RAUL BRANDÃO OS POBRES Precedido de uma CARTA-PREFACIO DE GUERRA JUNQUEIRO LISBOA EMPREZA DE+A HISTORIA DE PORTUGAL SOCIEDADE EDITORA Livraria Moderna , R. Augusta, 95 | Typographia R. Ivens, 45 e 47 1906 O ENXURRO Vem o inverno e os montes pedregosos , as arvores despidas , a natureza inteira envolve-se n ' uma grande nuvem humida que tudo abafa e penetra . As coisas dil- as- hieis recolhidas e scismaticas . É como um rôlo mysterioso e profundo que vem d' um mar desconhecido . E a chuva começa . É um ruido dôce o da chuva . Faz sonhar em tantas coisas idas e tristes ! Primeiro a terra imbebe-se e incha . E , depois de cheia , a torrente jorra até polir as pedras : ara na terra , põe raizes á mostra , arrasta n ' alluvião o humus , as folhas seccas das arvores , os cadaveres dos bichos , os detrictos desagregados das rochas , que rola juntos , dispersa e reune , atira , entre a baba da agua , para um destino ignoto . Assim a vida . É um rio de lagrimas , de brados , de mysterio . A onda turva põe as mais fundas raizes á mostra , a torrente leva comsigo de roldão a desgraça e o riso ; sem cessar carreia este terriço humano para uma praia , onde as mãos esqualidas dos que soffreram encontram emfim a mão que os ampara , onde os olhos dos pobres , que se fartaram de chorar , ficam attonitos diante da madrugada eterna , onde todo o sonho se converte em realidade ... Vêde ... É noite . A ventania redobra e nas lufadas que passam viajam gritos , catastrophes , lamentos . Sou pobre e transido e nada sei da vida , mas sou um principe . De que terra ? direis . -- Do sonho . E assim n ' este predio revolvido me quédo , sósinho e triste , a escutar ... Ouço um rio que os mais não sentem . Cada creatura nascida traz comsigo uma fonte , fio de agua humedecendo a frincha d' uma pedra ou levada impetuosa e aos jorros . É ella que tira á vida a sua seccura . Em certas creaturas pobres e simples quasi se ouve essa agua correr e tão amoravelmente , que dá vontade de nos chegarmos á sua sombra . É emoção . Minae , não na deixeis seccar : se finda torna-se a vida como os chãos sequiosos . N ' este casarão onde móro a toda a hora se ouve o ruido da levada ; corre sempre como as torrentes desordenadas e esplendidas . Escutae ! ... Préga o inverno bravio , o vento e os aguaceiros passam , mas escutae , escutae ! ... São meus visinhos , lá em baixo mulheres perdidas , ao pé de mim dois casados , e na trapeira um gato pingado , a quem chamam S. José . As mulheres passam às vezes na rua , com chales purpuras a rasto ; o gato pingado só sahe á noitinha , á hora dos morcegos . Mais timido que eu , encontro-o nas escadas a tossir , com o peito escalavrado e rôto . Para que vive esta ralé ? Levantam-se derreados , para cavar , para berrar , para que lhes deem um pedaço de pão e só se deitam no sepulchro . Caminho sem sonho . Da vida coube-lhes este quinhão amargo : o cansaço , a humilhação e a fome . Se passam pelas arvores , n ' um dia de primavera , tão lindo , que até as proprias macieiras de commovidas se vão desentranhando em flor , sabeis o que acontece ? As arvores retrahem-se , as coisas callam-se ao velos passar cobertos de suor , calcados e gastos . Para que é que elles vivem aos gritos , offendidos , ralé , pedras , sapos ? para que é que Deus os cria ? O gato pingado ... Eil- o que sobe . Cada passo me lembra uma pázada de terra . É soturno este homem , esguio e magro , com o chapeu alto embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço . Nunca fala . Estou mesmo em dizer que não pensa , este avejão que só sahe para os enterros . Deve ser máo , deve ser duro : nunca decerto chorou . Os garotos apedrejam-n* ' o quando elle passa pela rua , esguio , vesgo , de chapeu alto e casaca , rigido clown da morte , que em logar de gargalhadas toda a sua vida ouvisse lagrimas . Aposto que , quando arrancam das casas os caixões como quem arranca o coração dos vivos , ao ouvir gritos , tem um riso interior , jubilo de quem está farto de viver só , arredado , humilhado ... Gato pingado ! gato pingado ! Vive de lagrimas , sustenta-se de dôres . E quando vai , de tocha accesa , esguio , a galgar atraz d' um carro funerario , na reles mascarada , em que irá elle a pensar , esbaforido e triste ? Outros ... Casaram ha muito . Chamam-lhe a Rata . Pobre e sem mãe atiraram-n* ' a um dia para um collegio d' orphãos , onde cresceu entre maus tratos . Riam-se d' ella . Era um aborto que crescia por caridade . Passava a vida na enfermaria e os medicos -- acho que de proposito -- livraram-n* ' a da morte , para que depois soffresse . Encontro-a nas escadas , com as botas do homem , os cotovellos rôtos , e magra e desleixada que faz piedade . -- O melhor tempo que eu vivi foi o da enfermaria . Havia lá uma Irmã que me beijava e fazia festas ... Mais felizes são os cães vadios , mais felizes , incomparavelmente , são as arvores . O homem desanca-a . Chega a casa e bate-lhe , faz-lhe tratos . Se ella chora e se queixa desanca-a mais . E agora , como ella não dá palavra e só pensa : -- Antes eu fosse para creada de servir ! -- elle quer que a Rata grite e chore . Antes tu fosses para mulher da vida , digo-t ' o eu ! ... Esta manhã appareceu com os olhos inchados e pisaduras na cara . O vestido já lhe não serve . E como está frio , reparei , traz os pés mettidos nos sapatões do marido , sem meias e roxos . Aprende na vida , soffre ! Nada te valerá . Até á morte , até que te acabe de matar com maus tratos . Ás vezes , se elle sahe , põe-se á janella , a scismar na Irmã , que , quando cahia doente , lhe dava beijos , lhe fazia festas -- e pergunta-se : -- Porque não morri então ? Calla-te e soffre . E até á morte , até o teu pobre corpo cahir exhausto , moido , negro de pancadas . Assim será irremediavelmente , inexoravelmente . Este velho que pára nos patamares das escadas , gordo e molle , de cabellos brancos estacados , é o Gebo . Todo curvo , olha-vos com um olhar aguado e tonto . -- Ó Gebo ! E elle , erguendo o carão afflicto : -- Anh ? ... E como este , outros assim . A toda a hora vae o enxurro humano polindo as pedras . A ventania açouta o casarão e passa , levando poeira de scisma , ais , para outro mundo ignoto . Com a noite a vida redobra . Eis uma multidão feita de terriço , de creaturas tendo arrancado a mascara : certos homens são sonhos , outros dil- os- hieis gritos . Põe-se o Gebo a contar a sua historia , surge o Corsario , uma velha tragica , com o caio dos palhaços , o Astronomo , um sabio hirsuto , o Gabirú , philosopho esguio e hirto como uma taboa , que tem descoberto mundos e ignora as coisas mais simples d' esta vida . Remexe n ' um brazido de idéas e nunca olhou cara a cara a existencia . Anda attonito na rua , perdido n ' um mundo que descobriu á prôa do seu barco como um navegador . No subterraneo do predio mora -- ha quantos annos ? -- o homem do pacho , de quem ninguem sabe a historia . Emparedou-se . Odeia a luz : essa poeira azul , que imbebe os seres e as coisas , março , a arvore , a vida tumultuaria e larga como um rio , nunca mais a viu . Está vivo n ' um tumulo : só as paredes esbrazeadas , á força d' elle sonhar , a rubro como as pedras d' uma forja , conhecem a sua historia . Pára no patamar o Gebo contando o que soffreu aos pobres que o querem ouvir . Muitos fazem roda e elle , picaro , desata a chorar e narra pedaços d' uma triste existencia de humilhação e de esmola , sempre esbaforido e escorraçado , a filha a sustentar , o desprezo do mundo , as suas correrias , desorientado e com lagrimas , atraz do pão para os seus . E termina sempre : -- Tenho pena de ter sido honrado ... A ventania présaga augmenta , abalando o Predio . De que é construida uma casa ? De pedra . Todo o globo é revolvido para abrigar o homem . A arvore e a ossada da terra são arrancadas para o servirem . Juntem a isto gritos . De pedra , d' arvores e de gritos fôra construido o Predio . Juntem a isto sonho , que transforma as coisas . Um gritava nos subterraneos , outro de tanto sonhar empoeirára d' oiro o granito negro . De fórma que toda a casa gasta , amolgada , revolvida , tinha tomado alguma feição d' aquellas existencias . É a habitação do Gebo , das prostitutas , do Gabiru , do Pitta . Escancara-se o portão , cahem-lhe os telhados , mas se , em cima , nas mansardas arrombadas dá de chapa o sol , acredital-a-heis a scismar , a cantar . É effectivamente de pedra -- e de sonho . Chove , mas em torno a terra arida , não tem agua nem plantas . Só uma arvore cresce n ' aquelle solo infecundo . Sustenta-se de dor . As suas raizes foram minando até ao Hospital , construido em frente da casaria , para sugar a vida dos pobres . Se um raio de lua , escoado pelas nuvens , a toca -- eis um phantasma d' arvore todo de pó de luar . Quédo- me sósinho nas noites estiradas , ouvindo este enxurro vivo . Muitas vezes são lagrimas que correm ou emoção que brota com o ruido d' um fio de bica cheio de scintillações e rumores . O cahir de lagrimas é sempre d' uma tristeza pacifica ... Na noite negra o Hospital entaipa a cidade : arvores , nóras humedecidas , donde sahe a frescura do chão , montes solitarios , parece que os prohibe aos desgraçados : como um velho sumidouro espera , guarda , construido de pedra e n ' um brazido por dentro , todos os que soffrem , santos , pobres , mulheres perdidas e heroes . O Pitta , embrulhado no seu chale-manta , murmura às vezes ao contemplal- o : -- A misericordia humana constroe d' estes castellos , para que os ricos não assistam ao soffrimento dos pobres . E falos de pedra , de granito bem solido , para que se não ouçam os gritos cá fóra . O GEBO Heis de tel- o encontrado esse velho gordo , de cabellos brancos estacados e um ar d' afflicção que faz riso e piedade . Tomba às vezes na rua , levanta se , e , todo enlameado , olha p ' ra os lados e chora ; depois caminha esbaforido . Parece que vae gritar , esse ser molle e gordo , de cabellos brancos estacados , e , de subito , baixinho , pede-vos esmola . Tem um riso de humilhado e o aspecto d' uma bola de sebo -- de cabellos brancos estacados . É o Gebo . É um gebo por ser picaro e rôto e por a desgraça o ter calcado aos pés até o tornar ridiculo . Triste existencia sem odio e sem gritos . A vida não n ' a entendia e a cada empurrão tinha um ar espantado e afflicto de quem não comprehende . Que mal fizera ? que mal fizera ? Pois a desgraça faz rir ? o soffrimento faz rir ? E em torno as boccas escancaravam-se , ao verem-n* ' o gordo , pedinchão e desgraçado . As peores ruinas resumem-se n ' esta secca phrase -- ser infeliz . Ha seres que nascem com uma sina -- amargar a vida . Tudo lhe corria tôrto , até as coisas mais banaes e mais reles , as coisas que para os outros nem mesmo existem , e elle punha-se a olhar para a desgraça , atarantado e estupido . Que mal fizera para soffrer ? Alem de desgraçado , este homem fôra sempre picaro : assim no globo passam existencias ignoradas de soffrimento e de bondade , que não deixam o mais simples vestigio , como os veios d' agua escondidos e que no emtanto são a vida da terra . Mesmo posto a chorar , a sua mascara , de cabellos brancos estacados , fazia rir . Sempre a suar , quasi sem saber gritar nem saber queixar-se , o Gebo tinha um coração igneo . Era d' estas creaturas a quem um montão de desgraças torna ainda mais ridiculas : a ruina , a quebra , a miseria , a fome . Enlameado pela vida fóra , resignado e chorão , elle ahi vae ... -- Ó Gebo ! E todos se riam ao velo chorar d' afflicção . Diziam uns : -- Que não fosse tolo ! -- E os pobres , a quem elle tanta vez valera , gostavam de o vêr calcado e humilde como a terra dos caminhos . Qual é a razão porque a desgraça alheia consola a nossa propria desgraça , dizem-me ? ... A tresuar , afflicto , depois de espesinhado , ainda esse sêr molle e gordo , aos quarenta annos , cria na existencia como as arvores e as creanças crêem . Em que hora