Eça DE QUEIROZ OS MAIAS EPISODIOS DE+A VIDA ROMANTICA VOLUME I PORTO Livraria Internacional de Ernesto Chardron CASA EDITORA LUGAN & GENELIOUX , Successores 1888 A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa , no outono de 1875 , era conhecida na visinhança da rua de S. Francisco -- Paula , e em todo o bairro das Janellas Verdes , pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete . Apesar d' este fresco nome de vivenda campestre , o Ramalhete , sombrio casarão de paredes severas , com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar , e por cima uma timida fila de janellinhas abrigadas á beira do telhado , tinha o aspecto tristonho de Residencia Ecclesiastica que competia a uma edificação do reinado da sr.a||_D._Maria_I D.|_D._Maria_I Maria|_D._Maria_I I|_D._Maria_I : com uma sineta e com uma cruz no topo assimilhar-se-hia a um Collegio de Jesuitas . O nome de Ramalhete provinha de certo d' um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no logar heraldico do Escudo d'Armas , que nunca chegara a ser collocado , e representando um grande ramo de girasoes atado por uma fita onde se distinguiam letras e numeros d' uma data . Longos annos o Ramalhete permanecera deshabitado , com teias d' aranha pelas grades dos postigos terreos , e cobrindo-se de tons de ruina . Em 1858 Monsenhor||_Buccarini Buccarini|_Buccarini , Nuncio de S. Santidade , visitara-o com idéa d' installar lá a Nunciatura , seduzido pela gravidade clerical do edificio e pela paz dormente do bairro : e o interior do casarão agradara-lhe tambem , com a sua disposição apalaçada , os tectos apainelados , as paredes cobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos Cupidinhos . Mas Monsenhor , com os seus habitos de rico prelado romano , necessitava na sua vivenda os arvoredos e as agoas d' um jardim de luxo : e o Ramalhete possuia apenas , ao fundo d' um terraço de tijolo , um pobre quintal inculto , abandonado ás hervas bravas , com um cypreste , um cedro , uma cascatasinha secca , um tanque entulhado , e uma estatua de marmore ( onde Monsenhor reconheceu logo Venus Citherêa ) ennegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres . Além d' isso , a renda que pedio o velho Villaça , procurador dos Maias , pareceu tão exagerada a Monsenhor , que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Egreja nos tempos de Leão X. Villaça respondeu -- que tambem a nobreza não estava nos tempos do sr.||_D._João_V._E D.|_D._João_V._E João|_D._João_V._E V.|_D._João_V._E E|_D._João_V._E o Ramalhete continuou deshabitado . Este inutil pardieiro ( como lhe chamava Villaça Junior , agora por morte de seu pae administrador dos Maias ) só veio a servir , nos fins de 1870 , para lá se arrecadaram as mobilias e as louças provenientes do palacete de familia em Bemfica , morada quasi historica , que , depois de andar annos em praça , fôra então comprada por um commendador brazileiro . N ' essa occasião vendera-se outra propriedade dos Maias , a Tojeira ; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias , e sabiam que desde a Regeneração elles viviam retirados na sua quinta de Santa Olavia , nas margens do Douro , tinham perguntado a Villaça se essa gente estava atrapalhada . -- Ainda teem um pedaço de pão , disse Villaça sorrindo , e a manteiga para lhe barrar por cima . Os Maias eram uma antiga familia da Beira , sempre pouco numerosa , sem linhas collateraes , sem parentellas -- e agora reduzida a dois varões , o senhor da casa , Affonso da Maia , um velho já , quasi um antepassado , mais edoso que o seculo , e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra . Quando Affonso se retirara definitivamente para Santa Olavia , o rendimento da casa excedia já cincoenta mil cruzados : mas desde então tinham-se accumulado as economias de vinte annos de aldêa ; viera tambem a herança d' um ultimo parente , Sebastião da Maia , que desde 1830 vivia em Napoles , só , occupando-se de numismatica ; -- e o procurador podia certamente sorrir com segurança quando fallava dos Maias e da sua fatia de pão . A venda da Tojeira fôra realmente aconselhada por Villaça : mas nunca elle approvara que Affonso se desfizesse de Bemfica -- só pela rasão d' aquelles muros terem visto tantos desgostos domesticos . Isso , como dizia Villaça , acontecia a todos os muros . O resultado era que os Maias , com o Ramalhete inhabitavel , não possuiam agora uma casa em Lisboa ; e se Affonso n ' aquella edade amava o socego de Santa Olavia , seu neto , rapaz de gosto e de luxo que passava as ferias em Paris e Londres , não quereria , depois de formado , ir sepultar-se nos penhascos do Douro . E com effeito , mezes antes de elle deixar Coimbra , Affonso assombrou Villaça annunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete ! O procurador compoz logo um relatorio a enumerar os inconvenientes do casarão : o maior era necessitar tantas obras e tantas despezas ; depois , a falta d' um jardim devia ser muito sensivel a quem sahia dos arvoredos de Santa Olavia ; e por fim alludia mesmo a uma lenda , segundo a qual eram sempre fataes aos Maias as paredes do Ramalhete , " ainda que ( acrescentava elle n ' uma phrase meditada ) até me envergonho de mencionar taes frioleiras n ' este seculo de Voltaire , Guisot e outros philosophos liberaes ... " Affonso riu muito da phrase , e respondeu que aquellas razões eram excellentes -- mas elle desejava habitar sob tectos tradiccionalmente seus ; se eram necessarias obras , que se fizessem e largamente ; e emquanto a lendas e agoiros , bastaria abrir de par em par as janellas e deixar entrar o sol . S. ex.a mandava : -- e , como esse inverno ia secco , as obras começaram logo , sob a direcção d' um Esteves , architecto , politico , e compadre -- Villaça . Este artista enthusiasmára o procurador com um projecto de escada apparatosa , flanqueada por duas figuras symbolisando as conquistas da Guiné e da India . E estava ideando tambem uma cascata de louça na sala de jantar -- quando , inesperadamente , Carlos appareceu em Lisboa com um architecto-decorador de Londres , e , depois de estudar com elle á pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos , entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete , para elle ali crear , exercendo o seu gosto , um interior confortavel , de luxo intelligente e sobrio . Villaça resentiu amargamente esta desconsideração pelo artista nacional ; Esteves foi berrar ao seu Centro politico que isto era um paiz perdido . E Affonso lamentou tambem que se tivesse despedido o Esteves , exigiu mesmo que o encarregassem da construcção das cocheiras . O artista ia acceitar -- quando foi nomeado governador civil . Ao fim d' um anno , durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa collaborar nos trabalhos , " dar os seus retoques estheticos " -- do antigo Ramalhete só restava a fachada tristonha , que Affonso não quizera alterada por constituir a phisionomia da casa . E Villaça não duvidou declarar que Jones Bule ( como elle chamava ao inglez ) sem despender despropositadamente , aproveitando até as antigualhas de Bemfica , fizera do Ramalhete " um museu . " O que surprehendia logo era o pateo , outr'ora tão lobrego , nú , lageado de pedregulho -- agora resplandecente , com um pavimento quadrilhado de marmores brancos e vermelhos , plantas decorativas , vazos de Quimper , e dois longos bancos feudaes que Carlos trouxera de Hespanha , trabalhados em talha , solemnes como córos de cathedral . Em cima , na antecamara , revestida como uma tenda de estofos do Oriente , todo o rumor de passos morria : e ornavam-n* ' a divans cobertos de tapetes persas , largos pratos mouriscos com reflexos metalicos de cobre , uma harmonia de tons severos , onde destacava , na brancura immaculada do marmore , uma figura de rapariga friorenta , arripiando- se , rindo , ao metter o pésinho n ' agoa . D ' ahi partia um amplo corredor , ornado com as peças ricas de Bemfica , arcas gothicas , jarrões da India , e antigos quadros devotos . As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria . No salão nobre , raramente usado , todo em brocados de velludo côr de musgo d' outono , havia uma bella téla de Constable , o retrato da sogra de Affonso , a condessa de Runa , de tricorne de plumas e vestido escarlate de caçadora ingleza , sobre um fundo de paisagem enevoada . Uma sala mais pequena , ao lado , onde se fazia musica , tinha um ar de seculo XVIII com seus moveis enramelhetados d' ouro , as suas sedas de ramagens brilhantes : duas tapeçarias de Gobelins , desmaiadas , em tons cinzentos , cobriam as paredes de pastores e d' arvoredos . Defronte era o bilhar , forrado d' um couro moderno trazido por Jones Bule , onde , por entre a desordem de ramagens verde-garrafa , esvoaçavam cegonhas prateadas . E , ao lado , achava-se o fumoir , a sala mais commoda do Ramalhete : as ottomanas tinham a fôfa vastidão de leitos ; e o conchego quente , e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes de velhas faienças hollandezas . Ao fundo do corredor ficava o escriptorio de Affonso , revestido de damascos vermelhos como uma velha camara de prelado . A macissa meza de pau preto , as estantes baixas de carvalho lavrado , o solemne luxo das encadernações , tudo tinha ali uma feição austera de paz estudiosa -- realçada ainda por um quadro attribuido a Rubens , antiga reliquia da casa , um Christo na Cruz , destacando a sua nudez de athleta sobre um ceu de poente revolto e rubro . Ao lado do fogão Carlos arranjara um canto para o avô com um biombo japonez bordado a ouro , uma pelle d' urso branco , e uma veneravel cadeira de braços , cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de sêda . No corredor do segundo andar , guarnecido com retratos de familia , estavam os quartos de Affonso . Carlos despozera os seus , n ' um angulo da casa , com uma entrada particular , e janellas sobre o jardim : eram tres gabinetes a seguir , sem portas , unidos pelo mesmo tapete : e , os recostos acolchoados , a sêda que forrava as paredes , faziam dizer ao Villaça que aquillo não eram aposentos de medico -- mas de dançarina ! A casa , depois de arranjada , ficou vazia emquanto Carlos , já formado , fazia uma longa viagem pela Europa ; -- e foi só nas vesperas da sua chegada , n ' esse lindo outono de 1875 , que Affonso se resolveu emfim a deixar Santa Olavia e vir installar-se no Ramalhete . Havia vinte e cinco annos que elle não via Lisboa ; e , ao fim de alguns curtos dias , confessou ao Villaça que estava suspirando outra vez pelas suas sombras de Santa Olavia . Mas , que remedio ! Não queria viver muito separado do neto ; e Carlos agora , com idéas sérias de carreira activa , devia necessariamente habitar Lisboa ... De resto , não desgostava do Ramalhete , apezar de Carlos , com o seu fervor pelo luxo dos climas frios , ter prodigalisado de mais as tapeçarias , os pesados reposteiros , e os velludos . Agradava-lhe tambem muito a visinhança , aquella dôce quietação de suburbio adormecido ao sol . E gostava até do seu quintalejo . Não era de certo o jardim de Santa Olavia : mas tinha o ar sympathico , com os seus girasoes perfilados ao pé dos degraus do terraço , o cypreste e o cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes , e a Venus Cytherêa parecendo agora , no seu tom claro de estatua de parque , ter chegado de Versalhes , do fundo do grande seculo ... E desde que a agoa abundava , a cascatasinha era deliciosa , dentro do nicho de conchas , com os seus tres pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucolico , melancolisando aquelle fundo de quintal soalheiro com um pranto de nayade domestica , esfiado gota a gota na bacia de marmore . O que desconsolara Affonso , ao principio , fôra a vista do terraço -- d' onde outr'ora , de certo , se abrangia até ao mar . Mas as casas edificadas em redor , nos ultimos annos , tinham tapado esse horizonte explendido . Agora , uma estreita tira de agoa e monte que se avistava entre dois predios de cinco andares , separados por um córte de rua , formava toda a paizagem defronte