Eça DE QUEIROZ O CRIME DE+O PADRE AMARO SCENAS DE+A VIDA DEVOTA TERCEIRA EDIÇÃO Inteiramente refundida , recomposta , e differente na fórma e na acção da edição primitiva PORTO LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON Casa editora * LUGAN & GEMELIOUX , Successores * 1889 Todos os direitos reservados Porto : Typ . de A. J. da Silva Teixeira , Cancella Velha , 70 O Crime do Padre||_Amaro Amaro|_Amaro recebeu no Brazil e em Portugal alguma attenção da Critica , quando foi publicado ulteriormente um romance intitulado -- O Primo Bazilio . E no Brazil e em Portugal escreveu-se ( sem todavia se adduzir nenhuma prova effectiva ) que O Crime do Padre Amaro era uma imitação do romance do snr. E. Zola -- La Faute de l ' Abbé Mouret ; ou que este livro do auctor do Assomoir e de outros magistraes estudos sociaes suggerira a idéa , os personagens , a intenção do Crime do Padre Amaro . Eu tenho algumas razões para crêr que isto não é correcto . O Crime do Padre||_Amaro Amaro|_Amaro foi escripto em 1871 , lido a alguns amigos em 1872 , e publicado em 1874 . O livro do snr. Zola , La Faute de l ' Abbé Mouret ( que é o quinto volume da série Rougon Macquart ) , foi escripto e publicado em 1875 . Mas ( ainda que isto pareça sobrenatural ) eu considero esta razão apenas como subalterna e insufficiente . Eu podia , emfim , ter penetrado no cerebro , no pensamento do snr. Zola , e ter avistado , entre as fórmas ainda indecisas das suas creações futuras , a figura do abbade Mouret , -- exactamente como o veneravel Anchises no valle dos Elyseos podia vêr , entre as sombras das raças vindouras fluctuando na nevoa luminosa do Lethes , aquelle que um dia devia ser Marcellus . Taes coisas são possiveis . Nem o homem prudente as deve considerar mais extraordinarias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos céos -- e outros prodigios provados . O que , segundo penso , mostra melhor que a accusação carece de exactidão , é a simples comparação dos dois romances . La Faute de l ' Abbé Mouret é , no seu episodio central , o quadro allegorico da iniciação do primeiro homem e da primeira mulher no amor . O abbade Mouret ( Sergio ) , tendo sido atacado d' uma febre cerebral , trazida principalmente pela sua exaltação mystica no culto da Virgem , na solidão d' um valle abrazado da Provença ( primeira parte do livro ) , é levado para convalescer ao Paradou , antigo parque do seculo XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem , e que é a representação allegorica do Paraiso . Ahi , tendo perdido na febre a consciencia de si mesmo a ponto de se esquecer do seu sacerdocio e da existencia da aldeia , e a consciencia do universo a ponto de ter medo do sol e das arvores do Paradou como de monstros estranhos -- erra , durante mezes , pelas profundidades do bosque inculto , com Albina que é o genio , a Eva d' esse logar de legenda ; Albina e Sergio , semi-nús como no Paraiso , procuram sem cessar , por um instincto que os impelle , uma arvore mysteriosa , da rama da qual cae a influencia aphrodisiaca da materia procreadora ; sob este symbolo da Arvore da Sciencia se possuem , depois de dias [ angustiosos em que tentam descobrir , na sua innocencia paradisiaca , o meio physico de realisar o amor ; depois , n ' uma mutua vergonha subita , notando a sua nudez , cobrem-se de folhagens ; e d' ahi os expulsa , os arranca o padre||_Archangins Archangins|_Archangins , que é a personificação theocratica do antigo Archanjo . Na ultima parte do livro o abbade Mouret recupera a consciencia de si mesmo , subtrae-se á influencia dissolvente da adoração da Virgem , obtem por um esforço da oração e um privilegio da graça a extincção da sua virilidade , e torna-se um asceta sem nada d' humano , uma sombra cahida aos pés da cruz ; e , é sem que lhe mude a côr ao rosto que asperge e responsa o esquife de Albina , que se asphyxiou no Paradou sob um montão de flôres de perfumes fortes . Os criticos intelligentes que accusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l ' Abbé Mouret não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do snr. Zola que foi talvez a origem de toda a sua gloria . A semelhança casual dos dois titulos induziu-os em erro . Com conhecimento dos dois livros , só uma obtusidade cornea ou má fé cynica poderia assemelhar esta bella allegoria idyllica , a que está misturado o pathetico drama d' uma alma mystica , ao Crime do Padre Amaro que , como podem vêr n ' este novo trabalho , é apenas , no fundo , uma intriga de clerigos e de beatas tramada e murmurada á sombra d' uma velha Sé de provincia portugueza . Aproveito este momento para agradecer á Critica do Brazil e de Portugal a attenção que ella tem dado aos meus trabalhos . Bristol , 1 -- janeiro de 1880 . Eça do Queiroz . Foi no domingo de Paschoa que se soube em Leiria que o parocho da Sé , José Migueis , tinha morrido de madrugada com uma apoplexia . O parocho era um homem sanguineo e nutrido , que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões . Contavam-se historias singulares da sua voracidade . O Carlos de a Botica -- que o detestava -- costumava dizer , sempre que o via sahir depois da sésta , com a face afogueada de sangue , muito enfartado : -- Lá vai a giboia esmoer . Um dia estoura ! Com effeito estourou , depois d' uma ceia de peixe -- á hora em que defronte , na casa do dr.||_Godinho Godinho|_Godinho que fazia annos , se polkava com alarido . Ninguem o lamentou , e foi pouca gente ao seu enterro . Em geral não era estimado . Era um aldeão ; tinha os modos e os pulsos d' um cavador , a voz rouca , cabellos nos ouvidos , palavras muito rudes . Nunca fôra querido das devotas : arrotava no confessionario ; e , tendo vivido sempre em freguezias da aldeia ou da serra , não comprehendia certas sensibilidades requintadas da devoção : perdera por isso , logo ao principio , quasi todas as confessadas , que tinham passado para o polido padre||_Gusmão Gusmão|_Gusmão , tão cheio de labia ! E quando as beatas , que lhe eram fieis , lhe iam fallar de escrupulos , de visões , José Migueis escandalisava-as , rosnando : -- Ora historias , santinha ! Peça juizo a Deus ! Mais miôlo na bola ! As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no : -- Coma-lhe e beba-lhe , costumava gritar , coma-lhe e beba-lhe , creatura ! Era miguelista -- e os partidos liberaes , as suas opiniões , os seus jornaes enchiam-no d' uma cólera irracionavel : -- Cacete ! cacete ! exclamava , meneando o seu enorme guardasol vermelho . Nos ultimos annos tomára habitos sedentarios e vivia isolado -- com uma criada velha e um cão , o Joli . O seu unico amigo era o chantre Valladares que governava então o bispado , porque o senhor bispo D. Joaquim gemia , havia dois annos , o seu rheumatismo n ' uma quinta do alto Minho . O parocho tinha um grande respeito pelo chantre , homem sêcco , de grande nariz , muito curto de vista , admirador d' Ovidio -- que fallava fazendo sempre boquinhas e com allusões mythologicas . O chantre estimava-o . Chamava-lhe Frei Hercules . -- Hercules pela força , explicava sorrindo , Frei pela gula . No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova ; e , como costumava offerecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa d' ouro , disse aos outros conegos , baixinho , ao deixar-lhe cahir sobre o caixão , segundo o ritual , o primeiro torrão de terra : -- É a ultima pitada que lhe dou ! Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado ; o conego Campos contou-a á noite ao chá em casa do deputado||_Novaes Novaes|_Novaes ; foi celebrada com risos deleitados , todos exaltaram as virtudes do chantre , e affirmou-se com respeito -- que sua excellencia tinha muita pilheria ! Dias depois do enterro appareceu , errando pela Praça , o cão do parocho , o Joli . A criada entrára com sezões no hospital ; a casa fôra fechada ; o cão , abandonado , gemia a sua fome pelos portaes . Era um gôso pequeno , extremamente gordo , -- que tinha vagas semelhanças com o parocho . Com o habito das batinas , avido d' um dono , apenas via um padre punha-se a seguil- o , ganindo baixo . Mas nenhum queria o infeliz Joli ; enxotavam-no com as ponteiras dos guardasoes ; o cão , repellido como um pretendente , toda a noite uivava pelas ruas . Uma manhã appareceu morto ao pé da Misericordia ; a carroça do estrume levou-o e , como ninguem tornou a vêr o cão na Praça , o parocho José Migueis foi definitivamente esquecido . Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro parocho . Dizia-se que era um homem muito novo , sahido apenas do seminario . O seu nome era Amaro Vieira . Attribuia-se a sua escolha a influencias politicas , e o jornal de Leiria , A Voz do Districto , que estava na opposição , fallou com amargura , citando o Golgotha , no favoritismo da côrte e na reacção clerical . Alguns padres tinham-se escandalisado com o artigo ; conversou-se sobre isso , acremente , diante do senhor chantre . -- Não , não , lá que ha favor , ha ; e que o homem tem padrinhos , tem , disse o chantre . A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia ( Brito Correia era então ministro da justiça ) . Até me diz na carta que o parocho é um bello rapagão . De sorte que -- acrescentou sorrindo com satisfação -- depois de Frei Hercules vamos talvez ter Frei Apollo . Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o parocho novo : era o conego Dias que fôra , nos primeiros annos do seminario , seu mestre de Moral . No seu tempo , dizia o conego , o parocho era um rapaz franzino , acanhado , cheio de espinhas carnaes ... -- Parece que o estou a vêr com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas ! ... De resto bom rapaz . E espertote ... [ 5 ] O conego Dias era muito conhecido em Leiria . Ultimamente engordára , o ventre saliente enchia-lhe a batina ; e a sua cabecinha grisalha , as olheiras papudas , o beiço espesso faziam lembrar velhas anecdotas de frades lascivos e glotões . O tio||_Patricio Patricio|_Patricio , o antigo , negociante da Praça , muito liberal , e que quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila , dizia às vezes ao vêl- o atravessar a Praça , pesado , ruminando a digestão , encostado ao guardachuva : -- Que maroto ! Parece mesmo D. João VI ! O conego vivia só com uma irmã velha , a snr.a D. Josepha Dias , e uma criada , que todos conheciam tambem em Leiria , sempre na rua , entrouxada n ' um chale tingido de negro e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo . O conego Dias passava por ser rico ; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas , dava jantares com perú , e tinha reputação o seu vinho duque de 1815 . Mas o facto saliente da sua vida -- o facto commentado e murmurado -- era a sua antiga amizade com a snr.a Augusta Caminha , a quem chamavam a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira , por ser natural de S.||_João_da_Foz João|_João_da_Foz da|_João_da_Foz Foz|_João_da_Foz . A S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira morava na rua da Misericordia e recebia hospedes . Tinha uma filha , a Ameliasinha , rapariga de vinte e tres annos , bonita , forte , muito desejada . O conego Dias mostrára um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira . Na botica do Carlos , na Praça , na sacristia da Sé exaltou os seus bons estudos no seminario , a sua prudencia de costumes , a sua obediencia : gabava-lhe mesmo a voz : " um timbre que é um regalo ! " -- Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa está a calhar ! Predizia-lhe com emphase um destino feliz , uma conesia decerto , talvez a gloria d' um bispado ! E um dia , emfim , mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé , creatura servil e calada , uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira . Era uma tarde de agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova . Andava então a construir-se a estrada da Figueira : o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido , já se passava sobre a Ponte Nova , muito gabada , com os seus dois largos arcos de pedra , fortes e atarracados . Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação ; ainda se via o lodoso caminho da freguezia -- Marrazes , que a estrada nova devia desbastar e encorporar ; camadas de cascalho cobriam o chão ; e os grossos cylindros de pedra , que acalcam e recamam os macadams , enterravam-se na terra negra e humida das chuvas . Em roda da Ponte a paizagem é larga e tranquilla . Para o lado d' onde o rio vem são collinas baixas , de fórmas arredondadas , cobertas da rama verde-negra dos pinheiros novos ; em baixo , na espessura dos arvoredos , estão os casaes que dão áquelles logares melancolicos uma feição mais viva e humana -- com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol , com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados . Para o lado do mar , para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros pallidos , estende-se até os primeiros areaes o campo de Leiria , largo , fecundo , com o aspecto de aguas abundantes , cheio de luz . Da Ponte pouco se vê da cidade ; apenas uma esquina das cantarias pesadas e jesuiticas da Sé , um canto do muro do cemiterio coberto de parietarias , e pontas agudas e negras dos cyprestes ; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações rebeldes , onde destacam as ruinas do Castello , todas envolvidas á tarde nos largos vôos circulares dos mochos , desmanteladas e com um grande ar historico . Ao pé da Ponte , uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco á beira do rio . É um logar recolhido , coberto de arvores antigas . Chamam-lhe a Alameda Velha . Alli , caminhando devagar , fallando baixo , o conego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira , e sobre " uma idéa que ella lhe dera , que lhe parecia de mestre ! De mestre ! " Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse uma casa de aluguel , barata , bem situada , e se fosse possivel mobilada ; fallava sobretudo de quartos n ' uma casa de hospedes respeitavel . " Bem vê o meu caro Padre-Mestre , dizia Amaro , que era isto o que verdadeiramente me convinha ; eu não quero luxos , está claro : um quarto e uma saleta seria o bastante . O que é necessario é que a casa seja respeitavel , socegada , central ; que a patrôa tenha bom genio e que não peça mundos e fundos ; deixo tudo isto á sua prudencia e capacidade , e creia que todos estes favores não cahirão em terreno ingrato . Sobretudo que a patrôa seja pessoa accommodada e de boa lingua . " Ora a minha idéa , amigo Mendes , é esta : mettêl- o em casa da S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira ! resumiu o conego com um grande contentamento . É rica idéa , hein ? -- Soberba idéa ! disse o coadjutor com a sua voz servil . -- Ella tem o quarto de baixo , a saleta pegada e o outro quarto que póde servir de escriptorio . Tem boa mobilia , boas roupas ... -- Ricas roupas , disse o coadjutor com respeito . O conego continuou : -- É um bello negocio para a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira : dando os quartos , roupas , comida , criada , póde muito bem pedir os seus seis tostões por dia . E depois sempre tem o parocho de casa . -- Por causa da Ameliasinha é que eu não sei , considerou timidamente o coadjutor . Sim , póde ser reparado . Uma rapariga nova ... Diz que o senhor parocho é ainda novo ... Vossa senhoria sabe o que são linguas do mundo . O conego tinha parado : -- Ora historias ! Então o padre||_Joaquim Joaquim|_Joaquim não vive debaixo das mesmas telhas com a afilhada da mãi ? E o conego Pedroso não vive com a cunhada , e uma irmã da cunhada , que é uma rapariga de dezenove annos ? Ora essa ! [ 9 ] -- Eu dizia ... attenuou o coadjutor . -- Não , não vejo mal nenhum . A S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira aluga os seus quartos , é como se fosse uma hospedaria . Então o secretario geral não esteve lá uns poucos de mezes ? -- Mas um ecclesiastico ... insinuou o coadjutor . -- Mais garantias , snr. Mendes , mais garantias ! exclamou o conego . E parando , com uma attitude confidencial : -- E depois a mim é que me convinha , Mendes ! A mim é que me convinha , meu amigo ! Houve um pequeno silencio . O coadjutor disse , baixando a voz : -- Sim , vossa senhoria faz muito bem á S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira ... -- Faço o que posso , meu caro amigo , faço o que posso , disse o conego . E com uma entonação terna , risonhamente paternal : -- que ella é merecedora , é merecedora . Boa até alli , meu amigo ! -- Parou , esgazeando os olhos : -- Olhe que dia em que eu não lhe appareça pela manhã ás nove em ponto , está n ' um phrenesi ! " Oh creatura ! digo-lhe eu , a senhora rala-se sem razão . " Mas então , é aquillo ! Pois quando eu tive a colica o anno passado ! Emmagreceu , snr. Mendes ! E depois não ha lembrança que não tenha ! Agora , pela matança do porco , o melhor do animal é para o padre santo , vossê sabe ? é como ella me chama . Fallava com os olhos luzidios , uma satisfação babosa : -- Ah , Mendes ! acrescentou , é uma rica mulher ! [ 10 ] -- E bonita mulher , disse o coadjutor respeitosamente . -- Lá isso ! exclamou o conego parando outra vez . Lá isso ! Bem conservada até alli ! Pois olhe que já não é criança ! Mas nem um cabello branco , nem um , nem um só ! E então que côr de pelle ! -- E mais baixo , com um sorriso guloso : -- E isto aqui ! ó Mendes , e isto aqui ! -- Indicava o lado do pescoço debaixo do queixo , passando-lhe devagar por cima a sua mão papuda : -- É uma perfeição ! E depois mulher de aceio , muitissimo aceio ! E que lembrançasinhas ! Não ha dia que me não mande o seu presente ! é o covilhete de geleia , é o pratinho d' arroz dôce , é a bella murcella d' Arouca ! Hontem me mandou ella uma torta de maçã . Ora havia de vossê vêr aquillo ! A maçã parecia um creme ! Até a mana Josepha disse : " Está tão boa que parece que foi cozida em agua benta ! " -- E pondo a mão espalmada sobre o peito : -- São coisas que tocam a gente cá por dentro , Mendes ! Não , não é lá por dizer , mas não ha outra . O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja . -- Eu bem sei , disse o conego parando de novo e tirando lentamente as palavras , eu bem sei que por ahi rosnam , rosnam ... Pois é uma grandissima calumnia ! O que é , é que eu tenho muito apêgo áquella gente . Já o tinha em tempo do marido . Vossê bem o sabe , Mendes . O coadjutor teve um gesto affirmativo . [ 11 ] -- A S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira é uma pessoa de bem ! olhe que é uma pessoa de bem , Mendes ! exclamava o conego batendo no chão fortemente com a ponteira