aziaga encontrou a má sorte que nunca mais o deixou ? Ha creaturas em quem a desgraça se escarrancha no cachaço , e é p ' ra sempre ! p ' ra toda a vida ! Nunca mais as larga . Viera a quebra , afflicções sem conto , ainda mais negras que o coração dos outros . enganavam-n* ' o , com a alegria de o verem rebaixado e perdido , empurrão d' aqui , empurrão d' acolá , aos tombos por esse mundo . Era casado o Gebo e tinha esta felicidade : uma filha . Oh uma filha ! ... Uma filha sempre prende a existencia ! uma filha pequenina sempre tem nas mãosinhas uma força ! Assim esse velho ridiculo e gordo tambem fôra feliz outr'ora . Era d' estes lares apagados e sumidos , onde a vida corre com a monotonia d' uma fonte , sempre egual e prompta a apagar todas as boccas sequiosas . Uma casinha velha , um quintalorio com seis arvores , um fio rumoroso d' agua e as janellas abrindo para a sombra amiga das fructeiras . Alli era a felicidade . Dão-nos as arvores toda a sua sombra : nunca nos enganam . Muito tempo mentira á mulher , que ia vivendo illudida . Ria o Gebo em casa , com o coração torcido , para que ellas fossem felizes mais algumas horas -- ultimas horas tiradas á desgraça . Até que um dia succumbiu : -- Eu não te queria dizer ... Mas ó mulher ! ó mulher ! ... -- Que é ? que foi ? -- Estamos perdidos , estamos perdidos ... -- Perdidos ? ! -- Sim , estamos ... E agora ? agora ? Ninguem me vale , ninguem se importa . Tenho pedido , tenho andado ... e já não posso ! Estamos perdidos , mulher ! ... -- Estamos perdidos ? -- Sim ... -- Tu é que tens a culpa , não tens mesmo finura nenhuma . Riem-se de ti . Todos te enganam e ainda por cima se riem de ti . Anda , vae ! ... Tu que queres ? Que ha-de ser de mim e da pequena ? Nós temos culpa das tuas tolices , das tuas desgraças ? ... -- Não , mulher , não , bem sei ... -- Anda ! E elle voltava , todo o dia corria esbaforido , até que uma noite a mulher viu-o entrar , sem chapéu , enlameado , exhausto -- e de cabellos brancos estacados . A ingratidão embranquecera-o . Era ao crepusculo . Tombado , como uma bola de gordura , tremia abalado pela dor , monologando baixinho : -- Oh a minha filhinha ! ... E todos se riram de mim , todos ! ... Ninguem se importa . Quem quer saber da desgraça dos outros ? Ai a minha filha ! Começou uma vida desorientada e feroz . Parecia que de todos os lados havia vozes a clamar , a escarnecel- o : -- ó Gebo ! ó Gebo ! -- Nunca mais houve paz na terra para elle : mesmo no seu lar tinha certo a toda a hora os ralhos da mulher desvairada e as lagrimas silenciosas da filha . Oh essas horas ferreas em que olhára em torno perdido e só vira seccura e risos ! essas horas tinham-lhe deixado suor d' afflicção para o resto dos seus dias . Tudo se arrazára . E curvava-se sob as palavras da mulher , amachucado , sem forças para luctar , quebrado pelos desenganos e pela indifferença dos outros . -- E agora ? agora ? perguntava-lhe ella . E elle cahido : -- Agora não sei ... Agora morremos todos á fome . Batera em vão a todas as portas , anniquilado , sem idéas e sem forças . Só sabia chorar , molle e grotesco , emquanto a mulher , que a desgraça seccára , lhe atirava improperios , gritos : -- Mas levanta-te ! procura ! salva-nos ! Anda Gebo ! E elle lá sahia , tornava aos amigos , pedinchão , desnorteado , atraz de emprestimos , de demoras , trocando as palavras e desatando de subito a esbracejar com gritos e soluços . Heis-de tel- o encontrado esse velho gordo , de cabellos brancos estacados , aos empurrões na vida e com um ar d' afflicção que faz riso e piedade . -- Ó Gebo ! -- Anh ? -- Conta ! E elle logo , em palavras rôtas , precipitadas , bebendo as lagrimas : -- Ó Senhor ! ... Tanto tenho andado e tanto tenho soffrido ! Quanto mais faço peor , inda é peor ... E já não posso mais ... Acabou-se ! Só Deus sabe pelo que tenho passado , as desgraças que tenho rapado e as afflicções , para arranjar ao menos o triste pedaço de pão para a bocca ... O peor é d' ellas . O meu coração estala , tanto tenho soffrido . Trago a noite cá dentro . Que se lhe hade fazer ? Curtir a desgraça . Anh ? Tenho pena de ter sido honrado ... E fica com a bocca aberta , chorão , de cabellos brancos estacados . AS MULHERES Ao vir a noite põem-se as prostitutas a cantar ; entre as pedras resequidas e o ruido humano põem-se as prostitutas a cantar . São pobres , tristes , sêres de descalabro e piedade , lama que o homem géra de proposito para o goso . A treva leva e dispersa essa toada em farrapos , flocos de tristeza , que são como a alma , a afflicção da noite , a soluçar . Noite ... Andae , vinde , remorsos , sonhos , soou a vossa hora ! De blócos negros se constroe uma cidade . Ha ainda claridades esparsas , neblinas , que a Sombra callada , a tactear , de subito affoga sem rumor . E d' entre as meias portas surgem physionomias como só o remorso as cria : dirieis , de tristes e cansadas , que se vão diluir como as das mortas . É a hora do gato pingado descer as escadas a passos cavos , do Gebo contar sempre a mesma historia desconnexa , dos pobres sahirem á procura de pão . No escuro as mulheres falam para se esquecerem . Ás vezes somem-se as boccas e da treva rompe aquella voz de tragedia , como se a treva falasse , ao que d' um canto a escuridão responde : -- Ó tu ! ... -- Que é ? -- Lembrou-me agora uma coisa . -- O quê ? -- N ' esta vida sabeis o que ha de peor ? É nem a gente poder estar triste . -- Ahi começas tu ... Lento e lento , a noite que cahe as affoga e na escuridão sente-se pairar a Desgraça ... Callam-se e depois a mesma voz começa : -- Vem um e quer que eu me ria , vem outro e quer-me triste . Quem entra que se lhe importa ? -- E então ? -- Nada . Mas inda assim olhae que é triste a gente não poder ao menos lembrar-se ... -- De quê ? -- do que lá vae ... -- Melhor é a gente não se lembrar do que passou . -- Tomára eu ser como morta -- affirma outra voz . -- E tu ? -- Eu ? Tu falas p ' ra mim ? -- pergunta uma magra surgindo do escuro . -- Tomára eu não ter memoria , p ' ra não tornar a vel- a , como quando a vi estirada no caixão , por vê de mim ... -- Quem ? -- Á minha mãe . -- Ah ! ... -- Pois é ... -- diz a primeira voz -- N ' esta vida a gente não se deve lembrar . Toca a cantar raparigas ... Cantae ! E as mulheres continuam a cantar , n ' uma toada esfarrapada , d' uma tristeza immensa . Depois calam-se e uma torna a falar . Dizem sempre as mesmas palavras , mais para fazerem ruido do que para que as ouçam . Ha uma que ri de tudo . É magra , pallida e gasta . Traz um pacho negro n ' um olho e ri sempre , com um ar de mascara , de si , das outras , de todas as suas desgraças . -- Eu sou a Mouca -- começa ella ás risadas . -- A minha mãe deitou-me fóra era eu pequenina , e eu , se tivesse uma filha , botava-a á roda p ' ra ganhar a vida . Tomaram conta de mim os ladrões , cresci na rua e a minha cama eram as pedras dos portaes ... Tomaram conta de mim os ladrões . Vidas ! vidas ! ... -- Tu não te calarás ! -- Em pequena andei todo um inverno com uma camisa rôta . Até foi bom , agora não sinto o frio . Depois moeram-me . Vocês não querem saber ? Calcavam-me aos pés por nada . Aprendi . Muito custa a levar a vida ... Aos treze annos um ladrão desfructou-me . Era um velho careca que parecia um S. Pedro . Chamavam-lhe o Lesma , vocês hão-de ter ouvido falar . A gente só aprende á sua custa . Vidas ! vidas ! ... Eu sou feita de terra , da terra que todo o mundo piza , mas tambem já tenho calcado . Elle ha desgraças peores , eu sei que ha . Já vi gente morrer por não ter uma codea p ' ra a bocca . Olhae que eu conheço a desgraça . Tenho-a encarado ... Faz mal quem se abaixa ... Um dia a gente põe-se a gostar d' um homem e inda é peor . Que se lhe hade fazer ? Todas temos de nos sujeitar , todas somos o mesmo , as ricas e as que não tem uma sêde d' agua . O peor é quando se começa a gostar d' um homem ... Vocês sabem o que é o amor ? O amor é cada qual ser como um cão . É a gente ser menos que nada e elles serem tudo . Ahi têm o que é o amor . Elle a bater-me e eu a dizer cá commigo : -- Tu que me bates é porque gostas de mim ... -- Ahi têm o que é o amor , é a gente ser menos que um cão ... Eu escrava , elle o senhor . Acabou-se ! todas temos de soffrer . -- Todas . Não ha nada peor do que nascer mulher . -- Eu nunca tive sorte . Que me importava a mim que elle me batesse ? Punha-me a olhar p ' r ' as nodoas do meu corpo e a dizer cá por dentro : -- Este é meu amigo . -- Um dia partiu-me um braço , mas a gente é como os cães , que só gostam d' um dono que lhes dê pontapés . O peor foi que elle botou-me ao desprezo . Os homens são todos o mesmo ... Vidas ! vidas ! Um dia disse-me : -- Estou farto de ti . -- E sabeis ? nunca mais falou p ' ra mim . Ai , quanto mais se pena p ' r ' amor d' um homem mais se lhe vem a querer ! -- Mas deixa-me gostar de ti ... -- Vae elle disse-me : -- Fóra ! -- E eu fiquei passada . O meu comer eram lagrimas . E bebia a toda a hora para atormentar uma dor que se me pozera no coração . Mas elle vem ! elle torna ! ... Qual ! ... -- Como se chamava ? -- Que te importa ? Não é bom allumiar os mortos . Deixae estar quem está quieto . Ah , se vós o visseis morto como eu vi ! ... Vêr morto um corpo que se teve nos braços é como vêr no caixão um filho . Por mais que a gente grite não lhe dá vida ! Trazia sempre no coração a mesma dôr ... Vae uma vez vesti-me socegada e fria como defunta e fui ter com elle . -- A que vens ? disse elle . E eu disse-lhe : -- A servir-te . -- E ri-me . -- Já sei que me não podes vêr , acabou-se ! não me importo . O que te peço é que me deixes servir-vos . Venho ser vossa creada . -- Elle poz-se a rir . Depois veio ella e eu puz-me a rir tambem . -- Venho ser vossa moça , quanto me daes de soldada ? -- Elles cochicharam . -- Onde vocês pozerem os pés ponho eu a bocca . Aqui estou , aqui me têm . -- Elles riram-se de mim . -- Anda escrava ! -- Vae eu e ria-me . -- Que quereis de mim ? -- Rua , escrava ! -- e eu ia-me embora . Um dia peguei e dei-lhes rosalgar a comer . Comeram-no . Então , quando o vi morto , puz-me a rir , a rir , que era uma dor do coração . Levaram-me em braços . Na cadeia chamaram-me a perguntas e eu só me ria . Já me doia a cara de tanto rir e via-o sempre morto a meu lado . -- Porque o mataste ? E eu desatava a rir-me ... Aqui têm , cada qual cumpre o seu fado . Todas temos de nos sujeitar e de soffrer . Eu sou a Mouca -- terminou ás risadas . Aquella porta aberta para a tragedia e para o escarneo fica em frente do Hospital . As mulheres dos ladrões e dos soldados moram ao pé da dor . As paredes são negras e humidas : mãos ao roçarem-nas deram-lhes afflicção , gritos abalaram-nas* . Acredital- as- hieis construidas do mesmo sonho e da mesma pedra de que é feita a vida . Lá dentro , a uma luz enfumaçada e oleosa , as mulheres expõem-se como farrapos d' adelo ou mascaras : direis retratos feitos a tresuar d' afflicção , tanto desespero resumam as boccas que gargalham . Duas á porta espreitam , uma scisma com a physionomia petrificada , d' imbebida em magoa , outra canta , e a patroa gorda e desdentada , calcula o ganho . É dura , espremida , de feições crueis e coleras subitas . Ás vezes prega-lhes horas e horas : -- O amor sabe a zinagre . É peor do que a morte ... Não no queiram , ouviram ? -- A senhora fala ! fala ! ... Bem triste é achar-se a gente sósinha no mundo , -- diz uma derreada e tisica . -- E ter o quê ? Escarneo , só se fõr ... -- accrescenta outra . -- Eu de mim , se fosse sósinha no mundo , cuido que me affogava . -- Pois andae ! andae ! -- diz a patroa -- Fartae-vos de desgraça . É só fartar . Que sois vós ? Menos que terra ... Ireis d' este mundo fartas de desgraças . Antes morrer no rio ! -- Eu cá -- diz outra -- tenho o corpo negro , mas que m ' importa ? Se o meu me deixasse antes queria acabar ... Pela minha salvação que ia direitinha ao