do Ramalhete . E , todavia , Affonso terminou por lhe descobrir um encanto intimo . Era como uma téla marinha , encaixilhada em cantarias brancas , suspensa do céu azul em face do terraço , mostrando , nas variedades infinitas de côr e luz , os episodios fugitivos d' uma pacata vida de rio : às vezes uma véla de barco da Trafaria fugindo airosamente á bolina ; outras vezes uma galera toda em panno , entrando n ' um favor da aragem , vagarosa , no vermelho da tarde ; ou então a melancolia d' um grande paquete , descendo , fechado e preparado para a vaga , entrevisto um momento , desapparecendo logo , como já devorado pelo mar incerto ; ou ainda durante dias , no pó d' ouro das sestas silenciosas , o vulto negro de um couraçado inglez ... E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro , com um moinho parado no alto , e duas casas brancas ao rez d' agoa , cheias de expressão -- ora faiscantes e despedindo raios das vidraças accezas em braza ; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo , cobertas dos rosados tenros de poente , quasi similhantes a um rubor humano ; e d' uma tristeza arripiada nos dias de chuva , tão sós , tão brancas , como nuas , sob o tempo agreste . O terraço communicava por tres portas envidraçadas com o escriptorio -- e foi n ' essa bella camara de prelado que Affonso se acostumou logo a passar os seus dias , no recanto aconchegado que o neto lhe preparara ternamente , ao lado do fogão . A sua longa residencia em Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume . Em Santa Olavia as chaminés ficavam accezas até Abril ; depois ornavam-se de braçadas de flôres , como um altar domestico ; e era ainda ahi , n ' esse aroma e n ' essa frescura , que elle gozava melhor o seu cachimbo , o seu Tacito , ou o seu querido Rabelais . Todavia , Affonso ainda ia longe , como elle dizia , de ser um velho borralheiro . N ' aquella edade , de verão ou de inverno , ao romper do sol , estava a pé , sahindo logo para a quinta , depois da sua boa oração da manhã que era um grande mergulho na agoa fria . Sempre tivera o amor supersticioso da agoa ; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem -- que sabor d' agoa , som d' agoa , e vista d' agoa . O que o prendera mais a Santa Olavia fôra a sua grande riqueza d' agoas vivas , nascentes , repuxos , tranquillo espelhar d' agoas paradas , fresco murmurio de agoas regantes ... E a esta viva tonificação da agoa attribuia elle o ter vindo assim , desde o começo do seculo , sem uma dôr e sem uma doença , mantendo a rica tradição de saude da sua familia , duro , resistente aos desgostos e annos -- que passavam por elle , tão em vão , como passavam em vão , pelos seus robles de Santa Olavia , annos e vendavaes . Affonso era um pouco baixo , macisso , de hombros quadrados e fortes : e com a sua face larga de nariz aquilino , a pelle córada , quasi vermelha , o cabello branco todo cortado á escovinha , e a barba de neve aguda e longa -- lembrava , como dizia Carlos , um varão esforçado das edades heroicas , um D. Duarte de Menezes ou um Affonso d'Albuquerque . E isto fazia sorrir o velho , recordar ao neto , gracejando , quanto as apparencias illudem ! Não , não era Menezes , nem Albuquerque ; apenas um antepassado bonacheirão que amava os seus livros , o conchego da sua poltrona , o seu whist ao canto do fogão . Elle mesmo costumava dizer , que era simplesmente um egoista : -- mas nunca , como agora na velhice , as generosidades do seu coração tinham sido tão profundas e largas . Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos , esparsamente , n ' uma caridade enternecida . Cada vez amava mais o que é pobre e o que é fraco . Em Santa Olavia , as creanças corriam para elle , dos portaes , sentindo-o acariciador e paciente . Tudo o que vive lhe merecia amor : -- e era dos que não pisam um formigueiro , e se compadece da sêde d' uma planta . Villaça costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos patriarchas , quando o vinha encontrar ao canto da chaminé , na sua coçada quinzena de velludilho , sereno , risonho , com um livro na mão , o seu velho gato aos pés . Este pesado e enorme angorá , branco com malhas louras , era agora ( desde a morte de Tobias , o soberbo cão de S.||_Bernardo Bernardo|_Bernardo ) o fiel companheiro de Affonso . Tinha nascido em Santa Olavia , e recebera então o nome de Bonifacio : depois , ao chegar á edade do amor e da caça , fora-lhe dado o appellido mais cavalheiresco de D. Bonifacio de Calatrava : agora , dorminhoco e obeso , entrara definitivamente no remanso das dignidades ecclesiasticas , e era o Reverendo||_Bonifacio Bonifacio|_Bonifacio ... Esta existencia nem sempre assim correra com a tranquillidade larga e clara d' um bello rio de verão . O antepassado , cujos olhos se enchiam agora d' uma luz de ternura diante das suas rosas , e que ao canto do lume relia com gosto o seu Guisot , fôra , na opinião de seu pae , algum tempo , o mais feroz Jacobino de Portugal ! E todavia , o furor revolucionario do pobre moço consistira em lêr Rousseau , Volney , Helvetius , e a Encyclopedia ; em atirar foguetes de lagrimas á Constituição ; e ir , de chapeu á liberal e alta gravata azul , recitando pelas lojas maçonicas Odes abominaveis ao Supremo Architecto do Universo . Isto , porém , bastára para indignar o pae . Caetano da Maia era um portuguez antigo e fiel que se benzia ao nome de Robespierre , e que , na sua apathia de fidalgo beato e doente , tinha só um sentimento vivo -- o horror , o odio ao Jacobino , aquem attribuia todos os males , os da patria e os seus , desde a perda das colonias até ás crises da sua gota . Para extirpar da nação o Jacobino , déra elle o seu amor ao sr.||_infante infante|_infante D. Miguel , Messias forte e Restaurador providencial ... E ter justamente por filho um Jacobino , parecia-lhe uma provação comparavel só ás de Job ! Ao principio , na esperança que o menino se emendasse , contentou-se em lhe mostrar um carão severo e chamar-lhe com sarcasmo -- cidadão ! Mas quando soube que seu filho , o seu herdeiro , se misturara á turba que , n ' uma noite de festa civica e de luminarias , tinha apedrejado as vidraças apagadas do sr.||_Legado_d'Áustria Legado|_Legado_d'Áustria d'Áustria|_Legado_d'Áustria , enviado da Santa Alliança -- considerou o rapaz um Marat e toda a sua colera rompeu . A gota cruel , cravando-o na poltrona , não lhe deixou espancar o mação , com a sua bengala da India , á lei de bom pae portuguez : mas decidiu expulsal- o de sua casa , sem mezada e sem benção , renegado como um bastardo ! Que aquelle pedreiro livre não podia ser do seu sangue ! As lagrimas da mamã amolleceram-n* ' o ; sobretudo as razões d' uma cunhada de sua mulher , que vivia com elles em Bemfica , senhora irlandeza de alta instrucção , Minerva respeitada e tutelar , que ensinara inglez ao menino e o adorava como um bébé . Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho para a quinta de Santa Olavia ; mas não cessou de chorar no seio dos padres , que vinham a Bemfica , a desgraça da sua casa . E esses santos lá o consolavam , affirmando-lhe que Deus , o velho Deus d'Ourique , não permittiria jámais que um Maia pactuasse com Belzebut e com a Revolução ! E , á falta de Deus Padre , lá estava Nossa Senhora da Soledade , padroeira da casa e madrinha do menino , para fazer o bom milagre . E o milagre fez-se . Mezes depois , o Jacobino , o Marat , voltava de Santa Olavia um pouco contricto , enfastiado sobretudo d' aquella solidão , onde os chás do brigadeiro Senna eram ainda mais tristes que o terço das primas Cunhas . Vinha pedir ao pae a benção , e alguns mil cruzados , para ir a Inglaterra , esse paiz de vivos prados e de cabellos d' ouro de que lhe fallara tanto a tia||_Fanny Fanny|_Fanny . O pae beijou-o , todo em lagrimas , accedeu a tudo fervorosamente , vendo ali a evidente , a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da Soledade ! E o mesmo Frei Jeronymo da Conceição seu confessor , declarou este milagre -- não inferior ao de Carnaxide . Affonso partiu . Era na primavera -- e a Inglaterra toda verde , os seus parques de luxo , os copiosos confortos , a harmonia penetrante dos seus nobres costumes , aquella raça tão séria e tão forte -- encantaram-n* ' o . Bem depressa esqueceu o seu odio aos sorumbaticos padres da Congregação , as horas ardentes passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau , e a Republica que quizera fundar , classica e voltarianna , com um triumvirato de Scipiões e festas ao Ente Supremo . Durante os dias da Abrilada estava elle nas corridas d' Epsom , no alto d' uma sege de posta , com um grande nariz postiço , dando hurrahs medonhos- bem indifferente aos seus irmãos de Maçonaria , que a essas horas o sr. infante espicaçava a chuço , pelas viellas do Bairro Alto , no seu rijo cavallo d' Alter . Seu pae morreu de subito , elle teve de regressar a Lisboa . Foi então que conheceu D. Maria Eduarda Runa , filha do conde de Runa , uma linda morena , mimosa e um pouco adoentada . Ao fim do luto casou com ella . Teve um filho , desejou outros ; e começou logo , com bellas idéas de patriarcha moço , a fazer obras no palacete de Bemfica , a plantar em redor arvoredos , preparando tectos e sombras á descendencia amada que lhe encantaria a velhice . Mas não esquecia a Inglaterra : -- e tornava-lh ' a mais appetecida essa Lisboa miguelista que elle via , desordenada como uma Tunis barbaresca ; essa rude conjuração apostolica de frades e bolieiros , atroando tavernas e capellas ; essa plebe beata , suja e feroz , rolando do lausperenne para o curro , e anciando tumultuosamente pelo principe que lhe encarnava tão bem os vicios e as paixões ... Este espectaculo indignava Affonso da Maia ; e muitas vezes , na paz do serão , entre amigos , com o pequeno nos joelhos , exprimiu a indignação da sua alma honesta . Já não exigia de certo , como em rapaz , uma Lisboa de Catões e de Mucios-Scevolas . Já admittia mesmo o esforço d' uma nobreza para manter o seu privilegio historico ; mas então queria uma nobreza intelligente e digna , como a Aristocracia tory ( que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealisar ) , dando em tudo a direcção moral , formando os costumes e inspirando a litteratura , vivendo com fausto e fallando com gosto , exemplo de idéas altas e espelho de maneiras patricias ... O que não tolerava era o mundo de Queluz , bestial e sordido . Taes palavras , apenas soltas , voavam a Queluz . E quando se reuniram as côrtes geraes , a policia invadiu Bemfica , " a procurar papeis e armas escondidas . " Affonso da Maia , com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao lado -- viu , impassivelmente e sem uma palavra , a busca , as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas , as mãos sujas do malsim rebuscando os colxões do seu leito . O sr. juiz de fóra não descobriu nada : acceitou mesmo na copa um calice de vinho , e confessou ao mordomo " que os tempos iam bem duros ... " Desde essa manhã as janellas do palacete conservaram-se cerradas ; não se abriu mais o portão nobre para sahir o coche da senhora ; e d' ahi a semanas , com a mulher e com o filho , Affonso da Maia partia para Inglaterra e para o exilio . Ahi installou-se , com luxo , para uma longa demora , nos arredores de Londres , junto a Richmond , ao fundo d' um parque , entre as suaves e calmas paisagens de Surrey . Os seus bens , graças ao credito do conde de Runa , antigo mimoso de D. Carlota Joaquina , hoje conselheiro rispido do sr.||_D._Miguel D.