AMOR DE PERDIÇÃO ( MEMORIAS D' UMA FAMILIA ) . ROMANCE POR Camillo CASTELLO BRANCO . * * * * Quem viu jámais vida amorosa , que não a visse afogada nas lagrimas do desastre ou do arrependimento ? D. Francisco Manoel , ( amorosa_$) amorosa_$) . * * * * PORTO EM Casa DE N. MORÉ -- EDITOR , Praça DE D. PEDRO . A mesma casa em Coimbra , Rua da Calçada . Casa de Commissões em Paris , 2 bis , Rua d'Arcole . 1862 . AO ILLUSTRISSIMO E EXCELENTISSIMO SENHOR * ANTONIO MARIA DE FONTES Pereira DE MELLO * DEDICA O Author . Ill.mo e Ex.mo Snr. Ha de pensar muita gente que V. Ex.a não dá valor algum a este livro , que a minha gratidão lhe dedica , porque muita gente está persuadida que ministros do estado não lêem novellas . É um engano . Uma vez ouvi eu um collega de V. Ex.a discorrer no parlamento ácerca de caminhos de ferro . Com tanto engenho o fazia , de tantas flôres matizára aquella árida materia , que me deleitou ouvil- o . Na noite d' esse dia encontrei o collega de V. Ex.a a lêr a Fanny , aquella Fanny , que sabia tanto de caminhos de ferro como eu . Que V. Ex.a tem romances na sua bibliotheca , é convicção minha . Que lá tem alguns , que não leu porque o tempo lhe falece , e outros porque não merecem tempo , também o creio . Dê V. Ex.a , no lote dos segundos , um logar a este livro , e terá assim V. Ex.a significado que o recebe e aprecia , por levar em si o nome do mais agradecido e respeitador criado de V. Ex.a Na cadêa da Relação do Porto , aos 26 de Setembro de 1861 . Camillo Castello Branco . Folheando os livros de antigos assentamentos , no cartorio das cadêas da Relação do Porto , li , no das entradas dos presos desde 1803 a 1805 , a folhas 232 , o seguinte : Simão Antonio Botelho , que assim disse chamar-se , ser solteiro , e estudante na Universidade de Coimbra , natural da cidade -- Lisboa , e assistente na occasião de sua prisão na cidade -- Vizeu , idade de dezoito annos , filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castello-Branco , estatura ordinaria , cara redonda , olhos castanhos , cabello e barba preta , vestido com jaqueta de baetão azul , collête de fustão pintado e calça de panno pedrez . E fiz este assento , que assignei . Filippe Moreira Dias . Á margem esquerda d' este assento está escripto : Foi para a India em 17 de Março de 1807 . Não será fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor , se cuido que o degredo de um moço de dezoito annos lhe havia de fazer dó . Dezoito annos ! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida ! As louçanias do coração que ainda não sonha em fructos , e todo se embalsama no perfume das flôres ! Dezoito annos ! O amor d' aquella idade ! A passagem do seio da familia , dos braços de mãe , dos beijos das irmãs para as caricias mais dôces da virgem , que se lhe abre ao lado como flôr da mesma sazão e dos mesmos aromas , e á mesma hora da vida ! Dezoito annos ! ... E degradado da patria , do amor , e da familia ! Nunca mais o ceo de Portugal , nem liberdade , nem irmãos , nem mãe , nem rehabilitação , nem dignidade , nem um amigo ! ... É triste ! O leitor de certo se compungia ; e a leitora se lhe dissessem , em menos de uma linha , a historia d' aquelles dezoito annos , choraria ! Pois não ? A olhos enchutos poderia ouvil-a a mulher , a creatura mais bem formada das branduras da piedade , a que por vezes traz comsigo do ceo um reflexo da divina misericordia , essa , a minha leitora , a carinhosa amiga de todos os infelizes não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdêra honra , rehabilitação , patria , liberdade , irmãs , mãe , tudo , por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de innocentes desejos ? ! Chorava , chorava ! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobresalto que me causaram aquellas linhas , de proposito procuradas , e lidas com amargura e respeito e , ao mesmo tempo , odio . Odio , sim ... A tempo verão se é perdoavel o odio , ou se antes me não fôra melhor abrir mão desde já de uma historia que me póde acarear enojos dos frios julgadores do coração , e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de homens , feitos barbaros , em nome de sua honra . AMOR DE PERDIÇÃO . PRIMEIRA PARTE . Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Menezes , fidalgo de linhagem , e um dos mais antigos solarengos de Villa Real de Traz-os-Montes , era , em 1779 , juiz de fóra de Cascaes , e n ' esse mesmo anno casara com uma dama do paço , D. Rita Thereza Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castello-Branco , filha d' um capitão de cavallos , e neta de outro , Antonio de Azevedo Castello-Branco Pereira da Silva , tão notavel por sua jerarchia , como por um , n ' aquelle tempo , precioso livro ácerca da Arte da Guerra . Dez annos de enamorado mal succedido consumira em Lisboa o bacharel provinciano . Para se fazer amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes physicos : Domingos Botelho era extremamente feio . Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda , faltavam-lhe bens de fortuna : os haveres d' elle não excediam a trinta mil cruzados em propriedades no Douro . Os dotes de espirito não o recommendavam tambem : era alcançadissimo de intelligencia , e grangeara entre os seus condiscipulos da universidade o epitheto de " brocas " com que ainda hoje os seus descendentes em Villa Real são conhecidos . Bem ou mal derivado , o epitheto brocas vem de brôa . Entenderam os academicos que a rudeza do seu condiscipulo procedia do muito pão de milho que elle digeria na sua terra . Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer ; e tinha : era excellente flautista ; foi a primeira flauta do seu tempo ; e a tocar flauta se sustentou dois annos em Coimbra , durante os quaes seu pae lhe suspendeu as mesadas , porque os rendimentos da casa não bastavam a livrar outro filho de um crime de morte . Formara-se Domingos Botelho em 1767 , e fôra para Lisboa lêr no desembargo do paço , iniciação banal dos que aspiravam á carreira da magistratura . Já Fernão Botelho , pae do bacharel , fôra bem acceite em Lisboa , e mórmente ao duque de Aveiro , cuja estima lhe teve a cabeça em risco , na tentativa regicida de 1758 . O provinciano sahiu das masmorras da Junqueira illibado da infamante nodoa , e bem-quisto mesmo do conde de Oeiras , porque tomara parte na prova que este fizera do primor de sua genealogia sobre a dos Pintos Coelhos do Bomjardim do Porto : pleito ridiculo , mas estrondoso , movido pela recusa que o fidalgo portuense fizera de sua filha ao filho de Sebastião José de Carvalho . As artes com que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de D. Maria I e Pedro III não as sei eu . É tradição que o homem fazia rir a rainha com as suas facecias , e por ventura com os tregeitos de que tirava o melhor do seu espirito . O certo É que Domingos Botelho frequentava o paço , e recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão , com a qual o aspirante a juiz de fóra se esqueceu de si , do futuro , e do ministro da justiça , que muito rogado fiara das suas letras o encargo de juiz de fóra de Cascaes . Já está dito que elle se atreveu aos amores do paço , não poetando como Luiz de Camões ou Bernardim Ribeiro ; mas namorando na sua prosa provinciana , e captando a bem-querença da rainha para amollecer as durezas da dama . Devia de ser , a final , feliz o " doutor bexiga " -- que assim era na côrte conhecido -- para se não desconcertar a discordia em que andam rixados o talento e a felicidade . Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa . Rita era uma formosura que ainda aos cincoenta annos se podia presar de o ser . E não tinha outro dote , se não é dote uma serie de avoengos , uns bispos , outros generaes , e entre estes o que morrêra frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma ; gloria , na verdade , um pouco ardente ; mas de tal monta que os descendentes do general frito se assignaram Caldeirões . A dama do paço não foi ditosa com o marido . Molestavam-na saudades da côrte , das pompas das camaras reaes , e dos amores de sua feição e molde , que immolou ao capricho da rainha . Este desgostoso viver , porém , não impeceu a reproduzirem-se em dois filhos e quatro meninas . O mais velho era Manoel , o segundo Simão ; das meninas uma era Maria , a segunda Anna , e a ultima tinha o nome de sua mãe , e alguns traços da belleza d' ella . O juiz de fóra de Cascaes , solicitando logar de mais graduado banco , demorava em Lisboa , na freguezia da Ajuda em 1784 . N ' este anno é que nasceu Simão , o penultimo de seus filhos . Conseguiu elle , sempre blandiciado da fortuna , transferencia para Villa Real , sua ambição suprema . A distancia de uma legua de Villa Real estava a nobreza da villa esperando o seu conterraneo . Cada familia tinha a sua liteira com o brasão da casa . A dos Correias -- Mesquita era a mais antiquada no feitio , e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na comitiva . D. Rita , avistando o prestito das liteiras , ajustou ao olho direito a sua grande luneta de oiro , e disse : -- Ó Menezes , aquillo que é ? ! -- São os nossos amigos e parentes que veem esperar-nos . -- Em que seculo estamos nós n ' esta montanha ? -- tornou a dama do paço . -- Em que seculo ? ! o seculo tanto é dezoito aqui como em Lisboa . -- Ah ! sim ? Cuidei que o tempo parára aqui no seculo doze . O marido achou que devia rir-se do chiste , que o não lisonjeára grandemente . Fernão Botelho , pae do juiz de fóra , sahiu á frente do prestito para dar a mão á nora , que apeava da liteira , e conduzil- a á de casa . D. Rita , antes de vêr a cara de seu sogro , contemplou-lhe a olho armado as fivelas de aço , e a bolsa do rabicho . Dizia ella depois que os fidalgos -- Villa Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa . Antes de entrar na liteira avoenga de seu marido , perguntou , com a mais refalsada seriedade , se não haveria risco em ir dentro d' aquella antiguidade . Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não tinha ainda cem annos , e que os machos não excediam a trinta . O modo altivo como ella recebeu as cortezias da nobreza -- velha nobreza que para alli viera em tempo de D. Diniz , fundador da villa -- fez que o mais novo do prestito , que ainda vivia ha doze annos , me dissesse a mim : " Sabiamos que ella era dama da Senhora||_D._Maria_I D.|_D._Maria_I Maria|_D._Maria_I I|_D._Maria_I ; porém , da soberba com que nos tractou , ficamos pensando que seria ella a propria rainha . " Repicaram os sinos da terra quando a comitiva assomou á Senhora de Almudena . D. Rita disse ao marido que a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata . Apearam á porta da velha casa de Fernão Botelho . A aia do paço relanceou os olhos pela fachada do edificio , e disse de si para si : " É uma bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Cintra , na Bemposta e Queluz . " Decorridos alguns dias , D. Rita disse ao marido que tinha mêdo de ser devorada das ratasanas ; que aquella casa era um covil de feras ; que os tectos estavam a desabar ; que as paredes não resistiriam ao inverno ; que os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma esposa delicada e affeita ás almofadas do palacio dos reis . Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte , e começou a fabrica de um palacete . Escassamente lhe chegavam os recursos para os alicerces : escreveu á rainha , e obteve generoso subsidio com que ultimou a casa . As varandas das janellas foram a ultima dadiva que a real viuva fez á sua dama . Quer-nos parecer que a dadiva é um testemunho até agora inedito da demencia de D. Maria I. Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas ; D. Rita , porém , teimara que no escudo se abrisse um emblema das suas ; mas era tarde , porque já a obra tinha vindo do esculptor , e o magistrado não podia com segunda despeza , nem queria desgostar seu pae , orgulhoso de seu brasão . Resultou d' aqui ficar a casa sem armas , e D. Rita victoriosa . O juiz de fóra tinha alli parentella illustre . O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes da provincia , ou antes houve por bem levantal- os até ella . D. Rita tinha uma côrte de primos , uns que se contentavam de serem primos , outros que invejavam a sorte do marido . O mais audacioso não ousava fital- a de rosto , quando o ella remirava com a luneta em geito de tanta altivez e zombaria , que não será estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante sentinella da sua virtude . Domingos Botelho desconfiava da efficacia dos merecimentos proprios para cabalmente encher o coração de sua mulher . Inquietava-o o ciume ; mas suffocava os suspiros , receando que Rita se désse+esse por injuriada da suspeita . E razão era que se offendesse . A neta do general frigido no caldeirão sarraceno ria dos primos , que , por amor d' ella , arriçavam e empoavam as cabelleiras com um desgracioso esmero , ou cavalleavam estrepitosamente na calçada os seus ginetes , fingindo que os picadores da provincia não desconheciam as graças hippicas do marquez de Marialva . Não o cuidava assim , porém , o juiz de fóra . O intriguista que lhe trazia o espirito em ancias era o seu espelho . Via-se sinceramente feio , e conhecia Rita cada vez mais em flôr , e mais enfadada no trato intimo . Nenhum exemplo da historia antiga , exemplo de amor sem quebra entre o esposo deforme e a esposa linda , lhe occorria . Um só lhe mortificava a memoria , e esse , com quanto fosse da fabula , era-lhe avêsso , e vinha a ser o casamento de Venus e Vulcano . Lembravam-lhe as rêdes que o ferreiro coixo fabricára para apanhar os deuses adulteros , e assombrava-se da paciencia d' aquelle marido . Entre si , dizia elle , que , erguido o véo da perfidia , nem se queixaria a Jupiter , nem armaria ratoeiras aos primos . A par do bacamarte de Luiz Botelho , que varára em terra o alferes , estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de fóra era entendido com muito superior intelligencia á que revelava na comprehensão do Digesto e das Ordenações do Reino . Este viver de sobresaltos durou seis annos , ou mais seria . O juiz de fóra empenhára os seus amigos na transferencia , e conseguiu mais do que ambicionava : foi nomeado provedor para Lamego . Rita Preciosa deixou saudades em Villa Real , e duradoura memoria da sua soberba , formosura e graças de espirito . O marido tambem deixou anecdotas que ainda agora se repetem . Duas contarei sómente para não enfadar . Acontecèra um lavrador mandar-lhe o presenle de uma vitella , e mandar com ella a vacca para se não desgarrar a filha . Domingos Botelho mandou recolher á loja a vitella e a vacca , dizendo que quem dava a filha dava a mãe . Outra vez , deu-se o caso de lhe mandarem um presente de pasteis em rica salva de prata . O juiz de fóra repartiu os pasteis pelos meninos , e mandou guardar a salva , dizendo que receberia como escarneo um presente de dôces , que valiam dez patacões , sendo que naturalmente os pasteis tinham vindo como ornato da bandeja . E assim é que ainda hoje , em Villa Real , quando se dá um caso analogo de ficar alguem com o conteúdo e continente , diz a gente da terra : " Aquelle é como o doutor brocas . " Não tenho assumpto de tradição com que possa deter-me em miudezas da vida do provedor em Lamego . Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca , e ameaçava o marido de ir com os seus cinco filhos para Lisboa , se elle não sahisse d' aquella intratavel terra . Parece que a fidalguia de Lamego , em todo o tempo orgulhosa d' uma antiguidade , que principia na acclamação de Almacave , desdenhou a philaucia da dama do paço , e esmerilhou certas vergonteas pôdres do tronco dos Botelhos Correias de Mesquita , desprimorando-lhe as sãs com o facto de elle ter vivido dois annos em Coimbra tocando flauta . Em 1801 achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em Vizeu . Manoel , o mais velho de seus filhos , tem vinte e dois annos , e frequenta o segundo anno juridico . Simão , que tem quinze , estuda humanidades em Coimbra . As tres meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe . O filho mais velho escreveu a seu pae queixando-se de não poder viver com seu irmão , temeroso do genio sanguinario d' elle . Conta que a cada passo se vê ameaçado na vida , porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros , e convive com os mais famosos perturbadores da academia , e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os á luta com assuadas . O corregedor admira a bravura de seu filho Simão , e diz á consternada mãe que o rapaz é a figura e o genio de seu bisavô Paulo Botelho Correia , o mais valente fidalgo que déra Traz-os-Montes . Manoel , cada vez mais aterrado das arremettidas de Simão , sáe de Coimbra antes de ferias , e vai a Vizeu queixar-se , e pedir que lhe dê seu pae outro destino . D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavallaria . De Vizeu parte para Bragança Manoel Botelho , e justifica-se nobre dos quatro costados para ser cadete . No entanto Simão recolhe a Vizeu com os seus exames feitos e approvados . O pae maravilha-se do talento do filho , e desculpa-o da extravagancia por amor do talento . Pede-lhe explicações do seu mau viver com Manoel , e elle responde que seu irmão o quer forçar a viver monasticamente . Os quinze annos de Simão tem apparencias de vinte . É forte de compleição ; bello homem com as feições de sua mãe , e a corpolencia d' ella ; mas de todo avêsso em genio . Na plebe de Vizeu é que elle escolhe amigos e companheiros . Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz , Simão zomba das genealogias , e mórmente do general Caldeirão que morreu frito . Isto bastou para elle grangear a mal-querença de sua mãe . O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher , e tomou parte no desgosto d' ella , e na aversão ao filho . As irmãs temiam-no , tirante Rita , a mais nova , com quem elle brincava puerilmente , e a quem obedecia , se lhe ella pedia , com meiguices de criança , que não andasse com pessoas mecanicas . Finalisavam as ferias , quando o corregedor teve um grave dissabor . Um de seus criados tinha ido levar a beber os machos , e por descuido ou proposito deixou quebrar algumas vasilhas que estavam á vez no parapeito do chafariz . Os donos das vazilhas conjuraram contra o criado , e espancaram-no . Simão passava n ' esse ensejo ; e , armado d' um fueiro que descravou d' um carro , partiu muitas cabeças , e rematou o tragico espectaculo pela farça de quebrar todos os cantaros . O povoleu intacto fugira espavorido , que ninguem se atrevia ao filho do corregedor ; os feridos , porém , incorporaram-se e foram clamar justiça á porta do magistrado . Domingos Botelho bramia contra o filho , e ordenava ao meirinho geral que o prendesse á sua ordem . D. Rita , não menos irritada , mas irritada como mãe , mandou , por portas travessas , dinheiro ao filho para que , sem detença , fugisse para Coimbra , e esperasse lá o perdão do pae . O corregedor , quando soube o expediente de sua mulher , fingiu-se zangado , e prometteu fazel- o capturar em Coimbra . Como , porém , D. Rita lhe chamasse brutal nas suas vinganças , e estupido juiz d' uma rapaziada , o magistrado desenrugou a severidade postiça da testa , e confessou tacitamente que era brutal e estupido juiz . Simão Botelho levou de Vizeu para Coimbra as arrogantes convicções da sua valentia . Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que pozera trinta aguadeiros , o som cavo das pancadas , a queda atordoada d' este , o levantar-se d' aquelle ensanguentado , a bordoada que abrangia tres a um tempo , a que afocinhava dois , a gritaria de todos , e o estrepito dos cantaros a final , Simão deliciava-se n ' estas lembranças , como ainda não vi n ' algum drama , em que o veterano de cem batalhas relembra os lourós de cada uma , e esmorece , a final , estafado de espantar , quando não é de estafar , os ouvintes . O academico , porém , com os seus enthusiasmos era incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragedia . As recordações esporeavam-no a façanhas novas , e n ' aquelle tempo a academia dava azo a ellas . A mocidade estudiosa , em grande parte , sympathisava com as balbuciantes theorias da liberdade , mais por presentimento que por estudo . Os apostolos da revolução franceza não tinham podido fazer reboar o trovão dos seus clamores n ' este canto do mundo ; mas os livros dos encyclopedistas , as fontes onde a geração seguinte bebêra a peçonha que sahiu no sangue de noventa e tres , não eram de todo ignorados . As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns timidos sectarios em Portugal , e esses de vêr é que deviam pertencer á geração nova . Além de que , o rancor a Inglaterra lavrava nas entranhas das classes manufactureiras , e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos , apertado , desde o principio do seculo anterior , com as sôgas de ruinosos e perfidos tractados , estava no animo de muitos e bons portuguezes que se queriam antes alliançados com a França , Estes eram os pensadores reflexivos ; os sectarios da academia , porém , exprimiam mais a paixão da novidade que as doutrinas do raciocinio . No anno anterior de 1800 sahira Antonio de Araujo de Azevedo , depois conde de a Barca , a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal . Rejeitaram-lhe as potencias alliadas as propostas , tendo-lhe em conta de nada os dezeseis milhões que o diplomata offerecia ao primeiro consul . Sem delongas , foi o territorio portuguez infestado pelos exercitos de Hespanha e França . As nossas tropas , commandadas pelo duque de Lafões , não chegaram a travar a lucta desigual , porque , a esse tempo , Luiz Pinto de Sousa , mais tarde visconde de Balsemão , negociara ignominiosa paz em Badajoz , com cedencia de Olivença á Hespanha , exclusão de inglezes dos nossos portos , e indemnisação de alguns milhões á França . Estes successos tinham irritado contra Napoleão os animos d' aquelles que odiavam o aventureiro , e para outros deram causa a congratularem-se do rompimento com Inglaterra . Entre os d' esta parcialidade , na convulsiva e irriquieta academia , era voto de grande monta Simão Botelho , apesar dos seus imberbes dezeseis annos . Mirabeau , Danton , Robespierre , Desmoulins , e muitos outros algozes e martyres do grande açougue , eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão . Diffamal- os na sua presença era affrontarem-no a elle , e bofetada certa , e pistolas engatilhadas á cara do diffamador . O filho do corregedor de Vizeu defendia que Portugal devia regenerar-se n ' um baptismo de sangue , para que a hydra dos tyrannos não erguesse mais uma das suas mil cabeças sob a clava do Hercules popular . Estes discursos , arremêdo d' alguma clandestina objurgatoria de Saint-Just , afugentavam da sua communhão aquelles mesmos que o tinham applaudido em mais racionaes principios de liberdade . Simão Botelho tornou-se odioso aos condiscipulos que , para se salvarem pela infamia , o delataram ao bispo-conde , reitor da universidade . Um dia proclamava o demagogo academico na praça de Sansão aos poucos ouvintes que lhe restaram fieis , uns por mêdo , outros por analogia de boças . O discurso ia no mais acrisolado da ideia regicida , quando uma escolta de verdeaes lhe aguou a escandecencia . Quiz o orador resistir , aperrando as pistolas , mas de sobra sabiam os braços musculosos da cohorte do bispo-conde com quem as haviam . O jacobino , desarmado e cerrado entre a escolta dos archeiros , foi levado ao carcere academico , d' onde sahiu , seis mezes depois , a grandes instancias dos amigos de seu pae e dos parentes de D. Rita Preciosa . Perdido o anno lectivo , foi para Vizeu Simão . O corregedor repelliu-o da sua presença com ameaças de o expulsar de casa . A mãe , mais levada do dever que do coração , intercedeu pelo filho , e conseguiu sental- o á mesa commum . No espaço de tres mezes fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão . As companhias da ralé despresou-as . Sahia de casa raras vezes , ou só , ou com a irmã mais nova , sua predilecta . O campo , as arvores , e os sitios mais sombrios e êrmos eram o seu recreio . Nas dôces noites de estio demorava-se por fora até ao repontar da alva ; e aquelles que assim o viam admiravam-lhe o ar scismador e o recolhimento que o sequestrava da vida vulgar . Em casa encerrava-se no seu quarto , e sahia quando o chamavam para a mesa . D. Rita pasmava da transfiguração , e o marido , bem convencido d' ella , ao fim de cinco mezes consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra . Simão Botelho amava . Ahi está uma palavra unica , explicando o que parecia absurda reforma aos dezesete annos . Amava Simão uma sua visinha , menina de quinze annos , rica herdeira , regularmente bonita e bem nascida . Da janella do seu quarto é que elle a vira a primeira vez para amal-a sempre . Não ficara ella incolume da ferida que fizera no coração do visinho : amou-o tambem , e com mais seriedade que a usual nos seus annos . Os poetas nos a paciencia a fallarem do amor da mulher aos quinze annos , como paixão perigosa , unica , e inflexivel . Alguns prosadores de romances dizem o mesmo . Enganam-se ambos . O amor dos quinze annos é uma brincadeira ; é a ultima manifestação do amor ás bonecas ; é a tentativa da avesinha que ensaia o vôo fóra do ninho , sempre com os olhos fitos na ave mãe que a está da fronde proxima chamando : tanto sabe a primeira o que é amar muito , como a segunda o que é voar para longe . Thereza de Albuquerque devia ser , por ventura , uma excepção no seu amor . O magistrado e sua familia eram odiosos ao pae de Thereza , por motivos de litigios em que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra . Afóra isso , ainda no anno anterior dois criados de Thadeu de Albuquerque tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte . Salta aos olhos que o amor de Thereza , declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pae , era verdadeiro e forte . E este amor era singularmente discreto e cauteloso . Viram-se e fallaram-se tres mezes , sem darem rebate á visinhança , e nem sequer suspeitas ás duas familias . O destino , que ambos se promettiam , era o mais honesto : elle ia formar-se para poder sustental-a , se não tivessem outros recursos ; ella esperava que seu velho pae fallecesse para , senhora sua , lhe dar com o coração o seu grande patrimonio . Espanta discrição tamanha na indole de Simão Botelho , e na presumivel ignorancia de Thereza em coisas materiaes da vida , como são um patrimonio ! Na vespera da sua ida para Coimbra , estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina , quando subitamente ella foi arrancada da janella . O allucinado moço ouviu gemidos d' aquella voz que , um momento antes , soluçava commovida por lagrimas de saudade . Subiu-lhe o sangue á cabeça ; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexiveis da jaula . Teve tentações de se matar , na impotencia de soccorrêl-a . As restantes horas d' aquella noite passou-as em raivas e projectos de vingança . Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue , e renasceu a esperança com os calculos . Quando o chamaram para partir para Coimbra , lançou-se do leito de tal modo desfigurado , que sua mãe , avisada do rosto amargurado d' elle , foi ao quarto interrogal- o e despersuadil- o de ir era quanto assim estivesse febril . Simão , porém , entre mil projectos , achara melhor o de ir para Coimbra , e esperar lá noticias de Thereza , e vir a Vizeu occultamente fallar com ella . Ajuizadamente discorrêra elle , que a sua demora aggravaria a situação de Thereza . Descêra o academico ao páteo , depois de abraçar a mãe e irmãs , e beijar a mão do pae , que para esta hora reservara uma admoestação severa , a ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria se elle recahisse em novas extravagancias . Quando mettia o pé no estribo , viu a seu lado uma velha mendiga , estendendo-lhe a mão aberta , como quem pede esmola , e , na palma da mão , um pequeno papel . Sobresaltou-se o moço ; e , a poucos passos distante de sua casa , leu estas linhas : " Meu pae diz que me vai encerrar n ' um convento , por tua causa . Soffrerei tudo por amor de ti . Não me esqueças tu , e me-has no convento , ou no ceo , sempre tua do coração , e sempre leal . Parte para Coimbra . Lá irão dar as minhas cartas ; e na primeira te direi em que nome has de responder á tua pobre Thereza . " A mudança do estudante maravilhou a academia . Se o não viam nas aulas , em parte nenhuma o viam . Das antigas relações restavam-lhe apenas as dos condiscipulos sensatos que o aconselhavam para bem , e o visitaram no carcere de seis mezes , dando-lhe alentos e recursos , que seu pae lhe não dava , e sua mãe escassamente suppria . Estudava com fervor , como quem já d' alli formava as bases do futuro renome e da posição por elle merecida , bastante a sustentar dignamente a esposa . A ninguem confiava o seu segredo , senão ás cartas que enviava a Thereza , longas cartas em que folgava o espirito da canceira da sciencia . A apaixonada menina escrevia-lhe a miudo , e já dizia que a ameaça do convento fôra mero terror de que já não tinha mêdo , porque seu pae não podia viver sem ella . Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo . Simão , chamado em pontos difficeis das materias do primeiro anno , tal conta deu de si , que os lentes e os condiscipulos o houveram como primeiro premiado . A este tempo , Manoel Botelho , cadete em Bragança , destacado no Porto , licenciou-se para estudar na universidade as mathematicas . Animou-o a noticia do reviramento que se déra em seu irmão . Foi viver com elle ; achou-o quieto ; mas alheado n ' uma ideia que o tornava misanthropo e intratavel n ' outro genero . Pouco tempo conviveram , sendo a causa da separação um desgraçado amor de Manoel Botelho a uma açoriana casada com um academico . A esposa apaixonada perdeu-se nas illusões do cego amante . Deixou o marido , e fugiu com elle para Lisboa , e d' ahi para Hespanha . Em outro relanço d' esta narrativa darei conta do remate d' este episodio . No mez de Fevereiro de 1803 recebeu Simão Botelho uma carta de Thereza . No seguinte capitulo se diz minuciosamente a peripecia que forçára a filha de Thadeu de Albuquerque a escrever aquella carta de pungentissima surpreza para o academico , convertido aos deveres , á honra , á sociedade e a Deus pelo amor . O pae de Thereza não embicaria na impureza do sangue do corregedor , se o ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o odio de um e o desprêso do outro . O magistrado mofava do rancor do seu visinho , e o visinho malsinava de venalidade a reputação do magistrado . Este sabia da injuriosa vingança em que o outro se ia despicando ; fingia-se invulneravel á detracção ; mas de dia para dia se lhe azedava a bilis ; e é de crêr que , se o não contivessem considerações de familia , soffreria menos , desabafando pela bôca d' um bacamarte , arma da predilecção dos Botelhos Correias de Mesquita . Era obra sobrehumana o reconciliarem-se . Rita , a filha mais nova , estava um dia na janella do quarto de Simão , e viu a visinha rente com os vidros e a testa apoiada nas mãos . Sabia Thereza que era aquella menina a mais querida irmã de Simão , e a que mais semelhança de parecer tinha com elle . Sahiu da sua artificial indifferença , e respondeu ao reparo de Rita , fazendo-lhe com a mão um gesto e sorrindo para ella . A filha do corregedor sorriu tambem , mas fugiu logo da janella , porque sua mãe tinha prohibido ás filhas de trocarem vistas com pessoa d' aquella casa . No dia seguinte á mesma hora , levada da sympathia que lhe causára aquelle sorriso e aceno , tornou Rita á janella , e lá viu Thereza com os olhos fitos na sua , como se a estivesse esperando . Sorriram-se com resguardo , afastando-se , a um tempo , do peitoril das janellas ; e assim , ambas de pé , no interior dos quartos , se estavam contemplando . Como a rua era estreita , podiam ouvir-se fallando baixo . Thereza , mais pelo movimento dos labios que por palavras , perguntou a Rita se era sua amiga . A menina respondeu com um gesto affirmativo , e fugiu , acenando-lhe um adeus . Estes rapidos instantes de se vêrem repetiram-se successivos dias , até que , perdido o maior mêdo de ambas , ousaram demorar-se em palestras a meia voz . Thereza fallava de Simão , contava á menina de onze annos o segredo do seu amor , e dizia-lhe que ella havia de ser ainda sua irmã , recommendando-lhe muito que não dissesse nada á sua familia . N ' uma d' essas conversações , Rita descuidara-se , e levantou de modo a voz que foi ouvida d' uma irmã , que a foi logo accusar ao pae . O corregedor chamou Rita , e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira á visinha . Tanta foi sua cólera , que , sem attender ás razões da esposa , que viera espavorida dos gritos d' elle , correu ao quarto de Simão , e viu ainda Thereza á janella . Ólé ! -- disse elle á pállida menina -- Não tenha a confiança de pôr olhos em pessoa de minha casa . Se quer casar , case com um sapateiro , que é um digno genro de seu pae . Thereza não ouviu o remate da brutal apostrophe : tinha fugido aturdida e envergonhada . Porém , como o desabrido ministro ficasse bramindo no quarto , e Thadeu de Albuquerque sahisse a uma janella , a cólera d' aquelle redobrou , e a torrente das injurias , longo tempo represada , bateu no rosto do visinho , que não ousou replicar-lhe . Thadeu interrogou sua fllha , e acreditou que foi causa á sanha de Domingos Botelho estarem as duas meninas praticando innocentemente , por tregeitos , em coisas de sua idade . Desculpou o velho a criancice de Thereza , admoestando-a a que não voltasse áquella janella . Esta mansidão do fidalgo , cujo natural era bravio , tem a sua explicação no projecto de casar em breve a filha com seu primo Balthazar Coutinho , de Castro-d'Aire , senhor de casa , e egualmenle nobre da mesma prosapia . Cuidava o velho , presumpçoso conhecedor do coração das mulheres , que a brandura seria o mais seguro expediente para levar a filha ao esquecimento d' aquelle pueril amor a Simão . Era maxima sua que o amor , aos quinze annos , carece de consistencia para sobreviver a uma ausencia de seis mezes . Não pensava errado o fidalgo , mas o erro existia . As excepções tem sido o ludibrio dos mais assizados pensadores , tanto no especulativo como na sciencia positiva . Não era muito que Thadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher , cujas variantes são tantas e tão caprichosas , que eu não sei se alguma maxima póde ser-nos guia , a não ser esta : " Em cada mulher , quatro mulheres incomprehensiveis , pensando alternadamente como se hão de desmentir umas ás outras . " Isto é o mais seguro ; mas não é infallivel . Ahi está Thereza que parece ser unica em si . Dir-se-ha que as tres da conta , que diz a sentença , não podem coexistir com a quarta , aos quinze annos ? Tambem o penso assim , posto que a fixidez , a constancia d' aquelle amor , funda em causa independente do coração : é porque Thereza não vai á sociedade , não tem um altar em cada noite na sala , não provou o incenso d' outros galans , nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada , desluzida pela ausencia , com a imagem amante , amor nos olhos que a fitam , e amor nas palavras que a convencem de que ha um coração para cada homem , e uma só mocidade para cada mulher . Quem me diz a mim que Thereza teria em si as quatro mulheres da maxima , se o vapor de quatro incensorios lhe estonteasse o espirito ? Não é facil , nem preciso decidir ; e vamos ao conto . Ácerca de Simão Botelho , nunca diante de sua filha Thadeu de Albuquerque proferiu palavra , nem antes nem depois do disparate do corregedor . O que elle fez logo foi chamar a Vizeu o sobrinho de Castro d'Aire , e prevenil- o do seu designio , para que elle em face de Thereza procedesse como convinha a um enamorado de feição , que mutuamente se apaixonassem e promettessem auspicioso futuro ao casamento . Por parte de Balthazar Coutinho a paixão inflammou-se tão depressa , quanto o coração de Thereza se congelou de terror e repugnancia . O morgado de Castro-d'Aire , attribuindo a frieza de sua prima a modestia , a innocencia e acanhamento , lisonjeou-se do virginal melindre d' aquella alma , e saboreou de antemão o prazer de uma lenta , mas segura conquista . Verdade é que Balthazar nunca se explicara de modo que Thereza lhe désse+esse resposta decisiva ; um dia , porém , instigado por seu tio , affoitou-se o ditoso noivo a fallar assim á melancólica menina : -- É tempo de lhe abrir o meu coração , prima . Está bem disposta a ouvir-me ? -- -- Eu estou sempre bem disposta a ouvil- o , primo Balthazar . A desplicencia enfadosa d' esta resposta abalou algum tanto as convicções do fidalgo , respeito á innocencia , modestia e acanhamento de sua prima . Ainda assim quiz elle no momento persuadir-se que a boa vontade não poderia exprimir-se d' outro modo , e continuou : -- Os nossos corações penso eu que estão unidos ; agora é preciso que as nossas casas se unam . Thereza impallideceu , e baixou os olhos . -- Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradavel ? ! -- proseguiu Balthazar , rebatido pela desfiguração de Thereza . -- Disse-me o que é impossível fazer-se -- respondeu ella sem turvação -- O primo engana-se : os nossos corações não estão unidos . Sou muito sua amiga , mas nunca pensei em ser sua esposa , nem me lembrou que o primo pensava em tal . -- Quer dizer que me aborrece , prima Thereza ? -- atalhou corrido o morgado . -- Não , senhor : já lhe disse que o estimava muito , e por isso mesmo não devo ser esposa d' um amigo a quem não posso amar . A infelicidade não seria só minha ... -- Muito bem ... Posso eu saber -- tornou com refalsado sorriso o primo -- quem é que me disputa o coração de minha prima ? -- Que lucra em o saber ? -- Lucro saber , pelo menos , que a minha prima ama outro homem ... é exacto ? -- E com tamanha paixão que desobedece a seu pae ? -- Não desobedeço : o coração é mais forte que a submissa vontade de uma filha . Desobedeceria , se casasse contra a vontade de meu pae ; mas eu não disse ao primo Balthazar que casava ; disse-lhe unicamente que amava . -- Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de dizer ! ... quem pensaria que os seus dezeseis annos estavam tão abundantes de palavras ! ... -- Não são só palavras , primo -- retorquiu Thereza com gravidade -- são sentimentos que merecem a sua estima , por serem verdadeiros . Se lhe eu mentisse ficaria mais bem vista de meu primo ? -- Não , prima Thereza ; fez bem em dizer a verdade , e de a dizer em tudo . Ora , olhe , não duvída declarar quem é o ditoso mortal da sua preferencia ? -- Que lhe faz saber isso ? -- Muito , prima : todos temos a nossa vaidade , e eu folgaria muito de me vêr vencido por quem tivesse merecimentos que eu não tenho aos seus olhos . Tem a bondade de me dizer o seu segredo , como o diria a seu primo Balthazar , se o tivesse em conta do seu amigo intimo ? -- N ' essa conta é que eu o não posso já ter ... -- respondeu Thereza , sorrindo e contando , como elle , as syllabas das palavras . -- Pois nem para amigo me quer ? ! -- O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive , e será de hoje em diante meu inimigo . -- Pelo contrario ... -- tornou elle com mal rebuçada ironia -- muito pelo contrario ... Eu lhe provarei que sou seu amigo , se alguma vez a vir casada com algum miseravel indigno de si . -- Casada ! ... -- interrompeu ella ; mas Balthazar cortou-lhe logo a réplica d' este modo : -- Casada com algum famoso ébrio ou jogador de páo , valentão de aguadeiros , e distincto cavalheiro que passa os annos lectivos encarcerado nas cadêas de Coimbra ... Visivel É que Balthazar Coutinho estava senhor do segredo de Thereza . Seu tio , naturalmente , lhe communicara a criancice da prima , talvez antes de destinar-lh ' a esposa . Ouvira Thereza o tom sarcastico d' aquellas palavras , e erguêra- se respondendo assim com altivez : -- Não tem mais que me diga , primo Balthazar ? -- Tenho , prima : queira sentar-se algum tempo mais . Não cuide agora que está fallando com o namorado infeliz : convença-se de que falla com o seu mais proximo parente e mais sincero amigo , e mais decidido guarda da sua dignidade e fortuna . Eu sabia que minha prima , contra a expressa vontade de seu pae , uma ou outra vez conversára da janella com o filho do corregedor . Não dei valor ao successo , e tomei-o como criancice . Como eu frequentasse o meu ultimo anno em Coimbra , ha dois annos conheci de sobra Simão Botelho . Quando vim e me contaram a sua affeição ao academico , pasmei da boa fé da priminha ; depois entendi que a sua mesma innocencia devia ser o seu anjo custodio . Agora , como seu amigo , cumpunjo-me de a vêr ainda fascinada pela perversidade do seu visinho . Não se recorda de ter visto Simão Botelho sociando com a infima vilanagem d' esta terra ? Não viu os seus criados com as cabeças quebradas pelo tal varredor de feiras ? Não lhe constou que elle , em Coimbra , abarrotado de vinho , andava pelas ruas armado como um salteador de estradas , proclamando á canalha a guerra aos nobres , e aos reis , e á religião de nossos paes ? A prima ignoraria isto por ventura ? -- Ignorava parte d' isso , e não me afflige o sabêl- o . Desde que conheci Simão , não me consta que elle tenha dado o menor desgosto á sua familia , nem ouço fallar mal d' elle . -- E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de costumes ? -- Não sei , nem penso n ' isso -- replicou com enfado Thereza . -- Não se zangue , prima . Vou-lhe dizer as minhas ultimas palavras : eu hei de , em quanto viver , trabalhar para salval- a das garras de Simão Botelho . Se seu pae lhe faltar , fico eu . Se as leis a não defenderem dos ataques do seu demonio , eu farei vêr ao valentão que a victoria sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fóra da casa de meu tio||_Thadeu_d'Albuquerque Thadeu|_Thadeu_d'Albuquerque d'Albuquerque|_Thadeu_d'Albuquerque . -- Então o primo quer-me governar ? -- atalhou ella com desabrida irritação . -- Quero-a dirigir em quanto a sua razão precisar de auxilio . Tenha juizo , e eu serei indifferente ao seu destino . Não a enfado mais , prima Thereza . Balthazar Coutinho foi d' ali procurar seu tio , e contou-lhe o essencial do dialogo . Thadeu , atonito da coragem da filha , e ferido no coração e direitos paternaes , correu ao quarto d' ella , disposto a espancal-a . Reteve-o Balthazar , reflexionando-lhe que a violencia prejudicaria muito a crise , sendo coisa de esperar que Thereza fugisse de casa . Refreou o pae a sua ira , e meditou . Horas depois chamou sua filha , mandou-a sentar ao pé de si , e em termos serenos e gesto bem composto , lhe disse que era sua vontade casal- a com o primo ; porém que elle já sabia que a vontade de sua filha não era essa . Ajuntou que a não violentaria ; mas tambem não consentiria que ella , sovando aos pés o pundonor de seu pae , se désse+esse de coração ao filho do seu maior inimigo . Disse mais que estava a resvalar na sepultura , e mais depressa desceria a ella , perdendo o amor da filha , que elle já considerava morta . Terminou perguntando a Thereza , se ella duvidava entrar n ' um convento , e ahi esperar que seu pae morresse , para depois ser desgraçada á sua vontade . Thereza respondeu , chorando , que entraria n ' um convento , se essa