rio . -- Depois queixae-vos ... -- ameaça a velha . -- Sereis peor do que arroladas . -- Nem as pancadas d' elle me doem , e mais o meu faz-me comer terra , -- affiança outra . -- A gente não tem mais ninguem no mundo . Quem quer saber d' uma desinfeliz ? -- A gente não tem pae nem mãe , nem folego vivo . -- Se choro , os outros riem-se . Quem entra e sahe que se importa ? -- E ninguem n ' este mundo póde chorar sósinho ... -- Eu cá -- diz a Mouca -- eu cá estou tão habituada a que me dêm dinheiro , que se o meu amigo fica commigo , escondo moedas no lençol ... Quando acordo e as encontro , parece que me pagaram . As outras riem-se com risos que destoam , e a patroa prega-lhes : -- Vocês nem sequer vêm ... o que aconteceu á Maria ? Affogou-se e o amante ri . Helia lá foi p ' ra o Hospital . É morta . E todas morrem se se deixam ter coração . -- Ás vezes mais vale morrer . -- Morrer ! ... -- exclama a tisica . -- Eu já me matei ... E depois ? Foi quando me vi sósinha no mundo . Elle tinha-me desprezado . Peguei e bebi um quarteirão de agua-ardente com lumes . Pensaes que estou arrependida ? Ah , se a senhora soubesse o que se sente ! ... Quando me vieram dizer -- foi a Mouca -- que o meu amigo estava com outra , foi como se tornasse a resurgir deante de mim a mãe que eu matei á força de lagrimas , por me vêr na triste vida . Nem podia gritar . Tinham-me seccado os gritos aqui -- na bocca ... Sahi , andei ... A porta d' ella estava fechada e alli fiquei até de manhã ao frio . Os homens que passavam diziam o que lhes parecia , porque ninguem ideia o que cada um traz dentro do coração . Scismei , passei a noite ora a scismar , ora a chorar . N ' esse dia poz-me elle o corpo negro , como este lenço que trago na cabeça . Olhae ... Ainda tenho as marcas . Estas só na cova me passam . -- Farta-te , se queres , mas não me deixes ... -- Vae elle e disse : -- Fica-te p ' ra ahi , estupor , que te não posso vêr . -- Vejam vocês ! ... Se isto é assim no mundo , se a gente cá vem p ' ra isto , p ' ra nos deitarem fóra , e não ha mais nada , era melhor morrer ... E antes tivesse morrido p ' ra não ter mais que penar ... -- O Hospital está á espera , raparigas -- diz a patroa d' um canto . -- Ouvi dizer que os estudantes cortam a gente p ' ra estudar ? ... -- E a mim que me importa ? -- Eu já ouvi a um ... E o que elles se riem uns com os outros ! ... -- Depois da morte a gente não sente . -- Quem é pobre acho que vae sempre p ' ra elles aprenderem a estudar . -- Pois a mim é o que me entristece ... O meu pobre corpo ser retalhadinho ! -- Lá está o Hospital á espera , raparigas ! ... -- Tu não te calarás ! Riem-se , uma fica scismatica e a patroa continua : -- Filhas inda podeis enriquecer . O que é preciso é muita experiencia da vida . Olhae que na terra só ha dor e vaidade . Não ha nada peor do que envelhecer pobre ... O que elles se riem ! Se lhes pedis pão , dão-vos escarneo . E põem-se a rir até do nosso odio , ouviram ? -- Quem nasce p ' ra esta vida mais lhe valia morrer . -- E tu p ' ra que vieste ? -- Foi o meu fado . E a velha continua : -- Haveis de querer comer e tereis ... -- O quê ? diz uma anciosa . -- Pedras . -- Acabou-se ! diz outra . E fica scismatica . -- Mais nos valia morrer . -- Mais valia . -- Andae , andae ! Lá está o Hospital á espera . Lá tendes todas uma enxerga e o lençol . E o cemiterio póde sempre com gente . Aquelle nunca se farta . -- Tem sempre fome , -- murmura do lado uma sorrindo . -- Pois tem , -- affiança a companheira . -- Deixal- o ter ! -- exclama a Mouca . -- Envelhecei pobres e vereis ! vós vereis ! ... -- ameaça a patroa pondo-se de pé . -- O quê senhora ? -- Para sempre , traz-se para sempre uma pedra no coração sem se poder arrancar . -- Então para que nasce a gente ? Só para soffrer ? -- pergunta Sofia . -- Só . A este mundo vem-se para soffrer . -- Ah ! ... -- Enganae-os . Tratae do ganho , de juntar , de juntar muito dinheiro . O resto tudo é fingido ... Mas uma , triste e magra , a tisica : -- N ' esta vida todos nos rebaixam e a gente precisa de encontrar alguem , um pobre como a gente ... -- Inda que seja um ladrão ... -- interrompe Luiza . -- Ao pé de quem se não sinta desprezada . -- Metteu-se a gente na triste vida e nunca mais pode sahir -- affiança outra . -- Olhae que me lembro ... Cada qual aqui é menos que nada , é como a terra ... Callam-se e scismam ou passam as longas noites de inverno a cantar , em frente do Hospital tragico . De dia pela porta escancarada vê-se o banco do hospital . Nada mais poído do que essas miseras taboas de pinho seccas , gastas , destingidas , e nada tambem mais commovente . Vivem , estremecem . Ha coisas que á força de serem tocadas por mãos humanas , ganham alma , criam physionomia . Antes da morte alli tombaram os corpos que , como uma pua , a dor brocou . Aquellas taboas mirradas , de se sentirem a toda a hora roçadas pelas mãos de naufragos ( todos os que entram no Hospital alli passam , santos , poetas , pobres com a bocca cheia de gritos ) começaram uma outra existencia . Foi a arvore arrancada á terra para amparar os pobres . É ainda mais bella do que levantada no topo do solitario monte , ao nevão , ao sol , á tempestade , ás estrellas . Eil-a emfim sómente erguida para a dôr . Taboas que já deram sombra na floresta , imbebidas de seiva e de azul , vieram servir de encosto a miseros : tem nodoas de sangue , dedadas d' afflicção e suor de desgraçados que se entranhou na madeira . O GABIRU No ultimo andar do predio móra o Gabiru , um solitario philosopho , esguio e triste como um enterro , armado da mais formidavel penca e da mais estranha sabedoria que Deus tem creado . Nunca viveu . Tudo que existe para lá do Hospital é para elle um grande mar ignorado e verde . A realidade tambem não na entende : solitario e pencudo , da vida só se fartou com soffreguidão d' esta fonte que trasborda -- o sonho . Tem o olhar extactico e , mettido na trapeira com ignobeis