|_D._Miguel Miguel|_D._Miguel , não tinham sido confiscados ; e Affonso da Maia podia viver largamente . Ao principio os emigrados liberaes , Palmella e a gente do Belfast , ainda o vieram desassocegar e consumir . A sua alma recta não tardou a protestar vendo a separação de castas , de gerarchias , mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma idéa -- os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres á forra , e a plebe , o exercito , depois dos padecimentos da Galliza , succumbindo agora á fome , á vermina , á febre nos barracões de Plymouth . Teve logo conflictos com os chefes liberaes ; foi accusado de vintista e demagogo ; descreu por fim do liberalismo . Isolou-se então -- sem fechar todavia a sua bolsa , d' onde sahiam ás cincoenta , ás cem moedas ... Mas quando a primeira expedição partiu , e pouco a pouco se foram vasando os depositos de emigrados , respirou emfim -- e , como elle disse , pela primeira vez lhe soube bem o ar d' Inglaterra ! Mezes depois sua mãe , que ficara em Bemfica , morria d' uma apoplexia : e a tia||_Fanny Fanny|_Fanny veiu para Richmond completar a felicidade d' Affonso , com o seu claro juizo , os seus caracóes brancos , os seus modos de discreta Minerva . Alli estava elle pois no seu sonho , n ' uma digna residencia ingleza , entre arvores seculares , vendo em redor nas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo , e sentindo em torno de si tudo são , forte , livre e solido , -- como o amava o seu coração . Teve relações ; estudou a nobre e rica litteratura ingleza ; interessou-se , como convinha a um fidalgo em Inglaterra , pela cultura , pela cria dos cavallos , pela pratica da caridade ; -- e pensava com prazer em ficar ali para sempre n ' aquella paz e n ' aquella ordem . Sómente Affonso sentia que sua mulher não era feliz . Pensativa e triste , tossia sempre pelas salas . Á noite sentava-se ao fogão , suspirava e ficava calada ... Pobre senhora ! a nostalgia do paiz , da parentella , das egrejas , ia-a minando . Verdadeira lisboeta , pequenina e trigueira , sem se queixar e sorrindo pallidamente , tinha vivido desde que chegara n ' um odio surdo áquella terra d' herejes e ao seu idioma barbaro : sempre arripiada , abafada em pelles , olhando com pavor os ceus fuscos ou a neve nas arvores , o seu coração não estivera nunca alli , mas longe , em Lisboa , nos adros , nos bairros batidos do sol . A sua devoção ( a devoção dos Runas ! ) sempre grande , exaltara-se , exacerbara-se áquella hostilidade ambiente que ella sentia em redor contra os " papistas " . E só se satisfazia á noite , indo refugiar-se no sotão com as creadas portuguezas , para resar o terço agachada n ' uma esteira -- gosando ali , n ' esse murmurio d' ave-marias em paiz protestante , o encanto de uma conjuração catholica ! Odiando tudo o que era inglez , não consentira que seu filho , o Pedrinho , fosse estudar ao collegio de Richmond . Debalde Affonso lhe provou que era um collegio catholico . Não queria : aquelle catholicismo sem romarias , sem fogueiras pelo S. João , sem imagens do Senhor||_dos|_Passos dos||_dos|_Passos Passos|_dos|_Passos , sem frades nas ruas -- não lhe parecia a religião . A alma do seu Pedrinho não abandonaria ella á heresia ; -- e para o educar mandou vir de Lisboa o padre||_Vasques Vasques|_Vasques , capellão do Conde de Runa . O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas , sobretudo a cartilha : e a face d' Affonso da Maia cobria-se de tristeza , quando ao voltar d' alguma caçada ou das ruas de Londres , d' entre o forte rumor da vida livre -- ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo , perguntando como do fundo d' uma treva : -- Quantos são os inimigos da alma ? E o pequeno , mais dormente , lá ia murmurando : -- Tres . Mundo , Diabo e Carne ... Pobre Pedrinho ! Inimigo da sua alma só havia alli o reverendo||_Vasques Vasques|_Vasques , obeso e sordido , arrotando do fundo da sua poltrona , com o lenço do rapé sobre o joelho ... Ás vezes Affonso , indignado , vinha ao quarto , interrompia a doutrina , agarrava a mão do Pedrinho -- para o levar , correr com elle sob as arvores do Tamisa , dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha . Mas a mamã accudia de dentro , em terror , a abafal- o n ' uma grande manta : depois lá fóra o menino , acostumado ao collo das creadas e aos recantos estofados , tinha medo do vento e das arvores : e pouco a pouco , n ' um passo desconsolado , os dois iam pisando em silencio as folhas seccas -- o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo , o pae vergando os hombros pensativo , triste d' aquella fraqueza do filho ... Mas o menor esforço d' elle para arrancar o rapaz áquelles braços de mãe que o amolleciam , áquella cartilha mortal do padre||_Vasques Vasques|_Vasques -- trazia logo á delicada senhora accessos de febre . E Affonso não se atrevia já a contrariar a pobre doente , tão virtuosa , e que o amava tanto ! Ia então lamentar-se para o pé da tia||_Fanny Fanny|_Fanny : a sabia irlandeza mettia os oculos entre as folhas do seu livro , tratado d' Addisson ou poema de Pope , e encolhia melancolicamente os hombros . Que podia ella fazer ! ... Por fim a tosse de Maria Eduarda foi augmentando -- como a tristeza das suas palavras . Já fallava da " sua ambição derradeira " , que era ver o sol uma vez mais ! Por que não voltariam a Bemfica , ao seu lar , agora que o sr.||_Infante Infante|_Infante estava tambem desterrado e que havia uma grande paz ? Mas a isso Affonso não cedeu : não queria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas -- e os soldados do sr.||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro não lhe davam mais garantias que os malsins do sr.||_D._Miguel D.|_D._Miguel Miguel|_D._Miguel . Por esse tempo veio um grave desgosto á casa : a tia||_Fanny Fanny|_Fanny morreu , d' uma pneumonia , nos frios de março ; e isto ennegreceu mais a melancolia de Maria Eduarda , que a amava muito tambem -- por ser irlandeza e catholica . Para a distrahir , Affonso levou-a para a Italia , para uma deliciosa villa ao pé de Roma . Ahi não lhe faltava o sol : tinha-o ponctual e generoso todas as manhãs , banhando largamente os terraços , dourando loureiraes e myrtos . E depois , lá em baixo , entre marmores , estava a coisa preciosa e santa , o Papa ! Mas a triste senhora continuava a choramigar . O que realmente appetecia era Lisboa , as suas novenas , os santos devotos do seu bairro , as procissões passando n ' um rumor de pachorrenta penitencia por tardes de sol e de poeira ... Foi necessario calmal-a , voltar a Bemfica . Ahi começou uma vida desconsolada . Maria Eduarda definhava lentamente , todos os dias mais pallida , levando semanas immovel sobre um canapé , com as mãos transparentes cruzadas sobre as suas grossas pelles d' Inglaterra . O padre||_Vasques Vasques|_Vasques , apoderando-se d' aquella alma aterrada para quem Deus era um amo feroz , tornára- se o grande homem da casa . De resto Affonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras canonicas , de capote e solideo , em que reconhecia antigos franciscanos , ou algum magro capuchinho parasitando no bairro ; a casa tinha um bafio de sachristia ; e dos quartos da senhora vinha constantemente , dolente e vago , um rumor de ladainha . Todos aquelles santos varões comiam , bebiam o seu vinho do Porto na copa . As contas do administrador appareciam sobrecarregadas com as mesadas piedosas que dava a senhora : um Frei Patricio surripiára- lhe duzentas missas de cruzado por alma do Sr.||_D._José_I D.|_D._José_I José|_D._José_I I|_D._José_I ... Esta carolice que o cercava ia lançando Affonso n ' um atheismo rancoroso : quereria as egrejas fechadas como os mosteiros , as imagens escavacadas a machado , uma matança de reverendos ... Quando sentia na casa a voz de resas , fugia , ia para o fundo da quinta , sob as trepadeiras do mirante , ler o seu Voltaire : ou então partia a desabafar com o seu velho amigo , o coronel Sequeira , que vivia n ' uma quinta a Queluz . O Pedrinho no entanto estava quasi um homem . Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda , tendo pouco da raça , da força dos Maias ; a sua linda face oval d' um trigueiro calido , dois olhos maravilhosos e irresistiveis ; promptos sempre a humedecer-se , faziam-n* ' o assemelhar a um bello arabe . Desenvolvera-se lentamente , sem curiosidades , indifferente a brinquedos , a animaes , a flores , a livros . Nenhum desejo forte parecera jámais vibrar n ' aquella alma meia adormecida e passiva : só às vezes dizia que gostaria muito de voltar para a Italia . Tomára birra ao Padre||_Vasques Vasques|_Vasques , mas não ousava desobedecer-lhe . Era em tudo um fraco ; e esse abatimento continuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços em crises de melancolia negra , que o traziam dias e dias mudo , murcho , amarello , com as olheiras fundas e já velho . O seu unico sentimento vivo , intenso , até ahi , fôra a paixão pela mãe . Affonso quizera-o mandar para Coimbra . Mas , á idéa de se separar do seu Pedro , a pobre senhora cahira de joelhos deante d' Affonso , balbuciando e tremendo : e elle , naturalmente , lá cedeu perante essas mãos supplicantes , essas lagrimas que cahiam quatro a quatro pela pobre face de cera . O menino continuou em Bemfica dando os seus lentos passeios a cavallo , de creado de farda atraz , começando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa ... Depois foi despontando n ' aquella organisação uma grande tendencia amorosa : aos dezenove annos teve o seu bastardosinho . Affonso da Maia consolava-se pensando que , apesar de tão desgraçados mimos , não faltavam ao rapaz qualidades : era muito esperto , são , e , como todos os Maias , valente : não havia muito que elle só , com um chicote , dispersara na estrada tres saloios de varapau que lhe tinham chamado palmito . Quando a mãe morreu , n ' uma agonia terrivel de devota , debatendo-se dias nos pavores do inferno , Pedro teve na sua dôr os arrebatamentos d' uma loucura . Fizera a promessa hysterica , se ella escapasse , de dormir durante um anno sobre as lageas do pateo : e levado o caixão , sahidos os padres , cahio n ' uma angustia soturna , obtusa , sem lagrimas , de que não queria emergir , estirado de bruços sobre a cama n ' uma obstinação de penitente . Muitos mezes ainda não o deixou uma tristeza vaga : e Affonso da Maia já se desesperava de ver aquelle rapaz , seu filho e seu herdeiro , sahir todos os dias a passos de monge , lugubre no seu luto pesado , para ir visitar a sepultura da mamã ... Esta dôr exagerada e morbida cessou por fim ; e succedeu-lhe , quasi sem transição , um periodo de vida dissipada e turbulenta , estroinice banal , em que Pedro , levado por um romantismo torpe , procurava affogar em lupanares e botequins as saudades da mamã . Mas essa exhuberancia anciosa que se desencadeara tão subitamente , tão tumultuosamente , na sua natureza desequilibrada , gastou-se depressa tambem . Ao fim d' um anno de disturbios no Marrare , de façanhas nas esperas de toiros , de cavallos esfalfados , de pateadas em S. Carlos , começaram a reapparecer as antigas crises de melancolia nervosa ; voltavam esses dias taciturnos , longos como desertos , passados em casa a bocejar pelas salas , ou sob alguma arvore da quinta todo estirado de bruços , como despenhado n ' um fundo de amargura . N ' esses periodos tornava-se tambem devoto : lia Vidas de Santos , visitava o Lausperenne : eram d' esses bruscos abatimentos d' alma que outr'ora levavam os fracos aos mosteiros . Isto penalisava Affonso da Maia : preferia saber que elle recolhera de Lisboa , de madrugada , exhausto e bebedo , -- do que vel- o , de ripanço debaixo do braço , com um ar velho , marchando para a Egreja de Bemfica . E havia agora uma idéa que , a seu pesar , às vezes o torturava : descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher , um Runa , de quem existia um retrato em Bemfica : este homem extraordinario , com que na casa se mettia medo ás creanças , enlouquecera -- e julgando-se Judas enforcara-se n ' uma figueira ... Mas um dia , excessos e crises findaram . Pedro da Maia amava ! Era um amor á Romeu , vindo de repente n ' uma troca de olhares fatal e deslumbradora , uma d' essas paixões que assaltam uma existencia , a assolam como um furacão , arrancando a vontade , a rasão , os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abysmos . N ' uma tarde , estando no Marrare , vira parar defronte , á porta de M . me Levaillant , uma caleche azul onde vinha um velho de chapéo branco , e uma senhora loira , embrulhada