Eça de Queiroz A Illustre Casa de Ramires PORTO LIVRARIA CHARDRON De Lello & Irmão , editores 1900 Desde as quatro horas da tarde , no calor e silêncio do domingo de junho , o Fidalgo da Torre , em chinelos , com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita cor-de-rosa , trabalhava . Gonçalo Mendes Ramires ( que naquela sua velha aldeia -- Santa Ireneia , e na vila vizinha , a asseada e vistosa Vila Clara , e mesmo na cidade , em Oliveira , todos conheciam pelo " Fidalgo da Torre " ) , trabalhava numa Novela Histórica , A Torre de D. Ramires , destinada ao primeiro número dos ANAIS -- LITERATURA E DE HISTÓRIA , revista nova , fundada por José Lúcio Castanheiro , seu antigo camarada de Coimbra , nos tempos do Cenáculo Patriótico , em casa das Severinas . A livraria , clara e larga , escaiolada de azul , com pesadas estantes de pau-preto onde repousavam , no pó e na gravidade das lombadas de carneira , grossos fólios de convento e de foro , respirava para o pomar por duas janelas , uma de peitoril e poiais de pedra almofadados de veludo , outra mais rasgada , de varanda , frescamente perfumada pela madressilva , que se enroscava nas grades . Diante dessa varanda , na claridade forte , pousava a mesa -- mesa imensa de pés torneados , coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho , e atravancada nessa tarde pelos rijos volumes da História Genealógica , todo o Vocabulário de Bluteau , tomos soltos do Panorama , e ao canto , em pilha , as obras de Walter Scott , sustentando um copo cheio de cravos amarelos . E dai , da sua cadeira de couro , Gonçalo Mendes Ramires , pensativo diante das tiras de papel almaço , roçando pela testa a rama da pena de pato , avistava sempre a inspiradora da sua Novela -- a Torre , a antiquíssima Torre , quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera , com uma pouca de hera no cunhal rachado , as fundas frestas gradeadas de ferro , as ameias e a miradoura bem cortadas no azul de junho , robusta sobrevivência do Paço acastelado , da falada Honra de Santa Ireneia , solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X. Gonçalo Mendes Ramires ( como confessava esse severo genealogista , o morgado de Cidadelhe ) , era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo -- Portugal . Raras famílias , mesmo coevas , poderiam tra çar a sua ascendência , por linha varonil e sempre pura , até aos vagos Senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada , quando os barões francos desceram , com pendão e caldeira , na hoste do Borguinhão . E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa , por linha pura e sempre varonil , no filho do Conde||_Nuno_Mendes Nuno|_Nuno_Mendes Mendes|_Nuno_Mendes , aquele agigantado Ordonho Mendes , senhor -- Treixedo e de Santa Ireneia , que casou em 967 com Dona||_Elduara Elduara|_Elduara , Condessa de Carrion , filha de Bermudo o Gotoso , Rei de Leão . Mais antigo na Espanha que o Condado Portucalense , rijamente , como ele , crescera e se afamara o Solar de Santa Ireneia resistente como ele Ãs fortunas e aos tempos . E depois , em cada lance forte da História de Portugal , sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo , pela lealdade , pelos nobres espíritos . Um dos mais esforçados da linhagem , Lourenço , por alcunha o Cortador , colaço de Afonso Henriques ( com quem na mesma noite , para receber a pranchada de cavaleiro , velara as armas na Sé de Zamora ) , aparece logo na batalha de Ourique , onde também avista Jesus Cristo sobre finas nuvens de ouro , pregado numa cruz de dez côvados . No cerco de Tavira , Martim Ramires , freire -- Santiago , arromba a golpes de acha um postigo da Couraça , rompe por entre as cimitarras que lhe decepam as duas mãos , e surde na quadrela da torre albarrã , com os dois pulsos a esguichar sangue , bradando alegremente ao Mestre : -- " D. Paio Peres , Tavira é nossa ! Real , Real por Portugal ! " O velho Egas Ramires , fechado na sua Torre , com a levadiça erguida , as barbacãs eriçadas de frecheiros , nega acolhida a El-Rei D. Fernando e Leonor Teles que corriam o Norte em folgares e caçadas -- para que a presença da adúltera não macule a pureza estreme do seu solar ! Em Aljubarrota , Diogo Ramires o Trovador desbarata um troço de besteiros , mata o adiantado-mor de Galiza , e por ele , não por outro , cai derribado o pendão real de Castela , em que ao fim da lide seu irmão de armas , D. Antão de Almada , se embrulhou para o levar , dançando e cantando , ao Mestre de Avis . Sob os muros de Arzila combatem magnificamente dois Ramires , o idoso Soeiro e seu neto Fernão , e diante do cadáver do velho , trespassado por quatro virotes , estirado no pátio da Alcáçova ao lado do corpo do Conde de Marialva -- Afonso V arma juntamente cavaleiros o Príncipe seu filho e Fernão Ramires , murmurando entre lágrimas : " Deus vos queira tão bons como esses que aí jazem ! ... " Mas eis que Portugal se faz aos mares ! E raras são então as armadas e os combates do Oriente em que se não esforce um Ramires -- ficando na lenda trágico-marítima aquele nobre capitão do Golfo Pérsico , Baltasar Ramires , que , no naufrágio da Santa Bárbara , reveste a sua pesada armadura , e no castelo de proa , hirto , se afunda em silêncio com a nau que se afunda , encostado à sua grande espada . Em Alcácer Quibir , onde dois Ramires sempre ao lado de El-Rei encontram morte soberba , o mais novo , Paulo Ramires , pajem do Guião , nem leso nem ferido , mas não querendo mais vida pois que El-Rei não vivia , colhe um ginete solto , apanha uma acha-de-armas , e gritando : -- " Vai-te , alma , que já tardas , servir a de teu senhor ! " entra na chusma mourisca e para sempre desaparece . Sob os Filipes , os Ramires , amuados , bebem e caçam nas suas terras . Reaparecendo com os Braganças , um Ramires , Vicente , Governador das Armas de Entre Douro e Minho por D. João IV , mete a Castela , destroça os Espanhóis do Conde de Venavente , e toma Fuente Guinal , a cujo furioso saque preside da varanda dum Convento de Franciscanos , em mangas de camisa , comendo talhadas de melancia . já , porém , como a nação , degenera a nobre raça ... Álvaro Ramires , valido de D. Pedro II , brigão façanhudo , atordoa Lisboa com arruaças , furta a mulher dum vedor da Fazenda que mandara matar a pauladas por pretos , incendeia em Sevilha , depois de perder cem dobrões , uma casa de tavolagem , e termina por comandar uma urca de piratas na frota de Murad o Maltrapilho . No reinado do Sr.||_D._João_V D.|_D._João_V João|_D._João_V V|_D._João_V , Nuno Ramires brilha na Corte , ferra as suas mulas de prata , e arruína a casa celebrando sumptuosas festas de Igreja , em que canta no coro vestido com o hábito de Irmão Terceiro de S.||_Francisco Francisco|_Francisco . Outro Ramires , Cristóvão , Presidente da Mesa de Consciência e Ordem , alcovita os amores de El-Rei D. José I com a filha do prior de Sacavém . Pedro Ramires , provedor e feitor-mor das Alfândegas , ganha fama em todo o Reino pela sua obesidade , a sua chalaça , as suas proezas de glutão no Paço da Bemposta com o arcebispo de Tessalónica . Inácio Ramires acompanha D. João VI ao Brasil como reposteiro-mor , negoceia em negros , volta com um baú carregado de peças de ouro que lhe rouba um administrador , antigo frade capuchinho , e morre no seu solar da cornada de um boi . O avô de Gonçalo , Damião , doutor liberal dado Ãs Musas , desembarca com D. Pedro no Mindelo , compõe as empoladas proclamações do Partido , funda um jornal , o Antifrade , e depois das Guerras Civis arrasta uma existência reumática em Santa Ireneia , embrulhado no seu capotão de briche , traduzindo para vernáculo , com um léxico e um pacote de simonte , as obras de Valerius Flaccus . O pai de Gonçalo , ora Regenerador , ora Histórico , vivia em Lisboa no Hotel Universal , gastando as solas pelas escadarias do Banco Hipotecário e pelo lajedo da Arcada , até que um Ministro do Reino , cuja concubina , corista de S. Carlos , ele fascinara , o nomeou ( para o afastar da Capital ) , Governador Civil de Oliveira . Gonçalo , esse , era bacharel formado com um R no terceiro ano . E nesse ano justamente se estreou nas Letras Gonçalo Mendes Ramires . Um seu companheiro de casa , José Lúcio Castanheiro , algarvio muito magro , muito macilento , de enormes óculos azuis , a quem Simão Craveiro chamava o " Castanheiro Patriotinheiro " , fundara um semanário , a Pátria -- " com o alevantado intento ( afirmava sonoramente o Prospecto ) de despertar , não só na mocidade académica , mas em todo o País , do cabo Sileiro ao cabo de Santa Maria , o amor tão arrefecido das belezas , das grandezas e das glórias de Portugal ! " Devorado por essa ideia , " a sua Ideia " , sentindo nela uma carreira , quase uma missão , Castanheiro incessantemente , com ardor teimoso de apóstolo , clamava pelos botequins da Sofia , pelos claustros da Universidade , pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos cigarros , -- " a necessidade , caramba , de reatar a tradição ! de desatulhar , caramba , Portugal da aluvião do estrangeirismo ! , -- Como o semanário apareceu regularmente durante três domingos , e publicou realmente estudos recheados de grifos e citações sobre as Capelas da Batalha , a Tomada de Ormuz , a Embaixada de Tristão da Cunha , começou logo a ser considerado uma aurora , ainda pálida mas segura , de Renascimento Nacional . E alguns bons espíritos da Academia , sobretudo os companheiros de casa do Castanheiro , os três que se ocupavam das coisas do saber e da inteligência ( porque dos três restantes um era homem de cacete e forças , o outro guitarrista , e o outro " premiado " ) , passaram , aquecidos por aquela chama patriótica , a esquadrinhar na biblioteca , nos grossos tomos nunca dantes visitados de Fernão Lopes , de Rui de Pina , de Azurara , proezas e lendas -- " só portuguesas , só nossas ( como suplicava o Castanheiro ) , que refizessem à nação abatida uma consciencia da sua heroicidade ! " Assim crescia o Cenáculo Patriótico da casa das Severinas . E foi então que Gonçalo Mendes Ramires , moço muito afável , esbelto e louro , duma brancura sã de porcelana , com uns finos e risonhos olhos que facilmente se enterneciam , sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos sapatos -- apresentou ao Castanheiro , num domingo depois do almoço , onze tiras de papel intituladas D. Guiomar . Nelas se contava a velhíssima história da castelã , que , enquanto longe nas guerras do Ultramar o castelão barbudo e cingido de ferro atira a acha-de-armas Ãs portas de Jerusalém , recebe ela na sua câmara , com os braços nus , por noite de Maio e de Lua , o pajem de anelados cabelos ... Depois ruge o Inverno , o castelão volta , mais barbudo , com um bordão de romeiro . Pelo vílico do castelo , homem espreitador e de amargos sorrisos , conhece a traição , a mácula no seu nome tão puro , honrado em todas as Espanhas ! E ai do pajem ! ai da dama ! Logo os sinos tangem a finados . Já no patim da Alcáçova , o verdugo , de capuz escarlate , espera , encostado ao machado , entre dois cepos cobertos de panos de dó ... E no final choroso da D. Guiomar , como em todas essas histórias do Romanceiro de Amor , também brotavam rente Ãs duas sepulturas , escavadas no ermo , duas roseiras brancas a que o vento enlaçava os aromas e as rosas . De sorte que ( como notou José Lúcio Castanheiro , coçando pensativamente o queixo ) , não ressaltava nesta D. Guiomar nada que fosse " só português , só nosso , abrolhando do solo e da raça ! " Mas esses amores lamentosos passavam num solar de Ribacoa : os nomes dos cavaleiros , Remarigues , Ordonho , Froylas , Gutierres , tinham delicioso sabor godo : em cada tira ressoavam brandamente os genuínos : " Bofé ... Mentes pela gorja ! ... Pajem , o meu morzelo ! ... " ; e através de toda esta vernaculidade circulava uma suficiente turba de cavalariços com saios alvadios , beguinos sumidos na sombra das cogulas , ovençais sopesando fartas bolsas de couro , uchões espostejando nédios lombos de cerdo ... A novela , portanto , marcava um salutar retrocesso ao sentimento nacional . -- E depois ( acrescentava o Castanheiro ) este velhaco do Gonçalinho surde com um estilo terso , másculo , de boa cor arcaica ... De óptima cor arcaica ! Lembra até O Bobo , O Monge de Cister ! ... A Guiomar , realmente , é uma castelã vaga , da Bretanha ou da Aquitânia . Mas no vílico , mesmo no castelão , já transparecem portugueses , bons portugueses de fibra e de alma , de Entre Douro e Cávado ... Sim senhor ! Quando o Gonçalinho se enfronhar dentro do nosso passado , das nossas crónicas , temos enfim nas letras um homem que sente bem o torrão , sente bem a raça ! D. Guiomar encheu três páginas da Pátria . Nesse domingo , para celebrar a sua entrada na literatura , Gonçalo Mendes Ramires pagou aos camaradas do Cenáculo e a outros amigos uma ceia onde foi aclamado , logo depois do frango com ervilhas , quando os moços do Camolino , esbaforidos , renovavam as garrafas de Colares , como " o nosso Walter Scott ! " Ele , de resto , anunciara já com simplicidade um romance em dois volumes , fundado nos anais da sua Casa , num rude feito de sublime orgulho de Tructesindo Mendes Ramires , o amigo e alferes-mor de D. Sancho I. Por temperamento , por aquele saber especial de trajes e alfaias que revelara na D. Guiomar , até pela antiguidade da sua linhagem , Gonçalinho parecia gloriosamente votado a restaurar em Portugal o romance histórico . Possula uma missão -- e começou logo a passear pela Calçada , pensativo , com o gorro sobre os olhos , como quem anda reconstruindo um mundo . No acto desse ano levou o R. Quando regressou das férias para o Quarto Ano , já não refervia na Rua da Matemática o cenáculo ardente dos patriotas . O Castanheiro , formado , vegetava em Vila Real de Santo António : com ele desaparecera a Pátria : e os moços zelosos , que na Biblioteca esquadrinhavam as Crónicas de Fernão Lopes e de Azurara , desamparados por aquele apóstolo que os levantava , recaíram nos romances de Georges Ohnet e retomaram à noite o taco nos bilhares da Sofia . Gonçalo voltava também mudado , de luto pelo pai que morrera em Agosto , com a barba crescida , sempre afável e suave , porém mais grave , averso a ceias e a noites errantes . Tomou um quarto no Hotel Mondego , onde o servia , de gravata branca , um velho criado de Santa Ireneia , o Bento ; -- e os seus companheiros preferidos foram três ou quatro rapazes que se preparavam para a Política , folheavam atentamente o Diário das Câmaras , conheciam alguns enredos da Corte , proclamavam a necessidade duma " orientação positiva " e dum " largo fomento rural " , consideravam como leviandade reles e jacobina a irreverência da Academia pelos Dogmas , e , mesmo passeando ao luar no Choupal ou no Penedo da Saudade , discorriam com ardor sobre os dois Chefes -- Partido -- o Brás Vitorino , o homem novo dos Regeneradores , e o velho Barão||_de|_S.