elegante caleche balançada nas mais suaves mollas que fabricasse arte ingleza do puro aço de Suecia , não alcança , não se compara ao prazer e consolação de alma e corpo que eu senti ao apear-me de minha choiteira mula á porta do grande café do Cartaxo . Fazem idea do que é o café do Cartaxo ? Não fazem . Se não viajam , se não sahem , se não vêem mundo ésta gente de Lisboa ! E passam a sua vida entre o Chiado , a rua do Oiro e o theatro de San'Carlos , como hãode alargar a esphera de seus conhecimentos , desinvolver o espirito , chegar á altura do seculo ? Coroae-vos de alface , e ide jogar o bilhar , ou fazer sonetos á dama nova , ide , que não prestais para mais nada , meus queridos Lisboetas ; ou discuti os deslavados horrores de algum mellodrama velho que fugiu assoviado da ` Porte-Saint Martin ' e veio esconder-se na Rua-dos-Condes . Tambem podeis ir aos Toiros -- estão imbolados , não ha perigo ... Viajar ? . . qual viajar ! até á Cova-da-Piedade , quando muito , em dia que lá haja cavallinhos . Pois ficareis alfacinhas para sempre , cuidando que todas as praças d' este mundo são como a do Terreiro-do-Paço , todas as ruas como a rua Augusta , todos os cafés como o do Marrare . Pois não são , não : e o do Cartaxo menos que nenhum . O café é uma das feições mais characteristicas de uma terra . O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte , entra no café , observa-o , examina-o , estuda-o , e tem conhecido o paiz em que está , o seu govêrno , as suas leis , os seus costumes , a sua religião . Levem-me de olhos tapados onde quizerem , não me desvendem senão no café ; e protesto-lhe que em menos de dez minutos lhe digo a terra em que estou se for paiz sublunar . Nós entrámos no café do Cartaxo , o grande café do Cartaxo ; e nunca se incruzou turco em divan de seda do mais splendido harem de Constantinopla com tanto gôso de alma e satisfacção de corpo , como nós nos sentámos nas duras e asperas tábuas das esguias banquetas mal sarapintadas que ornam o magnífico estabelecimento bordalengo . Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade classica : será um parallelogrammo pouco maior que a minha alcova ; á esquerda duas mezas de pinho , á direita o mostrador invidraçado onde campeam as garrafas obrigadas de liquor de amendoa , de canella , de cravo . Pendem do tecto , laboriosamente arrendados por não vulgar tesoira , os pingentes de papel , convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas . Reina uma frescura admiravel n ' aquelle recinto . Sentámo-nos , respirámos largo , e entrámos em conversa com o dono da casa , homem de trinta a quarenta annos , de physionomia experta e sympathica , e sem nada do repugnante villão-ruim que é tam usual de incontrar por similhantes logares da nossa terra . -- ' Então que novidades ha por ca pelo Cartaxo , patrão ? ' -- ' Novidades ! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa . -- Ahi está a ' Revolução ' de hontem ... ' -- ' Jornaes , meu caro amigo ! Vimos fartos d' isso . Diga-nos alguma coisa da terra . Que faz por ca o ... ' -- ' O mestre J. P. , o ` Alfageme ? ' ' -- ` Como assim o Alfageme ? ' -- ' Chamam-lhe o Alfageme ao mestre J. P. : pois então ! Uns senhores -- Lisboa que ahi estiveram em casa do Sr. D. poseram-lhe esse nome , que a gente bem sabe o que é ; e ficou-lhe , que agora ja ninguem lhe chama senão o Alfageme . Mas quanto a mim , ou elle não é Alfageme , ou não o hade ser muito tempo . Não é aquelle , não . Eu bem me intendo . ' A conversação tornava-se interessante , especialmente para mim : quizemos profundar o caso . -- ' Muito me conta , Sr.||_patrão patrão|_patrão ! Com que isto de ser Alfageme , parece-lhe que é coisa de ? ... -- ' Parece-me o que é , e o que hade parecer a todo o mundo . E alguma coisa sabemos , ca no Cartaxo , do que vai por elle . O verdadeiro Alfageme diz que era um espadeiro ou armeiro , cutileiro ou coisa que o valha , na Ribeira de Santarem ; e que foi um homem capaz , e que tinha pelo povo , e que não queria saber de partidos , e que dizia elle : ' Rei que nos inforque , e papa que nos excommungue , nunca hade faltar . Assim , deixar os outros brigar , trabalhemos nós e ganhemos a nossa vida . ' Mas que extrangeiros que não queria , que ésta terra que era nossa e co'a nossa gente se devia de governar . E mais coisas assim : e que porfim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha . -- Mas que lhe valeu o Condestavel e o não