era a vontade de seu pae ; porém que se não privasse elle de a ter em sua companhia , nem a privasse a ella dos seus affectos , por mèdo de que sua filha praticasse alguma acção indigna , ou lhe desobedecesse no que era virtude obedecer . Prometteu- lhe julgar-se morta para todos os homens , menos para seu pae . Thadeu ouviu-a , e não lhe replicou . O coração de Thereza estava mentindo . Vão lá pedir sinceridade ao coração ! Para finos entendedores , o dialogo do anterior capitulo definiu a filha de Thadeu de Albuquerque . É mulher varonil , tem força de caracter , orgulho fortalecido pelo amor , despêgo das vulgares apprehensões , se são apprehensões a renuncia que uma filha faz de sua vontade ás imprevidentes e caprichosas vontades de seu pae . Diz boa gente que não , e eu abundo sempre no voto da gente boa . Não será aleive attribuir-lhe uma pouca de astucia , ou hypocrisia , se quizerem ; perspicacia seria mais correcto dizer . Thereza adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida , e que os melhores fins se attingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade . Estes ardis são raros na idade inexperta de Thereza ; mas a mulher do romance quasi nunca é trivial , e esta , de que resam os meus apontamentos , não o era . A mim me basta para crêr em sua distincção a celebridade que ella veio a ganhar á conta da desgraça . Da carta que ella escreveu a Simão Botelho , contando as scenas descriptas , a critica deduz que a menina de Vizeu contemporisava com o pae , pondo a mira no futuro , sem passar pelo dissabor do convento , nem romper com o velho em manifesta desobediencia . Na narrativa que fez ao academico omittiu ella as ameaças do primo Balthazar , clausula que , a ser transmittida , arrebataria de Coimbra o moço , em que sobejavam brios e ferocidade para mantêl-os . Mas não é esta ainda a carta que surprendeu Simão Botelho . Parecia bonançoso o ceo de Thereza . Seu pae não fallava em claustro , nem em casamento . Balthazar Coutinho voltára ao seu solar de Castro-d'Aire . A tranquilla menina dava semanalmente estas boas novas a Simão , e este , alliando ás venturas do coração as riquezas do espirito , estudava incessantemente , e desvelava as noites arquitectando o seu edifício de futura gloria . Ao romper d' alva , d' um domingo de Junho de 1803 , foi Thereza chamada para ir com seu pae á primeira missa da igreja parochial . Vestiu-se a menina assustada , e encontrou o velho na ante-camara a recebêl- a com muito agrado , perguntando-lhe se ella se erguia de bons humores para dar ao author de seus dias um resto de velhice feliz . O silencio de Thereza era interrogador . -- Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Ballhazar , minha filha . É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pae . Logo que déres este passo difficil , conhecerás que a tua felicidade é d' aquellas que precisam ser impostas pela violencia . Mas repara , minha querida filha , que a violencia de um pae é sempre amor . Amor tem sido a minha condescendencia e brandura para comtigo . Outro teria subjugado a tua desobediencia com maus tractos , com os rigores do convento , e talvez com o desfalque do teu grande patrimonio . Eu , não . Esperei que o tempo te aclarasse a razão , e felicito-me de te julgar desassombrada do diabolico prestigio do maldito , que acordou o teu innocente coração . Não te consultei outra vez sobre este casamento , por temer que a reflexão fizesse mal ao fervor de boa filha com que tu vais abraçar teu pae , e agradecer-lhe a sisudez com que elle respeitou o teu genio , velando sempre a hora de te encontrar digna do seu amor . Thereza não desfitou os olhos do pae ; mas tão abstrahida estava , que escassamente lhe ouviu as primeiras palavras , e nada das ultimas . -- Não me respondes , Thereza ? ! -- tornou Thadeu , tomando-lhe caridosamente as mãos . -- Que hei-de eu responder-lhe , meu pae ? -- balbuciou ella . -- Dás-me o que te peço ? enches de contentamento os poucos dias que me restam ? -- E será o pae feliz com o meu sacrificio ? -- Não digas sacrificio , Thereza ... A ' manhã a estas horas verás que transfiguração se fez na tua alma . Teu primo é um composto de todas as virtudes ; nem a qualidade de ser um gentil moço lhe falta , como se a riqueza , a sciencia e as virtudes não bastassem a formar um marido excellente . -- E elle quer-me , depois de eu me ter negado ? -- disse ella com amargura ironica . -- Se elle está apaixonado , filha ! ... e tem bastante confiança em si para crêr que tu has de amal- o muito ! ... -- E não será mais certo odial- o eu sempre ! ? Eu agora mesmo o abomino como nunca pensei que se podesse abominar ! Meu pae ... -- continuou ella , chorando , com as mãos erguidas -- mate-me ; mas não me force a casar com meu primo ! É escusada a violencia , porque eu não caso ! ... Thadeu mudou de aspecto , e disse irado : -- Hás de casar ! Quero que cases ! Quero ! ... Quando não , amaldiçoada serás para sempre , Thereza ! Morrerás n ' um convento ! Esta casa irá para teu primo ! Nenhum infame ha de aqui pôr um pé nas alcatifas de meus avós . Se és uma alma vil , não me pertences , não és minha filha , não podes herdar appellidos honrosos , que foram pela primeira vez insultados pelo pae d' esse miseravel que tu amas ! Maldita sejas ! Entra n ' esse quarto , e espera que d' ahi te arranquem para outro , onde não verás um raio de sol . Thereza ergueu-se sem lagrimas , e entrou serenamente no seu quarto . Thadeu de Albuquerque foi encontrar seu sobrinho , e disse-lhe : -- Não te posso dar minha filha , porque já não tenho filha . A miseravel , a quem dei este nome , perdeu-se para nós e para ella . Balthazar , que , a juizo de seu tio , era um composto de excellencias , tinha apenas uma quebra : a absoluta carencia de brios . Malograda a tentativa do seu amor de emboscada , tornou para a terra o primo de Thereza , dizendo ao velho que elle o livraria do assedio em que Simão Botelho lhe tinha o coração da filha . Não approvou a reclusão no convento , discorrendo sobre as hypotheses infamantes que a opinião publica inventaria . Aconselhou que a deixasse estar em casa , e esperasse que o filho do corregedor viesse de Coimbra . Ponderaram no animo do velho as razões de Balthazar . Thereza maravilhou-se da quietação inesperada de seu pae , e desconfiou da incoherencia . Escreveu a Simão . Nada lhe escondeu do succedido ; nem as ameaças de Balthazar por delicadeza supprimiu . Rematava communicando-lhe as suas suspeitas de alguma nova traça de violencia melhor agourada . O academico , chegando ao periodo das ameaças , já não tinha clara luz nos olhos para decifrar o restante da carta . Tremia sezões , e as artérias frontaes arfavam-lhe entumecidas . Não era sobresalto do coração apaixonado : era a indole soberba que lhe escaldava o sangue . Ir d' ali a Castro-d'Aire , e apunhalar o primo de Thereza na sua propria casa , foi o primeiro conselho , que lhe segredou a furia do odio . N ' este proposito sahiu , alugou cavallo , e recolheu a vestir-se de jornada . Já preparado , a cada minuto de espera assomava-se em frenesis . O cavallo demorou-se meia hora , e o seu bom anjo , n ' este espaço , vestido com as galas com que elle vestia na imaginação Thereza , deu-lhe rebates de saudade d' aquelles tempos e ainda das horas d' aquelle mesmo dia , em que scismava na felicidade que o amor lhe promettia , se a elle procurasse no caminho do trabalho e da honra . Contemplou os seus livros com tanto affecto , como se em cada um estivesse uma pagina da historia do seu coração . Nenhuma d' aquellas paginas tinha elle lido , sem que a imagem de Thereza lhe apparecesse a fortalecêl- o para vencer os tédios da continuada applicaçao , e os impetos d' um natural inquieto e ancioso de commoções desusadas . " E ha de tudo acabar assim ? " -- pensava elle , com a face entre as mãos , encostado á sua banca de estudo . -- " Ainda ha pouco eu era tão feliz ! ... " -- " Feliz ! " -- repetiu elle erguendo-se de golpe -- " quem póde ser feliz com a deshonra d' uma ameaça impune ! ... Mas eu perco-a ! Nunca mais hei de vêl-a ... Fugirei como um assassino , e meu pae será o meu primeiro inimigo , e ella mesma ha de horrorisar-se da minha vingança ... A ameaça só ella a ouviu ; e , se eu tivesse sido aviltado no conceito de Thereza , pelos insultos do miseravel , talvez que ella os não repetisse ... " Simão Botelho releu a carta duas vezes , e á terceira leitura achou menos affrontosas as bravatas do fidalgo cioso . As linhas finaes desmentiam formalmente a suspeita do aviltamento , com que o seu orgulho o atormentava : eram expressões ternas , supplicas ao seu amor como recompensa dos passados e futuros desgostos , visões encantadoras do futuro , novos juramentos de constancia , e sentidas phrases de saudade . Quando o arreeiro bateu á porta , Simão Botelho já não pensava em matar o homem de Castro-d'Aire ; mas resolvêra ir a Vizeu , entrar de noite , esconder-se e vêr Thereza . Faltava-lhe , porém , casa de confiança onde se occultasse . Nas estalagens , seria logo descoberto . Perguntou ao arreeiro se conhecia alguma casa em Vizeu onde elle podesse estar escondido uma noite ou duas , sem receio de ser denunciado . O arreeiro respondeu que tinha a um quarto de legua de Vizeu um primo ferrador ; e não conhecia em Vizeu senão os estalajadeiros . Simão achou de aproveitar o parentesco do homem , e logo d' alli o presenteou com uma jaqueta de pelles e uma faxa de sêda escarlate , á conta de maiores valores promettidos , se elle o bem servisse n ' uma empreza amorosa . No dia seguinte chegou o academico a casa do ferrador . O arreeiro deu conta ao seu parente do que vinha tratado com o estudante . Foi Simão Botelho cautelosamente hospedado , e o arreeiro abalou no mesmo ponto para Vizeu , com uma carta destinada a uma mendiga , que morava no mais impraticavel bêcco da terra . A mendiga informou-se miudamente da pessoa que enviava a carta , e sahiu , mandando esperar o caminheiro . Pouco depois , voltou ella com a resposta , e o arreeiro partiu a galope . Era a resposta um grito de alegria . Thereza não reflectiu , respondendo a Simão , que n ' aquella noite se festejavam os annos de seu pae , e se reuniam em casa os parentes . Disse-lhe que ás onze horas em ponto ella iria ao quintal , e lhe abriria a porta . Não esperava tanto o academico . O que elle pedia era fallar-lhe da rua para a janella do seu quarto , e receava impossivel este prazer , que elle avaliava o maximo . Apertar-lhe a mão , sentir-lhe o halito , abraçal-a talvez , commetter a ousadia de um beijo , estas esperanças , tão além de suas modestas e honestas ambições , egualmente o enlevavam e assustavam . Enlevo e susto em corações que se estreiam na comedia humana , são sentimentos congeniaes . Á hora da partida , Simão tremia , e a si mesmo pedia contas da timidez , sem saber