do guardasol . -- As linguas do mundo são venenosas , senhor conego , disse o coadjutor com uma voz chorosa . E depois d' um silencio acrescentou baixo : -- Mas aquillo a vossa senhoria deve-lhe sahir caro ! -- Pois ahi está , meu amigo ! Imagine vossê que desde que o secretario geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia : eu é que tenho dado para a panella , Mendes ! -- Que ella tem uma fazendita , considerou o coadjutor . -- Uma nesga de terra , meu rico senhor , uma nesga de terra ! E depois as decimas , os jornaes ! Por isso digo eu , o parocho é uma mina . Com os seis tostões que elle der , com o que eu ajudar , com alguma coisa que ella tire da hortaliça que vende da fazenda , já se governa . E para mim é um allivio , Mendes . -- É um allivio , senhor conego ! repetiu o coadjutor . Ficaram calados . A tarde descahia muito limpida ; o alto céo tinha uma pallida côr azul ; o ar estava immovel . N ' aquelle tempo o rio ia muito vazio ; pedaços de areia reluziam em sêcco ; e a agua baixa arrastava-se com um marulho brando , toda enrugada do roçar dos seixos . Duas vaccas , guardadas por uma rapariga , appareceram então pelo caminho lodoso que do outro lado do rio , defronte da alameda , corre junto d' um silvado ; entraram no rio devagar , e estendendo o pescoço pellado da canga , bebiam de leve , sem ruido ; a espaços erguiam a cabeça bondosa , olhavam em redor com a passiva tranquillidade dos sêres fartos -- e fios de agua , babados , luzidios á luz , pendiam-lhes dos cantos do focinho . Com a inclinação do sol a agua perdia a sua claridade espelhada , estendiam-se as sombras dos arcos da ponte . Do lado das colinas ia subindo um crepusculo esfumado , e as nuvens côr de sanguinea e côr de laranja que annunciam o calor faziam , sobre os lados do mar , uma decoração muito rica . -- Bonita tarde ! disse o coadjutor . O conego bocejou , e fazendo uma cruz sobre o bocejo : -- Vamo-nos chegando ás Ave-Marias , hein ? Quando , d' ahi a pouco , iam subindo as escadarias da Sé , o conego parou , e voltando-se para o coadjutor : -- Pois está decidido , amigo Mendes , ferro o Amaro na casa da S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira ! É uma pechincha para todos . -- Uma grande pechincha ! disse respeitosamente o coadjutor . Uma grande pechincha ! E entraram na igreja , persignando-se . Uma semana depois soube-se que o novo parocho devia chegar pela diligencia de Chão de Maçãs , que traz o correio á tarde ; e desde as seis horas o conego Dias e o coadjutor passeavam no largo do Chafariz , á espera de Amaro . Era então nos fins de agosto . Na longa alameda macadamisada que vai junto do rio , entre os dois renques de velhos choupos , entreviam-se vestidos claros de senhoras passeando . Do lado do Arco , na correnteza de casebres pobres , velhas fiavam á porta ; crianças sujas brincavam pelo chão , mostrando os seus enormes ventres nús ; e gallinhas em redor iam picando vorazmente as immundicies esquecidas . Em redor do chafariz cheio de ruido , onde os cantaros arrastam sobre a pedra , criadas ralham , soldados , com a sua fardeta suja , enormes botas cambadas , namoravam , meneando a chibata de junco ; com o seu cantaro bojudo de barro equilibrado á cabeça sobre a rodilha , raparigas iam-se aos pares , meneando os quadris ; e dois officiaes ociosos , com a farda desapertada sobre o estomago , conversavam , esperando , a vêr quem viria . A diligencia tardava . Quando o crepusculo desceu , uma lamparina luziu no nicho do santo , por cima do Arco ; e defronte iam-se alumiando uma a uma , com uma luz soturna , as janellas do hospital . Já tinha anoitecido quando a diligencia , com as lanternas accesas , entrou na Ponte ao trote esgalgado dos seus magros cavallos brancos , e veio parar ao pé do chafariz , por baixo da estalagem do Cruz ; o caixeiro do tio||_Patricio Patricio|_Patricio partiu logo a correr para a Praça com o maço dos Diarios Populares ; o tio||_Baptista Baptista|_Baptista , o patrão , com o cachimbo negro ao canto da boca , desatrellava , praguejando tranquillamente ; e um homem que vinha na almofada , ao pé do cocheiro , de chapéo alto e comprido capote ecclesiastico , desceu cautelosamente , agarrando-se ás guardas de ferro dos assentos , bateu com os pés no chão para os desentorpecer , e olhou em redor . -- Oh , Amaro ! gritou o conego que se tinha aproximado , oh , ladrão ! -- Oh , Padre-Mestre ! disse o outro com alegria . E abraçaram-se , emquanto o coadjutor , todo curvado , tinha o barrete na mão . [ 15 ] D ' ahi a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça , entre a corpulencia vagarosa do conego Dias e a figura esguia do coadjutor , um homem um pouco curvado , com um capote de padre . Soube-se que era o parocho novo ; e disse-se logo na botica que era uma boa figura de homem . O João Bicha levava adiante um bahú e um sacco de chita ; e como áquella hora já estava bebedo , ia resmungando o Bemdito . Eram quasi nove horas , a noite cerrára . Em redor da Praça as casas estavam já adormecidas : das lojas debaixo da arcada sahia a luz triste dos candieiros de petroleo , entreviam-se dentro figuras somnolentas , caturrando em cavaqueira , ao balcão . As ruas que vinham dar á Praça , tortuosas , tenebrosas , com um lampeão mortiço , pareciam deshabitadas . E no silencio o sino da Sé dava vagarosamente o toque das almas . O conego Dias ia explicando pachorrentamente ao parocho o que lhe arranjára " . Não lhe tinha procurado casa : seria necessario comprar mobilia , buscar criada , despezas innumeraveis ! Parecera-lhe melhor tomar-lhe quartos n ' uma casa de hospedes respeitavel , de muito conchego -- e n ' essas condições ( e alli estava o amigo coadjutor que o podia dizer ) , não havia como a da S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira . Era bem arejada , muito aceio , a cozinha não deitava cheiro ; tinha lá estado o secretario geral e o inspector dos estudos ; e a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira ( o Mendes amigo conhecia-a bem ) era uma mulher temente a Deus , de boas contas , muito economica e cheia de condescendencias ... -- Vossê está alli como em sua casa ! Tem o seu cozido , prato de meio , café ... -- Vamos a saber , Padre-Mestre : preço ? disse o parocho . -- Seis tostões . Que diabo , é de graça ! Tem um quarto , tem uma saleta ... -- Uma rica saleta , commentou o coadjutor respeitosamente . -- E é longe da Sé ? perguntou Amaro . -- Dois passos . Póde-se ir dizer missa de chinelos . Na casa ha uma rapariga , continuou com a sua voz pausada o conego Dias . É a filha da S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira . Rapariga de vinte e dois annos . Bonita . Sua pontinha de genio , mas bom fundo ... Aqui tem vôsse a sua rua . Era estreita , de casas baixas e pobres , esmagada pelas altas paredes da velha Misericordia , com um lampeão lugubre ao fundo . -- E aqui tem vossê o seu palacio ! disse o conego , batendo na aldraba de uma porta esguia . No primeiro andar duas varandas de ferro , de aspecto antigo , faziam saliencia , com os seus arbustos de alecrim , que se arredondavam aos cantos em caixas de madeira ; as janellas de cima , pequeninas , eram de peitoril ; e a parede , pelas suas irregularidades , fazia lembrar uma lata amolgada . A S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira esperava no alto da escada ; uma criada , enfezada e sardenta , alumiava com um candieiro de petroleo ; e a figura da S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada . Era gorda , alta , muito branca , d' aspecto pachorrento . Os seus olhos pretos tinham já em redor a pelle engelhada ; os cabellos arripiados , com um enfeite escarlate , eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca ; mas percebiam-se uns braços rechonchudos , um collo copioso e roupas aceadas . -- Aqui tem a senhora o seu hospede , disse o conego subindo . -- Muita honra em receber o senhor parocho ! muita honra ! Ha de vir muito cansado ! por força ! Para aqui , tem a bondade ? Cuidado com o degrausinho . Levou-o para uma sala pequena pintada de amarello , com um vasto canapé de palhinha encostado à parede , e defronte , aberta , uma mesa forrada de baeta verde . -- É a sua sala , senhor parocho , disse a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira . Para receber , para espairecer ... Aqui -- acrescentou abrindo uma porta -- é o seu quarto de dormir . Tem a sua commoda , o seu guarda-roupa ... -- Abriu os gavetões , gabou a cama batendo a elasticidade dos colxões -- Uma campainha para chamar sempre que queira ... As chavinhas da commoda estão aqui ... Se gosta de travesseirinho mais alto ... Tem um cobertor só , mas querendo ... -- Está bem , está tudo muito bem , minha senhora , disse o parocho com a sua voz baixa e suave . -- É pedir ! O que ha , da melhor vontade ... [ 18 ] -- Oh creatura de Deus ! interrompeu o conego jovialmente , o que elle quer agora é cear ! -- Tambem tem a ceiasinha prompta . Desde as seis que está o caldo a apurar ... E sahiu , para apressar a criada , dizendo logo do fundo da escada : -- Vá , Ruça , mexe-te , mexe-te ! ... O conego sentou-se pesadamente no canapé , e sorvendo a sua pitada : -- É contentar , meu rico . Foi o que se pôde arranjar . -- Eu estou bem em toda a parte , Padre-Mestre , disse o parocho , calçando os seus chinelos de ourelo . Olha o seminario ! ... E em Feirão ! Cahia-me a chuva na cama . Para o lado da Praça , então , sentiu-se o toque de cornetas . -- Que é aquillo ? perguntou Amaro , indo á janella . -- Ás nove e meia , o toque de recolher . Amaro abriu a vidraça . Ao fim da rua um candieiro esmorecia . A noite estava muito negra . E havia sobre a cidade um silencio concavo , de abobada . Depois das cornetas , um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do quartel ; por baixo da janella um soldado , que se demorára n ' alguma viella do castello , passou correndo ; e das paredes da Misericordia sahia constantemente o agudo piar das corujas . [ 19 ] -- É triste isto , disse Amaro . Mas a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira gritou de cima : -- Póde subir , senhor conego ! Está o caldo na mesa ! -- Ora vá , vá , que vossê deve estar a cahir de fome , Amaro ! -- disse o conego , erguendo-se muito pesado . E detendo um momento o parocho pela manga do casaco : -- Vai vossê vêr o que é um caldo de gallinha feito cá pela senhora ! Da gente se babar ! ... No meio da sala de jantar , forrada de papel escuro , a claridade da mesa alegrava , com a sua toalha muito branca , a louça , os copos reluzindo á luz forte d' um candieiro d' abat-jour verde . Da terrina subia o vapor cheiroso do caldo , e na larga travessa a gallinha gorda , afogada n ' um arroz humido e branco , rodeada de nacos de bom paio , tinha uma apparencia succulenta de prato morgado . No armario envidraçado , um pouco na sombra , viam-se côres claras de porcelana ; a um canto , ao pé da janella , estava o piano , coberto com uma colcha de setim desbotado . Na cozinha frigia-se ; e sentindo o cheiro fresco que vinha d' um taboleiro de roupa lavada , o parocho esfregou as mãos , regalado . -- Para aqui , senhor parocho , para aqui , disse a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira . D ' ahi póde-lhe vir frio . -- Foi fechar as portadas das janellas ; chegou-lhe um caixão de areia para as pontas dos cigarros . -- E o senhor conego toma um copinho de geleia , sim ? -- Vá lá , para fazer companhia , disse jovialmente o conego , sentando-se e desdobrando o guardanapo . A S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira , no emtanto , mexendo-se pela sala , ia admirando o parocho que , com a cabeça sobre o prato , comia em silencio o seu caldo , soprando a colhér . Parecia bem feito : tinha um cabello muito preto , levemente annelado . O rosto era oval , de pelle trigueira e fina , os olhos negros e grandes , com pestanas compridas . O conego , que não o via desde o seminario , achava-o mais forte , mais viril . -- Vossê era enfezadito ... -- Foi o ar da serra , dizia o parocho , fez-me bem . -- Contou então a sua triste existencia em Feirão , na alta Beira , durante a aspereza do inverno , só , com pastores . O conego deitava-lhe o vinho de alto , fazendo-o espumar . -- Pois é beber-lhe , homem ! é beber-lhe ! D ' esta gota não pilhava vossê no seminario . Fallaram do seminario . -- Que será feito do Rabicho , o despenseiro ? disse o conego . -- E do Carôcho , que roubava as batatas ? Riram ; e bebendo , na alegria das reminiscencias , recordavam as historias de então , o catarrho do reitor , e o mestre de canto-chão que deixára um dia cahir do bolso as poesias obscenas de Bocage . -- Como o tempo passa , como o tempo passa ! diziam . A S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira então poz na mesa um prato covo com maçãs assadas . -- Viva ! Não , lá n ' isso tambem eu entro ! exclamou logo o conego . A bella maçã assada ! nunca me escapa ! Grande dona de casa , meu amigo , rica dona de casa , cá a nossa S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira ! Grande dona de casa ! Ella ria ; viam-se os seus dois dentes de diante , grandes e chumbados . Foi buscar uma garrafa de vinho do Porto ; poz no prato do conego , com requintes devotos , uma maçã desfeita polvilhada de assucar ; e batendo-lhe nas costas com a mão papuda e molle : -- Isto é um santo , senhor parocho , isto é um santo ! Ai , devo-lhe muitos favores ! -- Deixe fallar , deixe fallar ... , dizia o conego . -- Espalhava-se-lhe no rosto um contentamento baboso . -- Boa gota ! acrescentou , saboreando o seu calix de porto . Boa gota ! -- Olhe que ainda é dos annos da Amelia , senhor conego . -- E onde está ella , a pequena ? -- Foi ao Morenal com a D. Maria . Aquillo naturalmente foram para casa das Gansosos passar a noite . -- Cá esta senhora é proprietaria , explicou o conego , fallando do Morenal . É um condado ! -- Ria com bonhomia , e os seus olhos luzidios percorriam ternamente a corpulencia da S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira . -- Ah , senhor parocho , deixe fallar , é uma nesga de terra ... , disse ella . Mas vendo a criada encostada á parede , sacudida com afflicções de tosse : -- Ó mulher , vai tossir lá p ' ra dentro ! credo ! A moça sahiu , pondo o avental sobre a boca . -- Parece doente , coitada , observou o parocho . Muito achacada , muito ! ... A pobre de Christo era sua afilhada , orphã , e estava quasi tisica . Tinha-a tomado por piedade ... -- E tambem porque a criada que cá tinha foi para o hospital , a desavergonhada ... Metteu-se ahi com um soldado ! ... O padre Amaro baixou devagar os olhos -- e trincando migalhas perguntou se havia muitas doenças n ' aquelle verão . -- Cholerinas , das fructas verdes , rosnou o conego . Mettem-se pelas melancias , depois tarraçadas de agua ... E suas febritas ... Fallaram então das sezões do campo , dos ares de Leiria . -- Que eu agora , dizia o padre Amaro , ando mais forte . Louvado seja Nosso Senhor||_Jesus_Christo Jesus|_Jesus_Christo Christo|_Jesus_Christo , tenho saude , tenho ! -- Ai , Nosso Senhor lh'a conserve , que nem sabe o bem que é ! exclamou a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira . -- Contou immediatamente a grande desgraça que tinha em casa , uma irmã meia idiota entrevada havia dez annos ! Ia fazer sessenta annos ... No inverno viera-lhe um catarrho , e desde então , coitadinha , definhava , definhava ... -- Ha bocado , ao fim da tarde , teve ella um ataque de tosse ! Pensei que se ia embora . Agora descansou mais ... Continuou a fallar " d' aquella tristeza " , depois da sua Ameliasinha , das Gansosos , do antigo chantre , da carestia de tudo -- sentada , com o gato no collo , rolando com os dois dedos , monotonamente , bolinhas de pão . O conego , pesado , cerrava as palpebras ; tudo na sala parecia ir gradualmente adormecendo ; a luz do candieiro esmorecia . -- Pois senhores , disse por fim o conego mexendo-se , isto são horas ! O padre Amaro ergueu-se , e com os olhos baixos deu as graças . -- O senhor parocho quer lamparina ? perguntou cuidadosamente a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira . -- Não , minha senhora . Não uso . Boas noites ! E desceu devagar , palitando os dentes . A S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira alumiava no patamar , com o candieiro . Mas nos primeiros degraus o parocho parou , e voltando-se , affectuosamente : -- É verdade , minha senhora , ámanhã é sexta-feira , é jejum ... -- Não , não , acudiu o conego que se embrulhava na capa de lustrina , bocejando , vossê ámanhã janta commigo . Eu venho por cá , vamos ao chantre , á Sé , e por ahi ... E olhe que tenho lulas . É um milagre , que isto aqui nunca ha peixe . A S.||_Joanneira_tranquillisou Joanneira|_Joanneira_tranquillisou tranquillisou|_Joanneira_tranquillisou logo o parocho : -- Ai , é escusado lembrar os jejuns , senhor parocho . Tenho o maior escrupulo ! -- Eu dizia , explicou o parocho , porque infelizmente hoje em dia ninguem cumpre ... -- Tem vossa senhoria muita razão , atalhou ella . Mas eu ! credo ! ... A salvação da minha alma antes de tudo ! A campainha em baixo , então , retiniu fortemente . -- Ha de ser a pequena , disse a S.||_Joanneira Joanneira|_Joanneira . Abre , Ruça ! A porta bateu , sentiram-se vozes , risinhos . -- És tu , Amelia ? Uma voz disse adeusinho ! adeusinho ! E appareceu , subindo quasi a correr , com os vestidos um pouco apanhados adiante , uma bella rapariga , forte , alta , bem feita , com uma manta branca pela cabeça e na mão um ramo de alecrim . -- Sobe , filha . Aqui está o senhor parocho . Chegou agora á noitinha , sobe ! Amelia tinha parado um pouco embaraçada , olhando para os degraus de cima , onde o parocho ficára , encostado ao corrimão . Respirava fortemente de ter corrido ; vinha córada ; os seus olhos vivos e negros luziam ; e sahia d' ella uma sensação de frescura e de prados atravessados . O parocho desceu , cingido ao corrimão , para a deixar passar , murmurando boas noites ! com a cabeça baixa . O conego , que descia atraz , pesadamente , tomou o meio da escada , diante de Amelia : -- Então isto são horas , sua bréjeira ! Ella teve um risinho , encolheu-se . -- Ora vá-se encommendar a Deus , vá ! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com a sua mão grossa e cabelluda . Ella subiu a correr , emquanto o conego , depois d' ir buscar o guardasol á saleta , sahia , dizendo á criada , que erguia o candieiro sobre a escada : -- Está bom , eu vejo , não apanhes frio , rapariga . Então ás oito , Amaro ! Esteja a pé ! Vai-te , rapariga , adeus ! Reza á Senhora||_da|_Piedade da||_da|_Piedade Piedade|_da|_Piedade que te seque essa catarrheira . O parocho fechou a porta do quarto . A roupa da cama entreaberta , alva , tinha um bom cheiro de linho lavado . Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga d' um Christo crucificado . Amaro abriu o seu Breviario , ajoelhou aos pés da cama , persignou-se ; mas estava fatigado , vinham-lhe grandes bocejos ; e então por cima , sobre o tecto , através das orações rituaes que machinalmente ia lendo , começou a sentir o tic-tic das botinas de Amelia e o ruido das saias engommadas que ella sacudia ao despir-se . Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marqueza d' Alegros . Seu pai era criado do marquez ; a mãi era criada de quarto , quasi uma amiga da senhora marqueza . Amaro conservava ainda um livro , o Menino das selvas , com barbaras imagens coloridas , que tinha escripto na primeira pagina branca : Á minha muito estimada criada Joanna Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido , -- Marqueza d'Alegros . Possuia tambem um daguerreotypo de sua mãi : era uma mulher forte , de sobrancelhas cerradas , a boca larga e sensualmente fendida , e uma côr ardente . O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia ; e a mãi , que fôra sempre tão sã , succumbiu , d' ahi a um anno , a uma tisica de larynge . Amaro completára então seis annos . Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra , e um tio , mercieiro abastado do bairro da Estrella . Mas a senhora marqueza ganhára amizade a Amaro ; conservou-o em sua casa , por uma adopção tacita ; e começou , com grandes escrupulos , a vigiar a sua educação . A marqueza d' Alegros ficára viuva aos quarenta e tres annos e passava a maior parte do anno retirada na sua quinta de Carcavellos . Era uma pessoa passiva , de bondade indolente , com capella em casa , um respeito devoto pelos padres -- S. Luiz , sempre preoccupada dos interesses da Igreja . As suas duas filhas , educadas no receio do Céo e nas preoccupações da Moda , eram beatas e faziam o chic fallando com igual fervor da humildade christã e do ultimo figurino de Bruxellas . Um jornalista de então dissera d' ellas : -- Pensam todos os dias na toilette com que hão de entrar no paraiso . No isolamento de Carcavellos , n ' aquella quinta de alamedas aristocraticas onde os pavões gritavam , as duas meninas enfastiavam-se . A Religião , a Caridade eram então occupações avidamente aproveitadas : cosiam vestidos para os pobres da freguezia , bordavam frontaes para os altares da igreja . De maio a outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma ; liam os livros beatos e dôces ; como não tinham S. Carlos , as visitas , a Aline , recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos . Deus era o seu luxo de verão . A senhora marqueza resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida ecclesiastica . A sua figura amarellada e magrita pedia aquelle destino recolhido : era já affeiçoado ás coisas de capella , e o seu encanto era estar aninhado ao pé de mulheres , no calor das saias unidas , ouvindo fallar de santas . A senhora marqueza não o quiz mandar ao collegio porque receava a impiedade dos tempos e as camaradagens immoraes . O capellão da casa ensinava-lhe o latim , e a filha mais velha , a snr.a D. Luiza , que tinha um nariz de cavallete e lia Chateaubriand , dava-lhe lições de francez e de geographia . Amaro era , como diziam os criados , um mosquinha morta . Nunca brincava , nunca pulava ao sol . Se á tarde acompanhava a senhora marqueza ás alamedas da quinta quando ella descia pelo braço do padre||_Liset Liset|_Liset ou do respeitoso procurador Freitas , ia a seu lado , môno , muito encolhido , torcendo com as mãos humidas o forro das algibeiras -- vagamente assustado das espessuras d' arvoredos e do vigor das relvas altas . Tornou-se muito medroso . Dormia com lamparina , ao pé d' uma ama velha . As criadas de resto feminisavam-no ; achavam-no bonito , aninhavam-no* no meio d' ellas , beijocavam-no* , faziam-lhe cocegas , e elle rolava por entre as saias , em contacto com os corpos , com gritinhos de contentamento . Ás vezes , quando a senhora marqueza sahia , vestiam-no de mulher , entre grandes risadas : elle abandonava-se , meio nú , com os seus modos languidos , os olhos quebrados , uma roseta escarlate nas faces . As criadas , além d' isso , utilisavam-no nas suas intrigas umas com as outras : era Amaro o que fazia as queixas . Tornou-se enredador , muito mentiroso . Aos onze annos , ajudava á missa , e aos sabbados limpava a capella . Era o seu melhor dia ; fechava-se por dentro , collocava os santos em plena luz em cima d' uma mesa , beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas ; e toda a manhã , muito atarefado , cantarolando o Santissimo , ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Martyres . No emtanto crescia ; o seu aspecto era o mesmo , miudo e amarellado ; nunca dava uma boa risada , trazia sempre as mãos dos bolsos . Estava constantemente mettido nos quartos das criadas , remexendo as gavetas ; bolia nas saias sujas , cheirava os algodões postiços . Era extremamente preguiçoso , e custava de manhã arrancal- o a uma somnolencia doentia em que ficava amollecido , todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao travesseiro . Já corcovava um pouco , e os criados chamavam-lhe o padreca . N ' um domingo gordo , uma manhã , depois da missa , ao chegar-se ao terraço , a senhora marqueza de repente cahiu morta com uma apoplexia . Deixava no seu testamento um legado para que Amaro , o filho da sua criada Joanna , entrasse aos quinze annos no seminario e se ordenasse . O padre||_Liset Liset|_Liset ficava encarregado de realisar esta disposição piedosa . Amaro tinha então treze annos . As filhas da senhora marqueza deixaram logo Carcavellos e foram para Lisboa , para casa da snr.a D. Barbara de Noronha , sua tia paterna . Amaro foi mandado para casa do tio , para a Estrella . O mercieiro era um homem obeso , casado com a filha d' um pobre empregado publico , que o aceitára para sahir da casa do pai , onde a mesa era escassa , ella devia fazer as camas e nunca ia ao theatro . Mas odiava o marido , as suas mãos cabelludas , a loja , o bairro e o seu apellido de snr.a Gonçalves . O marido esse adorava-a como a delicia da sua vida , o seu luxo ; carregava-a de joias e chamava-lhe a sua duqueza . Amaro não encontrou alli o elemento feminino e carinhoso em que estivera tepidamente envolvido em Carcavellos . A tia quasi não reparava n ' elle ; passava os seus dias lendo romances , as analyses dos theatros nos jornaes , vestida de sêda , coberta de pó d' arroz , o cabello em cachos , esperando a hora em que passava debaixo das janellas , puxando os punhos , o Cardoso , galan da Trindade . O mercieiro apropriou-se então de Amaro como d' uma utilidade imprevista , mandou-o para o balcão . Fazia-o erguer logo ás cinco horas da manhã ; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul , molhando á pressa o pão na chavena de café , ao canto da mesa da cozinha . De resto detestavam-no ; a tia chamava-lhe o cebola e o tio chamava-lhe o burro . Pesava-lhes até o magro pedaço de vacca que elle comia ao jantar . Amaro emmagrecia e todas as noites chorava . Sabia já que aos quinze annos devia entrar no seminario . O tio todos os dias lh'o lembrava : -- Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem , burro ! Em tendo quinze annos é para o seminario . Não tenho obrigação de carregar comtigo ! Besta na argola , não está nos meus principios ! E o rapaz desejava o seminario , como um libertamento . Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou a sua vocação . Impunham-lhe uma sobrepelliz ; a sua natureza passiva , facilmente dominavel , aceitava-a , como aceitaria uma farda . De resto não lhe desagradava ser padre . Desde que sahira das rezas perpetuas de Carcavellos conservára o seu medo do inferno , mas perdera o fervor dos santos ; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora marqueza , pessoas brancas e bem tratadas que comiam ao lado das fidalgas e tomavam rapé em caixas d' ouro ; e convinha-lhe aquella profissão em que se falla baixo com as mulheres , -- vivendo entre ellas , cochichando , sentindo-lhes o calor penetrante , -- e se recebem presentes em bandejas de prata . Recordava o padre||_Liset Liset|_Liset com um annel de rubi no dedo minimo ; monsenhor||_Sávedra Sávedra|_Sávedra com os seus bellos oculos d' ouro , bebendo aos goles o seu copo de madeira . As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes chinelas . Um dia tinha visto um bispo que fôra padre na Bahia , viajára , estivera em Roma , era muito jovial ; e na sala , com as suas mãos ungidas que cheiravam a agua de colonia apoiadas ao castão d' ouro da bengala , todo rodeado de senhoras em extase e cheias d' um riso beato , cantava , para as entreter , com a sua bella voz : Mulatinha da Bahia , Nascida no Capujá ... Um anno antes de entrar para o seminario o tio fel- o ir a um mestre para se affirmar mais no latim , e dispensou-o de estar ao balcão . Pela primeira vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade . Ia só á escóla , passeava pelas ruas . Viu a cidade , o exercicio de infanteria , espreitou ás portas dos cafés , leu os cartazes dos theatros . Sobretudo começára a reparar muito nas mulheres -- e vinham-lhe , de tudo o que via , grandes melancolias . A sua hora triste era ao anoitecer , quando voltava da escóla , ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao jardim da Estrella . O seu quarto ficava em cima , na trapeira , com uma janellinha n ' um vão sobre os telhados . Encostava-se alli olhando , e via parte da cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gaz : parecia-lhe perceber , vindo de lá , um rumor indefinido : era a vida que não conhecia e que julgava maravilhosa , com cafés abrazados de luz e mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas pelos perystillos dos theatros ; perdia-se em imaginações vagas , e de repente appareciam-lhe no fundo negro da noite fórmas femininas , por fragmentos , uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca , ou um braço roliço arregaçado até ao hombro ... Mas em baixo , na cozinha , a criada começava a lavar a louça , cantando : era uma rapariga gorda , muito sardenta ; e vinham-lhe então desejos de descer , ir roçar-se por ella , ou estar a um canto a vêl-a escaldar os pratos ; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas viellas , de saias engommadas e ruidosas , passeando em cabello , com botinas cambadas : e , da profundidade do seu sêr , subia-lhe uma preguiça , como que a vontade de abraçar alguem , de não se sentir só . Julgava-se infeliz , pensava em matar-se . Mas o tio chamava-o de baixo : -- Então tu não estudas , mariola ? E d' ahi a pouco , sobre o Tito-Livio , cabeceando de somno , sentindo-se desgraçado , roçando os joelhos um contra o outro , torturava o diccionario . Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre , porque não poderia casar . Já as convivencias da escóla tinham introduzido na sua natureza effeminada curiosidades , corrupções . Ás escondidas fumava cigarros : emmagrecia e andava mais amarello . Entrou no seminario . Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco humidos , as lampadas tristes , os quartos estreitos e gradeados , as batinas negras , o silencio regulamentado , o toque das sinetas -- deram-lhe uma tristeza lugubre , aterrada . Mas achou logo amizades ; o seu rosto bonito agradou . Começaram a tratal- o por tu , a admittil- o , durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo , ás conversas em que se contavam anecdotas dos mestres , se calumniava o reitor , e perpetuamente se lamentavam as melancolias da clausura : porque quasi todos fallavam com saudade das existencias livres que tinham deixado : os da aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol , as esfolhadas cheias de cantigas e de abraços , as filas da boiada que recolhe , emquanto um vapor se exhala dos prados ; os que vinham das pequenas villas lamentavam as ruas tortuosas e tranquillas d' onde se namoram as visinhas , os alegres dias de mercado , as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim . Não lhes bastava o pateo do recreio lageado , com as suas arvores definhadas , os altos muros somnolentos , o monotono jogo da bola : abafavam na estreiteza dos corredores , na sala de Santo Ignacio , onde se faziam as meditações da manhã e se estudavam á noite as lições ; e invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes -- o almocreve que viam passar na estrada tocando os seus machos , o carreiro que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas , e até os mendigos errantes , apoiados ao seu cajado , com o seu alforge escuro . Da janella d' um corredor via-se uma volta de estrada ; á tardinha uma diligencia costumava passar , levantando a poeira , entre os estalidos do chicote , ao trote das tres eguas , carregada de bagagens ; passageiros alegres , que levavam os joelhos bem embrulhados , sopravam o fumo dos charutos ; quantos olhares os seguiam ! quantos desejos iam viajando com elles para as alegres villas e para as cidades , pela frescura das madrugadas ou sob a claridade das estrellas ! E no refeitorio , diante do escasso caldo de hortaliça , quando o regente de voz grossa começava a lêr monotonamente as cartas d' algum missionario da China ou as Pastoraes do senhor||_Bispo Bispo|_Bispo , quantas saudades dos jantares de familia ! As boas postas de peixe ! o tempo da matança ! os rojões quentes que chiam no prato ! os sarrabulhos cheirosos ! Amaro não deixava coisas queridas : vinha da brutalidade do tio , do rosto enfastiado da tia coberto de pó d' arroz ; mas insensivelmente poz-se tambem a ter saudades dos seus passeios aos domingos , da claridade do gaz e das voltas da escóla com os livros n ' uma correia , quando parava encostado á vitrina das lojas a contemplar a nudez das bonecas ! Lentamente , porém , com a sua natureza incaracteristica , foi entrando como uma ovelha indolente na regra do seminario . Decorava com regularidade os seus compendios ; tinha uma exactidão prudente nos serviços ecclesiasticos ; e calado , encolhido , curvando-se muito baixo diante dos lentes -- chegou a ter boas notas . Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar o seminario com beatitude e maceravam os joelhos , ruminando , com a cabeça baixa , textos da Imitação ou de Santo Ignacio ; na capella , com os olhos em alvo , empallideciam d' extase ; mesmo no recréio , ou nos passeios , iam lendo algum volumesinho de Louvores a Maria ; e cumpriam com delicia as regras mais miudas -- até subir só um degrau de cada vez , como recommenda S. Boaventura . A esses o seminario dava um ante-gosto do céo : a elle só lhe offerecia as humilhações d' uma prisão , com os tedios d' uma escóla . Não comprehendia tambem os ambiciosos : os que queriam ser caudatarios d' um bispo , e nas altas salas dos paços episcopaes erguer os reposteiros de velho damasco ; os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados , servir uma igreja aristocratica , e , diante das devotas ricas que se accumulam no frou-frou das sêdas sobre o tapete do altar-mór , cantar com voz sonora . Outros sonhavam até destinos fóra da Igreja : ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lageadas o tlim-tlim d' um sabre ; ou a farta vida da lavoura , e desde a madrugada , com um chapéo desabado e bem montados , trotar pelos caminhos , dar ordens nas largas eiras cheias de medas , apear á porta das adegas . E , a não ser alguns devotos , todos , ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos seculares , queriam deixar a estreiteza do seminario para comer bem , ganhar dinheiro e conhecer as mulheres . Amaro não desejava nada : -- Eu nem sei ... , dizia elle melancolicamente . [ 38 ] No entretanto , escutando por sympathia aquelles para quem o seminario era o " tempo das galés " , sahia muito perturbado d' aquellas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre . Ás vezes fallavam de fugir . Faziam planos , calculando a altura das janellas , as peripecias da noite negra pelos negros caminhos : anteviam balcões de tabernas onde se bebe , salas de bilhar , alcovas quentes de mulheres . Amaro ficava todo nervoso : sobre o seu catre , alta noite , revolvia-se sem dormir e , no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos , ardia , como uma braza silenciosa , o desejo da Mulher . Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada de estrellas , pousada sobre a esphera , com o olhar errante pela luz immortal , calcando aos pés a serpente . Amaro voltava-se para ella como para um refugio , rezava-lhe a Salve-Rainha : mas , ficando a contemplar a lithographia , esquecia a santidade da Virgem , via apenas diante de si uma linda moça loura ; amava-a ; suspirava ; despindo-se olhava-a de revez lubricamente ; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da tunica azul da imagem e suppôr fórmas , redondezas , uma carne branca ... Julgava então vêr os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto ; aspergia a cama d' agua benta ; mas não se atrevia a revelar estes delirios , no confessionario , ao domingo . Quantas vezes ouvira , nas prédicas , o mestre de Moral fallar , com a sua voz roufenha , do Peccado , comparal- o á serpente e , com palavras unctuosas e gestos arqueados , deixando cahir vagarosamente a pompa mellíflua dos seus periodos , aconselhar os seminaristas a que , imitando a Virgem , calcassem aos pés a serpente ominosa ! E depois era o mestre de Theologia mystica que fallava , sorvendo o seu rapé , no dever de vencer a Natureza ! E citando S.||_João_de_Damasco João|_João_de_Damasco de|_João_de_Damasco Damasco|_João_de_Damasco e S.||_Chrysologo Chrysologo|_Chrysologo , S.||_Cypriano Cypriano|_Cypriano e S.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo , explicava os anathemas dos santos contra a Mulher , a quem chamava , segundo as expressões da Igreja , Serpente , Dardo , Filha da mentira , Porta do inferno , Cabeça do crime , Escorpião ... -- E como disse o nosso padre||_S._Jeronymo S.