deixou arrazar , por que era homem de bem e fidalgo ás direitas . Pois não é assim que foi ? ' -- É , sim , meu amigo . Mas então d' ahi ? ' -- ' Então d' ahi o que se tira , é que quando havia fidalgos como o sancto Condestavel tambem havia Alfagemes como o de Santarem . E mais nada . ' -- ' Perfeitamente . Mas porque chamaram ao mestre P. o Alfageme do Cartaxo ? ' -- ' Eu lhe digo aos senhores : o homem nem era assim nem era assado . Fallava bem , tinha sua labia com o povo . D ' ahi fez-se juiz , pôs por ahi suas coisas a direito -- Deus sabe as que elle intortou tambem ! . . ganhou nome no povo , e agora faz d' elle o que quer . Se lhe der sempre para bem , bom será . -- Os senhores não tomam nada ? ' O bom do homem visivelmente não queria fallar mais : e não deviamos importuná-lo . Fizemos o sacrificio de bom número de limões que expremémos em profundas taças -- vulgo , copos de canada -- e com agua e assucar , offerecemos as devidas libações ao genio do logar . Infelizmente o sacrificio não foi detodo incruento . Muitas hecatombes de myrmidões cahiram no holocausto , e lhe deram um cheiro e sabor que não sei se agradou á divindade , mas que injoou terrivelmente aos sacerdotes . Sahimos a visitar o nosso bom amigo , o velho D. , a honra e a alegria do Ribatejo . Ja elle sabía da nossa chegada , e vinha no caminho para nos abraçar . Fomos dar , junctos , uma volta pela terra . É das povoações mais bonitas de Portugal , o Cartaxo , aceada , alegre ; parece o bairro suburbano de uma cidade . Não ha aqui monumentos , não ha historia antiga : a terra é nova , e a sua prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta annos , desde que o seu vinho começou a ter fama . Ja descahida do que foi , pela estagnação d' aquelle commercio , ainda é comtudo a melhor coisa da Borda-d' agua . Não tem historia antiga , disse ; mas tem-n* ' a moderna e importantissima . Que memorias aqui não ficaram da guerra peninsular ! Que espantosas borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generaes , os mais distinctos militares da nossa antiga e fiel alliada , que ainda então , ao menos , nos bebia o vinho ! Hoje nem isso ! . . hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordeos , e as acerbas limonadas de Borgonha . Quem tal diria da conservativa Albion ! Como póde uma leal goella britannica , rascada pelos acidos anarchicos d' aquellas vinagretas francezas , intoar devidamente o God-save-the-King em um toast nacional ! Como , sem Porto ou Madeira , sem Lisboa , sem Cartaxo , ousa um subdito britannico erguer a voz , n ' aquella harmoniosa desafinação insular que lhe é propria e que faz parte de seu respeitavel character nacional -- faz ; não se riam : o inglez não canta senão quando bebe ... alias quando está BEBIDO . Nisi potus ad arma ruisse . Inverta : Nisi potus -- cantum prorumpisse ... E pois , como hade elle assim bebido erguer a voz n ' aquelle sublime e tremendo hymno popular Rulle-Britannia ! Bebei , bebei bem zurrapa franceza , meus amigos inglezes ; bebei , bebei a pêso de oiro , essas limonadas dos burgraves e margraves de Allemanha ; chamae-lhe , para vos illudir , chamae-lhe hoc , chamae-lhe hic , chamae-lhe o hic haec hoc todo , se vos dá gôsto ... que em poucos annos veremos o estado de acetato a que hade ficar reduzido o vosso character nacional . Oh gente cega a quem Deus quer perder ! pois não vêdes que não sois nada sem nós , que sem o nosso alchool , d' onde vos vinha espirito , sciencia , valor , ides cahir infallivelmente na antiga e priguiçosa rudeza saxonia ! D ' essas traidoras praias da França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa indole e da vossa fôrça , não tardará que tambem vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue , que vos faça arrepender , mas tarde , do criminoso êrro que hoje commetteis , ó insulares sem fe , em abandonar a nossa alliança . A nossa alliança sim , a nossa poderosa alliança , sem a qual não sois nada . o que é um inglez sem Porto ou Madeira ... sem Carcavellos ou Cartaxo ? Que se inspirasse Shakspeare com Lafitte , Milton com Chateaumargot -- o chanceller Bacon que se dilluisse no melhor Borgonha ... e veriamos os acidulos versinhos , os destemperados raciocininhos que faziam . Com todas as suas dietas , Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg ; Byron antes beberia gin , antes agua do Thamisa , ou do Pamiso , do que essas escorreduras das areias de Bordeos . Tirae- lhe