que os encantos da vida , os mais angelicos momentos da alma , são esses lances de mysterioso alvoroço que aos mais ricos de coração succedem em todas as sasões da vida , e a todos os homens , uma vez ao menos . Ás onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal , e a distancia convencionada o arreeiro com o cavallo á rédea . A toada da musica , que vinha das salas remotas alvoroçava-o , porque a festa em casa de Thadeu de Albuquerque o surprendêra . No longo termo de tres annos nunca elle ouvira musica n ' aquella casa . Se elle soubesse o dia natalicio de Thereza , espantára- se menos da estranha alegria d' aquellas salas , sempre fechadas , como em dias de mortuorio . Simão imaginou desvairadaraente as chimeras que voejam , ora negras , ora translucidas em redor da phantasia apaixonada . Não ha balisa racional para as bellas , nem para as horrorosas ilusões , quando o amor as inventa . Simão Botelho , com o ouvido collado á fechadura , ouvia apenas o som das flautas , e as pancadas do coração sobresaltado . Balthazar Cominho estava na sala , simulando vingativa indifferença por sua prima . As irmãs do fidalgo e a de mais parentela da casa não deixavam respirar Thereza . Moças e velhas , todas á uma , se repetiam , aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo , e dar a seu pae a alegria que o pobre velho tanto rogava a Deus , antes de fechar os olhos . Replicava Thereza que não queria mal a seu primo , nem sequer eslava sentida d' elle ; que era sua amiga , e sêlia- o-sempre em quanto lhe elle deixasse livre o coração . O velho esperava muito d' aquella noitada de festa . Alguns parentes , presumidos de prudentes , lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a filha com os prazeres congruentes á sua idade , dando-lhe ensejo a que ella repartisse o espirito , concentrado n ' um só ponto , por diversões em que a natural vaidade se preoccupa , e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando . Aconselharam-lhe as reuniões amiudadas , já em sua casa , já na dos seus parentes , para d' este modo Thereza se mostrar a muitos , ser cortejada de todos , e ter em opinião de menos valia o unico homem com quem fallava , e a quem julgava superior a todos . O fidalgo accedeu , mas com difficuldade ; porque tinha lá um systema seu de ajuizar das mulheres , e porque vivêra trinta annos de vida libertina e dispendiosa , e se estava agora saboreando na economia e na quietação . Os annos de Thereza eram pela primeira vez festejados com estrondo . A morgada viu então o que era o minuete da côrte , e certos jogos de prendas com que os intervallos n ' aquelles tempos , se aligeiravam em delicias , sem fadiga do corpo , nem desagrado da moral . Mas , de agitada que estava , Thereza não compartia do gôso dos seus hospedes . Desde que soaram as dez horas d' aquella noite , a rainha da festa parecia tão alheada das finezas com que senhoras e homens á competência a lisonjeavam , que Balthazar Coutinho deu fé do dessocêgo de sua prima , e teve a modestia de imaginar que ella se offendêra da indifferença d' elle . Generoso até ao perdão , o morgado de Castro-d'Aire , compondo o rosto com gesto grave e melancolico , dirigiu-se a Thereza , e pediu-lhe desculpa da frieza que elle disse ser como a das montanhas , que tem vulcões por dentro e neve por fóra . Thereza teve a sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza de seu primo , e chamou para junto d' ella uma menina , para evitar que a montanha se abrisse em vulcões . Pouco depois ergueu-se , e sahiu da sala . Eram dez horas e tres quartos . Thereza corrêra ao fundo do quintal , abrira a porta , e , como não visse alguem , tornou de corrida para a sala . No momento , porém , de subir a escada que ligava o jardim á casa , Balthazar Coutinho , que a espiava desde que ella sahiu da sala , chegou a uma das janellas sobre o jardim , bem longe de imaginar que a via . Retirou-se , e entrou com Thereza na sala , ao mesmo tempo , por diversas portas . Decorridos alguns minutos , a menina sahiu outra vez , e o primo tambem . Thereza ouviu , a distancia , o estrepito d' um cavallo , quando passou ao patamar da escada . Balthazar tambem o ouviu , e notou que sua prima , receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido , levava uma capa ou chaile que a envolvia toda . O de Castro-d'Aire fez pé atraz para não ser visto . Thereza , porém , n ' um relance de olhar temeroso , ainda víra um vulto retirar-se . Teve mêdo , e retrocedeu a largar a capa , e entrou na sala , offegante de cansaço e pallida de mêdo . -- Que tens , minha filha ? -- disse-lhe o pae -- Já duas vezes sahisteda sala , e vens tão alvoroçada ! Tens algum incommodo , Thereza ? -- Tenho uma dôr : preciso de ir respirar de vez em quando ... Nada é , meu pae . Thadeu acreditou , e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dôr ; só o não disse a seu sobrinho , porque o não encontrou , e soube que elle tinha sahido . Tambem Thereza dera pela ausencia do primo , e fingiu que o ia procurar , resolução de que o velho gostou muito . Desceu ella ao jardim , correu á porta , onde a esperava Simão , abriu-a , e com a voz cortada pela anciedade , apenas disse : -- Vai-te embora : vem ámanhã ás mesmas horas ... Vai , vai ! Simão , quando isto ouvia , tinha os olhos , fitos n ' um vulto , que se approximava d' elle , rente com o muro do quintal . O arreeiro , que primeiro o vira , dera um signal , e entalara as rédeas do cavallo entre umas pedras , para ficar desembaraçado , se o estudante se não podésse haver com o inimigo . Simão Botelho não se moveu do local , e Balthazar Coutinho parou na distancia de seis passos . O arreeiro tinha lentamente avançado a meio caminho do patrão , quando lhe este disse que não se aproximasse . E , caminhando para o vulto , aperrou duas pistolas , e disse-lhe : -- Isto aqui não é caminho . Que quer ? O fidalgo não respondeu . -- Parece-me que lhe abro a bôca com uma bala ! -- tornou Simão . -- Que lhe importa o senhor quem está ? ! -- disse Balthazar -- Se eu tiver um segredo , como o senhor parece que tem o seu n ' estes sitios , sou obrigado a confessar-lh ' o ? ! Simão reflectiu , e replicou : -- Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família , e uma só mulher . -- Estão n ' essa casa mais de quarenta mulheres esta noite -- redarguiu o primo de Thereza -- Se o cavalheiro espera uma , eu posso esperar outra . -- Quem é o senhor ? -- tornou com arrogancia o filho do corregedor . -- Não conheço a pessoa que me interroga , nem quero conhecer . Fiquemos cada um com o nosso incognito . Boas noites . Balthazar Coutinho retrocedeu , dizendo entre si : " que partido tem uma espada contra dois homens e duas pistolas ? " Simão Botelho cavalgou , e partiu para casa do hospitaleiro ferrador . O sobrinho de Thadeu de Albuquerque entrou na sala , sem denunciar levemente alteração de animo . Viu que Thereza o observava de revez , e soube dissimular-se de modo que a socegou . A pobre menina , cansada de commoções , viu com prazer erguer-se para sahir a primeira familia , que deu rebate ás outras , menos ao de Castro-d'Aire e suas irmãs , que ficaram hospedados em casa de seu tio , com tenção de se demorarem oito dias em Vizeu . Velou Thereza o restante da noite , escrevendo a Simao a detida historia dos seus terrores , e pedindo-lhe perdão de o ella não ter advertido do baile , por fcar doida de alegria com a sua vinda . No tocante ao plano de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta . Isto espantou o academico . A seu vêr , o vulto era Balthazar Coutinho , e o pae de Thereza devia ser avisado n ' aquella mesma noite . Respondeu elle contando a historia do incidente com o encapelado ; receando , porém , assustar Thereza e gorar a entrevista , escreveu nova carta , em que não transluzia mêdo de ser atacado , nem sequer receio de marear-lhe a fama . Quiz parecer a Simão Botelho que este era o digno porte de um amante corajoso . Passou o estudante aquelíe dia contando as longas horas , e meditando instantes nos funestos resultados que podia ter a sua temeraria ida , se Balthazar Coutinho era aquelle homem , que reservára para melhor relance a vingança da provocação insolente . Mas de si para si tinha elle que pensar em tal era mais covardia que prudencia . O ferrador tinha uma filha , moça de vinte e quatro annos , e formas bonitas , e um rosto bello e triste . Notou Simão os reparos em que ella se demorava a contemplal- o , e perguntou-lhe a causa d' aquelle olhar melancolico com que ella o fitava . Marianna corou , abriu um sorriso triste , o respondeu : -- Não sei o que me adivinha o coração a respeito de v. s.a Alguma desgraça está para lhe succeder . -- A menina não dizia isso -- replicou Simão -- sem saber alguma coisa da minha vida . -- Alguma coisa sei ... -- tornou ella . -- Ouviu contar ao arreeiro ? -- Não , senhor . É que meu pae conhece o paesinho de v. s.a , e tambem conhece o senhor . E ha bocadinho que eu ouvi estar meu pae a dizer a meu tio , que é o arreeiro que veio com v. s.a , que tinha suas razões para saber que alguma desgraça lhe estava para acontecer ... -- Porque ? -- Pr ' amor d' uma fidalga -- Vizeu , que tem um primo em Castro-d'Aire . Simão espantou-se da publicidade do seu segredo , e ia colher pormenores do que elle julgava mysterio entre duas familias , quando o mestre ferrador João da Cruz entrou no sobrado , onde o precedente dialogo se passára . A môça , como ouvisse os passos do pae , sahira lestamente por outra porta . -- Com sua licença -- disse mestre João . Dizendo , fechou por dentro ambas as portas , e sentou-se sobre uma arca . -- Ora , meu fidalgo -- continuou elle , descendo as mangas arregaçadas da camiza , e apertando-as com difficuldade nos grossos pulsos , como quem sabe as exigencias da ceremonia -- ha de desculpar que eu viesse assim em mangas de camiza ; mas não dei com a jaqueta ... -- Está muito bem , senhor||_João João|_João -- atalhou o academico . -- Pois , senhor , eu devo um favor a seu pae , e um favor d' aquella casta . Uma vez armou-se aqui á minha porta uma desordem , a trôco d' um couce que um macho d' um almocreve deu n ' uma egua , que eu estava ferrando , e em tão hoa hora foi , que lhe partiu rente o jarrête por aqui , salvo tal logar . João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fôra fracturada a da egua , e continuou : -- Eu tinha alli á mão o martello , e não me tive que não pregasse com elle na cabeça do macho , que foi logo para a terra . O recoveiro de Carção , que era chibante , deitou as unhas a um bacamarte , que trazia entre uma carga , e desfechou comigo , sem mais tirte , nem garte . O'alma damnada ! -- disse-lhe eu -- pois tu vês que o teu macho me aleijou esta egua , que custou vinte peças a seu dono , e que eu tenho de pagar , e dás-me um tiro por eu te atordoar o macho ! ? -- E o