|_Fulgêncio de||_de|_S.|_Fulgêncio S.||_de|_S.|_Fulgêncio Fulgêncio|_de|_S.|_Fulgêncio , chefe clássico dos Históricos . Inclinado para os Regeneradores , porque a Regeneração lhe representava tradicionalmente ideias de conservantismo , de elegância culta e de generosidade , Gonçalo frequentou então o Centro Regenerador da Couraça , onde aconselhava à noite , tomando chá preto , " O fortalecimento da autoridade da Coroa " , e " uma forte expansão colonial ! " Depois , logo na Primavera , desmanchou alegremente esta gravidade política ; e ainda tresnoitou , na taberna do Camolino , em bacalhoadas festivas , entre o estridor das guitarras . Mas não aludiu mais ao seu grande romance em dois volumes ; e ou recuara ou se esquecera da sua missão de Arte Histórica . Realmente só na Páscoa do Quinto Ano retomou a pena -- para lançar , na Gazeta do Porto , contra uni seu patrício , o Dr. André Cavaleiro , que o Ministério do S. Fulgêncio nomeara Governador Civil de Oliveira , duas correspondências muito acerbas , dum rancor intenso e pessoal ( a ponto de chasquear " a feroz bigodeira negra de S.||_Ex Ex|_Ex ª ) . Assinara JUVENAL , Como outrora o pai , quando publicava comunicados políticos de Oliveira nessa mesma Gazeta do Porto , jornal amigo , onde um Vilar Mendes , seu remoto parente , redigia a Revista Estrangeira . Mas lera aos amigos no Centro -- " os dois botes decisivos que atirariam o Sr.||_Cavaleiro Cavaleiro|_Cavaleiro abaixo do seu Cavalo ! " E um desses moços sérios , sobrinho do Bispo de Oliveira , não disfarçou o seu assombro : -- Oh Gonçalo , eu sempre pensei que você e o Cavaleiro eram íntimos ! Se bem me lembro , quando você chegou a Coimbra , para os Preparatórios , viveu na casa do Cavaleiro , na Rua de S. João ... Pois não há uma amizade tradicional , quase histórica , entre Ramires e Cavaleiros ? ... Eu pouco conheço Oliveira , nunca andei para os vossos sítios ; mas até creio que Corinde , a quinta do Cavaleiro , pega com Santa Ireneia ! E Gonçalo enrugou a face , a sua risonha e lisa face , para declarar secamente que Corinde não pegava com Santa Ireneia : que entre as duas terras corria muito justificadamente a ribeira do Coice : e que o Sr.||_André_Cavaleiro André|_André_Cavaleiro Cavaleiro|_André_Cavaleiro , e sobretudo Cavalo , era um animal detestável que pastava na outra margem ! -- O sobrinho do Bispo saudou e exclamou : -- Sim senhor , boa piada ! Um ano depois da formatura , Gonçalo foi a Lisboa por causa da hipoteca da sua quinta de Praga , junto a Lamego , que certo foro anual de dez-réis e meia galinha , devido ao abade de Praga , andava empecendo terrivelmente nos Conselhos do Banco Hipotecário , e também para conhecer mais estreitamente o seu chefe , o Brás Vitorino , mostrar lealdade e submissão partidária , colher algum fino conselho de conduta política . Ora uma noite , voltando de jantar em casa da velha Marquesa de Louredo , a " tia||_Louredo Louredo|_Louredo " , que morava a Santa Clara , esbarrou no Rossio com José Lúcio Castanheiro , então empregado no Ministério da Fazenda , na repartição dos Próprios Nacionais . Mais defecado , mais macilento , com uns óculos mais largos e mais tenebrosos , o Castanheiro ardia todo , como em Coimbra , na chama da sua Ideia -- " a ressurreição do sentimento português ! " E agora , alargando a proporções condignas da Capital o plano da Pátria , labutava devoradoramente na criação duma revista quinzenal , de setenta páginas , com capa azul , os ANAIS -- LITERATURA E DE HISTÓRIA . Era uma noite de Maio , macia e quente . E , passeando ambos em torno das fontes secas do Rossio , Castanheiro , que sobraçava um rolo de papel e um gordo fólio encadernado em bezerro , depois de recordar as cavaqueiras geniais da Rua da Misericórdia , de maldizer a falta de intelectualidade de Vila Real de Santo António voltou sofregamente à sua Ideia , e suplicou a Gonçalo Mendes Ramires que lhe cedesse para os ANAIS esse romance que ele anunciara em Coimbra , sobre o seu avoengo Tructesindo Ramires , alferes-mor de Sancho I. Gonçalo , rindo , confessou que ainda não começara essa grande obra ! -- Ah ! -- murmurou o Castanheiro , estacando , com os negros óculos sobre ele , duros e desconsolados . -- Então você não persistiu ? ... Não permaneceu fiel à Ideia ? ... Encolheu os ombros , resignadamente , já acostumado , através da sua missão , a estes desfalecimentos do patriotismo . Nem consentiu que Gonçalo , humilhado perante aquela fé que se mantivera tão pura e servidora -- aludisse , como desculpa , ao inventário laborioso da Casa , depois da morte do papá ... -- Bem , bem ! Acabou ! Procrastinare lusitanum est . Trabalha agora no Verão ... Para Portugueses , menino , o Verão é o tempo das belas fortunas e dos rijos feitos . No Verão nasce Nuno Álvares no Bonjardim ! No Verão se vence em Aljubarrota ! No Verão chega o Gama à índia ! ... E no Verão vai o nosso Gonçalo escrever uma novelazinha sublime ! ... De resto os ANAIS só aparecem em Dezembro , caracteristicamente no Primeiro de Dezembro . E você em três meses ressuscita um mundo . Sério , Gonçalo Mendes ! ... É um dever , um santo dever , sobretudo para os novos , colaborar nos ANAIS . Portugal , menino , morre por falta de sentimento nacional ! Nós estamos imundamente morrendo do mal de não ser Portugueses ! Parou -- ondeou o braço magro , como a correia dum látego , num gesto que açoitava o Rossio , a Cidade , toda a Nação . Sabia o amigo Gonçalinho o segredo desta borracheira sinistra ? E que , dos Portugueses , os piores desprezavam a Pátria -- e os melhores ignoravam a Pátria . O remédio ? ... Revelar Portugal , vulgarizar Portugal . Sim , amiguinho ! Organizar , com estrondo , o reclamo de Portugal , de modo que todos o conheçam -- ao menos como se conhece o Xarope Peitoral de James , hem ? E que todos o adoptem -- ao menos como se adoptou o sabão do Congo , hem ? E conhecido , adoptado , que todos o amem enfim , nos seus heróis , nos seus feitos , mesmo nos seus defeitos , em todos os seus padrões , e até nas veras pedrinhas das suas calçadas ! Para esse fim , o maior a empreender neste apagado século da nossa História , fundava ele os ANAIS . Para berrar ! Para atroar Portugal , aos bramidos sobre os telhados , com a notícia inesperada da sua grandeza ! E aos descendentes dos que outrora fizeram o Reino incumbia , mais que aos outros , o cuidado piedoso de o refazer ... Como ? Reatando a tradição , caramba ! -- Assim , vocês ! Por essa história de Portugal fora , vocês são uma enfiada de Ramires de toda a beleza . Mesmo o desembargador , o que comeu numa ceia de Natal dois leitões ! ... É apenas uma barriga . Mas que barriga ! Há nela uma pujança heróica que prova raça , a raça mais forte do que promete a força humana , como diz Camões . Dois leitões , caramba ! Até enternece ! ... E os outros Ramires , o de Silves , o de Aljubarrota , os de Arzila , os da índia ! E os cinco valentes , de quem você talvez nem saiba , que morreram no Salado ! Pois bem , ressuscitar estes varões , e mostrar neles a alma façanhuda , o querer sublime que nada verga , é uma soberba lição aos novos ... Tonifica , caramba ! Pela consciência que renova de termos sido tão grandes , sacode este chocho consentimento nosso em permanecermos pequenos ! É o que eu chamo reatar a tradição ... E depois feito por você próprio , Ramires , que chique ! Caramba , que chique ! É um fidalgo , o maior fidalgo -- Portugal , que , para mostrar a heroicidade da Pátria , abre simplesmente , sem sair do seu solar , os arquivos da sua Casa , velha de mais de mil anos . É de rachar ! ... E você não precisa fazer um grosso romance ... Nem um romance muito desenvolvido está na índole militante da revista . Basta um conto , de vinte ou trinta páginas ... Está claro , os ANAIS por ora não podem pagar . Também , você não precisa ! E que diabo ! não se trata de pecúnia , mas duma grande renovação social ... E depois , menino , a literatura leva a tudo em Portugal . Eu sei que o Gonçalo em Coimbra , ultimamente , frequentava o Centro Regenerador . Pois , amigo , de folhetim em folhetim , se chega a S. Bento ! A pena agora , como a espada outrora , edifica reinos ... Pense você nisto ! E adeus ! que ainda hoje tenho de copiar , para letra cristã , este estudo do Henriques sobre Ceilão ... Você não conhece o Henriques ? ... Não conhece . Ninguém conhece . Pois quando na Europa , nessas grandes Academias da Europa , há uma dúvida sobre a História ou a Literatura cingalesa , gritam para cá , para o Henriques ! Abalou , agarrado ao seu rolo e ao seu tomo -- e Gonçalo ainda o avistou , na porta e claridade da tabacaria Nunes , agitando o braço esguio de Apóstolo diante dum sujeito obeso , de vasto colete branco , que recuava , com espanto , assim perturbado no quieto gozo do seu grosso charuto e da doce noite de Maio . O Fidalgo da Torre recolheu para o Bragança , impressionado , ruminando a ideia do Patriota . Tudo nela o seduzia -- e lhe convinha : a sua colaboração numa revista considerável , de setenta páginas , em companhia de escritores doutos , lentes das Escolas , antigos ministros , até conselheiros de Estado ; a antiguidade da sua raça , mais antiga que o Reino , popularizada por uma história de heróica beleza , em que , com tanto fulgor , ressaltavam a bravura e a soberba de alma dos Ramires ; e enfim a seriedade académica do seu espírito , o seu nobre gosto pelas investigações eruditas , aparecendo no momento em que tentava a carreira do Parlamento e da Política ! ... E o trabalho , a composição moral dos vetustos Ramires , a ressurreição arqueológica do viver Afonsino , as cem tiras de almaço a atulhar de prosa forte -- não o assustavam ... Não ! porque felizmente já possuía a " sua obra " -- e cortada em bom pano , alinhavada com linha hábil . Seu tio||_Duarte Duarte|_Duarte , irmão de sua mãe ( uma senhora -- Guimarães , da casa das Balsas ) , nos seus anos de ociosidade e imaginação , de 1845 a 1850 , entre a sua carta de Bacharel e o seu Alvará de Delegado , fora poeta -e publicara no ar o , semanário de Guimarães , um poemeto em verso solto , o Castelo de Santa Ireneia , que assinara com duas iniciais D. B. Esse castelo era o seu , o Paço antiquíssimo , de que restava a negra torre entre os limoeiros da horta . E o poemeto cantava , com romântico garbo , um lance de altivez feudal em que se sublimara Tructesindo Ramires , alferes-mor de Sancho I , durante as contendas de Afonso II e das senhoras Infantas . Esse volume do Bardo , encadernado em marroquim , com o brasão dos Ramires , o açor negro em campo escarlate , ficara no arquivo da Casa como um trecho da crónica heróica dos Ramires . E muitas vezes em pequeno Gonçalo recitara , ensinados pela mamã , os primeiros versos do poema , de tão harmoniosa melancolia : Na palidez da tarde , entre a folhagem Que o Outono amarelece ... Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo , que Gonçalo Mendes Ramires decidira em Coimbra , quando os camaradas da Pátria e das ceias o aclamavam " o nosso Walter Scott " , compor um romance moderno , dum realismo épico , em dois robustos volumes , formando um estudo ricamente colorido da Meia Idade Portuguesa ... E agora lhe servia , e com deliciosa facilidade , para essa novela curta e sóbria , de trinta páginas , que convinha aos ANAIS . No seu quarto do Bragança abriu a varanda . E debruçado , acabando o charuto , na dormente suavidade da noite de Maio , ante a majestade silenciosa do rio e da Lua , pensava regaladamente que nem teria a canseira de esmiuçar as crónicas e os fólios maçudos ... Com efeito ! toda a reconstrução histórica a realizara , e solidamente , com um saber destro , o tio||_Duarte Duarte|_Duarte . O Paço acastelado de Santa Ireneia , com as fundas carcovas , a torre albarrã , a alcáçova , a masmorra , o farol e o balsão ; o velho Tructesindo , enorme , e os seus flocos de cabelos e barbas ancestrais , derramados sobre a loriga de malha ; os servos mouriscos , de surrões de couro , cavando os regueiros da horta ; os oblatos resmungando à lareira as Vidas dos Santos : os pajens jogando no campo do tavolado -- tudo ressurgia , com verídico realce , no poemeto do tio||_Duarte Duarte|_Duarte ! Ainda recordava mesmo certos lances ; o truão açoitado ; o festim e os uchões que arrombavam as cubas de cerveja ; a jornada de Violante Ramires para o Mosteiro de Lorvão ... Junto à fonte mourisca , entre os ulmeiros , A cavalgada pára ... O enredo todo com a sua paixão de grandeza bárbara , os recontros bravios em que se saciam a punhal os rancores de raça , o heróico falar despedido de lábios de ferro -- lá estavam nos versos do titi , sonoros e bem balançados ... Monge , escuta ! O solar de D. Ramires Por si , e pedra a pedra se aluíra , Se jamais um bastardo lhe pisasse , Com sapato aviltado , as lajes puras ! Na realidade só lhe restava transpor as fórmulas fluidas do Romantismo de 1846 , para a sua prosa tersa e máscula ( como confessava o Castanheiro ) , de óptima cor arcaica , lembrando o Bobo . E era um plágio ? Não ! A quem , com mais seguro direito do que a ele , Ramires pertencia a memória dos Ramires históricos ? A ressurreição do velho Portugal , tão bela no Castelo de Santa Ireneia , não era obra individual do tio||_Duarte Duarte|_Duarte mas dos Herculanos , dos Rebelos , das Academias , da erudição esparsa . E , de resto , quem conhecia hoje esse poemeto , e mesmo o Bardo , delgado semanário que perpassara , durante cinco meses , há cinquenta anos , numa vila de província ? ... Não hesitou mais , seduzido . E enquanto se despia , depois de beber aos goles um copo de água com bicarbonato de soda , já martelava a primeira linha do conto , à maneira lapidária da Salambô : -- " Era nos Paços de Santa Ireneia , por uma noite de Inverno , na sala alta da alcáçova ... " . Ao outro dia , procurou José Lúcio Castanheiro na repartição dos Próprios Nacionais , à pressa -- porque , depois duma conferência no Banco Hipotecário , ainda prometera acompanhar as primas Chelas a uma Exposição de Bordados na livraria Gomes . E anunciou ao Patriota que , positivamente , lhe assegurava para o primeiro número dos ANAIS a novela , a que já decidira o título -- a Torre de D. Ramires . -- Que lhe parece ? Deslumbrado , José Castanheiro atirou os magríssimos braços , resguardados pelas mangas de alpaca , até à abóbada do esguio corredor em que o recebera : -- Sublime ! ... A Torre de D. Ramires ! ... O grande feito de Tructesindo Mendes Ramires , contado por Gonçalo Mendes Ramires ! ... E tudo na mesma Torre ! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito ; e setecentos anos depois , na mesma Torre , o nosso Gonçalo conta o feito ! Caramba , menino , carambíssima ! isso é que é reatar a tradição ! Duas semanas depois , de volta a Santa Ireneia , Gonçalo mandou um criado da quinta , com uma carroça , a Oliveira , a casa de seu cunhado José Barrolo , casado com Gracinda Ramires , para lhe trazer da rica livraria clássica que o Barrolo herdara do tio||_Deão_da_Sé Deão|_Deão_da_Sé da|_Deão_da_Sé Sé|_Deão_da_Sé , todos os volumes da " História Genealógica " -- " e " ( acrescentava numa carta ) " todos os cartapácios que por lá encontrares com o título de Crónicas do Rei Fulano ... " Depois , do pó das suas estantes , desenterrou as obras de Walter Scott , volumes desirmanados do Panorama , a História de Herculano , O Bobo , O Monge de Cister . E assim abastecido , com uma farta resma de tiras de almaço sobre a banca , começou a repassar o poemeto do tio||_Duarte Duarte|_Duarte , inclinado ainda a transpor para a aspereza duma manhã de Dezembro , como mais congénere com a rudeza feudal dos seus avós , aquela luzida cavalgada de donas , monges e homens de armas que o tio||_Duarte Duarte|_Duarte estendera através duma suave melancolia outonal , pelas veigas do Mondego ... Na palidez da tarde , entre a folhagem Que o Outono amarelece ... Mas , como era então junho e a Lua crescia , Gonçalo determinou por fim aproveitar as sensações de calor , luar e arvoredos , que lhe fornecia a aldeia -- para levantar , logo à entrada da sua novela , o negro e imenso Paço de Santa Ireneia , no silêncio duma noite de Agosto , sob o resplendor da lua cheia . E já enchera desembaraçadamente , ajudado pelo Bardo , duas tiras , quando uma desavença com o seu caseiro , o Manuel Relho , que amanhava a quinta por oitocentos mil-réis de renda , veio perturbar , na fresca e noviça inspiração do seu trabalho , o Fidalgo da Torre . Desde o Natal o Relho , que durante anos de compostura e ordem se emborrachava sempre aos domingos com alegria e com pachorra , começara a tomar , três e quatro vezes por semana , bebedeiras desabridas , escandalosas , em que espancava a mulher , atroava a quinta de berros , e saltava para a estrada , esguedelhado , de varapau , desafiando a quieta aldeia . Por fim , uma noite em que Gonçalo , à banca , depois do chá , laboriosamente escavava os fossos do Paço de Santa Ireneia -- de repente a Rosa cozinheira rompeu a gritar : " Aqui d' El-Rei contra o Relho ! " E , através dos seus brados e dos latidos dos cães , uma pedra , depois outra , bateram na varanda venerável da livraria ! Enfiado , Gonçalo Mendes Ramires pensou no revólver ... Mas justamente nessa tarde o criado , o Bento , descera aquela sua velha e única arma à cozinha para a desenferrujar e arear ! Então , atarantado , correu ao quarto , que fechou à chave , empurrando contra à porta a cómoda com tão desesperada ansiedade , que frascos de cristal , um cofre de tartaruga , até um crucifixo , tombaram e se partiram . Depois gritos e latidos findaram no pátio -- mas Gonçalo não se arredou nessa noite daquele refúgio bem defendido , fumando cigarros , ruminando um furor sentimental contra o Relho , a quem tanto perdoara , sempre tão afavelmente tratara , e que apedrejava as vidraças da Torre ! Cedo , de manhã , convocou o Regedor ; a Rosa , ainda trémula , mostrou no braço as marcas roxas dos dedos do Relho ; e o homem , cujo arrendamento findava em Outubro , foi despedido da quinta com a mulher , a arca e o catre . Imediatamente apareceu um lavrador dos Bravais , o José Casco , respeitado em toda a freguesia pela sua seriedade e força espantosa , propondo ao fidalgo arrendar a Torre . Gonçalo Mendes Ramires , porém , já desde a morte do pai , decidira elevar a renda a novecentos e cinquenta mil-réis ; -- e o Casco desceu as escadas , de cabeça descaída . Voltou logo ao outro dia , repercorreu miudamente toda a quinta , esfarelou a terra entre os dedos , esquadrinhou o curral e a adega , contou as oliveiras e as cepas ; e num esforço , em que lhe arfaram todas as costelas , ofereceu novecentos e dez mil-réis ! Gonçalo não cedia , certo da sua equidade . O José Casco voltou ainda com a mulher ; depois , num domingo , com a mulher e um compadre -- e era um coçar lento do queixo rapado , umas voltas desconfiadas em torno da eira e da horta , umas demoras sumidas dentro da tulha , que tornavam aquela manhã de junho intoleravelmente longa ao Fidalgo , sentado num banco de pedra do jardim , debaixo duma mimosa , com a Gazeta do Porto . Quando o Casco , pálido , lhe veio oferecer novecentos e trinta mil-réis -- Gonçalo Mendes Ramires arremessou o jornal , declarou que ia ele , por sua conta , amanhar a propriedade , mostrar o que era um terrão rico , tratado pelo saber moderno , com fosfatos , com máquinas ! O homem de Bravais , então , arrancou um fundo suspiro , aceitou os novecentos e cinquenta mil-réis . À maneira antiga o Fidalgo apertou a mão ao lavrador -- que entrou na cozinha a enxugar um largo copo de vinho , esponjando na testa , nas cordoveias rijas do pescoço , o suor ansiado que o alagava . Mas , como entulhada por estes cuidados , a veia abundante de Gonçalo estancou -- não foi mais que um fio arrastado e turvo . Quando nessa tarde se acomodou à banca , para contar a sala de armas do Paço de Santa Ireneia por uma noite de Lua -- só conseguiu converter servilmente numa prosa aguada os versos lisos do tio||_Duarte Duarte|_Duarte , sem relevo que os modernizasse , desse majestade senhorial ou beleza saudosa Ãqueles maciços muros onde o luar , deslizando através das rechãs , salpicava centelhas pelas pontas das lanças altas , e pela cimeira dos morriões ... E desde as quatro horas , no calor e silêncio de domingo de junho , labutava , empurrando a pena como lento arado em chão pedregoso , riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e mole , ora num rebuliço , a sacudir e reenfiar sob a mesa os chinelos de marroquim , ora imóvel e abandonado à esterilidade que o travava , com os olhos esquecidos na Torre , na sua dificílima Torre , negra entre os limoeiros e o azul , toda envolta no piar e esvoaçar das andorinhas . Por fim , descoroçoado , arrojou a pena que tão desastrosamente emperrara . E fechando na gaveta , com uma pancada , o volume precioso do Bardo : -- Irra ! Estou perfeitamente entupido ! É este calor ! E depois aquele animal do Casco , toda a manhã ! ... Ainda releu , coçando sombriamente a nuca , a derradeira linha rabiscada e suja : -- " ... Na sala altaneira e larga , onde os largos e pálidos raios da Lua ... " Larga , largos ! ... E os pálidos raios , os eternos pálidos raios ! ... Também este maldito castelo , tão complicado ! ... E este D. Tructesindo , que eu não apanho , tão antigo ! Enfim , um horror ! Atirou , num repelão , a cadeira de couro ; cravou , com furor , um charuto nos dentes ; -- e abalou da livraria , batendo desesperadamente a porta , num tédio imenso da sua obra , daqueles confusos e enredados Paços de Santa Ireneia , e dos seus avós , enormes , ressoantes , chapeados de ferro , e mais vagos que fumos . Bocejando , apertando os cordões das largas pantalonas de seda que lhe escorregavam da cinta , Gonçalo , que durante todo o dia preguiçara , estirado no divã de damasco azul , com uma vaga dor nos rins , atravessou languidamente o quarto para espreitar , no corredor , o antigo relógio de charão . Cinco horas e meia ! ... Para desanuviar , pensou numa caminhada pela fresca estrada dos Bravais . Depois numa visita ( devida já desde a Páscoa ! ) ao velho Sanches Lucena , eleito novamente deputado , nas eleições gerais de Abril , pelo circulo de Vila Clara . Mas a jornada à Feitosa , à quinta do Sanches Lucena , demandava uma hora a cavalo , desagradável com aquela teimosa dor nos rins que o filara na véspera à noite , depois do chá , na Assembleia da vila . E , indeciso , arrastava os passos no corredor , para gritar ao Bento ou à Rosa que lhe subissem uma limonada , quando , através das varandas abertas , ressoou um vozeirão de grosso metal , que gracejando mais se engrossava , rolava pelo pátio , numa cadência cava de malho malhando : -- Oh só Gonçalo ! Oh sô||_Gonçalão Gonçalão|_Gonçalão ! Oh sô||_Gonçalíssimo_Mendes_Ramires Gonçalíssimo|_Gonçalíssimo_Mendes_Ramires Mendes|_Gonçalíssimo_Mendes_Ramires Ramires|_Gonçalíssimo_Mendes_Ramires ! Reconheceu logo o Titó , o António Vilalobos , seu vago parente , e seu companheiro de Vila Clara , onde aquele homenzarrão excelente , de velha raça alentejana , se estabelecera sem motivo , só por afeição bucólica à vila . E havia onze anos que a atulhava com os seus possantes membros , o lento ribombo do seu vozeirão , e a sua ociosidade espalhada pelos bancos , pelas esquinas , pelas ombreiras das lojas , pelos balcões das tabernas , pelas sacristias a caturrar com os padres , até pelo cemitério a filosofar com o coveiro . Era um irmão do velho morgado de Cidadelhe ( o genealogista ) , que lhe estabelecera uma mesada de oito moedas para o conservar longe de Cidadelhe -- e do seu sujo serralho de moças do campo , e da obra tenebrosa a que , agora , se atrelara , a Verídica Inquirição , uma inquirição sobre as bastardias , crimes e títulos ilegítimos das famílias fidalgas de Portugal . E Gonçalo , desde estudante , amara sempre aquele Hércules bonacheirão , que o seduzia pela prodigiosa força , a incomparável potência em beber todo um pipo e em comer todo um anho , e sobretudo pela independência , uma suprema independência , que , apoiada ao bengalão terrífico e com as suas oito moedas dentro da algibeira , nada temia e nada desejava nem da Terra nem do Céu . -- Logo debruçado na varanda , gritou : -- Oh Titó , sobe ! ... Sobe enquanto eu me visto . Tomas um cálice de genebra ... Vamos depois passear até aos Bravais ... Sentado no rebordo do tanque redondo e sem água que ornava o pátio , erguendo para o casarão a sua franca e larga face requeimada , cheia de barba ruiva , o Titá movia lentamente , como um leque , um velho chapéu de palha : -- Não posso ... Ouve lá ! Tu queres hoje à noite cear no Gago , comigo e com o João Gouveia ? Vai também o Videirinha e o violão . Temos uma tainha assada , uma famosa . E enorme , que eu comprei esta manhã a uma mulher da Costa por cinco tostões . Assada pelo Gago ! ... Entendido , hem ? O Gago abre pipa nova de vinho , do abade de Chandim . Eu conheço o vinho . E daqui , da ponta fina . E Titó , com dois dedos , delicadamente , sacudiu a ponta mole da orelha . Mas Gonçalo , repuxando as pantalonas , hesitava : -- Homem , eu ando com o estômago arrasado ... E desde ontem à noite uma dor nos rins , ou no fígado , ou no baço , não sei bem , numa dessas entranhas ! ... Até hoje , para o jantar , só caldo de galinha e galinha cozida ... Enfim ! vá ! Mas , à cautela , recomenda ao Gago que me prepare para mim um franguinho assado ... Onde nos encontramos ? Na Assembleia ? O Titó despegara logo do tanque , pousando na nuca o chapéu de palha : -- Hoje não me gasto pela Assembleia . Tenho senhora . Das dez para as dez e meia , no Chafariz ... Vai também o Videirinha com a viola . Viva ! ... Das dez para as dez e meia ! Entendido ... E franguinho assado para S.