calhamaços , deixa correr as suas idéas á solta como os rios . Assim , metaphisico e pobre , de raras palavras , deitou-se a amar a Mouca , escarneo de soldados . Nasceu para sonhar . Tem um suspiro d' allivio quando se fecha na mansarda e exclama : -- Vou idear ! ... -- Sabe palavras , theorias , cartapacios , e nunca viu ao pé os rios , os montes , nem as arvores . Remexe em idéas profundas e nunca encontrou a realidade . É assim feliz e triste . Posto á janella do cubiculo sente correr o doirado jorro dos dias , scisma n ' um portentoso sonho e ama . Entre as idéas que vae tecendo surge aquella figura tragica , que todo o dia ri com os ladrões e os soldados . Mas elle ignora a vida . Alguma coisa porém existe de immaterial -- emoção violeta e oiro -- que o rodeia , quasi o toca e subito foge magoada e aos soluços . E fio a fio vae tecendo e constroe a sua theoria : " Oh como eu tremo deante das arvores , do luar que corre branco e sem murmurio , da natureza esplendida ! ... Passo por doido e na verdade eu quasi grito de pavor deante do espantoso universo . Olhae a treva a escutar , o mysterio , a agua que brota sem ruido , a arvore de braços erguidos , o caliginoso mar ... O homem passa indifferente , mas eu sinto-me enlouquecer deante das coisas mais simples : d' um farrapo de nuvem como um sudario a rasto , d' um raio de luz em pó , todo d' oiro vivo , que entra no meu quarto . Nunca me pude habituar a olhar a natureza cara a cara . Isto ! que significação tem isto ? É um sonho , um grito de belleza , uma alma ? Montes verdes e ethereos , constellações infinitas , nevoa que do mar nasce e sobre o mar vae , como um portentoso rolo , como um giganteo phantasma ... E não adquiro o habito . Todas as manhãs é como se pela vez primeira me achasse deante da monstruosa natura -- verde , oiro , azul , como os seus rios , florestas , o mar a bramir e arvores que são sêres ! ... Por isso , sobretudo n ' estes dias d' inverno , em que anda uma prodigiosa voz d' Adamastor a prégar á terra e ás coisas dilaceradas , eu me ponho , escondido e só , a discutir o enigma ... Devo , porém , notal- o : eu sou uma creatura singular . Ha até quem me supponha doido . Todos os que são apenas restos de sonhos vivos e despedaçados como eu , têm este feitio encolhido e transido . A esta hora da noite em que o universo parece deshabitado e em que até o rumor da penna no papel me faz medo , fecho-me sobre mim mesmo e escuto-me : alguma coisa , que não sou eu proprio , se põe então a murmurar baixinho . E eis-me perdido , no canto d' uma negra trapeira , encolhido e esguio , a sonhar em quê ? N ' esta belleza infinita , o universo igneo ... Deshabituei-me de falar , mas sonho . Ha vozes esplendidas dentro em mim ; de mim brotam arvores , estatuas mutiladas , pedaços vivos de sonho . Oh eu creio que cada creatura é um composto d' almas de montes , de pedras , d' aguas , e creio tambem que existe uma mysteriosa ligação entre o homem e os mundos . Estou preso ás estrellas e aos cardos humildes . Dizem rindo se eu passo encolhido e esguio : -- Lá vae o Gabiru ! Deixal- o dizer ! Eu sou mais feliz do que aquelles que riem , e antes quero conviver com os desgraçados do que com os outros . D ' elles tiro emoção para o meu sonho . Depois fecho-me n ' esta trapeira alta , construida nos telhados e donde se vêem sêres admiraveis : labaredas verdes que se agitam -- e são arvores ; nuvens pousadas sobre a terra com oiro a flux ou então d' um violeta desfallecido -- e são montes ; e rôlos que correm vivos e fluidos -- e são rios . Muito tempo levei a decifrar-lhes o nome . Nenhum dos desgraçados o sabia , porque o Hospital enorme entaipa a cidade , e essa vida humida , nóras , torrentes de detrictos , arvores , primaveras , gritos de sol , é desconhecida a todos os que soffrem lá em baixo , entre o granito resequido . Só outro pobre , o Pitta , da trapeira contigua vê como eu a prodigiosa natura -- a Mãe . Oh ! e ha horas , quando uma neblina de sol cahe sobre as coisas estarrecidas , todas verdes , em que eu quasi toco o mysterio . Ouço as palavras da natura , n ' uma linguagem gigantea , de que não comprehendo o sentido . Os sons são syllabas perdidas , umas d' oiro , outras verdes . O ar é fino , alma empoada de luar , as arvores desmaiam e os grandes montes pallidos , onde o sol deixou fuligem , que vae esmorecendo até ao vir da noite , falam baixinho , entontecidos . Mais timido é o murmurio dos fontes , como se não quizessem perturbar o espantoso dialogo . É esta a melhor hora para se ouvir e em que eu quasi entendo as palavras . Ha coisas desfallecidas : arvores vão tombar cheias de emoção e de tudo o que existe sahe uma prodigiosa alma etherea e viva , que me envolve e toca , e que fala ! que vae falar ! ... Donde nasce esta belleza ? d' onde vem tudo isto ? ... Se um homem cahe prostrado e grita as suas palavras igneas são apenas sons , que misturados a outros gritos de dor , formam palavras d' um monologo giganteo . E credes que existam montanhas , aguias , o mar , credel- o por ventura ? São syllabas , são vozes da Terra que entra no dialogo . E mundos , estrellas , são palavras d' Aquelle que no infinito préga . É sempre a mesma força , a unica força que cria a belleza e o sonho , a força donde brota a Vida . Eu tinha visto que a dor era sempre necessaria para se produzir alguma coisa de bello e de giganteo : para se agarrar um pedaço de sonho , que , apenas entrevisto , foge : para que nas nossas mãos esqualidas fique um farrapo d' essa figura de prodigio : para que a vida tenha um fim : para amar : para crear : para que alguma coisa de duradouro reste . N ' um grito existe sempre viva uma porção de belleza . Da cova nascem coisas materiaes , fórmas , arvores , nuvens -- da dor jorra a belleza absoluta . E com que fim ? me-hão . Imaginem um estatuario : para compor uma marmorea figura , para realizar um phantasma entrevisto , precisa de soffrer . Depois tritura o barro , petrifica a dor . E acaso se pergunta se o barro soffre ? Assim Deus esmaga o barro que nós somos para construir alguma coisa de extraordinario : mundos , a Vida e a Morte , alma infinita que tudo atravessa . De que precisam os poetas para fazer uma obra de genio ? De dor . O soffrimento cria . Lembram-se das figuras de marmore , para sempre debruçadas sobre os tumulos antigos ? O luar que vem pela rosacea gothica ao tocar-lhes dá-lhes uma vida de sonho , falas todas de poalha : estremecem , levantam vôo , dir-se-hia . Pois a dor , fio a fio , como o luar , dá vida ao sonho . Para se crear é preciso soffrer-se . Hoje e sempre só a dor é que deu vida ás coisas inanimadas . Com um scopro e um tronco inerte faz-se uma obra admiravel , se o esculptor soffreu . Mais : com palavras , com sons perdidos , com immaterialidades , consegue-se este milagre : fazer rir , fazer sonhar , arrancar lagrimas a outras creaturas . Com as simples e seccas lettras do abecedario , um desgraçado com genio , mettido n ' uma agua furtada , edifica uma coisa eterna , uma construcção mais solida e mais bella , do que se fosse arrancar os materiaes ao coração das montanhas . o que é então a dor , milagre extraordinario , que consegue dar vida ás fragas ? o que é esse assombroso fluido , que se communica , alma arrancada da propria alma e que se póde repartir como o pão ? Nunca houve sob o sol creatura que soffresse da verdadeira dor cujo soffrimento não consolasse ou salvasse . Até as mais humildes , tal como arvores que ainda depois de mirradas , vão aquecer e allumiar os pobres . A dôr dá a vida e não é a propria vida : cria , redime , obra prodigios e nada ha que se communique , que convença , que torne os homens irmãos , como ella ... Para onde vão pois todos esses gritos , unidos n ' um só grito ? Visto que nada se perde , que é que se sustenta no infinito com essa enxurrada de lagrimas ? Deus ? Por muito tempo escutei o ruido de vozes , de exasperos , de gritos de creaturas . Vinham da guerra , do Hospital , da miseria humana . E d' esse mar espesinhado nasciam clarões , as nebulosas d' onde surgem mundos . Esse eterno rio de gritos , a correr desde que o homem existe , vae desaguar no infinito . É que a dôr é a unica força que verdadeiramente cria e destroe : é a Força . Alimenta Deus e o limo . É um atlantico de fogo , é o espirito do universo . Cria claridades na alma dos desgraçados e faz nascer montanhas . As arvores são emoções da terra . Sonhae ! soffrei ! Este mundo é talvez , como disse um philosopho desconhecido , uma gotta cahida d' um oceano infinito de belleza . O universo é o sonho dolorido de Deus . Nada se perde . A alma , as idéas e as emoções , fazem parte da força que faz florir o céo e os humildes pomares ignorados . Eu colleciono a dor . Passo a vida a juntar farrapos d' esse manto em fogo . O mundo é mysterioso , cheio de gritos . A cada passo um tumulo d' onde renasce uma amalgama , uma poeira verde , azul , doirada , cóva onde o Desconhecido remexe fórmas : o mar , as creaturas , as pedras , as tempestades , tudo vivo e a falar ! O homem passa inconsciente mas eu tremo de pavor . Estas pobres creaturas que vivem ao mesmo predio em que eu habito , ladrões , philosophos , coveiros , mulheres perdidas , são esmagadas para que alguma coisa se crie . Geram o mysterio , o mar bravo da dor , e as macieiras anãs . Sob a nossa vista indifferente a cada passo se cumpre um milagre : sol , agua a nascer , pinheiros bravios e vivos ! ... Escutae ... As coisas choram . N ' esta noite de frio inverno -- ventania -- o que as coisas dirão ! ... Estão transidas -- ha que dias chove ! ... -- o vento despedaça-as e é sempre triste ouvir cahir tantas lagrimas . Por momentos quedam-se n ' uma quietação , como se ficassem a escutar ou se pozessem a falar baixinho entre si ... Eu tremo e , para me esquecer , deito-me a escrever o meu livro A Arvore . É do lodo d' estas coisas humildes , que eu construo a minha estatua disforme ... Ora uma tarde d' estas , imbebido nos meus pensamentos como n ' um largo horisonte , não reparei que pela porta aberta alguem entrára . De fórma que tive um sobresalto , ao ouvir a meu lado n ' uma voz pausada : -- Maquinações philosophicas , meu preclaro amigo ... -- Hein ? Era o Pitta , mas o Pitta transfigurado e triste ; o Pitta com dentes a menos e não sei que doloroso sorriso ; o Pitta mais velho e mais sordido . -- Maquinações philosophicas meu preclaro amigo . A realidade é triste e amarga . Isto que d' aqui vê e não comprehende , arvores , montes e aguas , é no fundo tão revolvido e espesinhado como o lodo humano . Vem uma raiz e despedaça outra raiz , um braço que se crie empurra logo outro braço . Cada monte gera tanto odio como o coração do homem . -- Por ventura o amigo já viu arvores ao pé ? Eu só vi a do saguão . -- Sim , conheço-as não só dos bons auctores , como de ter dormido á sua sombra movediça e fresca ... São differentes : são vivas e enormes ... -- E o mar ? -- O mar , que d' aqui vê longinquo , todo do poeira verde , é tragico e feroz . Brame de furia , despedaça . É esverdeado e cheio de coleras ... Só eu n ' este momento lhe posso dar informações cathegoricas , reaes , absolutas , só eu , Pitta da Conceição , é que possuo no universo esse segredo temeroso . -- E a Mãe , a natureza ? -- Uma amalgama , um cadinho cheio de gritos ; fórmas revolvidas e trituradas , boccas que não pódem gritar . Veja ... Para lá do Hospital havia ainda tremulos de luz , fios esquecidos de sol emaranhados nas arvores , presos nos espinhos do monte . Dir-se-hia no emtanto que a vida redobrava : cresciam e murmuravam os pinheiros , gorgolejava a seiva ao trepar nos troncos . De certo a agua tinha um ruido mais vivo , e a terra , que o sol queimára , bebia-a toda d' um trago . As nóras cansadas pingavam ainda o seu ultimo suor , e da noite que descera irrompia um murmurio , vozes de arvores e rios e montanhas . -- Maquinações