tiro acertou-lhe ? -- atalhou Simão . -- Acertou ; mas saberá v. s.a que me não matou ; deu-me aqui por este braço esquerdo com dois quartos . E vai eu , entro em casa , vou á cabeceira da cama , e trago uma clavina , e desfecho-lh ' a na táboa do peito . O almocreve cahiu como um tôrdo , e não tugiu nem mugiu . Prenderam-me , e fui para Vizeu e já lá estava ha tres annos , no anno em que o paesinho de v. s.a veio corregedor . Andava muita gente a trabalhar contra mim , e todos me diziam que eu ia pernear na forca . Estava lá na enxovia comigo um prêso a cumprir sentença , e disse-me elle que o senhor corregedor tinha muita devoção com as sete dôres de Nossa Senhora . Uma vez que elle ia passando com a familia para a missa , disse-lhe eu " senhor Corregedor , peço a v. s.a pelas sete dôres de Maria Santissima , que me mande ir á sua presença , para eu explicar a minha culpa a v.s.a " . O paesinho de v. s.a chamou o meirinho geral , e mandou tomar o meu nome . Ao outro dia fui chamado ao senhor Corregedor , e contei-lhe tudo , mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço . Seu pae ouviu-me , e disse-me . " Vai-te embora , que eu farei o que podér . " O caso é , meu fidalgo , que eu sahi absolvido , quando muita gente dizia que eu havia de ser inforcado á minha porta . Faz favor de me dizer se eu não devo andar com a cara onde o seu paesinho põe os pés ! ? -- Tem o senhor||_João João|_João motivo para lhe ser grato , não ha duvida nenhuma . -- Agora faz favor de ouvir o mais . Eu antes de ser ferrador , fui criado de farda em casa do fidalgo -- Castro-d'Aire , que é o senhor||_Balthazar Balthazar|_Balthazar . Conhece-o v. s.a ? Ora , se conhece ! ... -- Conheço de nome . -- Foi elle que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer ; mas paguei-lh ' as , Deus louvado . Ha de haver seis mezes que elle me mandou chamar a Vizeu , e me disse que tinha trinta peças para me dar , se eu lhe fizesse um serviço . " O que v. s.a quizer , fidalgo . " E vai elle disse-me que queria que eu tirasse a vida a um homem . Isto boliu cá por dentro comigo , porque , a fallar a verdade , um homem que mata outro n ' um apêrto não é um matador de officio , acho eu , não é assim ? -- De certo ... -- respondeu Simão , adivinhando o remate da historia -- quem era o homem que elle queria morto ? -- Era v. s.a ... Ó homem ! -- disse o ferrador com espanto -- O senhor nem sequer mudou de côr ! -- Eu não mudo nunca de côr , senhor||_João João|_João -- disse o academico . -- Estou pasmado ! -- E vm.ce não acceitou a incumbencia , pelo que vejo -- tornou Simão . -- Não , senhor ; e então logo que elle me disse quem era , a minha vontade era pregar-lhe com a cabeça n ' uma esquina . -- E elle disse-lhe a razão porque me mandava matar ? -- Não , meu fidalgo ; eu lhe conto . Na semana adiante , quando soube que o senhor||_Balthazar Balthazar|_Balthazar ( raios o partam ! ) tinha sabido de Vizeu , fui fallar com o senhor Corregedor , e contei-lhe tudo o que se passára . O senhor corregedor esteve a scismar um pouquinho , e disse-me , e v. s.a ha de perdoar por eu lhe dizer o que seu pae me disse tal e qual . -- Diga . -- Seu pae começou a esfregar o nariz , e disse-me : " Eu sei o que é isso . Se aquelle bréjeiro de meu filho Simão tivesse honra , não olharia para a prima d' esse assassino . Cuida o patife que eu consentia que meu filho se ligasse a uma filha de Thadeu de Albuquerque ! . . " Ainda disse mais coisas que me não lembram ; mas eu fiquei sabendo tudo . Ora aqui tem o que houve . Agora , appareceu-me aqui v. s.a , e a noite passada foi a Vizeu . Perdoará a minha confiança ; mas v. s.a foi fallar com a tal menina : e eu estive vai não vai a seguil- o ; mas como ia meu cunhado , que é homem para tres , fiquei descançado . Elle contou-me um encontro que v. s.a teve á porta do quintal da menina . Se lá torna , senhor||_Simão Simão|_Simão , vá preparado para alguma coisa de maior . Eu bem sei que v. s.a não é medroso ; mas d' uma traição ninguem se livra . Se quer que eu vá também , estou ás suas ordens ; e a clavina que deu policia ao almocreve ainda alli está , e dá fogo debaixo d' agua , como diz o outro . Mas , se v. s.a dá licença que eu lhe diga a minha opinião , o melhor é não andar n ' essas encamizadas . Se quer casar com ella , vá pedir a seu pae licença , e deixe o resto cá por minha conta ; ponto é que ella queira , que eu , n ' um abrir e fechar d' olhos , atiro com ella para cima d' uma égua de chupêta , que alli tenho , e o pae e mais o primo ficam a vêr navios . -- Obrigado , meu amigo -- disse Simão -- Aproveitarei os seus bons serviços , quando me forem necessarios . Á noite hei de ir , como fui a noite passada , a Vizeu . Se houver novidade , então veremos o que se ha de fazer . Conto comsigo , e creia que tem em mim um amigo . Mestre João da Cruz não replicou . D ' alli foi examinar miudamente a fecharia da clavina , e entender-se com o cunhado sobre cautelas necessarias , em quanto descarregava a arma , e a carregava de novo com uns balotes especiaes que elle denominava " amendoas de pimpões " . N ' este intervallo , Marianna , a filha do ferrador , entrou no sobrado , e disse com meiguice a Simão Botelho : -- Então sempre é certo ir ? -- Vou , porque não hei de ir ? -- Pois Nossa Senhora vá na sua companhia -- tornou ella , sahindo logo para esconder as lagrimas . Ás dez horas e meia da noite d' aquelle dia , tres vultos convergiram para o local , raro frequentado , em que se abria a porta do quintal de Thadeu de Albuquerque . Alli se detiveram alguns minutos discutindo e gesticulando . Dos tres havia um , cujas palavras eram ouvidas em silencio e sem replica pelos outros : Dizia elle a um dos dois : -- Não convém que estejas perto d' esta porta . Se o homem apparecesse aqui morto , as suspeitas cahiam logo sobre mim ou meu tio . Afastem-se um do outro , e tenham o ouvido applicado ao tropel do cavallo . Depois apressem o passo , até o encontrarem de modo que os tiros sejam dados longe d' aqui . -- Mas ... -- atalhou um -- quem nos diz que elle veio hontem a cavallo , e hoje vem a pé ? -- É verdade ! -- accrescentou o outro . -- Se elle vier a pé , eu lhes darei aviso para o seguirem depois até o terem a geito de tiro , mas longe d' aqui , percebem vocês ? -- disse Balthazar Coutinho . -- Sim , senhor ; mas se elle sáe de casa do pae , e entra sem nos dar tempo ? -- Tenho a certeza de que não está em casa do pae , já lh'o disse . Basta de palavriado . Vão esconder-se atraz da igreja , e não adormeçam . Debandou o grupo , e Balthazar ficou alguns momentos encostado ao muro . Soaram os tres quartos depois das dez . O de Castro-d'Aire collou o ouvido á porta , e retirou-se acceleradamente , ouvindo o rumor da folhagem sêcca que Thereza vinha pizando . Apenas Balthazar , cosido com o muro , desapparecêra , um vulto assomou do outro lado a passo rapido . Não parou : foi direito a todos os pontos onde uma sombra podia figurar um homem . Rodeou a igreja que estava a duzentos passos de distancia . Viu os dois vultos direitos com o recanto que formava a juncção da capella mór , e sobre o qual cabiam as sombras da torre . Fitou-os de passagem , e suspeitou ; não os conheceu ; mas elles disseram entre si , depois que elle desapparecêra : -- É o João da Cruz , ferrador , ou o diabo por elle ! ... -- Que fará a esta hora por aqui ? ! -- Eu sei ! -- Não desconfias que elle entre n ' isto ? -- Ágora ! Se entrasse , era por nós . Não sabes que elle foi mochila do nosso amo ? -- E tambem sei que pôz a loja com dinheiro do nosso amo . -- Pois então que mêdo tens ? -- Não ha mêdo ; mas tambem sei que foi o corregedor que o livrou da forca ... -- Isso que tem ! O corregedor não se importa com isto , nem sabe que o filho cá está ... -- Assim será ; mas não estou muito contente ... Elle é homem dos diabos ... -- Deixal- o ser ... tanto entram as balas n ' elle como n ' outro ... A discussão continuou sobre varias conjecturas . De tudo o que elles disseram uma coisa era certissima : ser o vulto o João da Cruz , ferrador . Teria este dado trezentos passos , quando os criados de Balthazar ouviram o remoto tropel de cavalgadura . Ao tempo que elles sahiam do seu escondrijo , sabia João da Cruz á frente do cavalleiro . Simão aperrou as pistolas , e o arreeiro uma clavina . -- Não ha novidade -- disse o ferrador -- mas saiba v. s.a que já podia estar em baixo do cavallo com quatro zagalotes no peito . O arreeiro reconheceu o cunhado , e disse : -- És tu , João ? -- Sou eu . Vim primeiro que tu . Simão estendeu a mão ao ferrador , e disse commovido : -- -- Dê cá a sua mão ; quero sentir na minha a mão de urn homem honrado . -- Nas occasiões é que se conhecem os homens -- redarguiu o ferrador . -- Ora vamos ... não ha tempo para fallatorio . O senhor doutor tem uma espera . -- Tenho ? -- disse Simão . -- Atraz da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer ; mas não se me dava de jurar que são criados do senhor||_Balthazar Balthazar|_Balthazar . Salte abaixo do cavallo , que ha de haver mostarda . Eu disse-lhe que não viesse ; mas v. s.a veio , e agora é andar com a cara para a frente . -- Olhe que eu não tremo , mestre João -- disse o filho do corregedor . -- Bem sei que não ; mas , á vista do inimigo , veremos . Simão tinha apeado . O ferrador tomou as rédeas do cavallo , recuou alguns passos na rua , e foi prendêl- o á argola da parede de uma estalagem . Voltou , e disse a Simão que o seguisse a elle e ao cunhado na distancia de vinte passos ; e que , se os visse parar perto do quintal de Albuquerque , não passasse do ponto d' onde os visse . Quiz o academico protestar contra um plano , que o humilhava como protegido pela defeza dos dois homens ; o ferrador , porém , não admittiu a réplica . -- Faça o que eu lhe digo , fidalgo -- disse elle com energia . João da Cruz e o cunhado , espiando todas as esquinas , chegaram de fronte do quintal de Thereza , e viram um vulto a sumir-se no angulo da parede . -- Vamos sobre elles -- disse o ferrador -- que lá passaram para o adro da igreja ; n ' este entrementes , o doutor chega á porta do quintal e entra ; depois voltaremos para lhe guardar a sahida . N ' este proposito , moveram-se apressados , e Simão Botelho caminhou com as pistolas aperradas na direcção da porta . Em frente do muro do jardim de Thereza havia uma cascalheira escarpada , que se esplainava depois n ' uma alamêda sombria . Os dois criados de Balthazar , quando o tropel do cavallo parou , recordaram as ordens do amo , no caso de vir a pé Simão . Buscaram sitio azado para o espreitarem na sahida , e entraram na alamêda quando o academico chegava á porta do quintal . -- Agora está seguro -- disse um . -- Se lá não ficar dentro ... -- respondeu o outro , vendo-o entrar , e fechar-se a porta . -- Mas além vem dois homens ... -- disse o mais assustado , olhando