||_Exª Exª|_Exª , que se queixa do rim ! E atravessou o pátio , com lentidão bovina , parando a colher numa roseira , junto ao portão , uma rosa com que floriu a quinzena de veludilho cor de azeitona . Imediatamente Gonçalo decidira não jantar , certo dos benefícios daquele jejum até Ãs dez horas , depois de um passeio pelos Bravais e pelo vale da Riosa . E , antes de entrar no quarto para se vestir , empurrou a porta envidraçada sobre a escura escada da cozinha , gritou pela Rosa cozinheira . Mas nem a boa velha , nem o Bento por quem também berrou furiosamente , responderam , no pesado silêncio em que jaziam , como abandonados , esses sombrios fundos de grande laje e de grande abóbada que restavam do antigo palácio , restaurado por Vicente Ramires depois da sua campanha em Castela , incendiado no tempo de El-Rei D. José I. Então Gonçalo desceu dois degraus da gasta escadaria de pedra e atirou outro dos longos brados com que atroava a Torre desde que as campainhas andavam desmanchadas . E descia ainda para invadir a cozinha , quando a Rosa acudiu . Saíra para o pátio da horta com a filha da Crispola ! não sentira o Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor ! ... -- Pois estou a berrar há uma hora ! E nem você nem Bento ! ... É porque não janto . Vou cear a Vila Clara com os amigos . A Rosa , do sonoro fundo do corredor , protestou , desolada . Pois o Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor ficava assim em jejum até horas da noite ? -- Filha dum antigo hortelão da Torre , crescida na Torre , já cozinheira da Torre quando Gonçalo nascera , sempre o tratara por " menino " , e mesmo por " seu riquinho " , até que ele partiu para Coimbra e começou a ser , para ela e para o Bento , o " Sr. Doutor " . -- E o Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor , ao menos , devia tomar o caldinho de galinha , que apurara desde o meio-dia , cheirava que nem feito no Céu ! Gonçalo , que nunca discordava da Rosa ou do Bento , consentiu -- e já subia , quando reclamou ainda a Rosa para se informar da Crispola , uma desgraçada viúva que , com um rancho faminto de crianças , adoecera pela Páscoa de febres perniciosas . -- A Crispola vai melhor , Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor . já se levanta . Diz a pequena que já se levanta ... Mas muito derreadinha ... Gonçalo desceu logo outro degrau , debruçado na escada , para mergulhar mais confidencialmente naquelas tristezas : -- Olhe , oh Rosa , então se a pequena ai está , coitada , que leve para casa à mãe a galinha que eu tinha para jantar . E o caldo ... Que leve a panela ! Eu tomo uma chávena de chá com biscoitos . E olhe ! Mande também dez tostões à Crispola ... Mande dois mil-réis . Escute ! Mas não lhe mande a galinha e o dinheiro assim secamente ... Diga que estimo as melhoras , e que lá passarei por casa para saber . E esse animal do Bento que me suba água quente ! No quarto , em mangas de camisa , diante do espelho , um imenso espelho rolando entre colunas douradas , estudou a língua que lhe parecia saburrosa , depois o branco dos olhos , receando a amarelidão de bílis solta . E terminou por se contemplar na sua feição nova , agora que rapara a barba em Lisboa , conservando o bigodinho castanho frisado e leve , e uma mosca um pouco longa , que lhe alongava mais a face aquilina e fina , sempre duma brancura de nata . O seu desconsolo era o cabelo , bem ondeado , mas ténue e fraco , e , apesar de todas as águas e pomadas , necessitando já risca mais elevada , quase ao meio da testa clara . -- É infernal ! Aos trinta anos estou calvo ... E todavia não se despegava do espelho , numa contemplação agradada , recordando mesmo a recomendação da tia Louredo , em Lisboa : -- Oh sobrinho ! o menino , assim galante e esperto , não se enterre na província ! Lisboa está sem rapazes . Precisamos cá um bom Ramires ! " -- Não ! não se enterraria na província , imóvel sob a hera e a poeira melancólica das coisas imóveis , como a sua Torre ! ... Mas vida elegante em Lisboa , entre a sua parentela histórica , como a aguentaria com o conto e oitocentos mil-réis de renda que lhe restava , pagas as dívidas do papá ? E depois realmente vida em Lisboa só a desejava com uma posição política -- cadeira em S. Bento , influência intelectual no seu Partido , lentas e seguras avançadas para o Poder . E essa , tão docemente sonhada em Coimbra , nas fáceis cavaqueiras do Hotel Mondego -- muito remota a entrevia ! Quase inconquistável , para além de um muro alto e áspero , sem porta e sem fenda ! ... Deputado -- como ? Agora , com o horrendo S.||_Fulgêncio Fulgêncio|_Fulgêncio e os Históricos no Ministério durante três gordos anos , não voltariam Eleições Gerais . E mesmo nalguma Eleição Suplementar que possibilidade lograria ele , que , desde Coimbra , bem levianamente , arrastado por uma elegância de tradições , se manifestara sempre Regenerador , no " Centro " da Couraça , nas correspondências para a Gazeta do Porto , nas verrinas ardentes contra o chefe do Distrito , o Cavaleiro detestável ? ... Agora só lhe restava esperar . Esperar , trabalhando ; ganhando em consistência social ; edificando com sagacidade , sobre a base do seu imenso nome histórico , uma pequenina nomeada política ; tecendo e estendendo a malha preciosa das amizades partidárias , desde Santa Ireneia até ao Terreiro do Paço ... Sim ! eis a teoria esplêndida : -- mas consistência , nomeada , afeições políticas , como se conquistam ? " Advogue , escreva nos Jornais ! " fora o conselho distraído e risonho do seu chefe , o Brás Vitorino . Advogar em Oliveira , mesmo em Lisboa ? Não podia , com aquele seu horror ingénito , quase fisiológico , a autos e papelada forense . Fundar um jornal em Lisboa como o Ernesto Rangel , seu companheiro de Coimbra no Hotel Mondego ? Era façanha fácil para o neto adorado da Srª D. Joaquina Rangel , que armazenava dez mil pipas de vinho nos barracões de Gaia . Batalhar num jornal de Lisboa ? Nessas semanas de Capital , sempre pelo Banco Hipotecário , sempre com as " primas " , nem formara relações duráveis e úteis nos dois grandes Diários Regeneradores , a Manhã e a Verdade ... De sorte que , realmente , nesse muro que o separava da fortuna só descobria um buraquinho , bem apertado m as serviçal -- os ANAIS -- LITERATURA E DE HISTÓRIA , com a sua colaboração de Professores , de Políticos , até dum Ministro , até de um Almirante , o Guerreiro Araújo , esse tonante maçador . Aparecia pois nos ANAIS com a sua Torre , revelando imaginação e um saber rico . Depois , trepando da Invenção para o terreno mais respeitável da Erudição , daria um estudo ( que até lhe lembrara no comboio , ao voltar de Lisboa ! ) sobre as " Origens Visigóticas do Direito Público em Portugal ... " . Oh , nada conhecia , é certo , dessas Origens , desses Visigodos . Mas , com a bela História da Administração Pública em Portugal que lhe emprestara o Castanheiro , comporia corrediamente um resumo elegante ... Depois , saltando da Erudição Ãs Ciências Sociais e Pedagógicas -- por que não amassaria uma boa " Reforma do Ensino jurídico em Portugal " em dois artigos maçudos , de Homem de Estado ? ... Assim avançava , bem chegado aos Regeneradores , construindo e cinzelando o seu pedes tal literário , até que os Regeneradores voltassem ao Ministério , e no muro se escancarasse a desejada porta triunfal . -- E no meio do quarto , em ceroulas , com as mãos nas ilhargas , Gonçalo Mendes Ramires concluiu pela necessidade de apressar a sua novela . -- Mas , quando acabarei eu essa Torre ? assim emperrado , sem veia , com o fígado combalido ? ... O Bento , velho de face rapada e morena , com um lindo cabelo branco todo encarapinhado , muito limpo , muito fresco na sua jaqueta de ganga , entrara vagarosamente , segurando a infusa de água quente . -- Oh Bento , ouve lá ! Tu não encontraste na mala que eu trouxe de Lisboa , ou no caixote , um frasco de vidro com um pó branco ? É um remédio inglês que me deu o Sr.||_Dr._Matos Dr.|_Dr._Matos Matos|_Dr._Matos ... Tem um rótulo em inglês , com um nome inglês , não sei quê , fruit salt ... Quer dizer sal de frutas ... O Bento cravou no soalho os olhos , que depois cerrou , meditando . Sim , no quarto de lavar , em cima do baú vermelho , ficara um frasco com pó , embrulhado num pergaminho antigo como os do Arquivo . -- É esse ! -- declarou Gonçalo . -- Eu precisava em Lisboa uns documentos por causa daquele malvado foro de Praga . E por engano , na balbúrdia , levo do Arquivo um pergaminho perfeitamente inútil ! Vai buscar o rolo ... Mas tem cuidado com o frasco ! O Bento , cuidadoso , sempre lento , ainda enfiou os botões de ágata nos punhos da camisa do Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor , e desdobrou sobre a cama , para ele vestir , a quinzena , as calças bem vincadas , de cheviote leve . E Gonçalo , retomado pela ideia de artigos para os ANAIS , folheava , rente à janela , a História da Administração Pública em Portugal , quando Bento voltou com um rolo de pergaminho , de onde pendia , por fitas roídas , um selo de chumbo . -- Esse mesmo ! -- exclamou o Fidalgo atirando o volume para o poial da janela . -- É esse mesmo que eu enrolei no pergaminho para se não quebrar . Desembrulha , deixa em cima da cómoda ... o Sr.||_Dr._Matos Dr.|_Dr._Matos Matos|_Dr._Matos aconselhou que o tomasse com água tépida , em jejum . Parece que ferve . E limpa o sangue , desanuvia a cabeça ... Pois eu muito necessitado ando de desanuviar a cabeça ! ... Toma tu também , Bento . E diz à Rosa que tome . Todos tomam agora , até o Papa ! Com cuidado , o Bento desenrolara o frasco , estendendo sobre o mármore da cómoda o pergaminho duro , onde a letra do século XVI se encarquilhava amarela e morta . E Gonçalo , abotoando o colarinho : -- Ora ai está o que eu levo preciosamente , para deslindar o foro de Praga ! Um pergaminho do tempo de D. Sebastião ... E só percebo mesmo a data , mil quatrocentos ... Não , mil quinhentos e setenta e sete . Nas vésperas da jornada de África ... Enfim ! serviu para embrulhar o frasco . O Bento , que escolhera no gavetão um colete branco , relanceou de lado o pergaminho venerável : -- Naturalmente foi carta que El-Rei D. Sebastião escreveu a algum avozinho do Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor ... -- Naturalmente -- murmurava o Fidalgo , diante do espelho . -- E para lhe dar alguma coisa boa , alguma coisa gorda ... Antigamente ter rei era ter renda . Agora ... Não apertes tanto essa fivela , homem ! Trago há dias o estômago inchado ... Agora , com efeito , esta instituição de Rei anda muito safada , Bento ! -- Parece que anda -- observou gravemente o Bento . -- Também , o Século afiança que os Reis estão a acabar , e por dias . Ainda ontem afiançava . E o Século é jornal bem informado ... No de hoje , não sei se o Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor leu , lá vem a grande festa dos anos do Sr.||_Sanches_Lucena Sanches|_Sanches_Lucena Lucena|_Sanches_Lucena , e o fogo- de-vista , e o bródio que deram na Feitosa ... Enterrado no divã de damasco , Gonçalo estendera os pés ao Bento , que lhe laçava as botas brancas : -- Esse Sanches Lucena é um idiota ! Ora que arranjo fará a esse homem , aos sessenta anos , ser deputado , passar meses em Lisboa no Francfort , abandonar as propriedades , deixar aquela linda quinta ... E para quê ? Para rosnar de vez em quando " apoiado " ! Antes ele me cedesse a cadeira , a mim , que sou mais esperto , não possuo grandes terras , e gosto do Hotel Bragança . E por Sanches Lucena ... O Joaquim amanhã que me tenha a égua pronta , a esta hora , para eu ir à Feitosa , visitar esse animal ... E ponho então o fato novo de montar que trouxe de Lisboa , com as polainas altas ... há mais de dois anos que não vejo a D. Ana Lucena . É uma linda mulher ! -- Pois quando o Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor estava em Lisboa eles passaram aí , na caleche . Até pararam , e o Sr.||_Sanches_Lucena Sanches|_Sanches_Lucena Lucena|_Sanches_Lucena apontou para a Torre , a mostrar à senhora ... Mulher muito perfeita ! E traz uma grande luneta , com um grande cabo , e um grande grilhão , tudo de ouro ... -- Bravo ! ... Encharca bem esse lenço com água-de-colónia , que tenho a cabeça tão pesada ! ... Essa D. Ana era uma jornaleira , uma moça do campo , de Corinde ? Bento protestou , com o frasco suspenso , espantado para o Fidalgo : -- Não senhor ! A Srª D. Ana Lucena é de gente muito baixa ! Filha de um carniceiro de Ovar ... E o irmão andou a monte por ter morto o ferrador de Ílhavo . -- Enfim -- resumiu Gonçalo -- filha de carniceiro , irmão a monte , bela mulher , luneta de ouro ... Merece fato novo ! Em Vila Clara , Ãs dez horas , sentado num dos bancos de pedra do Chafariz , sob as olaias , o Titó esperava com o amigo João Gouveia -- que era o Administrador do Concelho da vila . Ambos se abanavam com os chapéus , em silêncio , gozando a frescura e o sussurro da água lenta na sombra . E a " meia " batia no relógio da Câmara , quando Gonçalo , que se retardara na Assembleia num voltarete enremissado , apareceu anunciando uma fome terrível , " a fome histórica dos Ramires " , e apressando a marcha para o Gago sem mesmo consentir que o Titó descesse à tabacaria do Brito , a buscar uma garrafa de aguardente de cana da Madeira , velha e " da ponta fina ... " . -- Não há tempo ! Ao Gago ! Ao Gago ! ... Senão devoro um de vocês , com esta furiosa fome Ramírica ! Mas , logo ao subirem a Calçadinha , parou ele cruzando os braços , interpelando divertidamente o Sr. Administrador do Concelho , pelo estupendo feito de seu Governo ... Então o seu Governo , os seus amigos históricos , o seu honradíssimo S.||_Fulgêncio Fulgêncio|_Fulgêncio nomeavam , para Governador Civil de Monforte , o António Moreno ! O António Moreno , tão justamente chamado em Coimbra Antoninha Morena ! Não , realmente , era a derradeira degradação a que podia rolar um país ! Depois desta , para harmonia perfeita dos serviços , só outra nomeação , e urgente -- a da Joana Salgadeira , Procuradora-Geral da Coroa ! E o João Gouveia , um homem pequeno , muito escuro , muito seco , de bigode mais duro que piaçaba , esticado numa sobrecasaca curta , com o chapéu de coco atirado para a orelha , não discordava . Empregado imparcial , servindo os Históricos como servira os Regeneradores sempre acolhia com imparcial ironia as nomeações de bacharéis novos , Históricos ou Regeneradores , para os gordos lugares administrativos . Mas , neste caso , sinceramente , quase vomitara , rapazes ! Governador Civil , e de Monforte , o António Moreno , que ele tantas vezes encontrara no quarto , em Coimbra , vestido de mulher , de roupão aberto , e a carinha bonita coberta de pó-de-arroz ! ... -- E , travando do braço do Fidalgo , recordava a noite em que o José Gorjão , muito bêbado , de cartola e com um revólver , exigia furiosamente que o Padre||_Justino Justino|_Justino , também bêbado , o casasse com o Antoninho diante dum nicho da Senhora||_da|_Boa|_Morte da||_da|_Boa|_Morte Boa||_da|_Boa|_Morte Morte|_da|_Boa|_Morte ! Mas o Titó , que esperava , floreando o bengalão , declarou Ãqueles senhores que se o tempo sobejava para arrastarem assim na rua , a conversar de Política e de indecências -- então voltava ele ao Brito , buscar a aguardentezinha ... Imediatamente o Fidalgo da Torre , sempre brincalhão , sacudiu o braço do Administrador , e galgou pela Calçadinha , aos corcovos , com as mãos fortemente juntas , como colhendo uma rédea , contendo um cavalo que se desboca . E na sala alta do Gago , ao cimo da escada esguia e íngreme que subia da taberna , a um canto da comprida mesa alumiada por dois candeeiros de petróleo , a ceia foi muito alegre , muito saboreada . Gonçalo , que se declarava miraculosamente curado pelo passeio até aos Bravais e pelas emoções do voltarete , em que ganhara dezanove tostões ao Manuel Duarte -- começou por uma pratada de ovos com chouriço , devorou metade da tainha , devastou o seu " frango de doente " , clareou o prato da salada de pepino , findou por um montão de ladrilhos de marmelada ; e através deste nobre trabalho , sem que a fina brancura da sua pele se afogueasse , esvaziou uma caneca vidrada de Alvaralhão , porque logo ao primeiro trago , e com desgosto do Titó , amaldiçoara o vinho novo do abade . À sobremesa apareceu o Videirinha , " o Videirinha do violão " , tocador afamado de Vila Clara , ajudante de Farmácia , e poeta com versos de amor e de patriotismo já impressos no Independente de Oliveira . jantara nessa tarde , com o violão , em casa do comendador Barros , que celebrava o aniversário da sua comenda ; e só aceitou um copo de Alvaralhão , em que esmagou um ladrilho de marmelada " para adocicar a goela " . Depois , à meia-noite , Gonçalo obrigou o Gago a espertar o lume , ferver um café " muito forte , um café terrível , Gago amigo ! um café capaz de abrir talento no Sr.