n ' um chale de Cashmira . O velho , baixote e reforçado , de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo , uma face tisnada d' antigo embarcadiço e o ar gôche , desceu todo encostado ao trintanario como se um rheumatismo o tolhesse , entrou arrastando a perna o portal da modista ; e ella voltando de vagar a cabeça olhou um momento o Marrare . Sob as rosinhas que ornavam o seu chapeu preto os cabellos loiros , d' um oiro fulvo , ondeavam de leve sobre a testa curta e classica : os olhos maravilhosos illuminavam-n* ' a toda ; a friagem fazia-lhe mais pallida a carnação de marmore : e com o seu perfil grave de estatua , o modelado nobre dos hombros e dos braços que o chale cingia -- pareceu a Pedro n ' esse instante alguma cousa d' immortal e superior á terra . Não a conhecia . Mas um rapaz alto , macilento , de bigodes negros , vestido de negro , que fumava encostado á outra hombreira , n ' uma pose de tedio -- vendo o violento interesse de Pedro , o olhar acceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima , veiu tomar-lhe o braço , murmurou-lhe junto á face na sua voz grossa e lenta : -- Queres que te diga o nome , meu Pedro ? O nome , as origens , as datas e os feitos principaes ? E pagas ao teu amigo Alencar , ao teu sequioso Alencar , uma garrafa de Champagne ? Veiu o Champagne . E o Alencar , depois de passar os dedos magros pelos anneis da cabelleira e pelas pontas do bigode , começou , todo recostado e dando um puchão aos punhos : -- Por uma dourada tarde d' outomno ... -- André , gritou Pedro ao creado , martellando o marmore da mesa , retira o Champagne ! O Alencar bradou , imitando o actor Epiphanio : -- O quê ! Sem saciar a avidez de meu labio ? ... Pois bem , o Champagne ficaria : mas o amigo Alencar , esquecendo que era o poeta das Vozes d'Aurora , explicaria aquella gente da caleche azul n ' uma linguagem christã e pratica ! ... -- Ahi vae , meu Pedro , ahi vae ! Havia dois annos , justamente quando Pedro perdera a mamã , aquelle velho , o papá Monforte , uma manhã rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa n ' aquella mesma caleche com essa bella filha ao seu lado . Ninguem os conhecia . Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas ; e a rapariga principiou a apparecer em S. Carlos , fazendo uma impressão -- uma impressão de causar aneurismas , dizia o Alencar ! Quando ella atravessava o salão os hombros vergavam-se no deslumbramento de auréola que vinha d' aquella magnifica creatura , arrastando com um passo de Deusa a sua cauda de côrte , sempre decotada como em noites de gala , e apesar de solteira resplandecente de joias . O papá nunca lhe dava o braço : seguia atraz , entalado n ' uma grande gravata branca de mordomo , parecendo mais tisnado e mais embarcadiço na claridade loira que sahia da filha , encolhido e quasi apavorado , trazendo nas mãos o oculo , o libretto , um saco de bonbons , o leque e o seu proprio guardachuva . Mas era no camarote , quando a luz cahia sobre o seu collo eburneo e as suas tranças de oiro , que ella offerecia verdadeiramente a encarnação d' um ideal da Renascença , um modelo de Ticiano ... Elle , Alencar , na primeira noite em que a vira , exclamara , mostrando-a a ella e ás outras , ás trigueirotas da assignatura : -- Rapazes ! é como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo do Sr.||_D._João_VI D.|_D._João_VI João|_D._João_VI VI|_D._João_VI ! O Magalhães , esse torpe pirata , pozera o dito n ' um folhetim do Portuguez . Mas o dito era d' elle , Alencar ! Os rapazes , naturalmente , começaram logo a rondar o palacete de Arroios . Mas nunca n ' aquella casa se abria uma janella . Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria , e que o senhor se chamava Manoel . Emfim uma creada , amaciada com seis pintos , soltou mais : o homem era taciturno , tremia deante da filha , e dormia n ' uma rêde ; a senhora , essa , vivia n ' um ninho de sedas todo azul-ferrête , e passava o seu dia a ler novellas . Isto não podia satisfazer a sofreguidão de Lisboa . Fez-se uma devassa methodica , habil , paciente ... Elle , Alencar , pertencera á devassa . E souberam-se horrores . O papá Monforte era dos Açores ; muito moço , uma facada n ' uma rixa , um cadaver a uma esquina tinham-n* ' o forçado a fugir a bordo d' um brigue americano . Tempos depois um certo Silva , procurador da casa de Taveira , que o conhecera nos Açores , estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrára lá o Monforte ( que verdadeiramente se chamava Forte ) rondando pelo caes , de chinellas de esparto , á procura de embarque para a Nova-Orleans . Aqui havia uma treva na historia do Monforte . Parece que servira algum tempo de feitor n ' uma plantação da Virginia ... Emfim , quando reappareceu á face dos céos commandava o brigue Nova Linda , e levava cargas de pretos para o Brazil , para a Havana e para a Nova Orleans . Escapara aos cruzeiros inglezes , arrancára uma fortuna da pelle do africano , e agora rico , homem de bem , proprietario , ia ouvir a Corelli a S. Carlos . Todavia esta terrivel chronica , como dizia o Alencar , obscura e mal provada , claudicava aqui e além ... -- E a filha ? perguntou Pedro , que o escutara , serio e pallido . Mas isso não o sabia o amigo Alencar . Onde a arranjara assim tão loira e bella ? Quem fôra a mamã ? Onde estava ? Quem a ensinara a embrulhar-se com aquelle gesto real no seu chale de Cashmira ? ... -- Isso , meu Pedro , são mysterios que jámais poude Lisboa astuta devassar e só Deus sabe ! Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquella legenda de sangue e negros , o enthusiasmo pela Monforte calmou . Que diabo ! Juno tinha sangue de assassino , a beltà do Ticiano era filha de negreiro ! As senhoras , deliciando-se em villipendiar uma mulher tão loira , tão linda e com tantas joias , chamaram-lhe logo a negreira ! Quando ella apparecia agora no theatro , D. Maria da Gama affectava esconder a face detraz do leque , porque lhe parecia ver na rapariga ( sobretudo quando ella usava os seus bellos rubis ) o sangue das facadas que dera o papázinho ! E tinham-n* ' a calumniado abominavelmente . Assim , depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno , os Monfortes sumiram-se : pois disse-se logo , com furor , que estavam arruinados , que a policia perseguia o velho , mil perversidades ... O excellente Monforte , que soffre de rheumatismos articulares , achava-se tranquillamente , ricamente , tomando as aguas dos Piryneus ... Fora lá que o Mello os conhecera ... -- Ah ! o Mello conhece-os ? exclamou Pedro . -- Sim , meu Pedro , o Mello os conhece . Pedro d' ahi a um momento deixou o Marrare ; e n ' essa noite , antes de recolher , apesar da chuva fria e miuda , andou rondando uma hora , com a imaginação toda accesa , o palacete dos Vargas apagado e mudo . Depois , d' ahi a duas semanas o Alencar , entrando em S. Carlos ao fim do primeiro acto do Barbeiro , ficou assombrado ao ver Pedro da Maia installado na frisa da Monforte , á frente , ao lado de Maria , com uma camelia escarlate na casaca -- egual ás d' um ramo pousado no rebordo de velludo . Nunca Maria Monforte apparecera mais bella : tinha uma d' essas toilettes excessivas e theatraes que offendiam Lisboa , e faziam dizer ás senhoras que ella se vestia " como uma comica " . Estava de seda côr de trigo , com duas rosas amarellas e uma espiga nas tranças , opalas sobre o collo e nos braços ; e estes tons de ceara madura batida do sol , fundindo-se com o ouro dos cabellos , illuminando-lhe a carnação eburnea , banhando as suas fórmas de estatua , davam-lhe o esplendor d' uma Ceres . Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello , que conversava de pé com o papá Monforte -- escondido como sempre no canto negro da frisa . O Alencar foi observar " o caso " do camarote dos Gamas . Pedro voltára á sua cadeira , e de braços cruzados contemplava Maria . Ella conservou algum tempo a sua attitude de Deusa insensivel ; mas , depois , no duetto de Rosina e Lindor , duas vezes os seus olhos azues e profundos se fixaram n ' elle , gravemente e muito tempo . O Alencar , correu ao Marrare , de braços ao ar , a berrar a novidade . Não tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira . Elle tambem namorou-a publicamente , á antiga , plantado a uma esquina , defronte do palacete dos Vargas , com os olhos cravados na janella d' ella , immovel e pallido d' extasi . Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel -- poemas desordenados que ia compôr para o Marrare : e ninguem lá ignorava o destino d' aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam deante d' elle sobre o taboleiro da genebra . Se algum amigo vinha á porta do café perguntar por Pedro da Maia , os criados já respondiam muito naturalmente : -- O sr.||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro ? Está a escrever á menina . E elle mesmo , se o amigo se acercava , estendia-lhe a mão , exclamava radiante , com o seu bello e franco sorriso : -- Espera ahi um bocado , rapaz , estou a escrever á Maria ! Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Bemfica , sobretudo o Villaça , o administrador dos Maias , muito zeloso da dignidade da casa , não tardaram em lhe trazer a nova d' aquelles amores do Pedrinho . Affonso já os suspeitava : via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camelias do jardim ; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro , dirigindo-se ao quarto do menino , a cheirar regaladamente o perfume d' um enveloppe com sinete de lacre dourado ; -- e não lhe desagradava que um sentimento qualquer , humano e forte , lhe fosse arrancando o filho á estroinice bulhenta , ao jogo , ás melancolias sem rasão em que reapparecia o negro ripanço ... Mas ignorava o nome , a existencia sequer dos Monfortes ; e as particularidades que os amigos lhe revelaram , aquella facada nos Açores , o chicote de feitor na Virginia , o brigue Nova Linda , toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Affonso da Maia . Uma noite que o coronel Sequeira , á mesa do whist , contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavallo , " ambos muito bem e muito distingués " , Affonso , depois d' um silencio , disse com um ar enfastiado : -- Emfim , todos os rapazes teem as suas amantes ... Os costumes são assim , a vida é assim , e seria absurdo querer reprimir taes cousas . Mas essa mulher , com um pae d' esses , mesmo para amante acho má . O Villaça suspendeu o baralhar das cartas , e ageitando os oculos d' ouro exclamou com espanto : -- Amante ! Mas a rapariga é solteira , meu senhor , é uma menina honesta ! ... Affonso da Maia enchia o seu cachimbo ; as mãos começaram a tremer-lhe ; e voltando-se para o administrador , n ' uma voz que tremia um pouco tambem : -- O Villaça de certo não suppõe que meu filho queira casar com essa creatura ... O outro emmudeceu . E foi o Sequeira que murmurou : -- Isso não , está claro que não ... E o jogo continuou algum tempo em silencio . Mas Affonso da Maia principiou a andar descontente . Passavam-se semanas que Pedro não jantava em Bemfica . De manhã , se o via , era um momento , quando elle descia ao almoço , já com uma luva calçada , apressado e radiante , gritando para dentro se estava sellado o cavallo ; depois , mesmo de pé , bebia um gole de chá , perguntava a correr " se o papá queria alguma cousa " , dava um geito ao bigode deante do grande espelho de Veneza sobre o fogão , e lá partia , enlevado . Outras vezes todo o dia não sahia do quarto : a tarde descia , accendiam-se as luzes ; até que o pae , inquieto , subia , ia encontral- o estirado sobre o leito , com a cabeça enterrada nos braços . -- Que tens tu ? -- perguntava-lhe . -- Enchaqueca , -- respondia n ' um tom surdo e rouco . E Affonso descia indignado , vendo em toda aquella angustia covarde alguma carta que não viera , ou talvez uma rosa offerecida que não fôra posta nos cabellos ... Depois , por vezes , entre dois robbers ou conversando em volta da bandeja do chá , os seus amigos tinham observações que o inquietavam , partindo d' aquelles homens que habitavam Lisboa , lhe conheciam os rumores -- emquanto elle passava alli , inverno e verão , entre os seus livros e as suas rosas . Era o excellente Sequeira que perguntava porque não faria Pedro uma viagem longa , para se instruir , á Allemanha , ao Oriente ? Ou o velho Luiz Runa , o primo d' Affonso , que , a proposito de cousas indifferentes , rompia lamentando os tempos em que o Intendente da policia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas ... Evidentemente alludiam á Monforte , evidentemente julgavam-n* ' a perigosa . No verão , Pedro partiu para Cintra ; Affonso soube que os Monfortes tinham lá alugado uma casa . Dias depois o Villaça appareceu em Bemfica , muito preoccupado : na vespera Pedro visitara-o no cartorio , pedira-lhe informações sobre as suas propriedades , sobre o meio de levantar dinheiro . Elle lá lhe dissera que em setembro , chegando á sua maioridade , tinha a legitima da mamã ... -- Mas não gostei d' isto , meu senhor , não gostei d' isto ... -- E porque , Villaça ? O rapaz quererá dinheiro , quererá dar presentes á creatura ... O amor é um luxo caro , Villaça . -- Deus queira que seja isso , meu senhor , Deus o ouça ! E aquella confiança tão nobre de Affonso da Maia no orgulho patricio , nos brios de raça de seu filho , chegava a tranquillisar Villaça . D ' ahi a dias , Affonso da Maia viu emfim Maria Monforte . Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz , e tomavam ambos o seu café no mirante , quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavallos cobertos de redes . Maria , abrigada sob uma sombrinha escarlate , trazia um vestido côr de rosa cuja roda , toda em folhos , quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao seu lado : as fitas do seu chapéo , apertadas n ' um grande laço que lhe enchia o peito , eram tambem côr de rosa : e a sua face , grave e pura como um marmore grego , apparecia realmente adoravel , illuminada pelos olhos d' um azul sombrio , entre aquelles tons rosados . No assento defronte , quasi todo tomado por cartões de modista , encolhia-se o Monforte , de grande chapéo panamá , calça de ganga , o mantelete da filha no braço , o guarda sol entre os joelhos . Iam callados , não viram o mirante ; e , no caminho verde e fresco , a caleche passou com balanços lentos , sob os ramos que roçavam a sombrinha de Maria . O Sequeira ficara com a chavena de café junto aos labios , de olho esgazeado , murmurando : -- Caramba ! É bonita ! Affonso não respondeu : olhava cabisbaixo aquella sombrinha escarlate , que agora se inclinava sobre Pedro , quasi o escondia , parecia envolvel- o todo -- como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste das ramas . O outono passou , chegou o inverno , frigidissimo . Uma manhã , Pedro entrou na livraria onde o pae estava lendo junto ao fogão ; recebeu-lhe a benção , passou um momento os olhos por um jornal aberto , e voltando-se bruscamente para elle : -- Meu pae , -- disse , esforçando-se por ser claro e decidido -- venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte . Affonso pousou o livro aberto sobre os joelhos , e n ' uma voz grave e lenta : -- Não me tinhas fallado d' isso ... Creio que é a filha d' um assassino , d' um negreiro , a quem chamam tambem a negreira ... -- Meu pae ! ... Affonso ergueu-se diante d' elle , rigido e inexoravel como a encarnação mesma da honra domestica . -- Que tens a dizer-me mais ? Fazes-me corar de vergonha . Pedro , mais branco que o lenço que tinha na mão , exclamou todo a tremer , quasi em soluços : -- Pois póde estar certo , meu pae , que hei de casar ! Sahiu , atirando furiosamente com a porta . No corredor gritou pelo escudeiro , muito alto para que o pae ouvisse , e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao hotel da Europa . Dois dias depois Villaça entrou em Bemfica , com as lagrimas nos olhos , contando que o menino casára n ' essa madrugada -- e segundo lhe dissera o Sergio , procurador do Monforte , ia partir com a noiva para a Italia . Affonso da Maia sentára- se n ' esse instante á mesa do almoço , posta ao pé do fogão : ao centro , um ramo esfolhava-se n ' um vaso do Japão , á chamma forte da lenha : e junto ao talher de Pedro estava o numero da Grinalda , jornal de versos que elle costumava receber ... Affonso ouviu o procurador , grave e mudo , continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo . -- Já almoçou , Villaça ? O procurador , assombrado d' aquella serenidade , balbuciou : -- Já almocei , meu senhor ... Então Affonso , apontando para o talher de Pedro , disse ao escudeiro : -- Póde tirar d' alli esse talher , Teixeira . D ' aqui por diante ha só um talher á mesa ... Sente-se , Villaça , sente-se . O Teixeira , ainda novo na casa , levantou com indifferença o talher do menino . Villaça sentára- se . Tudo em redor era correto e calmo como nas outras manhãs em que almoçara em Bemfica . Os passos do escudeiro não faziam ruido no tapete fofo ; o lume estalava alegremente , pondo retoques d' ouro nas pratas polidas ; o sol discreto que brilhava fóra no azul d' inverno fazia scintillar crystaes de geada nas ramas seccas ; e á janella o papagaio , muito patulêa e educado por Pedro , rosnava injurias aos Cabraes . Por fim Affonso ergueu-se ; esteve olhando abstrahidamente a quinta , os pavões no terrasso ; depois ao sahir da sala tomou o braço de Villaça , apoiou-se n ' elle com força , como se lhe tivesse chegado a primeira tremura da velhice , e no seu abandono sentisse alli uma amizade segura . Seguiram o corredor , callados . Na livraria Affonso foi occupar a sua poltrona ao pé da janella , começou a encher de vagar o seu cachimbo . Villaça , de cabeça baixa , passeava ao comprido das altas estantes , nas pontas dos pés , como no quarto d' um doente . Um bando de pardaes veiu gralhar um momento nos ramos d' uma alta arvore que roçava a varanda . Depois houve um silencio , e Affonso da Maia disse : -- Então , Villaça , o Saldanha lá foi demittido do Paço ? ... O outro respondeu , vaga e machinalmente : -- É verdade , meu senhor , é verdade ... E não se fallou mais de Pedro da Maia . Pedro e Maria , no entanto , n ' uma felicidade de novella , iam descendo a Italia , a pequenas jornadas , de cidade em cidade , n ' essa via sagrada que vae desde as flores e das messes da planicie lombarda até ao molle paiz de romanza , Napoles , branca sob o azul . Era lá que tencionavam passar o inverno , n ' esse ar sempre tepido junto a um mar sempre manso , onde as preguiças de noivado teem uma suavidade mais longa ... Mas um dia , em Roma , Maria sentiu o appetite de Paris . Parecia-lhe fatigante o viajar assim , aos balouços das caleças , só para ir ver lazzaroni engolir fios de macarrão . Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elyseos , e gozarem alli um lindo inverno de amor ! Paris estava seguro , agora , com o principe Luiz Napoleão ... Além d' isso , aquella velha Italia classica enfastiava-a já : tantos marmores eternos , tantas madonas começavam ( como ella dizia pendurada languidamente do pescoço de Pedro ) a dar tonturas á sua pobre cabeça ! Suspirava por uma boa loja de modas , sob as chammas do gaz , ao rumor do boulevard ... Depois tinha medo da Italia onde todo mundo conspirava . Foram para França . Mas por fim aquelle Paris ainda agitado , onde parecia restar um vago cheiro de polvora pelas ruas , onde cada face conservava um calor de batalha , desagradou a Maria . De noite accordava com a Marselheza ; achava um ar feroz á policia ; tudo permanecia triste ; e as duquezas , pobres anjos , ainda não ousavam vir ao Bois , com medo dos operarios , corja insaciavel ! Emfim demoraram-se lá até a primavera , no ninho que ella sonhára , todo de velludo azul , abrindo sobre os Campos Elyseos . Depois principiou a fallar-se de novo em revolução , em golpe d' estado . A admiração absurda de Maria pelos novos uniformes da garde- mobile fazia Pedro nervoso . E quando ella appareceu gravida , anciou por a tirar d' aquelle Paris batalhador e fascinante , vir abrigal- a na pacata Lisboa adormecida ao sol . Antes de partir porém escreveu ao pae . Fôra um conselho , quasi uma exigencia de Maria . A recusa de Affonso da Maia ao principio desesperara-a . Não a affligia a desunião domestica : mas aquelle não affrontoso de fidalgo puritano marcara muito publicamente , muito brutalmente , a sua origem suspeita ! Odiou o velho : e tinha apressado o casamento , aquella partida triumphante para Italia , para lhe mostrar bem que nada valiam genealogias , avós godos , brios de familia -- deante dos seus braços nus ... Agora porém que ia voltar a Lisboa , dar soirées , crear côrte , a reconciliação tornava-se indispensavel ; aquelle pae retirado em Bemfica , com o rigido orgulho de outras edades , faria lembrar constantemente , mesmo entre os seus espelhos e os seus estofos , o brigue Nova Linda carregado de negros ... E queria mostrar-se a Lisboa pelo braço d' esse sogro tão nobre e tão ornamental , com as suas barbas de Viso-rei . -- Dize-lhe que já o adoro , murmurava ella curvada sobre a escrivaninha acariciando os cabellos de Pedro . Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei de pôr o nome d' elle ... Escreve-lhe uma carta bonita , hein ! E foi bonita , foi terna a carta de Pedro ao papá . O pobre rapaz amava-o . Fallou- lhe commovido da esperança de ter um filho varão ; as desintelligencias deviam findar em torno do berço d' aquelle pequeno Maia que alli vinha , morgado e herdeiro do nome ... Contava-lhe a sua felicidade , com uma effusão de namorado indiscreto : a historia da bondade de Maria , das suas graças , da sua instrucção , enchia duas paginas : e jurava-lhe que apenas chegasse não tardaria uma hora em ir atirar-se aos seus pés ... Com effeito , apenas desembarcou , correu n ' um trem a Bemfica . Dois dias antes o pae partira para S . ta Olavia : isto pareceu-lhe uma desfeita -- e feriu-o acerbamente . Fez-se então entre o pae e o filho uma grande separação . Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lh'o participou -- dizendo dramaticamente ao Villaça " que já não tinha pae ! " Era uma linda bébé , muito gorda , loira e côr de rosa , com os bellos olhos negros dos Maias . Apesar do desejo de Pedro , Maria não a quiz crear ; mas adorava-a com phrenesi ; passava dias de joelhos ao pé do berço , em extasi , correndo as suas mãos cheias de pedrarias pelas carninhas tenras ; pondo-lhe beijos de devota nos pésinhos , na rosquinha das côxas , balbuciando-lhe n ' um enlevo nomes de grande amor , e perfumando-a já , enchendo-a já de laçarotes . E n ' estes delirios pela filha , brotava , mais amarga , a sua colera contra Affonso da Maia . Considerava-se então insultada em si mesma e n ' aquelle cherubim que lhe nascera . Injuriava o velho grosseiramente , chamava-lhe o D. Fuas , o Barbatanas ... Pedro um dia ouviu isto , e escandalisou-se : ella replicou desabridamente : e deante d' aquella face abrazada , onde entre lagrimas os olhos azues pareciam negros de colera , elle só poude balbuciar timidamente : -- É meu pae , Maria ... Seu pae ! E á face de toda a Lisboa tratava-a então como uma concubina ! Podia ser um fidalgo , as maneiras eram de villão . Um D. Fuas , um Barbatanas , nada mais ! ... Arrebatou a filha , e abraçada n ' ella , romperam as queixas por entre os prantos : -- Ninguem nos ama , meu anjo ! Ninguem te quer ! Tens só a tua mãe ! Tratam-te como se fosses bastarda ! A bebé , sacudida nos braços da mãe , desatou a gritar . Pedro correu , envolveu-as ambas no mesmo abraço , já enternecido , já humilde ; e tudo terminou n ' um longo beijo . E elle , por fim , no seu coração , justificava aquella colera de mãe que vê desprezado o seu anjo . De resto , mesmo alguns amigos de Pedro , o Alencar , o D. João da Cunha , que começavam agora a frequentar Arroios , riam d' aquella obstinação de pae gothico , amuado na provincia , porque sua nora não tivera avós mortos em Aljubarrota ! E onde havia outra em Lisboa , com aquellas toilettes , aquella graça , recebendo tão bem ? Que diabo , o mundo marchara , sahira-se já das attitudes empertigadas do seculo XVI ! E o proprio Villaça , um dia que Pedro lhe fôra mostrar a pequerruchinha adormecida entre as rendas do seu berço , sensibilisou-se , veio-lhe uma das suas faceis lagrimas , declarou , com a mão no coração , que aquillo era uma caturrice do sr.