o Porto aos vossos almirantes , e ninguem mais teme que torneis a ter outro Nelson . Entra nos planos do principe de Joinville fazer-vos beber da sua zurrapa : são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jôgo . É M. Guizot quem perde a Inglaterra com a sua alliança ; e tambem perde o Cartaxo . Por isso eu ja não quero nada com os doutrinarios . Ha dôze annos tornou o Cartaxo a figurar conspicuamente na historia de Portugal . Aqui , nas longas e terriveis luctas da última guerra de successão , esteve muito tempo o quartel-general do marquez de Saldanha . Alguns dythirambos se fizeram ; alguns echos das antigas canções bacchicas do tempo da guerra peninsular ainda acordaram ao som dos hymnos constitucionaes . Mas o systema liberal , tirada a epocha das eleições , não é grande coisa para a indústria vinhateira , dizem . Eu não o creio porém ; e tenho minhas boas razões , que ficam para outra vez . Sahida do Cartaxo -- A charneca . Perigo imminente em que o A. se acha de dar em poeta e fazer versos . -- Ultima revista do imperador||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro ao exército liberal . -- Batalha de Almoster . -- Waterloo . -- Declara o A. solemnemente que não é philosopho e chega á ponte da Asseca . Eram dadas cinco da tarde , a calma declinava ; montámos a cavallo , e cortámos por entre os viçosos pampanos que são a glória e a e tomado ânimo ; breve , nos achámos em plena charneca . Bella e vasta planicie ! Desafogada dos raios do sol , como ella se desenha ahi no horisonte tam suavemente ! que delicioso aroma selvagem que exhalam éstas plantas , acres e tenazes de vida , que a cobrem , e que resistem verdes e viçosas a um sol portugez de julho ! A doçura que mette n ' alma a vista refrigerante de uma joven seara do Ribatejo nos primeiros dias de abril , ondulando lascivamente com a brisa temperada da primavera , -- a amenidade bucolica de um campo minhoto de milho , á hora da rega , por meados de agosto , a ver-se-lhe pullar os caules com a agua que lhe anda por pé , e á roda as carvalheiras classicamente desposadas com a vide cuberta de racimos pretos -- são ambos esses quadros de uma poesia tam graciosa e cheia de mimo , que nunca a dei por bem traduzida nos melhores versos de Theocrito ou de Virgilio , nas melhores prosas de Gesner ou de Rodrigues-Lobo . A majestade sombria o solemne de um bosque antigo e copado , o silencio e escuridão de suas moitas mais fechadas , o abrigo solitario de suas clareiras , tudo é grandioso , sublime , inspirador de elevados pensamentos . Medita-se alli por fôrça ; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que elles cahem ... e Deus , a eternidade -- as primitivas e innatas ideas do homem -- ficam unicas no seu pensamento ... É assim . Mas um rochedo em que me eu sente ao pôr do sol na gandra erma e selvagem , vestida apenas de pastio bravo , baixo , e tosqueado rente da bôcca do gado -- diz-me coisas da terra e do ceo que nenhum outro espectaculo me diz na natureza . Ha um vago , um indeciso , um vaporoso n ' aquelle quadro que não tem nenhum outro . Não é o sublime da montanha , nem o augusto do bosque , nem o ameno do valle . Não ha ahi nada que se determine bem , que se possa definir positivamente . Ha a solidão que é uma idea negativa ... Eu amo a charneca . E não sou romanesco . Romantico , Deus me livre de o ser -- ao menos , o que na algaravia de hoje se intende por essa palavra . Ora a charneca d' entre Cartaxo e Santarem , áquella hora que a passámos , começava a ter esse tom , e a achar-lhe eu esse incanto indefinivel . Sentia-me disposto a fazer versos ... a quê ? Não sei . Felizmente que não estava so ; e escapei de mais essa caturrice . Mas foi como se os fizesse , os versos , como se os estivesse fazendo , porque me deixei cahir n ' um verdadeiro estado poetico de distracção , de mudez -- cessou-me a vida toda de relação , e não me sentia existir senão por dentro . Derepente acordou-me do lethargo uma voz que bradou : -- ' Foi aqui ! ... aqui é que foi , não ha dúvida ' . -- ` Foi aqui o quê ? ' -- ` A última revista do imperador ' . -- ' A última revista ! Como assim a última revista ! Quando ? Pois ? ... ' Então cahi completamente em mim , e recordei-me , com amargura e desconsolação , dos tremendos sacrificios a que foi condemnada ésta geração , Deus sabe para quê -- Deus sabe se para expiar as faltas de nossos passados , se para comprar a felicidade de nossos vindouros ... O certo é que alli comeffeito passára o imperador||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro a sua última revista ao exército liberal . Foi depois da batalha d' Almoster , uma das mais lidadas e das mais insanguentadas d' aquella triste guerra . Toda a guerra civil é triste . E é difficil dizer para quem mais triste , se para o vencedor ou para o vencido . Ponham de parte questões individuaes , e examinem de boa fé : verão que , na totalidade de cada facção em que a nação se dividiu , os ganhos , se os houve para quem venceu , não balançam os padecimentos , os sacrificios do passado , e menos que tudo , a responsabilidade pelo futuro ... Eu não sou philosopho . Aos olhos do philosopho , a guerra civil e a guerra extrangeira , tudo são guerras que elle condemna -- e não mais uma do que a outra ... a não ser Hobbes o ditto philosopho , o que é coisa muito differente . Mas não sou philosopho , eu : estive no campo de Waterloo , sentei-me aopé do Leão de bronze sôbre aquelle monte de terra amassado com o sangue de tantos mil , vi -- e eram passados vinte annos -- vi luzir ainda pela campina os ossos brancos das victimas que alli se immolaram a não sei quê ... Os povos disseram que á liberdade , os reis que á realeza ... Nenhuma d' ellas ganhou muito , nem para muito tempo com a tal victoria ... Mas deixemos isso . Estive alli , e senti bater-me o coração com essas recordações , com essas memorias dos grandes feitos e gentilezas que alli se obraram . Porque será que aqui não sinto senão tristeza ? Porque luctas fratricidas não podem inspirar outro sentimento e porque ... Eu moía comigo so éstas amargas reflexões , e toda a belleza da charneca desappareceu deante de mim . N ' esta desagradavel disposição de ânimo chegámos á ponte d' Asseca . Prologomenos dramatico-litterarios , que muito naturalmente levam , apezar de alguns rodeios , ao retrospecto e reconsideração do capitulo antecedente . -- Livros que não deviam ter titulo , e titulos que não deviam ter livro . -- Dos poetas d' este seculo . Bonaparte , Rotchild e Silvio-Péllico . -- Chega-se ao fim d' estas reflexões e á ponte da Asseca . -- Traducção portugueza de um grande poeta . -- Origem de um dictado . -- Junot na ponte da Asseca . -- De como o A. d' este livro foi jacobino desde pequeno . -- Inguiço que lhe deram . -- A duqueza de Abrantes . -- Chega-se emfim ao val de Santarem . Vivia aqui ha coisa de cinquenta para sessenta annos , n ' esta boa terra de Portugal , um figurão exquisitissimo que tinha inquestionavelmente o instincto de descobrir assumptos dramaticos nacionaes -- ainda , às vezes , a arte de desenhar bem o seu quadro , de lhe grupar , não sem mérito , as figuras : mas ao pô-las em acção , ao collori-las , ao fazê-las fallar ... boas noites ! era semsaboria irremediavel . Deixou uma collecção immensa de peças de theatro que ninguem conhece , ou quasi ninguem , e que nenhuma soffreria , talvez , representação ; mas rara é a que não poderia ser arranjada e appropriada á scena . Que mina tam ricca e fertil para qualquer mediano talento dramatico ! Que bellas e portuguezas coisas se não podem extrahir dos treze volumes -- são treze volumes e grandes ! -- do theatro de Ennio-Manuel de Figueiredo ! Algumas d' essas peças , com bem pouco trabalho , com um dialogo mais vivo , um stylo mais animado , fariam comedias excelentes . Estão-me a lembrar éstas : ' O Casamento da Cadea ' -- ou talvez se chame outra coisa , mas o assumpto é este ; comedia cujos characteres são habilmente esboçados , funda-se n ' aquella nossa antiga lei que fazia casar da prisão os que assim se suppunha podêrem reparar certos damnos de reputação feminina . ' O fidalgo de sua casa ' , satyra mui graciosa de um tam commum ridiculo nosso . ' As duas educações ' , bello quadro de costumes : são dois rapazes , ambos extrangeiramente educados , um francez , outro inglez , nenhum portuguez . É eminentemente comico , frisante , ou , segundo agora se diz á moda , ' palpitante de actualidade . ' ' O cioso ' , comedia ja remoçada da antiga comedia de Ferreira e que em si tem os germens todos da mais ricca e original composição . ' O avaro dissipador ' , cujo so titulo mostra o ingenho e invenção de quem tal assumpto concebeu : assumpto ainda não tractado por nenhum de tantos escriptores dramaticos de nação alguma , e que é todavia um vulgar ridiculo , todos os dias incontrado no mundo . São muitas mais , não fica n ' estas , as composições do fertilissimo escriptor que , passadas pelo crivo de melhor gôsto , e animadas sôbretudo no stylo , fariam um razoavel repertorio para acudir á mingua dos nossos theatros . Uma das mais semsabores porêm , a que vulgarmente se haverá talvez pela mais semsabor , mas que a mim mais me diverte pela ingenuidade familiar e sympathica de seu tom magoado e melancholicamento chocho , é a que tem por titulo ` Poeta em annos ' . E foi por ésta , foi por amor d' esta que me eu deixei descahir na digressão dramatico-litteraria do princípio d' este capitulo ; pegou-se-me á penna porque se me tinha pregado na cabeça ; e ou o capitulo não sabia , ou ella havia de sahir primeiro . Poeta em annos de prosa ! Oh Figueiredo , Figueiredo , que grande homem não foste tu , pois imaginaste este titulo que so elle em si é um volume ! Ha livros , e conheço muitos , que não deviam ter titulo , nem o titulo é nada n ' elles . Faz favor de me dizer o de que serve , o que significa o ` Judeu errante ' pôsto no frontispicio d' esse interminavel e mercatorio romance que ahi anda pelo mundo , mais errante , mais sem fim , mais immorredoiro que o seu prototypo ? E ha titulos tambem que não deviam ter livro , porque nenhum livro é possivel escrever que os desimpenhe como elles merecem . ' Poeta em annos de prosa ' é um d' esses . Eu não leio nenhuma das raras coisas que hoje se escrevem verdadeiramente bellas , isto é , simples , verdadeiras , e por consequencia sublimes , que não exclame com sincero pesadume ca de dentro : ` Poeta em annos de prosa ! ' Pois este é seculo para poetas ? ou temos nós poetas para este seculo ? ... Temos sim , eu conheço tres : Bonaparte , Silvio-Péllico e o barão de Rotchild . O primeiro fez a sua Iliada com a espada , o segundo com a paciencia , o último com o dinheiro . São os tres agentes , as tres entidades , as tres divindades da epocha . Ou cortar com Bonaparte , ou comprar com Rotchild , ou soffrer e ter paciencia com Silvio-Péllico . Todo o que fizer d' outra poesia -- e d' outra prosa tambem -- é tolo ... Vieram-me éstas mui judiciosas reflexões a proposito do capitulo antecedente d' esta minha obra prima ; e lancei-as aqui para instrucção e edificação do leitor benevolo . Acabei com ellas quando chegámos á ponte da Asseca . Esquecia-me dizer que d' aquelles tres grandes poetas so um está traduzido em portuguez -- o Rotchild : não é litteral a traducção , agallegou-se e ficou muito suja de erros de imprensa mas como não ha outra ... Ora d' onde veio este nome da Asseca ? Algures aqui perto deve de haver sitio , logar ou coisa que o valha , com o nome de Meca ; e d' ahi talvez o admiravel rifão portuguez que ainda não foi bem examinado como devia ser , e que decerto incerra algum grande dictame de moral primitiva : ' andou por Secca ( Asseca ? ) e Meca e olivaes de Santarem . ' -- Os taes olivaes ficam logo adiante . É uma ethymologia como qualquer outra . A ponte da Asseca corta uma varzea immensa que hade ser um vasto pahul de hynverno : ainda agora está a desangrar-se em agua por toda a parte . É notavel na historia moderna este sítio . Aqui n ' um recontro com os nossos , foi Junot gravemente ferido , ferido na cara . ` Il ne sera plus beau garçon ' disse o parlamentario francez que veio , depois da acção , tractar , creio eu , de troca de prisioneiros ou de coisa similhante . Mas inganou-se o parlamentario ; Junot ainda ficou muito guapo e gentil homem depois d' isso . Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o Maneta , as duas primeiras notabilidades que ouvi aclamar como taes e cujos nomes conhecí ... Ingano-me : conheci primeiro o nome de Bonaparte . E lembra-me muito bem que nunca me persuadi que elle fossa o monstro disforme e horroroso que nos pintavam frades e velhas n ' aquelle tempo . Imaginei sempre que , para excitar tantos odios e malquerenças , era necessario que fosse um bem grande homem . Desde pequeno que fui jacobino ; ja se ve : e de pequeno me custou caro . Levei bons puchões de orelhas de meu pae por comprar na feira de San'Lazaro , no Porto , em vez das gaitinhas ou dos registos de sanctos , ou das outras bogigangas que os mais rapazes compravam ... não imaginam o quê ... um retrato de Bonaparte . Foi ` inguiço ' -- diria uma senhora do meu conhecimento que accredita n ' elles : foi inguiço que aínda se não desfez e que toda a vida me tem perseguido . Quem me diria quando , por esse primeiro peccado politico