||_Comendador_Barros Comendador|_Comendador_Barros Barros|_Comendador_Barros ! " Era essa a hora divina do violão e do " fadinho " . E já o Videirinha recuara para a sombra da sala , pigarreando , afinando os bordões , pousado com melancolia à borda dum banco alto . -- A Soledad , Videirinha ! -- pediu o bom Titó , pensativo , enrolando um grosso cigarro . Videirinha gemeu deliciosamente a Soledad : Quando fores ao cemitério Ai Soledad , Soledad ! ... Depois , apenas ele findou , aclamado , e enquanto acertava as cravelhas , o Fidalgo da Torre e João Gouveia , com os cotovelos na mesa , os charutos fumegando , conversaram sobre essa venda de Lourenço Marques aos Ingleses , preparada sorrateiramente ( conforme clamavam , arrepiados de horror , os jornais da Oposição ) pelo Governo do S. Fulgêncio . E Gonçalo também se arrepiava ! Não com a alienação da Colónia -- mas com a impudência do S.||_Fulgêncio Fulgêncio|_Fulgêncio ! Que aquele careca obeso , filho sacrílego dum frade que depois se fizera merceeiro em Cabecelhos , trocasse a libras , para se manter mais dois anos no poder , um pedaço de Portugal , terrão augusto , trilhado heroicamente pelos Gamas , os Ataídes , os Castros , os seus próprios avós -- era para ele uma abominação que justificava todas as violências , mesmo uma revolta , e a Casa de Bragança enterrada no lodo do Tejo ! Trincando , sem parar , amêndoas torradas , João Gouveia observou : -- Sejamos justos , Gonçalo Mendes ! Olhe que os Regeneradores ... O Fidalgo sorriu superiormente . Ah ! se os Regeneradores realizassem essa grandiosa operação -- bem ! Esses , primeiramente , nunca cometeriam a indecência de vender a Ingleses terra de Portugueses ! Negociariam com Franceses , com Italianos , povos latinos , raças fraternas ... E depois os bons milhões soantes seriam aplicados ao fomento do País , com saber , com probidade , com experiência . Mas esse horrendo careca do S.||_Fulgêncio Fulgêncio|_Fulgêncio ! ... -- E no seu furor , engasgado , gritou por genebra , porque realmente aquele conhaque do Gago era uma peçonha torpe ! O Titó encolheu os ombros , resignado : -- Não me deixaste ir buscar a aguardentezinha , agora aguenta ... E a genebra é ainda mais peçonhenta . Nem para os negros desse Lourenço Marques que tu queres vender ... Portugueses indecentes , a vender Portugal ! Até o Sr. Administrador do Concelho devia proibir estas conversas ... Mas o Sr. Administrador do Concelho afirmou que as consentia , e rasgadamente ... Porque também ele , como Governo , venderia Lourenço Marques , e Moçambique , e toda a Costa Oriental ! E Ãs talhadas ! Em leilão ! Ali , toda a África , posta em praça , apregoada no Terreiro do Paço ! E sabiam os amigos porquê ? Pelo são princípio de forte administração -- ( estendia o braço , meio alçado do banco , como num Parlamento ) ... Pelo são princípio de que todo o proprietário de terras distantes , que não pode valorizar por falta de dinheiro ou gente , as deve vender para consertar o seu telhado , estrumar a sua horta , povoar o seu curral , fomentar todo o bom terrão que pisa com os pés ... Ora a Portugal restava toda uma riquíssima , província a amanhar , a regar , a lavrar , a semear -- o Alentejo ! O Titó lançou o vozeirão , desdenhando o Alentejo , como uma película de terra de má qualidade , que , fora umas léguas de campos em torno de Beja e de Serpa , por um grão só dava dois , e , apenas esgaravatada , logo mostrava o granito ... -- O mano João tem lá uma herdade imensa , imensíssima , que rende trezentos mil-réis ! O Administrador , que advogara em Mértola , protestou , encristado . O Alentejo ! Província abandonada , sim ! Abandonada miseravelmente , desde séculos , pela imbecilidade dos governos ... Mas riquíssima , fertilíssima ! -- Pois então os Árabes ... E qual Árabes ! Ainda há dias o Freitas Galvão me contava ... Mas Gonçalo Mendes , que cuspira também a genebra com uma carantonha , acudiu , num resumo varredor , condenando todo o Alentejo como uma desgraçada ilusão ! Estirado por sobre a mesa , o Administrador gritava : -- Você já esteve no Alentejo ? -- Também nunca estive na China , e ... -- Então não fale ! Só a vinha espantosa que plantou o João Maria ... -- Quê ! Umas cem pipas de zurrapa ! Mas , noutros sítios , léguas e léguas sem ... -- Um celeiro ! -- Uma charneca ! E através do tumulto o Videirinha , repenicando com solitário ardor , levado na torrente de ais de " fado " da Areosa , soluçava contra uns olhos negros , donos do seu coração : Ai ! que dos teus negros olhos Me vem hoje a perdição ... O petróleo dos candeeiros findava ; e o Gago , reclamado para trazer castiçais , surdiu em mangas de camisa , detrás duma cortina de chita , com a sua esperta humildade banhada em riso , lembrando a Suas Excelências que passava da uma horazinha da noite ... O Administrador , que detestava noitadas , nocivas à sua garganta ( de amígdalas loucamente inflamáveis ) , puxou o relógio com terror . E rapidamente reabotoado na sobrecasaca , de chapéu-coco mais tombado à banda , apressou o lento Titó , porque ambos moravam no alto da vila -- ele defronte do Correio , o outro na viela das Teresas , numa casa onde outrora habitara e aparecera apunhalado o antigo carrasco do Porto . O Titó porém não se aviava . Com o bengalão debaixo do braço , ainda chamou o Gago ao fundo sombrio da sala estreita , para cochichar sobre o embrulhado negócio duma compra de espingarda , soberba espingarda Winchester , empenhada ao Gago pelo filho do tabelião Guedes de Oliveira . E , quando desceu a escadaria , encontrou à porta da taberna , no estendido luar que orlava a rua adormecida , o Fidalgo da Torre e o João Gouveia , bruscamente engalfinhados na costumada contenda sobre o Governador Civil de Oliveira -- o André Cavaleiro ! Era sempre a mesma briga , pessoal , furiosa e vaga . Gonçalo clamando que não aludissem diante dele , pelas cinco chagas de Cristo , a esse bandido , esse Sr.||_Cavaleiro Cavaleiro|_Cavaleiro e sobretudo Cavalo , mandão burlesco que desorganizava o Distrito ! E João Gouveia , muito teso , muito seco , com o coco mais caído na orelha , assegurando a inteligência superior do amigo Cavaleiro , que estabelecera limpeza e ordem , como Hércules , nas cavalariças de Oliveira ! O Fidalgo rugia . E Videirinha , com o violão resguardado atrás das costas , suplicava aos amigos que recolhessem à taberna , para não alvorotar a rua ... -- Tanto mais que defronte , coitada , a sogra do Dr.||_Venâncio Venâncio|_Venâncio está desde ontem com a pontada ! -- Pois então -- berrou Gonçalo -- não venham com disparates que revoltam ! Dizer você , Gouveia , que Oliveira nunca teve Governador Civil como o Cavaleiro ! ... Não é por meu pai ! O papá já lá vai há três anos , infelizmente . Concordo que não fosse boa autoridade . Era frouxo , andava doente ... Mas depois tivemos o Visconde de Freixomil . Tivemos o Bernardino . Você serviu com eles . Eram dois homens ! ... Mas este cavalo deste Cavaleiro ! A primeira condição , para a autoridade superior dum Distrito , é não ser burlesca . E o Cavaleiro é de entremez ! Aquela guedelha de trovador , e a horrenda bigodeira negra , e o olho languinhento a pingar namoro , e o papo empinado , e o pó-pó- poh ! É de entremez ! E estúpido , duma estupidez fundamental , que lhe começa nas patas , vem subindo , vem crescendo . Oh senhores , que animal ! ... Sem contar que é malandro . Teso na sombra do imenso Titó , como uma estaca junto duma torre , o Administrador mordia o charuto . Depois , de dedo espetado , com uma serenidade cortante : -- Você acabou ? ... Pois , Gonçalinho , agora escute ! Em todo o distrito -- Oliveira , note bem , em todo ele ! não há ninguém , absolutamente ninguém , que de longe , muito de longe , se compare ao Cavaleiro em inteligência , carácter , maneiras , saber , e finura política ! O Fidalgo da Torre emudeceu , varado . Por fim , sacudindo o braço , num desabrido , arrogante desprezo : -- Isso são as opiniões dum subalterno ! -- E isso são as expressões dum malcriado ! -- uivou o outro , crescendo todo , com os olhinhos esbugalhados a fuzilar . Imediatamente entre os dois , mais grosso que um barrote , avançou o braço do Titó , estendendo uma sombra na calçada : -- Olá ! Oh rapazes ! Que desconchavo é este ? Vocês estão borrachos ? ... Pois tu , Gonçalo ... Mas já Gonçalo , num desses seus impulsos generosos e amoráveis que tão finamente seduziam , se humilhava , confessava a sua brutalidade , sensibilizado : -- Perdoe você , João Gouveia ! Sei perfeitamente que você defende o Cavaleiro por amizade , não por dependência ... Mas que quer , homem ? Quando me falam nesse Cavalo ... Não sei , é por contágio da besta , orneio , atiro coice ! O Gouveia , sem rancor , logo reconciliado ( porque admirava carinhosamente o Fidalgo da Torre ) , deu um puxão forte à sobrecasaca e apenas observou " que o Gonçalinho era uma flor , mas picava ... " . Depois , aproveitando a emoção submissa de Gonçalo , recomeçou a glorificação do Cavaleiro , mais sóbria . Reconhecia certas fraquezas . Sim , com efeito , aquele modo empertigado ... Mas que coração ! -- E o Gonçalinho devia considerar ... O Fidalgo , de novo revoltado , recuou , espalmando as mãos : -- Escute você , oh João Gouveia ! Por que é que você lá em cima , à ceia , não comeu a salada de pepino ? Estava divina , até o Videirinha a apeteceu ! Eu repeti , acabei a travessa ... Por que foi ? Porque você tem horror fisiológico , horror visceral ao pepino . A sua natureza e o pepino são incompatíveis . Não há raciocínios , não há subtilezas , que o persuadam a admitir lá dentro o pepino . Você não duvida que ele seja excelente , desde que tanta gente de bem o adora ; mas você não pode ... Pois eu estou para o Cavaleiro como você para o pepino . Não posso ! Não há molhos , nem razões , que mo disfarcem . Para mim é ascoroso . Não vai ! Vomito ! ... E agora oiça ... Então Titó , que bocejava , interveio , já farto : -- Bem ! Parece-me que apanhámos a nossa dose de Cavaleiro , e valente ! Somos todos muito boas pessoas e só nos resta debandar . Eu tive senhora , tive tainha ... Estou derreado . E não tarda a madrugada , que vergonha ! O Administrador pulou . Oh Diabo ! E ele , Ãs nove horas da manhã , com comissão de recenseamento ! ... Para esmagar bem o amuo , cingiu Gonçalo num rijo abraço . E , quando o Fidalgo descia para o Chafariz com o Videirinha ( que nestas noites festivas de Vila Clara o acompanhava sempre pela estrada até ao portão da Torre ) , João Gouveia ainda se voltou , pendurado do braço do Titó no meio da Calçadinha , para lhe lembrar um preceito moral " de não sei que filósofo " : -- " Não vale a pena estragar boa ceia por causa de má política Creio que é de Aristóteles ! E até Videirinha , que de novo afinava a viola , se preparava para um solto descante ao luar , murmurou respeitosamente por entre abafados harpejos : -- Não vale a pena , Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor ... Realmente não vale a pena , porque em Política hoje é branco , amanhã é negro , e depois , zás , tudo é nada . O fidalgo encolhera os ombros . A Política ! como se ele pensasse na Autoridade , no Sr.||_Governador_Civil_de_Oliveira Governador|_Governador_Civil_de_Oliveira Civil|_Governador_Civil_de_Oliveira de|_Governador_Civil_de_Oliveira Oliveira|_Governador_Civil_de_Oliveira -- quando injuriava o Sr.