||_Affonso Affonso|_Affonso da Maia ! -- Pois peior para elle ! não querer ver um anjo d' estes ! disse Maria , dando deante do espelho um lindo geito ás flores do cabello . Tambem não faz cá falta ... E não fazia falta . N ' esse outubro , quando a pequena completou o seu primeiro anno , houve um grande baile na casa de Arroios , que elles agora occupavam toda , e que fôra ricamente remobilada . E as senhoras que outr'ora tinham horror á negreira , a D. Maria da Gama que escondia a face por traz do leque , lá vieram todas , amaveis e decotadas , com o beijinho prompto , chamando-lhe " querida " , admirando as grinaldas de camelias que emmolduravam os espelhos de quatrocentos mil réis , e gozando muito os gelados . Começara então uma existencia festiva e luxuosa , que , segundo dizia o Alencar , o intimo da casa , o cortesão de Madame , " tinham um saborsinho d' orgia distinguée como os poemas de Byron . " Eram realmente as soirées mais alegres de Lisboa : ceiava-se á uma hora com Champagne ; talhava-se até tarde um monte forte ; inventavam-se quadros vivos , em que Maria se mostrara soberanamente bella sob as roupagens classicas de Helena ou no luxo sombrio do luto oriental de Judith . Nas noites mais intimas , ella costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha perfumada . Muitas vezes , na sala de bilhar , as palmas estalaram , vendo-a bater á carambola franceza D. João da Cunha , o grande taco da epoca . E no meio d' esta festança , atravessada pelo sopro romantico da Regeneração , lá se via sempre , taciturno e encolhido , o papá Monforte , d' alta gravata branca , com as mãos atraz das costas , rondando pelos cantos , refugiado pelos vãos das janellas , mostrando-se só para salvar alguma bobèche que ía estalar -- e não desprendendo nunca da filha o olho embevecido e senil . Nunca Maria fôra tão formosa . A maternidade dera-lhe um esplendor mais copioso ; e enchia verdadeiramente , dava luz áquellas altas salas de Arroios , com a sua radiante figura de Juno loira , os diamantes das tranças , o eburneo e o lacteo do collo nu , e o rumor das grandes sedas . Com rasão , querendo ter , á maneira das damas da Renascença , uma flôr que a symbolisasse , escolhera a tulipa real opulenta e ardente . Citavam-se os requintes do seu luxo , roupas brancas , rendas do valor de propriedades ! ... Podia fazel- o ! o marido era rico , e ella sem escrupulo arruinal- o-hia , a elle e ao papá Monforte ... Todos os amigos de Pedro , naturalmente , a amavam . O Alencar esse proclamava-se com alarido seu " cavalleiro e seu poeta " . Estava sempre em Arroios , tinha lá o seu talher : por aquellas salas soltava as suas phrases ressoantes , por esses sophás arrastava as suas poses de melancolia . Ia dedicar a Maria ( e nada havia mais extraordinario que o tom langoroso e plangente , o olho turvo , fatal , com que elle pronunciava este nome -- Maria ! ) ia dedicar-lhe o seu poema , tão annunciado , tão esperado -- Flor de Martyrio ! E citavam-se as estrophes que lhe fizera ao gosto cantante do tempo : Vi-te essa noite no explendor das sallas Com as loiras tranças volteando louca ... A paixão do Alencar era innocente : mas , dos outros intimos da casa , mais d' um de certo balbuciara já a sua declaração no boudoir azul em que ella recebia ás tres horas , entre os seus vasos de tulipas ; as suas amigas porém , mesmo as peiores , affirmavam que os seus favores nunca teriam passado de alguma rosa dada n ' um vão de janella , ou de algum longo e suave olhar por traz do leque . Pedro todavia começava a ter horas sombrias . Sem sentir ciumes , vinha-lhe às vezes , de repente , um tedio d' aquella existencia de luxo e de festa , um desejo violento de sacudir da sala esses homens , os seus intimos , que se atropellavam assim tão ardentemente em volta dos hombros decotados de Maria . Refugiava-se então n ' algum canto , trincando com furor o charuto : e ahi , era em toda a sua alma um tropel de cousas dolorosas e sem nome ... Maria sabia perceber bem na face do marido " estas nuvens " , como ella dizia . Corria para elle , tomava-lhe ambas as mãos , com força , com dominio : -- Que tens tu , amor ? Estás amuado ! -- Não , não estou amuado ... -- Olha então para mim ! ... Collava o seu bello seio contra o peito d' elle ; as suas mãos corriam-lhe os braços n ' uma caricia lenta e quente , dos pulsos aos hombros ; depois , com um lindo olhar , estendia-lhe os labios . Pedro colhia n ' elles um longo beijo , e ficava consolado de tudo . Durante esse tempo Affonso da Maia não sahia das sombras de St.a Olavia , tão esquecido para lá como se estivesse no seu jazigo . Já se não fallava d' élle ; em Arroios , D. Fuas estava roendo a teima . Só Pedro às vezes perguntava a Villaça " como ia o papá . " E as noticias do administrador enfureciam sempre Maria : o papá estava optimo ; tinha agora um cosinheiro francez explendido ; St.a Olavia enchera-se de hospedes , o Sequeira , André da Ega , D. Diogo Coutinho ... -- O Barbatanas trata-se ! ia elle dizer ao pae com rancor . E o velho negreiro esfregava as mãos , satisfeito de o saber assim feliz em St.a Olavia ; porque nunca cessara de tremer á idéa de ver em Arroios , deante de si , aquelle fidalgo tão severo e de vida tão pura . Quando porém Maria teve outro filho , um pequeno , o socego que então se fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente ao coração de Pedro a imagem do pae abandonado n ' aquella tristeza do Douro . Fallou a Maria de reconciliação , a medo , aproveitando a fraqueza da convalescença . E a sua alegria foi grande , quando Maria , depois de ficar um momento pensativa , respondeu : -- Creio que me havia de fazer feliz tel- o aqui ... Pedro , enthusiasmado com um assentimento tão inesperado , pensou em abalar para St.a Olavia . Mas ella tinha um plano melhor : Affonso , segundo dizia o Villaça , devia recolher em breve a Bemfica ; pois bem , ella iria lá com o pequeno , toda vestida de preto , e de repente , atirando-se-lhe aos pés , lhe-hia a benção para seu neto ! Não podia falhar ! Não podia , realmente ; e Pedro viu alli uma alta inspiração de maternidade ... Para abrandar desde jà o papá , Pedro quiz dar ao pequeno o nome de Affonso . Mas n ' isso Maria não consentiu . Andava lendo uma novella de que era heroe o ultimo Stuart , o romanesco principe Carlos Eduardo ; e , namorada d' elle , das suas aventuras e desgraças , queria dar esse nome a seu filho ... Carlos Eduardo da Maia ! Um tal nome parecia-lhe conter todo um destino de amores e façanhas . O baptisado teve de ser retardado ; Maria adoecera com uma angina . Foi muito benigna porém ; e d' ahi a duas semanas Pedro podia já sahir para uma caçada na sua quinta da Tojeira , adiante d' Almada . Devia demorar-se dois dias . A partida arranjara-se unicamente para obsequiar um italiano , chegado por então a Lisboa , distincto rapaz que lhe fôra apresentado pelo secretario da Legação Ingleza , e com quem Pedro sympathisara vivamente ; dizia-se sobrinho dos Principes de Soria ; e vinha fugido de Napoles , onde conspirára contra os Bourbons e fôra condemnado á morte . O Alencar e D. João Coutinho iam tambem á caçada -- e a partida foi de madrugada . N ' essa tarde , Maria jantava só no seu quarto , quando sentiu carruagens parando á porta , um grande rumor encher a escada ; quasi immediatamente Pedro apparecia-lhe tremulo e enfiado : -- Uma grande desgraça , Maria ! -- Jesus ! -- Feri o rapaz , feri o napolitano ! ... -- Como ? Um desastre estupido ! ... Ao saltar um barranco , a espingarda dispara-se-lhe , e a carga , zás , vae cravar-se no napolitano ! Não era possivel fazer curativos na Tojeira , e voltaram logo a Lisboa . Elle naturalmènte não consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao hotel : trouxera-o para Arroios , para o quarto verde por cima , mandara chamar o medico , duas enfermeiras para o velar , e elle mesmo lá ia passar a noite ... -- E elle ? -- Um heroe ! ... Sorri , diz que não é nada , mas eu vejo-o pallido como um morto . Um rapaz adoravel ! Isto só a mim , Senhor ! E então o Alencar que ia mesmo ao pé d' elle ... Podia antes ter ferido o Alencar , um rapaz intimo , de confiança ! até a gente se ria . Mas não , zás , logo o outro , o de cerimonia ... Uma sege , n ' esse instante , entrava o pateo . -- É o medico ! E Pedro abalou . Voltou , d' ahi a pouco mais tranquillo . O Dr. Guedes quasi rira d' aquella bagatella , uma chumbada no braço , e alguns grãos perdidos nas costas . Promettera- lhe que d' ahi a duas semanas podia caçar outra vez na Tojeira ; e o principe estava já fumando o seu charuto . Bello rapaz ! Parecia sympathisar com o papá Monforte ... Toda essa noite Maria dormiu mal , na excitação vaga que lhe dava aquella idéa d' um principe enthusiasta , conspirador , condemnado á morte , ferido agora por cima do seu quarto . Logo de manhã cedo -- apenas Pedro sahira a fazer transportar , elle mesmo , do hotel , as bagagens do napolitano -- Maria mandou a sua criada franceza de quarto , uma bella moça d' Arles , acima , saber da parte d' ella como S. Alteza passara , e " ver que figura tinha " . A arlesiana appareceu , com os olhos brilhantes , a dizer á senhora , nos seus grandes gestos de Provençal , que nunca vira um homem tão formoso ! Era uma pintura de Nosso Senhor||_Jesus_Christo Jesus|_Jesus_Christo Christo|_Jesus_Christo ! Que pescoço , que brancura de marmore ! Estava muito pallido ainda ; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia ; e ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros ... Maria , desde então , não pareceu interessar-se mais pelo ferido . Era Pedro que vinha , a cada instante , fallar-lhe d' elle , enthusiasmado por aquella existencia pathetica de principe conspirador , partilhando já o seu odio aos Bourbons , encantado com a similitude de gostos que encontrava n ' elle , o mesmo amor da caça , dos cavallos , das armas . Agora logo de manhã , subia para o quarto do Principe , de robe-de-chambre , e cachimbo na boca , e passava lá horas n ' uma camaradagem , fazendo grogs quentes -- permittidos pelo Dr. Guedes . Levava mesmo para lá os seus amigos , o Alencar , o D. João da Cunha . Maria sentia-lhes por cima as risadas . Ás vezes tocava-se viola . E o velho Monforte , pasmado para o heroe , não cessava de lhe rondar o leito . A Arlesiana , essa , tambem a cada momento apparecia lá a levar toalhas de rendas , um assucareiro que ninguem reclamara , ou algum vaso com flores para alegrar a alcova ... Maria , por fim , perguntou a Pedro , muito seria , se além de todos os amigos da casa , duas enfermeiras , dois escudeiros , o papá e elle Pedro -- era necessaria tambem constantemente a sua propria criada no quarto de Sua Alteza ! Não era . Mas Pedro riu muito á idea de que a Arlesiana se tivesse namorado do principe . N ' esse caso Venus era-lhe propicia ! O napolitano tambem a achava picante : un très joli brin de femme , tinha elle dito . A bella face de Maria impallideceu de colera . Julgava tudo isso de mau gosto , grosseiro , impudente ! Pedro fôra realmente um doido em trazer assim para a intimidade de Arroios um estrangeiro , um fugido , um aventureiro ! Demais , aquella troça em cima , entre grogs quentes , com guitarra , sem respeito por ella ainda toda nervosa , toda fraca da convalescença , indignava-a ! Apenas Sua Alteza podesse accommodar-se com almofadas n ' uma sege , queria-o fóra , na estalagem ... -- O que ahi vae ! Jesus ! o que ahi vae ! ... disse Pedro . -- É assim . E de certo foi muito severa tambem com a Arlesianna , por que n ' essa tarde Pedro encontrou a moça aos ais no corredor , limpando ao avental os olhos affogueados . D ' ahi a dias , porém , o napolitano , já convalescente , quiz recolher ao seu hotel . Não vira Maria : mas