para a outra entrada da alamêda . -- E vem direitos a nós ... aperra lá a clavina ... O melhor é retirarmos . Nós estamos á espera de outro , e não d' estes . Vamos embora d' aqui ... Este não esperou convencer o companheiro : desceu a ribanceira do cascalho . O mais intrepido teve tambem a prudencia de todos os assassinos assalariados : seguiu o assustadiço , e deu-lhe razão , quando ouviu após de si os passos velozes dos perseguidores . Sahiu- lhes o amo de frente , quando dobravam a esquina do quintal , e disse-lhes : -- Vocês a que fogem , seus poltrões ? Os homens pararam de envergonhados , aperrando os bacamartes . João da Cruz e o arreeiro appareceram , e Balthazar caminhou para elles , bradando : -- Alto ahi ! O ferrador disse ao cunhado : -- Falla- lhe tu , que eu não quero que elle me conheça . -- Quem manda fazer alto ? -- disse o arreeiro . -- São tres clavinas -- respondeu Balthazar . -- Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saia -- disse João da Cruz ao ouvido do arreeiro . -- Pois nós cá estamos parados -- replicou o criado de Simão . -- Que nos querem vocês ? -- Quero saber o que tem que fazer n ' este sitio . -- E vocês que fazem por cá ? -- Não admitto perguntas -- disse o de Castro-d'Aire , aventurando alguns passos vacilantes para a frente . -- Quero saber quem são . Mestre João disse ao ouvido do cunhado : -- Diz-lhe que se dá mais um passo que o arrebentas . O arreeiro repetiu a clausula , e Balthazar parou . Um dos criados d' este chamou-o ao lado para lhe dizer que aquelle dos dois , que não fallava , parecia ser o João da Cruz . O morgado duvidou , e quiz esclarecer-se ; mas o ferrador ouvira as palavras do criado , e disse ao cunhado : -- Vem comigo , que elles conhecem-me . Dizendo , voltou as costas ao grupo , e caminhou ao longo do quintal de Thadeu de Albuquerque . Os criados de Balthazar , gloriosos da retirada , como de uma derrota certa , apressaram o passo na cola dos suppostos fugitivos . O morgado ainda lhes disse que os não seguissem ; mas elles , momentos antes covardes , queriam desforrar-se agora , correndo após o inimigo tanto quanto lhe tinham fugido antes . Simão Botelho ouvira os passos ligeiros dos seus homens , e , compellido pelo susto de Thereza , abrira a porta do quintal , sem saber ainda quem elles fossem . João da Cruz , com ar galhofeiro , já quando os perseguidores se viam , disse ao filho do corregedor , se estava ajustado o casamento , que não havia panno para mangas . Simão entendeu o perigo , apertou convulsamente a mão de Thereza , e retirou-se . Queria elle reconhecer os dois vultos parados a distancia ; mas João da Cruz , com o tom imperioso de quem obriga á submissão , disse ao filho do corregedor : -- Vá por onde veio , e não olhe para traz . Simão foi indo até encontrar o cavallo . Montou , e esperou os dois inalteraveis guardas que o seguiam a passo vagaroso . Maravilhara-os o subito desapparecimento dos criados de Balthazar , e recearam-se de alguma espera fóra da cidade . O ferrador conhecia o atalho que podia levar os da emboscada ao caminho , e revelou o seu receio a Simão , dizendo-lhe que picasse a toda a brida , que elle e o cunhado lá iriam ter . O academico recebeu com enfado a advertencia , admoestando-os a que o não tivessem em tão vil preço . E acintemente soffreou as rédeas , para não forçar os homens a aligeirar o passo . -- Vá como quizer -- disse mestre João -- que nós vamos por fóra do caminho . E subiram a uma rampa de olivaes , para tornarem a descer encubertos por moitas de giestas , cozendo-se aos torcicolos d' uma parede parallela com a estrada . -- O atalho vai acolá onde a serra faz aquelle cotovêllo -- disse o ferrador ao cunhado -- hão de alli passar , ou já passaram . A estrada vai mesmo na quebrada d' aquelle outeirinho . Os homens é d' alli que lhe vão atirar , encobertos pelos sobreiros . Vamos depressa ... E um pouco descobertos , e outro curvados á sombra das devêzas , chegaram a um vallado d' onde ouviram os passos dos dois homens que atravessavam o pontilhão de um córrego . -- Já não vamos a tempo -- disse afflicto o João da Cruz -- os homens vão atirar-lhe , porque o cavallo trupa cá muito atraz . E corriam já sem temor de serem vistos , porque os outros tinham dobrado o outeiro , em cujo valle corria a estrada . -- Os homens vão atirar-lhe ... -- disse o ferrador . -- Gritemos d' aqui ao doutor que não vá p ' ra diante . -- Já não é tempo ... Ou o matem ou não matem , quando voltarem são nossos . Tinham já passado o pontilhão , e subiam a ladeira , quando ouviram dois tiros . -- Arriba ! -- exclamou João da Cruz -- que não vão elles metter-se á estrada , se mataram o fidalgo . Tinham vencido a chã , esbofados e anciados , com as clavinas aperradas . Os criados de Balthazar , ao invez da conjectura do ferrador , retrocediam pelo mesmo atalho , suppondo que os companheiros de Simão iam adiante batendo os pontos azados á emboscada , ou se tinham retardado . -- Elles ahi vem ! -- disse o arreeiro . -- Nós cá estamos -- respondeu o ferrador , sentando-se , a coberto de um cômoro . -- Senta-te também que eu não estou p ' ra correr atraz d' elles . Os assassinos , a dez passos , viram de frente erguerem-se os dois vultos , e ladearam cada qual para seu lado , um galgando os sucalcos de uma vinha , o outro atirando-se a uns silveiraes . -- Atira ao da esquerda ! -- disse João da Cruz . Foram simultaneas as explosões . A pontaria do ferrador fez logo um cadaver . Os balotes do arreeiro não estremaram o outro entre o carrascal onde se embrenhára . A este tempo assomava Simão no tezo d' onde lhe tinham atirado , e corria ao ponto onde ouvira os segundos tiros . -- É v. s.a , fidalgo ? -- bradou o ferrador . -- Sou . -- Não o mataram ? -- Creio que não -- respondeu Simão . -- Este desalmado deixou fugir o melro -- tornou João da Cruz -- mas o meu lá está a pernear na vinha . Sempre lhe quero vêr as trombas ... O ferrador desceu os três socalcos da vinha , e curvou-se sobre o cadaver , dizendo : -- Alma de cantaro , se eu tivesse duas clavinas não ias sósinho para o inferno ! -- Anda d' ahi ! -- disse o arreeiro -- deixa lá esse diabo , que o senhor doutor está ferido n ' um hombro . Vamos depressa , que está o sangue a escorrer-lhe . -- Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima de uma ribanceira , e cuidei que eram vocês -- disse Simão , em quanto o ferrador , com a destreza de habil cirurgião , lhe&lhes+o enfaixava o braço ferido com lenços . -- Parei o cavallo , e disse : " Ólé ! ha novidade ? " Logo que me não responderam , saltei para terra ; mas ainda eu tinha um pé no estribo quando me fizeram fogo . Quiz saltar á ribanceira , mas não pude romper o matto . Dei uma volta grande para achar subida , e foi então que dei fé de estar ferido ... -- Isto é uma arranhadura -- disse João da Cruz -- olhe que eu sei d' isto , fidalgo ! Estou affeito a curar muitas feridas . -- Nos burros , mestre João ? -- disse o ferido , sorrindo . -- E nos christãos tambem , senhor doutor . Olhe que houve em Portugal um rei que não queria outro medico senão um alveitar . Hei de mostrar-lhe o meu corpo que está uma rêde de facadas , e nunca fui ao cirurgião . Com ceroto e vinagre sou capaz de ir resuscitar aquelle alma do diabo que alli está a escutar a cavallaria . N ' isto ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde tinha saltado o companheiro do morto . João da Cruz , como galgo de fino olfacto , fitou a orelha e resmungou : -- Querem vocês vêr que ellas se armam ! ... Dar-se-ha caso que o outro ainda esteja por alli a tremer maleitas ! ... O rumor continuou , e logo um bando de passaros rompeu d' entre a folhagem chilreando . -- O homem está alli ! -- tornou o ferrador . -- Passe-me cá uma pistola , senhor||_Simão Simão|_Simão ! Correu mestre João , e ao mesmo tempo uma grande rostilhada se fez entre as moitas de codêços e urzes . -- Elle estrinça lenha como um porco do monte ! -- exclamou o ferrador . -- Ó cunhado , bate este matto com alguns penedos ; quero vêr sahir o javali da moita ! ... Para o outro lado da bouça estava um plaino cultivado . Simão , rodeando a sebe , conseguira saltar ao campo por sobre a pedra d' um agueiro . -- Tenha lá mão , mestre ; não vá você atirar-me ! -- bradou Simão ao ferrador . -- Pois o fidalgo já ahi anda ! ? . Então está fechado o cêrco . Eu cá vou fazer de furão . Se este nos escapa , não ha nada seguro n ' este mundo ! Não se enganaram . O criado de Balthazar Coutinho , quando se atirára desamparado á brenha , desnocára um joelho , e cahira atordoado . O arreeiro não examinou o effeito do tiro , porque atirara á ventura , e achava natural que o fugitivo se não molestasse . Quando volveu a si do aturdimento da queda , o homem arrastou-se lentamente até encontrar um cerrado de arvores silvestres , em que pernoitava a passarinhada . Como os melros cacarejassem esvoaçando , o criado de Balthazar retrocedeu para o mato , cuidando que ahi escaparia ; mas o arreeiro jogava enormes calhaus em todas as direcções , e alguns acertavam mais que as balas do seu bacamarte . João da Cruz tirou do bolço da jaqueta um podão , e começou a cortar a selva de carvalhas novas e giestaes que se emmaranhavam em redor do escondrijo . Já cansado , porém , e vendo o pouco luzimento do trabalho , disse ao arreeiro : -- Petisca lume , vai alli dentro buscar um pouco de restolho sêcco , e vamos pegar fogo ao mato , que este ladrão ha de morrer assado . O perseguido , quando tal ouviu , tirou do maior perigo coragem para fugir , rompendo a espessura e saltando a parede da tapada para o campo de restolho em que o arreeiro andava apanhando palha , e Simão esperava o desfecho da montaria . Correram a um tempo o arreeiro e o academico sobre elle . O fugitivo , sentindo-se alcançado , lançou-se de joelhos e mãos erguidas , pedindo perdão , e dizendo que o amo o obrigára áquella desgraça . Já a coronha do bacamarte do arreeiro lhe ia direita ao peito , quando Simão lhe reteve o braço . -- Não se bate assim n ' um homem ! -- disse o moço -- Levanta-te , rapaz ! -- Eu não posso , senhor . Tenho uma perna quebrada , e estou aleijado para a minha vida . N ' este comenos chegou o ferrador , e exclamou : -- Pois este tratante ainda está vivo ! E correu sobre elle com o podão . -- Não mate o homem , senhor||_João João|_João ! -- disse o filho do corregedor . -- Que o não mate ! essa é de cabo de esquadra ! Com que então o fidalgo quer pagar-me com a forca o favor de o acompanhar ... eim ? -- Com a forca ! ? -- atalhou Simão . -- Podéra não ! Quer que este homem fique para ir contar a historia ? Acha bonito ? Lá v. s.a , como é filho de ministro , não terá perigo ; mas eu , que sou ferrador , posso contar que d' esta vez tenho o baraço no pescoço . Não me faz geito o negocio . Deixe-me cá com o homem ... -- Não o mate , senhor||_João João|_João ;