||_André_Cavaleiro André|_André_Cavaleiro Cavaleiro|_André_Cavaleiro , de Corinde ! Não ! o que detestava era o homem -- o falso homem de olho langoroso ! Porque entre eles existia um desses fundos agravos que outrora , no tempo dos Tructesindos , armavam um contra o outro , em dura arrancada de lanças , dois bandos senhoriais ... -- E pela estrada , com a Lua no alto dos outeiros de Valverde , enquanto no violão do Videirinha tremia o choro lento do fado do Vimioso , Gonçalo Mendes recordava , aos pedaços , aquela história que tanto enchera a sua alma desocupada . Ramires e Cavaleiros eram famílias vizinhas , uma com a velha torre em Santa Ireneia , mais velha que o reino -- a outra com quinta bem tratada e rendosa em Corinde . E quando ele , rapaz de dezoito anos , enfiava enfastiadamente os preparatórios do Liceu , André Cavaleiro , então estudante do Terceiro Ano , já o tratava como um amigo sério . Durante as férias , como a mãe lhe dera um cavalo , aparecia todas as tardes na Torre ; e muitas vezes , sob os arvoredos da quinta ou passeando pelos arredores de Bravais e Valverde , lhe confiava , como a um espírito maduro , as suas ambições políticas , as suas ideias de vida ; que desejava grave e toda votada ao Estado . Gracinha Ramires desabrochava na flor dos seus dezasseis anos ; e mesmo em Oliveira lhe chamavam " a Flor da Torre " . Ainda então vivia a governanta inglesa de Gracinha , a boa miss||_Rhodes Rhodes|_Rhodes -- que , como todos na Torre , admirava com entusiasmo André Cavaleiro pela sua amabilidade , a sua ondeada cabeleira romântica , a doçura quebrada dos seus olhos largos , a maneira ardente de recitar Vítor Hugo e João de Deus . E , com essa fraqueza que lhe amolecia a alma e os princípios perante a soberania do Amor , favorecera demoradas conversas de André com Maria da Graça sob as olaias do mirante e mesmo cartinhas trocadas ao escurecer , por sobre o muro baixo da Mãe-d' água . Todos os domingos o Cavaleiro jantava na Torre : -- e o velho procurador Rebelo já preparara , com esforço e resmungando , um conto de réis para o enxoval da " menina " . O pai de Gonçalo , Governador Civil de Oliveira , sempre atarefado , enredado em Política e em dívidas , amanhecendo só na Torre aos domingos , aprovava esta colocação de Gracinha , que , meiga e romanesca , sem mãe que a velasse , criava na sua vida , já difícil , um tropeço e um cuidado . Sem representar como ele uma família de imensa crónica , anterior ao Reino , do mais rico sangue de Reis godos , André Cavaleiro era um moço bem-nascido , filho de general , neto de desembargador , com brasão legítimo na sua casa apalaçada de Corinde , e terras fartas em redor , de boa semeadura , limpas de hipotecas ... Depois , sobrinho de Reis Gomes , um dos Chefes Históricos , já filiado no Partido Histórico ( desde o Segundo Ano da Universidade ) , a sua carreira andava marcada com segurança e brilho na Política e na Administração . E enfim Maria da Graça amava enlevadamente aqueles reluzentes bigodes , os ombros fortes de Hércules bem-educado , o porte ufano que lhe encouraçava o peitilho e que impressionava . Ela , em contraste , era pequenina e frágil , com uns olhos tímidos e esverdeados que o sorriso humedecia e enlanguescia , uma transparente pele de porcelana fina , e cabelos magníficos , mais lustrosos e negros que a cauda dum corcel de guerra , que lhe rolavam até aos pés , em que se podia embrulhar toda , assim macia e pequenina . Quando desciam ambos as alamedas da quinta , miss||_Rhodes Rhodes|_Rhodes ( que o pai , professor de Literatura Grega em Manchester , recheara de Mitologia ) pensava sempre em " Marte cheio de força , amando Psiqué cheia de graça " . E mesmo os criados da Torre se maravilhavam do " lindo par ! " Só a Sr a D. Joaquina Cavaleiro , a mãe de André , senhora obesa e rabugenta , detestava aquela terna assiduidade do filho na Torre , sem motivo pesado , só por " desconfiar da pinta da menina e desejar nora mais comezinha ... " . Felizmente , quando André Cavaleiro se matriculava no Quinto Ano , a desagradável matrona morreu duma anasarca . O pai de Gonçalo recebeu a chave do caixão ; Gracinha tomou luto ; e Gonçalo , companheiro de casa do Cavaleiro na Rua de S. João , em Coimbra , enrolou um fumo na manga da batina . Logo em Santa Ireneia se pensou que o esplêndido André , liberto da peca oposição da mamã , pediria a " Flor da Torre " depois do Acto de Formatura . Mas , findo esse desejado Acto , Cavaleiro abalou para Lisboa -- porque se preparavam eleições em Outubro , e ele recebera do tio||_Reis_Gomes Reis|_Reis_Gomes Gomes|_Reis_Gomes , então Ministro da justiça , a promessa de " ser deputado " por Bragança . E todo esse Verão o passou na Capital ; depois em Sintra , onde o negro langor dos seus olhos húmidos amolecia corações ; depois numa jornada quase triunfal a Bragança , com foguetes e " vivas ao sobrinho do Sr.||_Conselheiro_Reis_Gomes Conselheiro|_Conselheiro_Reis_Gomes Reis|_Conselheiro_Reis_Gomes Gomes|_Conselheiro_Reis_Gomes ! " Em Outubro , Bragança " confiou ao Dr. André Cavaleiro ( como escreveu o Eco de Trás-os-Montes ) o direito de a representar em Cortes , com os seus brilhantes conhecimentos literários e a sua formosíssima presença de orador ... " . Recolheu então a Corinde ; mas nas suas visitas à Torre , onde o pai de Gonçalo convalescia duma febre gástrica , que exacerbara a sua antiga diabetes , André já não arrastava sofregamente Gracinha como outrora , para as silenciosas sombras da quinta , permanecendo de preferência na sala azul , a conversar sobre Política com Vicente Ramires , que se não movia da poltrona , embrulhado numa manta . E Gracinha , nas suas cartas para Coimbra a Gonçalo , já se carpia de não correrem tão doces nem tão íntimas as visitas do André à Torre , " ocupado , como andava sempre agora , a estudar para deputado ... " . Depois do Natal o Cavaleiro voltou para Lisboa , para a abertura das Cortes , muito apetrechado , com o seu criado Mateus , uma linda égua que comprara em Vila Clara ao Manuel Duarte , e dois caixotes de livros . E a boa miss||_Rhodes Rhodes|_Rhodes sustentava que Marte , como convinha a um herói , só reclamaria Psiqué depois de um nobre feito , uma estreia nas Câmaras , " num discurso lindo , todo flores ... " . Quando Gonçalo , nas férias de Páscoa , apareceu na Torre , encontrou Gracinha inquieta e descorada . As cartas do seu André , que se estreara " e num discurso lindo , todo flores ... " , eram cada semana mais curtas , mais calmas . E a última ( que ela lhe mostrou em segredo ) , datada da Câmara , contava em três linhas mal rabiscadas " que tivera muito que trabalhar em comissões , que o tempo se pusera lindo , que nessa noite era o baile dos condes -- Vilaverde , e que ele continuava com muitas saudades do seu fiel André ... " . Gonçalo Mendes Ramires , logo nessa tarde desabafou com o pai , que definhava na sua poltrona : -- Eu acho que o André se está portando muito mal com a Gracinha ... O papá não lhe parece ? Vicente Ramires apenas moveu , num gesto de vencida tristeza , a mão descarnada , de onde a cada momento lhe escorregava o anel de armas . Por fim em Maio a sessão das Câmaras terminou -- essa sessão que tanto interessara Gracinha , ansiosa " que eles acabassem de discutir e tivessem férias " . E quase imediatamente ela em Santa Ireneia , Gonçalo em Coimbra , souberam pelos jornais que " o talentoso deputado||_André_Cavaleiro André|_André_Cavaleiro Cavaleiro|_André_Cavaleiro partira para Itália e França , numa longa viagem de recreio e de estudo " . E nem uma carta à sua escolhida , quase sua noiva ! ... Era um ultraje , um bruto ultraje , que outrora , no século XII , lançaria todos os Ramires , com homens de cavalo e peonagem , sobre o solar dos Cavaleiros , para deixar cada trave denegrida pela chama , cada servo pendurado duma corda de cânave . Agora Vicente Ramires , apagado e mortal , murmurou simplesmente : " Que traste ! " Ele em Coimbra , rugindo , jurou esbofetear um dia o infame ! A boa miss||_Rhodes Rhodes|_Rhodes , para se consolar , desembrulhou a sua velha harpa , encheu Santa Ireneia de magoados harpejos . E tudo findou nas lágrimas que Gracinha , durante semanas , tão desconsolada da vida que nem se penteava , escondeu sob as olaias do mirante . E , ainda depois desses anos , a esta lembrança das lágrimas da irmã , um rancor invadiu Gonçalo , tão redivivo que atirou para o lado , para sobre as sebes da vala , uma bengalada , com se fosse às costas do Cavaleiro ! -- Caminhavam então junto à ponte da Portela , onde os campos se alargam , e da estrada se avista Vila Clara , que a Lua branqueava toda , desde o convento de Santa Teresa , rente ao Chafariz , até ao muro novo do cemitério , no alto , com os seus finos ciprestes . Para o fundo do vale , clara também no luar , era a igrejinha de Craquede , Santa Maria de Craquede , resto do antigo Mosteiro em que ainda jaziam , nos seus rudes túmulos de granito , as grandes ossadas dos Ramires Afonsinos . Sob o arco , docemente , o riacho lento , arrastando entre os seixos , sussurrava na sombra . E Videirinha , enlevado naquele silêncio e suavidade saudosa , cantava , num gemer surdo de bordões : Baldadas são tuas queixas , Escusados são teus ais , Que é como se eu morto fora , E não me verás nunca mais ! ... E Gonçalo retomara as suas recordações , repassava tristezas que depois caíram sobre a Torre . Vicente Ramires morrera numa tarde de Agosto , sem sofrimento , estendido na sua poltrona à varanda , com os olhos cravados na velha Torre , murmurando para o " Padre||_Soeiro Soeiro|_Soeiro : -- " Quantos Ramires verá ela ainda , nesta casa , e à sua sombra ? ... " Todas essas férias as consumiu Gonçalo no escuro cartório , desajudado ( porque o procurador , o bom Rebelo , também Deus o chamara ) , revolvendo papéis , apurando o estado da casa reduzida aos dois contos e trezentos mil-réis que rendiam os foros de Craquede , a herdade de Praga , e as duas quintas históricas , Treixedo e Santa Ireneia . Quando regressou a Coimbra deixou Gracinha em Oliveira , em casa de uma prima , D. Arminda Nunes Viegas , senhora muito abastada , muito bondosa , que habitava no Terreiro da Louça um imenso casarão cheio de retratos de avoengos e de árvores de costado , onde ela , vestida de veludo preto , pousada num canapé de damasco , entre aias que fiavam , perpetuamente relia os seus livros de cavalaria , o Amadis , Leandro o Belo , Tristão e Brancaflor , as Crónicas do Imperador Clarimundo ... Foi ai que José Barrolo ( senhor de uma das mais ricas casas de Amarante ) encontrou Gracinha Ramires , e a amou com uma paixão profunda , quase religiosa -- estranha naquele moço indolente , gorducho , de bochechas coradas como uma maçã , e tão escasso de espírito que os amigos lhe chamavam " o José Bacoco " . O bom Barrolo residira sempre em Amarante com a mãe , não conhecia o traído romance da " Flor da Torre " -- que nunca se espalhara para além dos cerrados arvoredos da quinta . E , sob o enternecido e romanesco patrocínio de D. Arminda , noivado e casamento docemente se apressaram , em três meses , depois duma carta de Barrolo a Gonçalo Mendes Ramires , jurando -- " que a afeição pura que sentia pela prima Graça , pelas suas virtudes e outras qualidades respeitáveis , era tão grande que nem achava no Dicionário termos para a explicar ... " . Houve uma boda luxuosa ; e os noivos ( por desejo de Gracinha , para se não afastar da querida Torre ) , depois duma jornada filial a Amarante , " armaram o seu ninho " em Oliveira , à esquina do largo de El-Rei e da Rua das Tecedeiras , num palacete que o Bacoco herdara , com largas terras , do seu tio||_Melchior Melchior|_Melchior , Deão da Sé . Dois anos correram , mansos e sem história . E Gonçalo Mendes Ramires passava justamente em Oliveira as suas últimas férias de Páscoa , quando André Cavaleiro , nomeado Governador Civil do Distrito , tomou posse , estrondosamente , com foguetes , filarmónicas , o Governo Civil e o Paço do Bispo iluminados , as armas dos Cavaleiros em transparentes no Café da Arcada e na Recebedoria ! ... Barrolo conhecia o Cavaleiro quase intimamente , admirava o seu talento , a sua elegância , o seu brilho político . Mas Gonçalo Mendes Ramires , que dominava soberanamente o bom Bacoco , logo o intimou a não visitar o Sr.||_Governador_Civil Governador|_Governador_Civil Civil|_Governador_Civil , a não o saudar sequer na rua , e a partilhar , por dever de aliança , os rancores que existiam entre Cavaleiros e Ramires ! José Barrolo cedeu , submisso , espantado , sem compreender . Depois uma noite , no quarto , enfiando as chinelas , contou a Gracinha " a esquisitice de Gonçalo " : -- E sem motivo , sem ofensa , só por causa da Política ! ... Ora , vê tu ! Um belo rapaz como o Cavaleiro ! ... Podíamos fazer um ranchinho tão agradável ! ... Outro sereno ano passou ... E nessa Primavera , em Oliveira , onde se demorara para a festa dos anos de Barrolo , eis que Gonçalo suspeita , fareja , descobre uma incomparável infâmia ! O empertigado homem da bigodeira negra , o Sr.||_André_Cavaleiro André|_André_Cavaleiro Cavaleiro|_André_Cavaleiro , recomeçara com soberba impudência a cortejar Gracinha Ramires , de longe , mudamente , em olhadelas fundas , carregadas de saudade e langor , procurando agora apanhar como amante aquela grande fidalga , aquela Ramires , que desdenhara como esposa ! Tão levado ia Gonçalo pela branca estrada , no rolo amargo destes pensamentos , que não reparou no portão da Torre , nem na portinha verde , à esquina da casa , sobre três degraus . E seguia , rente do muro da horta , quando Videirinha , que estacara com os dedos mudos nos bordões do violão , o avisou rindo . -- Oh , Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor , então larga assim a estas horas , de corrida para os Bravais ? Gonçalo virou , bruscamente despertado , procurando na algibeira , entre o dinheiro solto , a chavinha do trinco : -- Nem reparava ... Que lindamente você tem tocado , Videirinha ! Com Lua , depois da ceia , não há companheiro mais poético ... Realmente você é o derradeiro trovador português ! Para o ajudante de Farmácia , filho de um padeiro de Oliveira , a familiaridade daquele tamanho Fidalgo , que lhe apertava a mão na botica diante do Pires boticário e em Oliveira diante das autoridades , constituía uma glória , quase uma coroação , e sempre nova , sempre deliciosa . Logo sensibilizado , feriu os bordões rijamente : -- Então , para acabar , lá vai a grande trova , Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor ! Era a sua famosa cantiga , o Fado dos Ramires , rosário de heróicas quadras celebrando as lendas da Casa ilustre -- que ele desde meses apurava e completava , ajudado na terna tarefa pelo saber do velho Padre||_Soeiro Soeiro|_Soeiro , capelão e arquivista da Torre . Gonçalo empurrou a portinha verde . No corredor espirrava uma lamparina mortiça , já sem azeite , junto ao castiçal de prata . E Videirinha , recuando ao meio da estrada , com um " dlindlon " ardente , fitara a Torre , que , por cima dos telhados da vasta casa , mergulhava as ameias , o negro miradouro , no luminoso silêncio do céu de Verão . Depois , para ela e para a Lua , atirou as endechas glorificadoras , na dolente melodia dum fado de Coimbra , rico em ais : Quem te v ' rá sem que estremeça , Torre de Santa Ireneia , Assim tão negra e calada , Por noites de lua cheia ... Ai ! Assim calada , tão negra , Torre de Santa Ireneia ! Ainda suspendeu para agradecer ao Fidalgo , que o convidava a subir e enxugar um cálice de genebra salvadora . Mas retomou logo o descante , ditoso em descantar , como sempre arrebatado pelo sabor dos seus versos , pelo prestígio das lendas , enquanto Gonçalo desaparecia -- com folgazãs desculpas ao Trovador " por cerrar a portinha do castelo ... " . Ai ! aí estás , forte e soberba , Com uma história em cada ameia , Torre mais velha que o reino , Torre de Santa Ireneia ! ... E começara a quadra a Múncio Ramires , Dente de Lobo , quando em cima uma sala , aberta à frescura da noite , se alumiou -- e o Fidalgo da Torre , com o charuto aceso , se debruçou da varanda para receber a serenata . Mais ardente , quase soluçante , vibrou o cantar do Videirinha . Agora era a quadra de Gutierres Ramires , na Palestina , sobre o monte das Oliveiras , à porta da sua tenda , diante dos barões que o aclamavam com as espadas nuas , recusando o Ducado de Galileia e o senhorio das Terras de Além-Jordão . -- Que não podia , em verdade , aceitar terra , mesmo Santa , mesmo de Galileia ... Quem já tinha em Portugal Terras de Santa Ireneia ! -- Boa piada ! -- murmurou Gonçalo . Videirinha , entusiasmado , entoou logo outra nova , trabalhada nessa semana -- a do saimento de Aldonça Ramires , Santa Aldonça , trazida do mosteiro de Arouca ao solar de Treixedo , sobre o almadraque em que morrera , aos ombros de quatro Reis ! -- Bravo ! -- gritou o Fidalgo pendurado da varanda . -- Essa é famosa , oh Videirinha ! Mas aí há Reis de mais ... Quatro Reis ! Enlevado , empinando o braço do violão , o ajudante de Farmácia lançou outra , já antiga -- a daquele terrível Lopo Ramires que , morto , se erguera da sua campa no Mosteiro de Craquede , montara um ginete morto , e toda a noite galopara através da Espanha para se bater nas Navas de Tolosa ! Pigarreou -- e , mais chorosamente , atacou a do Descabeçado : Lá passa a negra figura ... Mas Gonçalo , que abominava aquela lenda , a silenciosa figura degolada , errando por noites de Inverno entre as ameias da Torre com a cabeça nas mãos -- despegou da varanda , deteve a crónica imensa : -- Toca a deitar , oh Videirinha , hem ? Passa das três horas , é um horror . Olhe ! O Titó e o Gouveia jantam cá na Torre , no domingo . Apareça também , com o violão e cantiga nova ; mas menos sinistra ... Bona sera ! Que linda noite ! Atirou o charuto , fechou a vidraça da sala -- a " sala velha " , toda revestida desses denegridos e tristonhos retratos de Ramires , que ele desde pequeno chamava as carantonhas dos vovós . E , atravessando o corredor , ainda sentia rolarem ao longe , no silêncio dos campos cobertos de luar , façanhas rimadas dos seus : Ai ! lá na grande batalha ... El-Rei Dom||_Sebastião Sebastião|_Sebastião ... O mais moço dos Ramires Que era pajem do guião ... Despido , soprada a vela , depois de um rápido sinal da Cruz , o Fidalgo da Torre adormeceu . Mas no quarto , que se povoou de sombras , começou para ele uma noite revolta e pavorosa . André Cavaleiro e João Gouveia romperam pela parede , revestidos de cotas de malha , montados em horrendas tainhas assadas ! E lentamente , piscando o olho mau , arremessavam contra o seu pobre estômago pontoadas de lança , que o faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau-preto . Depois era , na Calçadinha de Vila Clara , o medonho Ramires morto , com a ossada a ranger dentro da armadura , e El-Rei D. Afonso II , arreganhando afiados dentes de lobo , que o arrastavam furiosamente para a batalha das Navas . Ele resistia , fincado nas lajes , gritando pela Rosa , por Gracinha , pelo Titó ! Mas D. Afonso tão rijo murro lhe despedia aos rins , com o guante de ferro , que o arremessava desde a hospedaria do Gago até à Serra Morena , ao campo da lide , luzente e fremente de pendões e de armas . E imediatamente seu primo de Espanha , Gomes Ramires , Mestre de Calatrava , debruçado do negro ginete , lhe arrancava os derradeiros cabelos , entre a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os prantos da tia||_Louredo Louredo|_Louredo , trazida como um andor aos ombros de quatro Reis ! ... -- Por fim , moído , sem sossego , já com a madrugada clareando nas fendas das janelas e as andorinhas piando no beiral dos telhados , o Fidalgo da Torre atirou um derradeiro repelão aos lençóis , saltou ao soalho , abriu a vidraça -- e respirou deliciosamente o silêncio , a frescura , a verdura , o repouso da quinta . Mas que sede ! uma sede desesperada que lhe encortiçava os lábios ! Recordou então o famoso fruit salt que lhe recomendara o Dr. Matos , -- arrebatou o frasco , correu à sala de jantar , em camisa . E , a arquejar , deitou duas fartas colheradas num copo de água da Bica Velha , que esvaziou dum trago , na fervura picante . -- Ah ! que consolo , que rico consolo ! ... Voltou derreadamente à cama ; e readormeceu logo , muito longe , sobre as relvas profundas dum prado de África , debaixo de coqueiros sussurrantes , entre o apimentado aroma de radiosas flores , que brotavam , através de pedregulhos de oiro . Dessa perfeita beatitude o arrancou o Bento , ao meio-dia , inquieto com " aquele tardar do Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor " . -- É que passei uma noite horrenda , Bento ! Pesadelos , pavores , bulhas , esqueletos ... Foram os malditos ovos com chouriço ; e o pepino ... Sobretudo o pepino ! Uma ideia daquele animal do Titó ... Depois , de madrugada , tomei o tal fruit salt , e estou óptimo , homem ! ... Estou optimíssimo ! Até me sinto capaz de trabalhar . Leva para a livraria uma chávena de chá verde , muito forte ... Leva também torradas . E momentos depois , na livraria , com um roupão de flanela sobre a camisa de dormir , sorvendo lentos goles de chá , Gonçalo relia junto da varanda essa derradeira linha da novela , tão rabiscada e mole , em que " os largos raios da Lua se estiravam pela larga sala de armas ... " . De repente , numa rasgada impressão de claridade , entreviu detalhes expressivos para aquela noite de Castelo e de Verão -- as pontas das lanças dos esculcas faiscando silenciosamente pelos adarves da muralha , e o coaxar triste das rãs nas bordas lodosas dos fossos ... -- Bons traços ! Achegou devagar a cadeira , consultou ainda no volume do Bardo o poemeto do tio||_Duarte Duarte|_Duarte . E , desanuviado , sentindo as imagens e os dizeres surgirem como bolhas duma água represa que rebenta , atacou esse lance do Capítulo I em que o velho Tructesindo Ramires , na sala de armas de Santa Ireneia , conversava com seu filho Lourenço e seu primo D. Garcia Viegas , o Sabedor , de aprestos de guerra ... Guerra ! Porquê ? Acaso pelos cerros arraianos corriam , ligeiros entre o arvoredo , almogávares mouros ? Não ! Mas desgraçadamente , " naquela terra já remida e cristã , em breve se cruzariam , umas contra outras , nobres lanças portuguesas ! ... " Louvado Deus ! a pena desemperrara ! E , atento Ãs páginas marcadas num tomo da História de Herculano , esboçou com segurança a época da sua novela -- que abria entre as discórdias de Afonso II e de seus irmãos por causa do testamento de El-Rei seu pai , D. Sancho I. Em esse começo do capítulo já os Infantes||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro e D. Fernando , esbulhados , andavam por França e Leão . já com eles abandonara o Reino o forte primo dos Ramires , Gonçalo Mendes de Sousa , chefe magnífico da casa dos Sousas . E agora , encerradas nos castelos de Montemor e de Esgueira , as senhoras Infantas , D. Teresa e D. Sancha , negavam a D. Afonso o senhorio real sobre as vilas , fortalezas , herdades e mosteiros , que tão copiosamente lhes doara El-Rei seu pai . Ora , antes de morrer no Alcáçar de Coimbra , o senhor||_D._Sancho D.|_D._Sancho Sancho|_D._Sancho suplicara a Tructesindo Mendes Ramires , seu colaço e alferes-mor , por ele armado cavaleiro em Lorvão , que sempre lhe servisse e defendesse a filha amada entre todas , a Infanta D. Sancha , senhora -- Aveiras . Assim o jurara o leal Rico-Homem junto do leito onde , nos braços do Bispo de Coimbra e do Prior do Hospital sustentando a candeia , agonizava , vestido de burel como um penitente , o vencedor de Silves ... Mas eis que rompe a fera contenda entre Afonso II , asperamente cioso da sua autoridade de Rei -- e as Infantas , orgulhosas , impelidas à resistência pelos freires do Templo e pelos prelados a quem D. Sancho legara tão vastos pedaços do Reino ! Imediatamente Alenquer e os arredores de outros castelos são devastados pela hoste real que recolhia das Navas de Tolosa . Então D. Sancha e D. Teresa apelam para el-Rei de Leão , que entra com seu filho D. Fernando por terras de Portugal , a socorrer as " Donas oprimidas " . -- E neste lance o tio||_Duarte Duarte|_Duarte , no seu Castelo de Santa Ireneia , interpelava com soberbo garbo o alferes-mor de Sancho I : Que farás tu , mais velho dos Ramires ? Se ao pendão leonês juntas o teu Trais o preito que deves ao rei vivo ! Mas se as Infantas deixas indefesas Trais a jura que destes ao rei morto ! ... Esta dúvida , porém , não angustiara a alma desse Tructesindo rude e leal , que o Fidalgo da Torre rijamente modelava . Nessa noite , apenas recebera pelo irmão do alcaide de Aveiras , disfarçado em beguino , um aflito recado da senhora||_D._Sancha D.|_D._Sancha Sancha|_D._Sancha -- ordenava a seu filho Lourenço que , ao primeiro arrebol , com quinze lanças , cinquenta homens de pé da sua mercê e quarenta besteiros , corresse sobre Montemor . Ele , no entanto , daria alarido -- e em dois dias entraria a campo com os parentes de solar , um troço mais rijo de cavaleiros acontiados e de frecheiros , para se juntar a seu primo , o Sousão , que na vanguarda dos leoneses descia de Alva do Douro . Depois , logo de madrugada , o pendão dos Ramires , o açor negro em campo escarlate , se plantara diante das barreiras gateadas ; e ao lado , no chão , amarrado à haste por uma tira de couro , reluzia o velho emblema senhorial , o sonoro e fundo caldeirão polido . Por todo o castelo se apressavam os serviçais , despendurando as cervilheiras , arrastando com fragor pelas lajes os pesados saios de malhas de ferro . Nos pátios os armeiros aguçavam ascumas , amaciavam a dureza das grevas e coxotes com camadas de estopa . já o adail , na ucharia , arrolara as rações de vianda para os dois quentes dias da arrancada . E por todas as cercanias de Santa Ireneia , na doçura da tarde , os tambores mouriscos , abafados no arvoredo , rataplã ! rataplã ! ou mais vivos nos cabeços , ratatá ! ratatá ! convocavam os cavaleiros de soldo e a peonagem da mesnada dos Ramires . No entanto o irmão do alcaide , sempre disfarçado em beguino , de volta ao castelo de Aveiras com a boa-nova de prestes socorros , transpunha ligeiramente a levadiça da carcova ... E aqui , para alegrar tão sombrias vésperas de guerra , o tio||_Duarte Duarte|_Duarte , no seu poemeto , engastara uma sorte galante : À moça , que na fonte enchia a bilha , O frade rouba um beijo e diz Amen ! Mas Gonçalo hesitava em desmanchar com um beijo de clérigo a pompa daquela formosa surtida de armas ... E mordia pensativamente a rama da pena -- quando a porta da livraria rangeu . -- O correio ... Era o Bento com os jornais e duas cartas . O Fidalgo apenas abriu uma , lacrada com o enorme sinete de armas do Barrolo -- repelindo a outra em que reconhecera a letra detestada do seu alfaiate de Lisboa . E imediatamente , com uma palmada na mesa : -- Oh diabo ! quantos do mês , hoje ? catorze , hem ? O Bento esperava com a mão no fecho da porta . -- É que não tardam os anos da mana Graça ! De todo esqueci , esqueço sempre . E sem ter um presentinho engraçado ... Que seca , hem ? Mas na véspera o Manuel Duarte , na Assembleia , à mesa do voltarete , anunciara uma fuga a Lisboa por três dias , para tratar do emprego do sobrinho nas Obras Públicas . Pois corria a Vila Clara pedir ao Sr.||_Manuel_Duarte Manuel|_Manuel_Duarte Duarte|_Manuel_Duarte , que lhe comprasse em Lisboa um bonito guarda- solinho de seda branca com rendas ... -- O Sr.||_Manuel_Duarte Manuel|_Manuel_Duarte Duarte|_Manuel_Duarte tem gosto ; tem muito gosto ! E então o Joaquim que não sele a égua ; já não vou ao Sanches Lucena . Oh , senhores , quando pagarei eu esta infame visita ? Há três meses ! ... Enfim , por dois dias mais , a bela D. Ana não envelhece ; e o velho Lucena também não morre . E o Fidalgo da Torre , que decidira arriscar o beijo folgazão , retomou a pena , arredondou o seu final com elegante harmonia : " A moça , furiosa , gritou : Fu ! Fu ! vilão ! E o beguino , assobiando , aligeirou as sandálias pelo córrego , na sombra das altas faias , enquanto que , por todo o fresco vale , até Santa Maria de Craquede , os tambores mouriscos , rataplã ! rataplã ! convocavam à mesnada dos Ramires , na doçura da tarde ... " Durante a longa semana , nas horas da calma , o Fidalgo da Torre trabalhou com aferro e proveito . E nessa manhã , depois de repicar a sineta no corredor , duas vezes o Bento empurrara a porta da livraria , avisando o " Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor " que o almocinho , assim à espera , certamente se estragava " . Mas de sobre a tira de almaço Gonçalo rosnava " já vou ! " -- sem despegar a pena , que corria como quilha leve em água mansa , na pressa amorosa de terminar , antes do almoço , o seu Capítulo I. Ah ! e que canseira lhe custara , durante esses dias , esse copioso capítulo , tão difícil , com o imenso castelo de Santa Ireneia a erguer ; e toda uma idade esfumada da História de Portugal , a condensar em contornos robustos ; e a mesnada dos Ramires a apetrechar , sem que faltasse uma ração nos alforges , ou uma garruncha nos caixotes , sobre o dorso das mulas ! Mas felizmente , na véspera , já movera para fora do castelo o troço de Lourenço Ramires , em socorro de Montemor , com um vistoso coriscar de capelos e lanças em torno ao pendão tendido . E agora , nesse remate do capítulo , era noite , e o sino de recolher tangera , e a almenara luzira na Torre albarrã , e Tructesindo Ramires descera à sala térrea da Alcáçova para cear -- quando fora , diante da carcova , com três toques fortes anunciando filho de algo , uma buzina apressada soou . E , sem que o vílico tomasse permissão do senhor , o alçapão da levadiça rangeu nas correntes de ferro , ribombou cavamente nos apoios de pedra . Quem assim chegava em dura pressa era Mendo Pais , amigo de Afonso II e mordomo da sua cúria , casado com a filha mais velha de Tructesindo , D. Teresa aquela que , pelo ondeante e alvo pescoço , pelo pisar mais leve que um voo , os Ramires chamavam a Garça Real . O senhor -- Santa Ireneia correra ao patim para acolher , num abraço , o genro amado -- " membrudo cavaleiro , com os cabelos ruivos , a alvíssima pele da raça germânica dos visigodos ... " . E , de mãos enlaçadas , ambos penetraram nessa sala de abóbada , alumiada por tochas que toscos anéis de ferro seguravam , chumbados aos muros . Ao meio pousava a maciça mesa de carvalho , rodeada de escanhos até ao topo , onde se erguia , diante dum áspero mantel de linho coberto de pratos de estanho e de pichéis luzidios , a cadeira senhorial com o açor grossamente lavrado nas altas espaldas , e delas suspensa , pelo cinturão tauxiado de prata , a espada de Tructesindo . Por trás negrejava a funda lareira apagada , toda entulhada de ramos de pinheiro , com a prateleira guamecida de conchas , entre bocais de sanguessugas , sob dois molhos de palmas trazidas da Palestina por Gutierres Ramires , o de Ultramar . Rente a um esteio da chaminé , um falcão , ainda emplumado , dormitava na sua alcândora ; e ao lado , sobre as lajes , numa camada de juncos , dois alões enormes dormiam também , com o focinho nas patas , as orelhas rojando . Toros de castanheiro sustentavam a um canto um pipo de vinho . Entre duas frestas engradadas de ferro , um monge , com a face sumida no capuz , sentado na borda duma arca , lia , à claridade do candil que por cima fumegava , um pergaminho desenrolado ... Assim Gonçalo adornara a soturna sala Afonsina com alfaias tiradas do tio||_Duarte Duarte|_Duarte , de Walter Scott , de narrativas do Panorama . Mas que esforço ! ... E mesmo , depois de colocar sobre os joelhos do monge um fólio impresso em Mogúncia por Ulrick Zell , desmanchara toda essa linha tão erudita , ao recordar , com um murro na mesa , que ainda a Imprensa se não inventara em tempos de seu avô||_Tructesindo Tructesindo|_Tructesindo , e que ao monge letrado apenas competia " um pergaminho de amarelada escrita ... " . E caminhando nos ladrilhos sonoros , desde a lareira até ao arco da porta cerrado por uma cortina de couro , Tructesindo , com a branca barba espalhada sobre os braços cruzados , escutava Mendo Pais , que , na confiança de parente e amigo , jornadeara sem homens da sua mercê , cingindo apenas por cima do brial de lã cinzenta uma espada curta e um punhal sarraceno . Açodado e coberto de pó correra Mendo Pais desde Coimbra para suplicar ao sogro , em nome do Rei e dos preitos jurados , que se não bandeasse com os de Leão e com as senhoras Infantas . E já desenrolara ante o velho todos os fundamentos invocados contra elas pelos doutos notários da cúria -- as resoluções do Concílio de Toledo ! a bula do Apóstolo de Roma , Alexandre ! o velho foro dos Visigodos ! ... De resto , que injúria fizera Ãs senhoras Infantas seu real irmão , para assim chamarem hostes leonesas a terras de Portugal ? Nenhuma ! Nem regedoria nem renda dos castelos e vilas da doação de D. Sancho lhes negava o senhor||_D._Afonso D.|_D._Afonso Afonso|_D._Afonso . O Rei de Portugal só queria que nenhum palmo de chão português , baldio ou murado , jazesse fora de seu senhorio real . Escasso e ávido , El-Rei D. Afonso ? ... Mas não entregara ele à senhora||_D._Sancha D.|_D._Sancha Sancha|_D._Sancha oito mil morabitinos de oiro ? E a gratidão da irmã fora o Leonês passando a raia e logo caídos os castelos formosos de Ulgoso , de Contrasta , de Urros e de Lanhoselo ! O mais velho da casa dos Sousas , Gonçalo Mendes , não se encontrara ao lado dos cavaleiros da Cruz na jornada das Navas , mas lá andava em recado das Infantas , como mouro , talando terra portuguesa desde Aguiar até Miranda ! E já pelos cerros de Além-Douro aparecera o pendão renegado das treze arruelas -- e por trás , farejando , a alcateia dos Castros ! Carregada ameaça , e de armas cristãs , oprimindo o Reino -- quando ainda Moabitas e Agarenos corriam à rédea solta pelos campos do Sul ! ... E o honrado senhor -- Santa Ireneia , que tão rijamente ajudara a fazer o Reino , não o deveria decerto desfazer , arrancando dele os pedaços melhores para monges e para donas rebeldes ! -- Assim , com arremessados passos , exclamara Mendo Pais , tão acalorado do esforço e da emoção , que duas vezes encheu de vinho uma conca de pau e de um trago a despejou . Depois , limpando a boca às costas da mão trémula : -- Ide por certo a Montemor , senhor||_Tructesindo_Ramires Tructesindo|_Tructesindo_Ramires Ramires|_Tructesindo_Ramires ! Mas em recado de paz e boa avença , persuadir vossa senhora||_D._Sancha D.|_D._Sancha Sancha|_D._Sancha e as senhoras Infantas que voltem honradamente a quem hoje contam por seu pai e seu Rei ! O enorme senhor -- Santa Ireneia parara , pousando no genro os olhos duros , sob a ruga das sobrancelhas , hirsutas e brancas como sarças em manhã de geada : -- Irei a Montemor , Mendo Pais , mas levar o meu sangue e dos meus para que justiça logre , quem justiça tem . Então Mendo Pais , amargurado , ante a heróica teima : -- Maior dó , maior dó ! Será bom sangue de Ricos-Homens , vertido por más desforras ... Senhor||_Tructesindo_Ramires Tructesindo|_Tructesindo_Ramires Ramires|_Tructesindo_Ramires , sabei que em Canta Pedra vos espera Lopo de Baião , o Bastardo , para vos tolher a passagem com cem lanças ! Tructesindo ergueu a vasta face -- com um riso tão soberbo e claro que os alões rosnaram torvamente , e , acordando , o falcão esticou a asa lenta : -- Boa-nova e de boa esperança ! E , dizei , senhor mordomo-mor da cúria , tão de feição e certa assim ma trazeis para me intimidar ? -- Para vos intimidar ? ... Nem o senhor||_Arcanjo_S._Miguel Arcanjo|_Arcanjo_S._Miguel S.|_Arcanjo_S._Miguel Miguel|_Arcanjo_S._Miguel vos intimidaria , descendo do Céu com toda a sua hoste e a sua espada de lume ! De sobra o sei , senhor||_Tructesindo_Ramires Tructesindo|_Tructesindo_Ramires Ramires|_Tructesindo_Ramires . Mas casei na vossa casa . E já que nesta lide não sereis por mim bem ajudado , quero , ao menos , que sejais bem avisado . O velho Tructesindo bateu as palmas para chamar os sergentes : -- Bem , bem , a cear , pois ! À ceia , Frei Múnio ! ... E vós , Mendo Pais , deixai receios . -- Se deixo ! Não vos pode vir dano que me anseie de cem lanças , de duzentas , que vos surjam a caminho . E , enquanto o monge enrolava o seu pergaminho , se acercava da mesa -- Mendo Pais ajuntou com tristeza , desafivelando vagarosamente o cinturão da espada : -- Só um cuidado me pesa . E é que , nesta jornada , senhor meu sogro , ides ficar de mal com o Reino e com o Rei . -- Filho e amigo ! De mal ficarei com o Reino e com o Rei , mas de bem com a honra e comigo ! Este grito de fidelidade , tão altivo , não ressoava no poemeto do tio||_Duarte Duarte|_Duarte . E quando o achou , com inesperada inspiração , o Fidalgo da Torre , atirando a pena , esfregou as mãos , exclamou , enlevado : -- Caramba ! Aqui há talento ! Rematou logo o capítulo . Estava esfalfado , à banca do trabalho desde as nove horas , a reviver intensamente , e em jejum , as energias magníficas dos seus fortes avós ! Numerou as tiras -- fechou na gaveta à chave o volume do Bardo . Depois à janela , com o colete desabotoado , ainda lançou o brado genial num grave e rouco tom , como o lançaria Tructesindo : -- " ... de mal com o Reino e com o Rei , mas de bem com a honra e comigo ! ... " E sentia nele realmente toda a alma de um Ramires , como eles eram no século XII , de sublime lealdade , mais presos à sua palavra que um santo ao seu voto , e alegremente desbaratando , para o manter , bens , contentamento e vida ! O Bento , que espalhara outro repique desesperado , escancarou a porta da livraria : -- É o Pereira ... Está lá em baixo no pátio o Pereira , que quer falar ao Sr.||_Doutor Doutor|_Doutor . Gonçalo Mendes franziu a testa , com impaciência , assim repuxado daquelas alturas onde respirava os nobres espíritos da sua raça : -- Que maçada ! ... O Pereira ... Que Pereira ? O Pereira ; o Manuel Pereira , da Riosa ; o Pereira Brasileiro . Era um lavrador , com casal na Riosa , chamado Brasileiro por ter herdado vinte contos de um tio , regatão no Pará . Comprara então terras , trazia arrendada a Cortiga , a falada propriedade dos condes -- Monte Agra , envergava aos domingos uma sobrecasaca de pano fino , e dispunha de sessenta votos na Freguesia . -- Ah ! Diz ao Pereira que suba , que conversamos enquanto almoço ... E põe outro talher . A sala de jantar da Torre , que abria por três portas envidraçadas para uma funda varanda alpendrada , conservava , do tempo do avô||_Damião Damião|_Damião ( o tradutor de Valerius Flaccus ) , dois formosos panos de Arrás representando a Expedição dos Argonautas . Louças da Índia e do Japão , desirmanadas e preciosas , recheavam um imenso armário de mogno . E sobre o mármore dos aparadores rebrilhavam os restos , ainda ricos , das pratas famosas dos Ramires , que o Bento constantemente areava e polia com amor . Mas Gonçalo , sobretudo de Verão , sempre almoçava e jantava na varanda luminosa e fresca , bem esteirada , revestida até meio-muro por finos azulejos do século XVIII , e oferecendo a um canto , para as preguiças do charuto , um profundo canapé de palhinha com almofadas de damasco . Quando lá entrou , com os jornais da manhã que não abrira , o Pereira esperava , encostado a um grosso guarda-sol de paninho escarlate , considerando pensativamente a quinta que , dali se abrangia até aos álamos da ribeira do Couce e aos outeiros suaves de Valverde . Era um velho esgalgado e rijo , todo ossos , com um carão moreno , de olhos miudinhos e azulados , e uma barbicha rala , já branca , entre dois enormes colarinhos presos por botões de oiro . Homem de propriedade , acostumado à Cidade e ao trato das Autoridades , estendeu largamente a mão ao Fidalgo da Torre , e aceitou , sem embaraço , a cadeira que ele lhe empurrara para a mesa -- onde dominavam , com os seus ricos lavores , duas altas infusas de cristal antigo , uma cheia de açucenas e a outra de vinho verde . -- Então , que bom vento o traz pela Torre , Pereira amigo ? Não o vejo desde Abril ! -- É verdade , meu Fidalgo , desde o sábado em que caiu a grande trovoada , na véspera da eleição ! -- confirmou o Pereira afagando o cabo do guarda-sol , que conservara entre os joelhos . Gonçalo , numa esfaimada pressa do almoço , repicou a campainha de prata . Depois rindo : -- E os seus votos , Pereira amigo , segundo o costume , lá foram para o eterno Sanches Lucena , direitinhos , como os rios vão para o mar ! O Pereira também riu , com um riso agradado que lhe descobria os maus dentes . Pois o círculo era uma propriedade do Sr.||_Sanches_Lucena Sanches|_Sanches_Lucena Lucena|_Sanches_Lucena ! Cavalheiro de fortuna , homem de bem , conhecedor , serviçal ... E então , quando lhe calhava como em Abril o apoio do Governo , nem Nosso Senhor||_Jesus_Cristo Jesus|_Jesus_Cristo Cristo|_Jesus_Cristo que voltasse à terra e se propusesse por Vila Clara , desalojava o patrão da Feitosa ! O Bento , vagaroso , de jaqueta de lustrina preta sobre o avental resplandecente , entrava com um prato de ovos estrelados , quando o Fidalgo , que desdobrara o guardanapo , o amarrotou , arremessou com nojo : -- Este guardanapo já serviu ! Eu estou farto de gritar . Não me importa guardanapo roto , ou com passagens , ou com remendos ... Mas branquinho , fresquinho cada manhã , a cheirar a alfazema ! E reparando no Pereira , que discretamente arredava a cadeira : -- O quê ! Você não almoça , Pereira ? ... Não , agradecia muito ao Fidalgo , mas nessa tarde comia as sopas com o genro nos Bravais , que era festa pelos anos do netinho . -- Bravo ! Parabéns , Pereira amigo ! Dê lá um beijo meu ao netinho ... Mas então ao menos um copo de vinho verde . -- Entre as comidas , meu Fidalgo , nem água nem vinho . Gonçalo farejara , arredara os ovos . E reclamou o " jantar da família " , sempre muito farto e saboroso na Torre , e começando por essas pesadas sopas de pão , presunto e legumes , que ele desde criança adorava e chamava as palanganas . Depois , barrando de manteiga uma bolacha : -- Pois francamente , Pereira , esse seu Sanches Lucena não faz honra ao círculo ! Homem excelente , decerto , respeitável , obsequiador ... Mas mudo , Pereira ! Inteiramente mudo ! O lavrador roçou vagarosamente pelas ventas cabeludas o lenço vermelho , enrolado em bola : -- Sabe as coisas , pensa com acerto ... -- Sim ! mas pensamento e acerto não lhe saem de dentro do crânio ! Depois está muito velho , Pereira ! Que idade terá ele ? Sessenta ? -- Sessenta e cinco . Mas de gente muito rija , meu Fidalgo . O avô durou até aos cem anos . E ainda o conheci na loja ... -- Como , na loja ? Então o Pereira , enrolando mais o lenço , estranhou que o Fidalgo não soubesse a história do Sanches Lucena . Pois o avô , o Manuel Sanches , era um linheiro do Porto , da Rua das Hortas . E casado também com uma moça muito vistosa , muito farfalhuda ... -- Bem ! -- atalhou o Fidalgo . -- Isso é honroso para o Sanches Lucena . Gente que engordou , que trepou ... E eu concordo , Pereira , o círculo deve mandar a Lisboa um homem como o Sanches Lucena , que tenha nele terra , raízes , interesses , nome ... Mas é preciso que seja também homem com talento , com arrojo . Um deputado , que , nas grandes questões , nas crises , se erga , transporte a Câmara ! ... E depois , Pereira amigo , em Política , quem mais grita mais arranja . Olhe a estrada da Riosa ! Ainda em papel , a lápis vermelho ... E , se o Sanches Lucena fosse homem de berrar em S. Bento , já o Pereira trazia por lá os seus carros a chiar . O Pereira abanou a cabeça , com tristeza : -- Aí talvez o Fidalgo acerte ... Para essa estradinha da Riosa sempre faltou quem gritasse . Aí talvez o Fidalgo acerte ! Mas o Fidalgo emudecera , embebido na cheirosa sopa , dentro duma caçoila nova , com raminhos de -- hortelã . E então o Pereira , acercando mais a cadeira , cruzou no rebordo da mesa as mãos , que meio século de trabalho na terra tornara negras e duras como raízes -- e declarou que se atrevera a incomodar o Fidalgo , Ãquelas horas do almocinho , porque nessa semana começava um corte de madeiras para os lados de Sandim , e desejava , antes que surdissem outros arranjos , conversar com S.||_Ex.ª Ex.ª|_Ex.ª sobre o arrendamento da Torre ... Gonçalo reteve a colher , num pasmo risonho : -- Você queria arrendar a Torre , Pereira ? -- Queria conversar com V. Exª. Como o Relho está despedido ... -- Mas eu já tratei com o Casco , o José Casco dos Bravais ! Ficámos meio apalavrados , há dias ... há mais de uma semana .