da minha infancia , por esse primeiro tractamento duro , e -- perdoe-me a respeitada memoria de meu sancto pae ! -- injustissimo , que me trouxe o mero instincto das ideas liberaes , quem me diria que eu havia de ser perseguido por ellas toda a vida ! que apenas sahido da puberdade havia de ir a essa mesma França , á patria d' esses homens e d' essas ideas com quem a minha natureza sympathysava sem saber porquê , buscar asylo e guarida ? Não vi ja quasi nenhum d' aquelles que tanto desejára conhecer ; as ruinas do grande imperio estavam dispersas ; os seus generaes mortos , desterrados , ou trajavam interesseiros e covardes as librés do vencedor ... De todas as grandes figuras d' essa epocha , a que melhor conheci e tractei foi uma senhora , typo de graça , de amabilidade e de talento . Pouco foi o nosso tracto , mas quanto bastou para me incantar , para me formar no espirito um modêllo de valor e merecimento feminino que me veio a fazer muito mal . Custa depois a encher aquella altura que se marcou ... Eis aqui como eu fiz esse conhecimento . Inda o estou vendo , coitado ! o pobre C. do S. , nobre , espirituoso , cavalheiro , fazendo-se perdoar todos os seus prejuizos de casta , que tinha como ninguem , por aquella polidez superior e affabilidade elegante que distingue o verdadeiro fidalgo ( stylo antigo ) ; inda o estou vendo , ja sexagenario , ja mais que ' ci-devant jeun ' homme ' , o pescoço intallado na inflexivel gravata , os pés pegando-se-lhe , como os de Ovidio , ao limiar da porta -- não que lh'os prendessem saudades , senão que lh'os paralysava a cakexia incipiente -- mas o espirito joven a reagir e a teimar . -- ` Vamos ! ' disse elle ' hoje estou bom , sinto-me outro : quero apresentá-lo a madame -- Abrantes . Está tam velha ! Isto de mulheres não são como nós , passam muito depressa . ' E o desgraçado tremiam-lhe as pernas , e suffocava-o a tosse . Tomámos uma ` citadine ' , e fomos comeffeito á nova e elegante rua chamada não impropriamente a rua de Londres , onde achámos rodeada de todo o esplendor do seu occaso aquella formosa estrella do imperio . Não quero dizer que era uma belleza ; longe d' isso . Nem bella nem môça , nem airosa de faser impressão era a duqueza d' Abrantes . Mas em meia hora de conversação , de tracto , descubriam-se-lhe tantas graças , tanto natural , tanta amabilidade , um complexo tam verdadeiro e perfeito da mulher franceza , a mulher mais seductora do mundo , que involuntariamente se dizia a gente no seu coração : ` como se está bem aqui ! ' Fallámos de Portugal , de Lisboa , do imperio -- da restauração , da revolução de julho ( isto era em 1831 ) , de M. de Lafayette , de Luiz-Philippe , de Chateaubriand -- o seu grande amigo d' ella -- do Sacré-Coeur e das suas elegantes devotas -- fallámos artes , poesia , politica ... e eu não tinha ânimo para acabar de conversar ... Benevolo e paciente leitor , o que eu tenho decerto ainda é consciencia , um resto de consciencia : acabemos com éstas digressões e perennaes divagações minhas . Bem vejo que te deixei parado á minha espera no meio da ponte d' Asseca . Perdoa-me por quem es , dêmos d' espora ás mulinhas , e vamos que são horas . Ca estâmos n ' um dos mais lindos e deliciosos sitios da terra : o valle de Santarem , patria dos rouxinoes e das madresilvas , cincta de faias bellas e de loureiros viçosos . D ' isto é que não tem París , nem França nem terra alguma do occidente senão a nossa terra , e vale bem por tantas , tantas coisas que nos faltam . Valle de Santarem -- Namora-se o A. de uma janella que ve por entre umas árvores . -- Conjecturas várias a respeito da ditta janella . -- Similhança do poeta com a mulher namorada , e inquestionavel inferioridade do homem que não é poeta . -- Os rouxinoes . Reminiscencia de Bernardim Ribeiro e das suas saudades . -- De como o A. tinha quasi completo o seu romance , menos um vestido branco e uns olhos pretos . -- Sahem verdes os olhos com grande admiração e pasmo seu . -- Verificam-se as conjecturas sôbre a mysteriosa janella . -- A menina dos rouxinoes . -- Censura das damas muito para temer , crítica dos elegantes muito para rir . -- Começa o primeiro episodio d' esta Odyssea . O valle de Santarem é um d' estes logares privilegiados pela natureza , sitios amenos e deleitosos em que as plantas , o ar , a situação , tudo está n ' uma harmonia suavissima e perfeita : não ha alli nada grandioso nem sublime , mas ha uma como