em agradecimento da sua hospitalidade mandou-lhe um admiravel ramo , e , com uma galanteria de principe artista da Renascença , um soneto em italiano enrolado entre as flores e tão perfumado como ellas : comparava-a a uma nobre dama da Syria dando a gota de agua da sua bilha ao cavalleiro arabe , ferido na estrada ardente ; comparava-a á Beatriz do Dante . Isto affigurou-se a todos de uma rara distincção , e , como disse o Alencar , um rasgo á Byron . Depois , na soirée do baptisado de Carlos Eduardo , dada d' ahi a uma semana , o napolitano mostrou-se , e impressionou tudo . Era um homem esplendido , feito como um Apollo , de uma pallidez de marmore rico : a sua barba curta e frisada , os seus longos cabellos castanhos , cabellos de mulher , ondeados e com reflexos de ouro , apartados á nazarena -- davam-lhe realmente , como dizia a Arlesianna , uma physionomia de bello Christo . Dançou apenas uma contradança com Maria , e pareceu , na verdade , um pouco taciturno e orgulhoso : mas tudo n ' elle fascinava , a sua figura , o seu mysterio , até o seu nome de Tancredo . Muitos corações de mulher palpitavam quando elle , encostado a uma hombreira , de claque na mão , uma melancolia na face , exhalando o encanto pathetico de um condemnado á morte , derramava lentamente pela sala o langor sombrio do seu olhar de velludo . A marqueza d' Alvenga , para o examinar de perto , pediu o braço a Pedro , e foi applicar-lhe , como a um marmore de museo , a sua luneta de ouro . -- É de appetite ! exclamou ella . É uma imagem ! ... E são amigos , são amigos , Pedro ? -- Somos como dois irmãos d' armas , minha senhora . N ' essa mesma soirée , o Villaça informára Pedro que o pae era esperado no dia seguinte em Bemfica . E Pedro , logo que se recolheram , fallou a Maria em " irem fazer a grande scena ao papá . " Ella , porém , recusou , e com as razões mais imprevistas , as mais sensatas . Tinha cogitado muito ! Reconhecia agora que um dos motivos d' aquella teima do papá -- ultimamente chamava-lhe sempre o papá -- era essa extraordinaria existencia de Arroios ... -- Mas filha , disse Pedro , escuta , nós não vivemos tambem em plena orgia ... Alguns amigos que veem . Pois sim , pois sim ... Mas , realmente , estava decidida a ter um interior mais calmo e mais domestico . Era mesmo melhor p ' ra os bébés . Pois bem , queria que o papá estivesse convencido d' essa transformação , para que as pazes fossem mais faceis e eternas . -- Deixa passar dois ou tres mezes ... Quando elle souber como nós vivemos quietinhos , eu o trarei , socega ... É bom tambem que seja quando meu pae partir para as aguas , para os Pyrineos . Que o pobre papá , coitado , tem medo do teu ... Filho , não achas assim melhor ? -- És um anjo , foi a resposta de Pedro , beijando-lhe ambas as mãos . Toda a antiga maneira de Maria pareceu com effeito ir mudando . Suspendera as soirées . Começou a passar as noites muito recolhidas , com alguns intimos , no seu boudoir azul . Já não fumava ; abandonara o bilhar ; e vestida de preto , com uma flôr nos cabellos , fazia crochet ao pé do candieiro . Estudava-se musica classica quando vinha o velho Cazoti . O Alencar , que , imitando a sua dama , entrara tambem na gravidade , recitava traducções de Klopstock . Fallava-se com sisudez de politica ; Maria era muito regeneradora . E todas essas noites , Tancredo lá estava , indolente e bello , desenhando alguma flôr para ella bordar , ou tangendo à guitarra canções populares de Napoles . Todos alli o adoravam ; mas ninguem mais que o velho Monforte , que passava horas , enterrado na sua alta gravata , contemplando o Principe com enternecimento . Depois , de repente , erguia-se , atravessava a sala , ia-se debruçar sobre elle , palpal- o , sentil- o , respiral- o , murmurando no seu francez de embarcadiço : -- Ça aller bien ... Hein ? Beaucoup bien ... Ora estimo ... E estas correntes bruscas de affecto communicavam-se decerto , porque n ' esse momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sorrisos para o papá ou vinha beijal- o na testa . De dia occupava-se de cousas serias . Organisara uma util associação de caridade , a Obra pia dos cobertores , com o fim de fazer no inverno ás familias necessitadas distribuições de agasalhos ; e presidia no salão de Arroios , com uma campainha , as reuniões em que se elaboravam os estatutos . Visitava os pobres . Ia tambem amiudadas vezes a uma devoção ás Egrejas , toda vestida de preto , a pé , com um véo muito espesso no rosto . O esplendor da sua belleza apparecia agora velado por uma sombra tocante de ternura grave : a Deusa idealisava-se em Madona ; e não era raro ouvil-a de repente suspirar sem razão . Ao mesmo tempo a sua paixão pela filha crescia . Tinha então dois annos e estava realmente adoravel ; vinha todas as noites um momento á sala , vestida com um luxo de princeza ; e as exclamações , os extasis de Tancredo não findavam ! Fizera-lhe o retrato a carvão , a esfuminho , a aguarella ; ajoelhava-se para lhe beijar a mãosinha côr de rosa , como ao bambino sagrado . E Maria , agora , apesar dos protestos de Pedro , dormia sempre com ella entre os braços . Ao começo d' esse setembro o velho Monforte partiu para os Pyrineos . Maria chorou , dependurada do pescoço do velho , como se elle largasse de novo para as travessias de Africa . Ao jantar , porém , chegou já consolada e radiante ; e Pedro voltou a fallar da reconciliação , parecendo-lhe bom o momento de ir a Bemfica recuperar para sempre aquelle papá tão teimoso ... -- Ainda não , disse ella reflectindo , olhando o seu calice de Bordeus . Teu pae é uma especie de santo , ainda o não merecemos ... Mais para o inverno . Uma sombria tarde de dezembro , de grande chuva , Affonso da Maia estava no seu escriptorio lendo , quando a porta se abriu violentamente , e , alçando os olhos do livro , viu Pedro deante de si . Vinha todo enlameado , desalinhado , e na sua face livida , sob os cabellos revoltos , luzia um olhar de loucura . O velho ergueu-se aterrado . E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pae , rompeu a chorar perdidamente . -- Pedro ! que succedeu , filho ? Maria morrera , talvez ! Uma alegria cruel invadiu-o , á idéa do filho livre para sempre dos Monfortes , voltando-lhe , trazendo á sua solidão os dois netos , toda uma descendencia para amar ! E repetia , tremulo tambem , desprendendo-o de si com grande amor : -- Socega , filho , que foi ? Pedro então cahiu para o canapé , como cae um corpo morto ; e levantando para o pae um rosto devastado , envelhecido , disse , palavra a palavra , n ' uma voz surda : -- Estive fóra de Lisboa dois dias ... Voltei esta manhã ... A Maria tinha fugido de casa com a pequena ... Partiu com um homem , um italiano ... E aqui estou ! Affonso da Maia ficou deante do filho , quedo , mudo , como uma figura de pedra ; e a sua bella face , onde todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco , de uma grande colera . Viu , n ' um relance , o escandalo , a cidade galhofando , as compaixões , o seu nome pela lama . E era aquelle filho que , despresando a sua auctoridade , ligando-se a essa creatura , estragara o sangue da raça , cobria agora a sua casa de vexame . E alli estava ! alli jazia sem um grito , sem um furor , um arranque brutal de homem trahido ! Vinha atirar-se para um sophá , chorando miseravelmente ! Isto indignou-o , e rompeu a passeiar pela sala , rigido e aspero , cerrando os labios para que não lhe escapassem as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam o peito em tumulto ... -- Mas era pae : ouvia , alli ao seu lado , aquelle soluçar de funda dôr ; via tremer aquelle pobre corpo desgraçado que elle outr'ora emballara nos braços ; -- parou junto de Pedro , tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos , e beijou-o na testa , uma vez , outra vez , como se elle fosse ainda creança , restituindo-lhe alli e para sempre a sua ternura inteira . -- Tinha razão , meu pae , tinha razão , murmurava Pedro entre lagrimas . Depois ficaram callados . Fóra , as pancadas successivas da chuva batiam a casa , a quinta , n ' um clamor prolongado ; e as arvores , sob as janellas , ramalhavam n ' um vasto vento de inverno . Foi Affonso que quebrou o silencio : -- Mas para onde fugiram , Pedro ? Que sabes tu , filho ? Não é só chorar ... -- Não sei nada , respondeu Pedro n ' um longo esforço . Sei que fugiu . Eu sahi de Lisboa na segunda feira . N ' essa mesma noite , ella partiu de casa n ' uma carruagem , com uma maleta , o cofre de joias , uma creada italiana que tinha agora , e a pequena . Disse á governante e á ama do pequeno que ia ter comigo . Ellas estranharam , mas que haviam de dizer ? ... Quando voltei , achei esta carta . Era um papel já sujo , e desde essa manhã de certo muitas vezes relido , amarrotado com furia . Continha estas palavras : " É uma fatalidade , parto para sempre com Tancredo , esquece-me que não sou digna de ti , e levo a Maria que me não posso separar d' ella . " -- E o pequeno , onde está o pequeno ? exclamou Affonso . Pedro pareceu recordar-se : -- Está lá dentro com a ama , trouxe-o na sege . O velho correu , logo ; e d' ahi a pouco apparecia , erguendo nos braços o pequeno , na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas . Era gordo , de olhos muito negros , com uma adoravel bochecha fresca e côr de rosa . Todo elle ria , grulhando , agitando o seu guiso de prata . A ama não passou da porta , tristonha , com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mão . Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona , e accommodou o neto no collo . Os olhos enchiam-se-lhe de uma bella luz de ternura ; parecia esquecer a agonia do filho , a vergonha domestica ; agora só havia ali aquella facesinha tenra , que se lhe babava nos braços ... -- Como se chama elle ? -- Carlos Eduardo , murmurou a ama . -- Carlos Eduardo , hein ? Ficou a olhal- o muito tempo , como procurando n ' elle os signaes da sua raça : depois tomou-lhe na sua as duas mãosinhas vermelhas que não largavam o guiso , e muito grave , como se a creança o percebesse , disse-lhe : -- Olha bem para mim . Eu sou o avô . É necessario amar o avô ! E áquella forte voz , o pequeno , com effeito , abriu os seus lindos olhos para elle , serios de repente , muito fixos , sem medo das barbas grisalhas : depois rompeu a pular-lhe nos braços , desprendeu a mãosinha , e martellou-lhe furiosamente a cabeça com o guiso . Toda a face do velho sorria áquella viçosa alegria ; apertou-o ao seu largo peito muito tempo , poz-lhe na face um beijo longo , consolado , enternecido , o seu primeiro beijo d' avô ; depois , com todo o cuidado , foi collocal- o nos braços da ama . -- Vá , ama , vá ... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe o quarto , vá vêr o que é necessario . Fechou a porta , e veiu sentar-se junto do filho que se não movera do canto do sophá , nem despregára os olhos do chão . -- Agora desabafa , Pedro , conta-me tudo ... Olha que nos não vemos ha tres annos , filho ... -- Ha mais de tres annos , murmurou Pedro . Ergueu-se , allongou a vista á quinta , tão triste sob a chuva ; depois , derramando-a morosamente pela livraria , considerou um momento o seu proprio retrato , feito em Roma aos doze annos , todo de velludo azul , com uma rosa na mão . E repetia ainda amargamente : -- Tinha razão , meu pae , tinha razão ... E pouco a pouco , passeiando e suspirando , começou a fallar d' aquelles ultimos annos , o inverno passado em Paris , a vida em Arroios , a intimidade do italiano na casa , os planos de reconciliação , por fim aquella carta infame , sem pudor , invocando a fatalidade , arremessando-lhe o nome do outro ! ... No primeiro momento tivera só idéas de sangue e quizera perseguil- os . Mas conservava um clarão de razão . Seria ridiculo , não é verdade ? De certo a fuga fora d' antemão preparada , e não havia de ir correndo as estalagens da Europa á busca de sua mulher ... Ir lamentar-se á policia , fazel- os prender ? Uma imbecillidade ; nem impedia que ella fosse já por esses caminhos fóra dormindo com outro ... Restava-lhe sómente o desprezo . Era uma bonita amante que tivera alguns annos , e fugira com um homem . Adeus ! Ficava-lhe um filho , sem mãe , com um mau nome . Paciencia ! Necessitava esquecer , partir para uma longa viagem , para a America talvez ; e o pae veria , havia de voltar consolado e forte . Dizia estas cousas sensatas , passeiando devagar , com o charuto apagado nos dedos , n ' uma voz que se calmava . Mas de repente parou deante do pae , com um riso secco , um brilho-feroz nos olhos . -- Sempre desejei ver a America , e é boa occasião agora ... É uma occasião famosa , hein ? Posso até naturalisar-me , chegar a presidente , ou rebentar ... Ah ! Ah ! -- Sim , mais tarde , depois pensarás n ' isso , filho , accudiu o velho assustado . N ' esse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente , ao fundo do corredor . -- Ainda janta cedo , hein ? disse Pedro . Teve um suspiro cançado e lento , murmurou : -- Nós jantavamos ás sete ... Quiz então que o pae fosse para a mesa . Não havia motivo para que se não jantasse . Elle ia um bocado acima , ao seu antigo quarto de solteiro ... Ainda lá tinha a cama , não é verdade ? Não , não queria tomar nada ... -- O Teixeira que me leve um calice de genebra ... Ainda cá está o Teixeira , coitado ! E vendo Affonso sentado , repetiu , já impaciente : -- Vá jantar meu pae , vá jantar , pelo amor de Deus ... Saiu . O pae ouviu-lhe os passos por cima , e o ruido de janellas desabridamente abertas . Foi então andando para a sala de jantar , onde os criados que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de pés , com a lentidão contristada d' uma casa onde ha morte . Affonso sentou-se á mesa só ; mas já lá estava outra vez o talher de Pedro ; rosas de inverno esfolhavam-se n ' um vaso do Japão ; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro . Affonso tomou uma colher de sopa , depois rolou a sua poltrona para junto do fogão ; e ali ficou envolvido pouco a pouco n ' aquelle melancolico crepusculo de dezembro , com os olhos no lume , escutando o sudoeste contra as vidraças , pensando em todas as cousas terriveis que assim invadiam n ' um tropel pathetico á sua paz de velho . Mas no meio da sua dôr , funda como era , elle percebia um ponto , um recanto do seu coração onde alguma cousa de muito doce , de muito novo , palpitava com uma frescura de renascimento , como se algures , no seu ser , estivesse rompendo , burbulhando uma nascente rica de alegrias futuras ; e toda a sua face sorria á chama alegre , revendo a bochechinha rosada , sob as rendas brancas da touca ... Pela casa no entanto tinham-se accendido as luzes . Já inquieto subiu ao quarto do filho ; estava tudo escuro , tão humido e frio , como se a chuva caisse dentro . Um arrepio confrangeu o velho , e quando chamou , a voz de Pedro veiu do negro da janella ; estava lá , com a vidraça aberta , sentado fóra na varanda , voltado para a noite brava , para o sombrio rumor das ramagens , recebendo na face o vento , a agua , toda a invernia agreste . -- Pois estás aqui filho ! exclamou Affonso . Os criados hão de querer arranjar o quarto , desce um momento ... Estás todo molhado , Pedro ! Apalpava-lhe os joelhos , as mãos regeladas . Pedro ergueu-se com um estremeção , desprendeu-se , impaciente d' aquella ternura do velho . -- Querem arranjar o quarto , hein ? Faz-me bem o ar , faz-me tão bem ! O Teixeira trouxe luzes , e atraz d' elle appareceu o criado de Pedro , que chegára n ' esse momento de Arroios , com um largo estojo de viagem recoberto de oleado . As malas tinha-as deixado em baixo ; e o cocheiro viera tambem , como nenhum dos senhores estava em casa ... -- Bem , bem , interrompeu Affonso . O sr.||_Villaça Villaça|_Villaça lá irá amanhã , e elle dará as ordens . O criado então , em bicos de pés , foi depôr o estojo sobre o marmore da commoda : ainda lá restavam antigos frascos de toilette de Pedro : e os castiçaes sobre a meza allumiavam o grande leito triste de solteiro com os colxões dobrados ao meio . A Gertrudes toda atarefada entrara com os braços carregados de roupa de cama ; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros ; o criado d' Arroios pousando o chapéo a um canto , e sempre em ponta de pés , veiu ajudal-os tambem . Pedro no entanto , como somnambulo , voltara para a varanda , com a cabeça á chuva , attraido por aquella treva da quinta que se cavava em baixo com um rumor de mar bravo . Affonso , então , puxou-lhe o braço quasi com aspereza . -- Pedro ! Deixa arranjar o quarto ! Desce um momento . Elle seguiu maquinalmente o pae á livraria , mordendo o charuto apagado que desde tarde conservava na mão . Sentou-se longe da luz , ao canto do sophá , ali ficou mudo e entorpecido . Muito tempo só os passos lentos do velho , ao comprido das altas estantes , quebraram o silencio em que toda a sala ia adormecendo . Uma braza morria no fogão . A noite parecia mais aspera . Eram de repente vergastadas d' agua contra as vidraças , trazidas n ' uma rajada , que longamente , n ' um clamor teimoso , faziam escoar um diluvio dos telhados ; depois havia uma calma tenebroza , com uma susurração distante de vento fugindo entre ramagens : n ' esse silencio as goteiras punham um pranto lento ; e logo uma corda de vendaval corria mais furioso , envolvia a casa n ' um bater de janellas , redomoinhava , partia com silvos desolados . -- Está uma noite de Inglaterra , disse Affonso , debruçando-se a espertar o lume . Mas a esta palavra Pedro erguera-se , impetuosamente . De certo o ferira a idéa de Maria , longe , n ' um quarto alheio , agazalhando- se-lhe no leito do adulterio entre os braços do outro . Apertou um instante a cabeça nas mãos , depois veiu junto do pae , com o passo mal firme , mas a voz muito calma . -- Estou realmente cançado , meu pae , vou-me deitar . Boa noite ... Amanhã conversaremos mais . Beijou-lhe a mão e saiu de vagar . Affonso demorou-se ainda ali , com um livro na mão , sem ler , attento só a algum rumor que viesse de cima ; mas tudo jazia em silencio . Deram dez horas . Antes de se recolher foi ao quarto onde se fizera a cama da ama . A Gertrudes o criado de Arroios , o Teixeira , estavam lá cochichando ao pé da commoda , na penumbra que dava um folio posto deante do candieiro ; todos se esquivaram em pontas de pés quando lhe sentiram os passos , e a ama continuou a arrumar em silencio os gavetões . No vasto leito , o pequeno dormia como um Menino Jesus cançado , com o seu guiso apertado na mão . Affonso não ousou beijal- o , para o não acordar com as barbas asperas ; mas tocou-lhe na rendinha da camisa , entalou a roupa contra a parede , deu um geito ao cortinado , enternecido , sentindo toda a sua dôr calmar-se n ' aquella sombra de alcova onde o seu neto dormia . -- É necessario alguma cousa , ama ? perguntou , abafando a voz . -- Não , meu senhor ... Então , sem ruido , subiu ao quarto de Pedro . Havia uma fenda clara , entreabriu a porta . O filho escrevia , á luz de duas vellas , com o estojo aberto ao lado . Pareceu espantado de ver o pae : e na face que ergueu , envelhecida e livida , dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros . -- Estou a escrever , disse elle . Esfregou as mãos , como arripiado da friagem do quarto , e accrescentou : -- Amanhã cedo é necessario que o Villaça vá a Arroios ... Estão lá os criados , tenho lá dois cavalos meus , emfim uma porção de arranjos . Eu estou-lhe a escrever . É numero 32 a casa d' elle , não é ? O Teixeira ha de saber ... Boas noites , papá , boas noites . No seu quarto , ao lado da livraria , Affonso não poude socegar , n ' uma oppressão , uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro escutar : agora , no silencio da casa e do vento que calmara , ressoavam por cima lentos e continuos os passos de Pedro . A madrugada clareava , Affonso ia adormecendo -- quando de repente um tiro atroou a casa . Precipitou-se do leito , despido e gritando : um creado acudia tambem com uma lanterna . Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de polvora ; e aos pés da cama , caido de bruços , n ' uma poça de sangue que se ensopava no tapete , Affonso encontrou seu filho morto , apertando uma pistola na mão . Entre as duas vélas que se extinguiam , com fogachos lividos , deixára- lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o enveloppe , n ' uma letra firme : Para o papá . D ' ahi a dias fechou-se a casa de Bemfica . Affonso da Maia partia com o neto e com todos os criados para a quinta de S . ta Olavia . Quando Villaça , em fevereiro , foi lá acompanhar o corpo de Pedro , que ia ser depositado no jazigo de familia , não pôde conter as lagrimas ao avistar aquella vivenda onde passára tão alegres nataes . Um baetão preto recobria o brazão d' armas , e esse panno de esquife parecia ter distingido todo o seu negrume sobre a fachada muda , sobre os castanheiros que ornavam o pateo ; dentro os criados abafavam a voz , carregados de luto ; não havia uma flor nas jarras ; o proprio encanto de S . ta Olavia , o fresco cantar das aguas vivas por tanques e repuchos , vinha agora com a cadencia saudosa de um choro . E Villaça foi encontrar Affonso na livraria , com as janellas cerradas ao lindo sol de inverno , caido para uma poltrona , a face cavada sob os cabellos crescidos e brancos , as mãos magras e ociosas sobre os joelhos . O procurador veiu dizer para Lisboa que o velho não durava um anno . Mas esse anno passou , outros annos passaram . Por uma manhã de abril , nas vesperas de Paschoa , Villaça chegava de novo a S . ta Olavia . Não o esperavam tão cedo ; e como era o primeiro dia bonito d' essa primavera chuvosa os senhores andavam para a quinta . O mordomo , o Teixeira , que ia já embranquecendo , mostrou-se todo satisfeito de ver o sr. administrador com quem às vezes se correspondia , e conduziu-o á sala de jantar onde a velha governante , a Gertrudes , tomada de surpreza , deixou cair uma pilha de guardanapos e para lhe saltar ao pescoço . As tres portas envidraçadas estavam abertas para o terraço , que se estendia ao sol , com a sua balustrada de marmore coberta de trepadeiras : e Villaça , adiantando-se para os degraus que desciam ao jardim , mal poude reconhecer Affonso da Maia n ' aquelle velho de barba de neve , mas tão robusto e corado , que vinha subindo a rua de romanzeiras com o seu neto pela mão . Carlos , ao avistar no terraço um desconhecido , de chapéo alto , abafado n ' um cachenez de pelucia , correu a miral- o , curioso -- e achou-se arrebatado nos braços do bom Villaça , que largara o guarda sol , o beijava pelo cabello , pela face , balbuciando : -- Oh meu menino , meu querido menino ! Que lindo que está ! que crescido que está ... -- Então , sem avisar , Villaça ? exclamava Affonso da Maia , chegando de braços abertos . Nós só o esperavamos para a semana , creatura ! Os dois velhos abraçaram-se ; depois um momento os seus olhos encontraram-se , vivos e humidos , e tornaram a apertar-se commovidos . Carlos ao lado , muito serio , todo esbelto , com as mãos enterradas nos bolsos das suas largas bragas de flanella branca , o casquete da mesma flanella posta de lado sobre os bellos anneis do cabello negro -- continuava a mirar o Villaça , que com o beiço tremulo , tendo tirado a luva , limpava os olhos por baixo dos oculos . -- E ninguem a esperal- o , nem um criado lá em baixo no rio ! dizia Affonso . Emfim , cá o temos , é o essencial ... E como você está rijo , Villaça ! -- E v. ex.a meu senhor ! balbuciou o administrador , engulindo um soluço . Nem uma ruga ! Branco sim , mas uma cara de moço ... Eu nem o conhecia ! ... Quando me lembro , a ultima vez que o vi ... E cá isto ! cá esta linda flor ! ... Ia abraçar Carlos outra vez enthusiasmado , mas o rapaz fugiu-lhe com uma bella risada , saltou do terraço , foi pendurar-se d' um trapesio armado entre as arvores , e ficou lá , balançando-se em cadencia , forte e airoso , gritando : " tu és o Villaça ! " O Villaça , de guarda sol debaixo do braço , contemplava-o embevecido . -- Está uma linda creança ! Faz gosto ! E parece-se com o pae .