|_S._Jeronymo Jeronymo|_S._Jeronymo , -- e assoava-se estrondosamente -- Caminho de iniquidades , iniquitas via ! Até nos compendios encontrava a preoccupação da Mulher ! Que sêr era esse , pois , que através de toda a theologia ora era collocada sobre o altar como a Rainha da Graça , ora amaldiçoada com apostrophes barbaras ? Que poder era o seu , que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro , n ' uma paixão extatica , dando-lhe por acclamação o profundo reino dos céos , -- ora vai fugindo diante d' ella como do Universal Inimigo , com soluços de terror e gritos d' odio , e escondendo-se , para a não vêr , nas thebaidas e nos claustros , vai alli morrendo do mal de a ter amado ? Sentia , sem as definir , estas perturbações ! ellas renasciam , desmoralisavam-no perpetuamente : e já antes de fazer os seus votos desfallecia no desejo de os quebrar . E em redor d' elle sentia iguaes rebelliões da natureza : os estudos , os jejuns , as penitencias podiam domar o corpo , dar-lhe habitos machinaes , mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente , como n ' um ninho serpentes imperturbadas . Os que mais soffriam eram os sanguineos , tão doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas . Assim , quando estavam sós , o temperamento irrompia : luctavam , faziam forças , provocavam desordens . Nos lymphaticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas , os silencios molles : desforravam-se então no amor dos pequenos vícios : jogar com um velho baralho , lêr um romance , obter de intrigas demoradas um maço de cigarros -- quantos encantos do peccado ! Amaro por fim quasi invejava os estudiosos ; ao menos esses estavam contentes , estudavam perpetuamente , escrevinhavam notas no silencio da alta livraria , eram respeitados , usavam oculos , tomavam rapé . Elle mesmo tinha às vezes ambições repentinas da sciencia ; mas diante dos vastos in-folios vinha-lhe um tedio insuperavel . Era no emtanto devoto : rezava , tinha fé illimitada em certos santos , um terror angustioso de Deus . Mas odiava a clausura do seminario ! A capella , os chorões do pateo , as comidas monotonas do longo refeitorio lageado , os cheiros dos corredores , tudo lhe dava uma tristeza irritada : parecia-lhe que seria bom , puro , crente , se estivesse na liberdade d' uma rua ou na paz d' um quintal , fóra d' aquellas negras paredes . Emmagrecia , tinha suores eticos : e mesmo no ultimo anno , depois do serviço pesado da Semana Santa , como começavam os calores , entrou na enfermaria com uma febre nervosa . Ordenou-se emfim pelas temporas de S.||_Matheus Matheus|_Matheus ; e pouco tempo depois recebeu , ainda no seminario , esta carta do snr. " padre||_Liset Liset|_Liset : " Meu querido filho e novo collega . -- Agora que está ordenado , entendo em minha consciencia que devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios , pois quero cumprir até ao fim o encargo com que carregou os meus hombros debeis a nossa chorada marqueza , attribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou . Porque , ainda que os bens mundanos pouco deviam importar a uma alma votada ao sacerdocio , são sempre as boas contas que fazem os bons amigos . Saberá , pois , meu querido filho , que o legado da querida marqueza -- para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna -- está inteiramente exhausto . Aproveito esta occasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio , sua tia , tendo liquidado o estabelecimento , se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar : cahiu sob o imperio das paixões , e tendo-se ligado illegitimamente , viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza , e hoje estabeleceu uma casa de hospedes na rua dos Calafates n.º 53 . Se toco n ' estas impurezas , tão improprias de que um tenro levita como o meu querido filho tenha d' ellas conhecimento , é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitavel familia . Sua irmã , como decerto sabe , casou rica em Coimbra , e ainda que no casamento não é o ouro que devemos apreciar , é todavia importante , para futuras circumstancias , que o meu querido filho esteja de posse d' este facto . do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguezia de Feirão , na Gralheira , vou fallar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de attender um pobre padre que só pede a Deus misericordia . Espero , todavia , conseguir . Persevere , meu querido filho , nos caminhos da virtude , de que sei que a sua boa alma está repleta , e creia que se encontra a felicidade n ' este nosso santo ministerio quando sabemos comprehender quantos são os balsamos que derrama no peito e quantos os refrigerios que dá -- o serviço de Deus ! Adeus , meu querido filho e novo collega . Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupillo da nossa chorada marqueza , que decerto do céo , onde a elevaram as suas virtudes , supplica á Virgem , que ella tanto serviu e amou , a felicidade do seu caro pupillo . " Liset . " P. S. -- O appellido do marido de sua irmã é Trigoso . " Liset . Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho de Feirão , na Gralheira , serra da Beira-Alta . Esteve alli desde outubro até ao fim das neves . Feirão é uma parochia pobre de pastores e n ' aquella época quasi deshabitada . Amaro passou o tempo muito ocioso , ruminando o seu tedio á lareira , ouvindo fóra o inverno bramir na serra . Pela primavera vagaram nos districtos -- Santarem e de Leiria parochias populosas , com boas congruas . Amaro escreveu logo á irmã contando a sua pobreza em Feirão ; ella mandou-lhe , com recommendações de economia , doze moedas para ir a Lisboa requerer . Amaro partiu immediatamente . Os ares lavados e vivos da serra tinham-lhe fortificado o sangue ; voltava robusto , direito , sympathico , com uma boa côr na pelle trigueira . Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates n.º 53, a casa da tia : achou-a velha , com laços vermelhos n ' uma cuia enorme , toda coberta de pó d' arroz . Tinha-se feito devota , e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro . -- Como estás bonito ! Ora não ha ! Quem te viu ! Ih , Jesus ! que mudança ! Admirava-lhe a batina , a corôa : e contando-lhe as suas desgraças , com exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos generos , foi-o levando para o terceiro andar , a um quarto que dava para o saguão . -- Ficas aqui como um abbade , disse-lhe ella . E baratinho ! ... Ai ! ter-te de graça queria eu , mas ... Tenho sido muito infeliz , Joãosinho ! ... Ai ! desculpa , Amaro ! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça ... Amaro procurou logo ao outro dia o padre||_Liset Liset|_Liset em S. Luiz . Tinha ido para França . Lembrou-se então da filha mais nova da senhora marqueza d' Alegros , a snr.a D. Luiza , que estava casada com o conde de Ribamar , conselheiro d' Estado , com influencia , regenerador fiel desde cincoenta e um e duas vezes ministro do reino . E , por conselho da tia , Amaro , logo que metteu o seu requerimento , foi uma manhã a casa da snr.a condessa de Ribamar , a Buenos-Ayres . Á porta um coupé esperava . -- A senhora condessa vai sahir , disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca , encostado á hombreira do pateo , de cigarro na boca . N ' esse momento , d' uma porta de batentes de baena verde , sobre um degrau de pedra , ao fundo do pateo lageado , uma senhora sahia , vestida de claro . Era alta , magra , loura , com pequeninos cabellos frisados sobre a testa , lunetas d' ouro n ' um nariz comprido e agudo , e no queixo um signalzinho de cabellos claros . -- A senhora condessa já me não conhece ... , disse Amaro com o chapéo na mão , adiantando-se curvado . Sou o Amaro . -- O Amaro ! ? disse ella como estranha ao nome . Ah ! bom Jesus , quem elle é ! Ora não ha ! Está um homem ! Quem diria ! Amaro sorria-se . -- Eu podia lá esperar ! continuou ella admirada . E está agora em Lisboa ? Amaro contou a sua nomeação para Feirão , a pobreza da parochia ... [ 45 ] -- De maneira que vim requerer , senhora condessa . Ella escutava-o com as mãos apoiadas n ' uma alta sombrinha de sêda clara , e Amaro sentia vir d' ella um perfume de pó d' arroz e uma frescura de cambraias . -- Pois deixe estar , disse ella , fique descansado . Meu marido ha de fallar . Eu me encarrego d' isso . Olhe , venha por cá . -- E com o dedo sobre o canto da boca : -- Espere , ámanhã vou para Cintra . Domingo , não . O melhor é d' aqui a quinze dias . D ' aqui a quinze dias pela manhã , sou certa . -- E rindo com os seus largos dentes frescos : -- Parece que o estou a vêr traduzir Chateaubriand com a mana Luiza ! Como o tempo passa ! -- Passa bem a senhora sua mana ? perguntou Amaro . -- Sim , bem . Está n ' uma quinta em Santarem . Deu-lhe a mão , calçada de peau de suède , n ' um aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes d' ouro , e saltou para o coupé , magra e ligeira , com um movimento que levantou brancuras de saias . Amaro começou então a esperar . Era em julho , no pleno calor . Dizia missa pela manhã em S. Domingos , e durante o dia , de chinelos e casaco de ganga , arrastava a sua ociosidade pela casa . Ás vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar ; as janellas estavam cerradas , na penumbra zumbia a monotona susurração das moscas ; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia crochet , com a luneta encavallada na ponta do nariz ; Amaro , bocejando , folheava um antigo volume do Panorama . Á noitinha sahia , a dar duas voltas no Rocio . Abafava-se , no ar pesado e immovel : a todos os cantos se apregoava monotonamente agua fresca ! Pelos bancos , debaixo das arvores , vadios remendados dormitavam ; em redor da praça , sem cessar , caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente ; as claridades dos cafés reluziam ; e gente encalmada , sem destino , movia , bocejando , a sua preguiça pelos passeios das ruas . Amaro então recolhia , e no seu quarto , com a janella aberta ao calor da noite , estirado em cima da cama , em mangas de camisa , sem botas , fumava cigarros , ruminava as suas esperanças . A cada momento lhe acudiam , com rebates de alegria , as palavras da senhora condessa : fique descansado , meu marido ha de fallar ! E via-se já parocho n ' uma bonita villa , n ' uma casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas , tranquillo e importante , recebendo bandejas de dôce das devotas ricas . Vivia então n ' um estado de espirito muito repousado . As exaltações , que no seminario lhe causava a continencia , tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora , que elle gostava de vêr ao domingo tocar á missa , dependurada da corda do sino , rolando nas saias de saragoça , e a face a estourar de sangue . Agora , sereno , pagava pontualmente ao céo as orações que manda o ritual , trazia a carne contente e calada , e procurava estabelecer-se regaladamente . No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa . -- Não está , disse-lhe um criado da cavallariça . Ao outro dia voltou , já inquieto . Os batentes verdes estavam abertos ; e Amaro subiu devagar , pisando , muito acanhado , o largo tapete vermelho fixado com varões de metal . Da alta claraboia cahia uma luz suave ; ao cimo da escada , no patamar , sentado n ' uma banqueta de marroquim escarlate , um criado encostado á parede branca envernizada , com a cabeça pendente e o beiço cahido , dormia . Fazia um grande calor ; aquelle alto silencio aristocratico aterrava Amaro ; esteve um momento com o seu guardasol pendente do dedo minimo , hesitando ; tossiu devagarinho , para acordar o criado que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta , o seu rico grilhão d' ouro ; e ia descer quando ouviu por detraz d' um reposteiro um riso grosso de homem . Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos , puxou os punhos , e entrou muito vermelho n ' uma larga sala com estofos de damasco amarello ; uma grande luz entrava das varandas abertas , e viam-se arvoredos de jardim . No meio da sala tres homens de pé conversavam . Amaro adiantou-se , balbuciou : -- Não sei se incommódo ... Um homem alto , de bigode grisalho e oculos de ouro , voltou-se surprehendido , com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos . Era o senhor conde . -- Sou Amaro ... -- Ah , disse o conde , o senhor padre Amaro ! Conheço muito bem ! Tem a bondade ... Minha mulher fallou-me . Tem a bondade ... E dirigindo-se a um homem baixo e repleto , quasi calvo , de calças brancas muito curtas : -- É a pessoa de quem lhe fallei . -- Voltou-se para Amaro : -- É o senhor ministro . Amaro curvou-se , servilmente . -- O senhor padre Amaro , disse o conde de Ribamar , foi creado de pequeno em casa de minha sogra . Nasceu lá , creio eu ... -- Saiba o senhor conde que sim , disse Amaro que se conservava afastado , com o guardasol na mão . -- Minha sogra , que era toda devota e uma completa senhora , -- já não ha d' isso ! -- fel- o padre . Houve até um legado , creio eu ... Emfim , aqui o temos parocho ... Onde , senhor padre Amaro ? -- Feirão , excellentissimo senhor . -- Feirão ! ? ... disse o ministro estranhando o nome . -- Na serra da Gralheira , informou logo o outro sujeito , ao lado . Era um homem magro , entalado n ' uma sobrecasaca azul , muito branco de pelle , com soberbas suiças d' um negro de tinta e um admiravel cabello lustroso de pomada , apartado até ao cachaço n ' uma risca perfeita . [ 49 ] -- Emfim , resumiu o conde , um horror ! Na serra , uma freguezia pobre , sem distracções , com um clima horrivel ... -- Eu metti já requerimento , excellentissimo senhor , arriscou Amaro timidamente . -- Bem , bem , affirmou o ministro . Ha de arranjar-se . -- E mascava o seu charuto . -- É uma justiça , disse o conde . Mais , é uma necessidade ! Os homens novos e activos devem estar nas parochias difficeis , nas cidades ... É claro ! Mas não : olhe , lá ao pé da minha quinta , em Alcobaça , ha um velho , um gottoso , um padre-mestre antigo , um imbecil ! ... Assim perde-se a fé . -- É verdade , disse o ministro , mas essas collocações nas boas parochias devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços . É necessario o estimulo ... -- Perfeitamente , replicou o conde ; mas serviços religiosos , profissionaes , serviços á Igreja , não serviços aos governos . O homem das soberbas suiças negras teve um gesto d' objecção . -- Não acha ? perguntou-lhe o conde . -- Respeito muito a opinião de vossa excellencia , mas se me permitte ... Sim , digo eu , os parochos na cidade são-nos d' um grande serviço nas crises eleitoraes . D ' um grande serviço ! -- Pois sim . Mas ... -- Olhe vossa excellencia , continuou elle , sôfrego da palavra . Olhe vossa excellencia em Thomar . Porque perdemos ? Pela attitude dos parochos . Nada mais . O conde acudiu : -- Mas perdão , não deve ser assim ; a religião , o clero não são agentes eleitoraes . -- Perdão ... queria interromper o outro . O conde suspendeu-o , com um gesto firme ; e gravemente , em palavras pausadas , cheias da auctoridade d' um vasto entendimento : -- A religião , disse elle , póde , deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento , operando , por assim dizer , como freio ... -- Isso , isso ! murmurou arrastadamente o ministro , cuspindo pelliculas mascadas de charuto . -- Mas descer ás intrigas , continuou o conde devagar , aos imbroglios ... Perdôe- me , meu caro amigo , mas não é d' um christão . -- Pois sou-o , senhor conde ! exclamou o homem das suiças soberbas . Sou-o a valer ! Mas tambem sou liberal . E entendo que no governo representativo ... Sim , digo eu ... com as garantias mais solidas ... -- Olhe , interrompeu o conde , sabe o que isso faz ? desacredita o clero e desacredita a politica . -- Mas são ou não as maiorias um principio sagrado ? gritava rubro o das suiças , accentuando o adjectivo . -- São um principio respeitavel . -- Upa ! upa , excellentissimo senhor ! upa ! O padre Amaro escutava , immovel . -- Minha mulher ha de querer vêl- o , disse-lhe então o conde . E dirigindo-se a um reposteiro que levantou : -- Entre . É o senhor padre Amaro , Joanna ! Era uma sala forrada de papel branco assetinado , com moveis estofados de casimira clara . Nos vãos das janellas , entre as cortinas de pregas largas d' uma fazenda adamascada côr de leite , apanhadas quasi junto do chão por faxas de sêda , arbustos delgados , sem flôr , erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina . Uma meia luz fresca dava a todas aquellas alvuras um tom delicado de nuvem . Nas costas d' uma cadeira uma arara empoleirada , firme n ' um só pé negro , coçava vagarosamente , com contracções aduncas , a sua cabeça verde . Amaro , embaraçado , curvou-se logo para um canto do sofá , onde viu os cabellinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa , e os aros de ouro da sua luneta reluzindo . Um rapaz gordo , de face rechonchuda , sentado diante d' ella n ' uma cadeira baixa , com os cotovêlos sobre os joelhos abertos , occupava-se em balançar , como um pendulo , um pince-nez de tartaruga . A condessa tinha no regaço uma cadellinha , e com a sua mão sêcca e fina , cheia de veias , acamava-lhe o pêllo branco como algodão . -- Como está , snr. Amaro ? -- A cadella rosnou . -- Quieta , Joia ... Sabe que já fallei no seu negocio ? Quieta , Joia ... O ministro está alli . -- Sim , minha senhora , disse Amaro , de pé . -- Sente-se aqui , senhor padre Amaro . Amaro pousou-se á beira d' um fauteil , com o seu guardasol na mão -- e reparou então n ' uma senhora alta que estava de pé , junto do piano , fallando com um rapaz louro . -- Que tem feito estes dias , snr. Amaro ? disse a condessa . Diga-me uma coisa : sua irmã ? -- Está em Coimbra , casou . -- Ah ! casou ! disse a condessa , fazendo girar os seus anneis . Houve um silencio . Amaro , d' olhos baixos , passava , com um gesto embaraçado e errante , os dedos pelos beiços . -- O senhor||_padre|_Liset padre||_padre|_Liset Liset|_padre|_Liset está para fóra ? perguntou . -- Está em Nantes . Tinha uma irmã a morrer , disse a condessa . Está o mesmo sempre ; muito amavel , muito dôce . É a alma mais virtuosa ! ... -- Eu prefiro o padre||_Felix Felix|_Felix , disse o rapaz gordo estirando as pernas . -- Não diga isso , primo ! Jesus , brada aos céos ! Pois então o padre||_Liset Liset|_Liset , tão respeitavel ! ... E depois outras maneiras de dizer as coisas , com uma bondade ... Vê-se que é um coração delicado ... -- Pois sim , mas o padre||_Felix Felix|_Felix ... -- Ai , nem diga isso ! Que o padre||_Felix Felix|_Felix é uma pessoa de muita virtude , decerto ; mas o padre||_Liset Liset|_Liset tem uma religião mais ... -- E com um gesto delicado procurava a palavra : -- mais fina , mais distincta ... Emfim , vive com outra gente . -- E sorrindo para Amaro : -- Pois não acha ? Amaro não conhecia o padre||_Felix Felix|_Felix , não se recordava do padre||_Liset Liset|_Liset . [ 53 ] -- Já é velho o senhor||_padre|_Liset padre||_padre|_Liset Liset|_padre|_Liset , observou ao acaso . -- Crê ? disse a condessa .