symetria de côres , de sons , de disposição em tudo quanto se ve e se sente , que não parece senão que a paz , a saude , o socêgo do espirito e o repouso do coração devem viver alli , reinar alli um reinado de amor e benevolencia . As paixões más , os pensamentos mesquinhos , os pezares e as villezas da vida não podem senão fugir para longe . Imagina-se por aqui o Eden que o primeiro homem habitou com a sua innocencia e com a virgindade do seu coração . Á esquerda do valle , e abrigado do norte pela montanha que alli se corta quasi a pique , está um masisso de verdura do mais bello viço e variedade . A faia , o freixo , o alamo enterlaçam os ramos amigos ; a madresilva , a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões ; a congossa , os fettos , a malva-rosa do vallado vestem e alcatifam o chão . Para mais realçar a belleza do quadro , ve-se por entre um claro das árvores a janella meia aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada -- com certo ar de confôrto grosseiro , e carregada na côr pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta . A janella é larga e baixa ; parece mais ornada e tambem mais antiga que o resto do edificio que todavia mal se ve ... Interessou-me aquella janella . Quem terá o bom gôsto e a fortuna de morar alli ? Parei e puz-me a namorar a janella . Incantava-me , tinha-me alli como n ' um feitiço . Pareceu-me entrever uma cortina branca ... e um vulto por de traz ... Imaginarão decerto ! Se o vulto fosse feminino ! . . era completo o romance . Como hade ser bello ver pôr o sol d' aquella janella ! ... E ouvir cantar os rouxinoes ! ... E ver raiar uma alvorada de maio ! ... Se haverá alli quem a aproveite , a deliciosa janella ? . . quem apprecie e saiba gosar todo o prazer tranquillo , todos os sanctos gosos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em tôrno ? Se fôr homem é poeta ; se é mulher está namorada . São os dois entes mais parecidos da natureza , o poeta e a mulher namorada : vêem , sentem , pensam , fallam como a outra gente não ve , não sente , não pensa nem falla . Na maior paixão , no mais acrysolado affecto do homem que não é poeta , entra sempre o seu tanto da vil prosa humana : é liga sem que se não lavra o mais fino de seu oiro . A mulher não ; a mulher apaixonada devéras sublima-se , idealiza-se logo , toda ella é poesia ; e não ha dor physica , interêsse material , nem deleites sensuaes que a façam descer ao positivo da existencia prosaica . Estava eu n ' estas meditações , começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que ha muito tempo me lembra de ouvir . Era aope da ditta janella ! E respondeu-lhe logo outro do lado opposto ; e travou-se entre ambos um desafio tam regular , em strophes alternadas tam bem medidas , tam accentuadas e perfeitas , que eu fiquei todo dentro do meu romance , esqueci-me de tudo o mais . Lembrou-me o rouxinol de Bernardim-Ribeiro , o que se deixou cahir n ' agua de cançado . O arvoredo , a janella , os rouxinoes ... áquella hora , o fim da tarde ... que faltava para completar o romance ? Um vulto feminino que viesse sentar-se áquele balcão -- vestido de branco -- oh ! branco por fôrça ... a frente descahida sôbre a mão esquerda , o braço direito pendente , os olhos alçados ao ceo ... De que côr os olhos ? Não sei , que importa ! é amiudar muito demais a pintura , que deve ser a grandes e largos traços para ser romantica , vaporosa , desenhar-se no vago da idealidade poetica ... -- ' Os olhos , os olhos ... ' disse eu pensando ja alto , e todo no meu extasi , ' os olhos ... pretos . ' -- ` Pois eram verdes ! ' -- ' Verdes os olhos ... d' ella , do vulto da janella ? ' -- ' Verdes como duas esmeraldas orientaes , transparentes , brilhantes , sem preço . ' -- ' Quê ! pois realmente ? ... É gracejo isso , ou realmente ha alli uma mulher , bonita , e ? . . ' -- ' Alli não ha ninguem -- ninguem que se nomeie hoje , mas houve ... oh ! houve um anjo , um anjo , que deve de estar no ceo . ' -- ' Bem dizia eu que aquella janella ... ' -- É a janella dos rouxinoes . ' -- ' Que lá estão a cantar . ' -- ' Estão , esses lá estão ainda como ha dez annos -- os mesmos ou outros , mas a menina dos rouxinoes foi-se e não voltou . ' -- ' A menina dos rouxinoes ! que historia é essa ? Pois devéras tem uma historia aquella janella ? ' -- É um romance todo inteiro , todo feito como dizem os francezes e conta-se em duas palavras . ' -- ' Vamos a elle . A menina dos rouxinoes , menina com olhos verdes ! Deve ser interessantissimo . Vamos á historia ja . ' -- ' Pois vamos . Apeemo ' -- nos e descancemos um bocado . ' Ja se ve que este dialogo passava entre mim e outro dos nossos companheiros de viagem . Apeámo ' -- nos comeffeito ; sentamo ' -- nos ; e eisaqui a historia da menina dos rouxinoes como ella se contou . É o primeiro episodio da minha Odyssea : estou com medo de entrar n ' elle porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o portuguez não é bom para isto , que em francez que ha outro não-sei-quê ... Eu creio que as damas que estão mal informadas , e sei que os elegantes que são uns tolos ; mas sempre tenho meu receio , porque emfim , enfim , d' elles me rio eu , mas poesia ou romance , musica ou drama de que as mulheres não gostem , é porque não presta . Ainda assim , bellas e amaveis leitoras , intendamo ' nos : o que eu vou contar não é um romance , não tem aventuras inredadas , peripecias , situações e incidentes raros ; é uma historia simples e singella , sinceramente contada e sem pretenção . Acabemos aqui o capitulo em fórma de prologo , e a materia do meu conto para o seguinte . Tracta-se do unico privilegio dos poetas que tambem os philosophos quizeram tirar , mas não lhes foi concedido ; aos romancistas sim . -- Exemplo de Aristoteles e Anacreonte . -- O A. , tendo declarado no capitulo nono d' esta obra que não era philosopho , agora confessa , quasi solemnemente , que é poeta , e pretende manter-se , como tal , em seu direito . -- De como S. M. elrei de Dinamarca tinha menos juizo do que Yorick , seu bobo . -- Doutrina d' este . Funda n ' ella o A. o seu admiravel systema de physiologia e pathologia transcendente do coração . Por uma deducção appertada e cerrada da mais constrangente logica vem a dar-se no motivo porque foi concedido aos poetas o direito indefinido de andarem sempre namorados . -- Applicam-se todas éstas grandes theorias á posição actual do A. no momento de entrar no episodio promettido no capitulo antecedente . -- Modestia e reserva delicada o obrigam a duvidar da sua qualificação para o desimpenho : pede votos ás amaveis leitoras . Decide-se que a votação não seja nominal , e porquê . -- Dido e a mana Annica . -- Entra-se emfim na prometida historia . -- De como a velha estava á porta a dobar , e imbaraçando-se-lhe a meada , chamou por Joaninha , sua neta . Este é o unico privilegio dos poetas : que até morrer podem estar namorados . Tambem não lhes conheço outro . A mais gente tem as suas epochas na vida , fóra das quaes lhes não é permittido apaixonarem-se . Pretenderam accolher-se ao mesmo beneficio os philosophos , mas não lhes foi consentido pela rainha Opinião , que é soberana absoluta e juiz supremo de que se não appella nem aggrava ninguem . Anacreonte cantou , de cabellos brancos , os seus amores , e não se extranhou . Aristoteles mal teria a barba russa quando foi d' aquelle seu último namôro porque ainda hoje lhe apouquentam a fama . Ora eu philosopho , seguramente não sou , ja o disse ; de poeta tenho o meu pouco , padeci , a fallar a verdade , meus ataques assás agudos d' essa molestia , e bem podéra desculpar-me com elles de certas fragilidades de coração ... Mas não senhor , não quero desculpar-me como quem tem culpa senão defender-me como quem tem razão e justiça por si . Estou , com o meu amigo Yorick , o ajuizadissimo bobo d' elrei de Dinamarca , o que alguns annos depois ressuscitou em Sterne com tam elegante penna , estou sim . ` Toda a minha vida ' diz elle ' tenho andado apaixonado ja por esta ja por aquella princeza , e assim heide ir , espero , até morrer , firmemente persuadido que se algum dia fizer uma acção baixa , mesquinha , nunca hade ser senão no intervallo de uma paixão á outra : n ' esses interregnos sinto fechar-se-me o coração , esfria-me o sentimento , não acho dez reis que dar a um pobre ... por isso fujo ás carreiras de similhante estado ; e mal me sinto acceso de novo , sou todo generosidade e benevolencia outra vez . ' Yorick tem rasão , tinha muito mais razão e juizo que seu augusto amo , elrei de Dinamarca . Por pouco mais que se generalize o principio , fica indisputavel , inexcepcionavel para sempre e para tudo . O coração humano é como o estomago humano , não pode estar vazio , preciza de alimento sempre : são e generoso so as affeições lh'o podem dar ; o odio , a inveja e toda a outra paixão má é estímulo que so irrita mas não sustenta .