philosophicas , meu preclaro amigo ... " HISTORIA DE+O GEBO Por fim , na entrada d' esse frio e rigoroso inverno , já tinha vendido tudo , até o oiro da filha . De envelhecido e gasto , de picaro e gordo , dil- o-heis um trapo que se deita fóra ou um doido de cabellos brancos estacados , a falar sosinho . Toda a gente o conhecia . -- Ó Gebo ! -- Anh ? A mulher , que fôra sempre bôa , azedára com a pobreza . Nervosa e secca passava horas e horas a chorar , atirada para um canto , ou prégava dias inteiros : monologos cheios de gritos , de sonho espesinhado , todos lavados em lagrimas . Se tudo acabasse ! ... Mas nem a Morte escuta os desgraçados , nem o tempo se apréssa ; vae moendo na sua mó , consumindo-as , as tristezas , as afflicções e o pão negro . O desespero d' aquella creatura cahia em improperios sobre a cabeça do Gebo espantado , a suar , e a quem nem a propria desgraça conseguia impedernir o coração . Todos os dias eram da mesma fórma eguaes , sombrios e tristes . Isto de chorar um dia e outro dia , dá a impressão de que chove e se não sahe do inverno . -- Déste , emprestáste a toda a gente . E agora ? agora ? -- dizia-lhe a mulher -- Riem-se de ti inda por cima , e ninguem te ajuda . Morremos á fome . -- É o mesmo , mulher , é o mesmo . Paciencia ... -- O peor é de nós , de mim e da pequena . -- Pois é o que me afflige , que por mim quem me déra morrer ! -- Não fosses tolo ! olha os teus amigos como trepam . -- Ó mulher , mas que hei-de eu fazer ? Tu não me dirás o que hei-de fazer ? -- Roubal- o ! roubal- o ! ... E eram palavras negras , afflicções sem conto . Ás vezes esqueciam-se e ainda palravam em torno d' uma esperança , a qual , agora nascida , logo a desgraça calcava . A mais humilde poeira d' illusão bastava , para que todos tres , gelados pela desventura , se sentassem na enxerga , promptos a edificar os mais altos castellos e esquecidos de tudo . Só a filha , Sofia , era sempre a mesma , sem queixas , magra e linda , e com um sorriso tão triste que lembrava certas horas em que ha sol e chuva misturados . E como o Gebo lhe queria ! Pelo seu destino que seria amargo , por a ver rapar miserias , e por ser o unico sêr no globo , que lhe não dizia más palavras . Lá ia indo pela vida fóra , cossado e com um ar de afflicção que fazia rir . Parecia amachucado : as marcas dos encontrões nunca mais lhe sahiam . A mulher passava os seus dias n ' uma lucta desesperada com a desgraça , arrancando-lhe os ultimos trapos , disputando-os um a um até velos desfeitos . Ao fim do dia ouviam-se os passos vagarosos do velho nas escadas e a sua respiração -- anh ! anh ! -- suffocada . -- Ahi vem elle ... -- murmurava a mulher . O Gebo entrava e ella logo , soffrega , morta por desabafar o que todo o dia ruminára : -- Até que vieste , homem ! E então ? Conta . Então ha alguma esperança ? -- Não ha nada , mulher . E sentava-se arrazado . -- Tambem ninguem faz caso de ti . Que és tu ? Sabes o que tu és ? -- Eu não , o quê ? -- Um ente inutil . Não ha ninguem que se não ria de ti , das tuas desgraças , das tolices que tens feito ... Que é do dinheiro que tanto nos custou a poupar ? -- Eu sei lá agora do dinheiro . Não falemos mais n ' isso ... O que lá vae , lá vae . -- Pois é o que tu queres ... Mas hei de falar , de- me ouvir . Déste cabo de tudo , davas dinheiro a toda a gente ... Tinhas-me a mim , tinhas a pequena . Reparasses , era a tua obrigação . -- Ó mulher , ora tu que todos os dias vens com a mesma sécca . Não me basta a minha afflicção ! ... De que serve isso agora ? -- De que serve ? Serve de muito ! Á noite , á luz do petroleo , o Gebo fazia escriptas com um cobertor pelos hombros e as mãos geladas de frio . A filha , sumida na sombra , compunha-lhe a roupa , e a mulher ralhava , passeando na sala . Batia a luz do candieiro na cara oleosa do Gebo , no nariz enorme , nos seus olhos tristes , e , do outro lado da meza , só se viam illuminadas as mãos de Sofia , toda a noite trabalhando sem ruido e sem descanço . -- Já tive uma lettra tão linda e agora ... Os desgostos cansam a gente . -- É de ti ! é de ti ! Outros têem penas , desgostos , cahem e tornam a levantar-se ... -- dizia-lhe a mulher . -- Têem sorte , é o que é . Para tudo é preciso sorte . -- E curvado sobre os livros contando , murmurava mais baixo : -- E vão sete -- ... -- Sorte ! sorte ! A culpa é tua que não tens energia nenhuma . Procura ! Deixas-te ficar espapaçado p ' ra ahi ... Tu o que queres é comer e dormir . -- Ó mulher ! ... -- E erguia o carão afflicto , onde batia a claridade de chapa . Viam-se-lhe os olhos aguados . -- Ó mulher , a gente tambem perde as forças ... Sempre a desgraça ! sempre a desgraça ! ... -- Tudo nos corre torto ! -- Mas ... -- Tudo ! Deixa-me ! ... E desatava a chorar . Então o Gebo , afflicto , a mão curta e gorda ronronando no papel , mentia para lhe dar animo . -- Qualquer dia entro ahi n ' um negocio , tu verás ... Não te afflijas . -- E vão cinco ... -- Tambem ha-de chegar o nosso S. Miguel . A desgraça ha-de- se cansar de nos perseguir . E o pão que trazia para casa era quasi uma esmola . Mas tanto mentia , que chegava elle proprio a illudir-se . A velha reanimava-se . E outra vez passeava na sala , embrulhada no chale rapado . -- Não , que é preciso sahirmos d' este atoleiro . -- Agora vae , agora vae , tu verás . Ando ahi com um negocio ... Sabes tu que mais ? ... Deixa-me trabalhar . Ia a mãe deitar-se e Sofia , até ahi silenciosa , dizia erguendo-se : -- Pae não se afflija . -- Eu não , filha , eu não . Aquillo é genio , coitada . Ella tem razão , tem soffrido muito . Vae tu tambem p ' ra cama . Dá cá um beijo ... Assim . Eu cá fico com a escripta . -- Muito boa noite . Sósinho o Gebo scismava muito tempo , olhando a luz . Depois , horas e horas , ouvia-se a penna correr do papel , parar , tornar ... -- E vão cinco , e vão sete ... noves fóra nada ... -- até que a vista se lhe toldava , e a deshoras , embrulhado no cobertor , tombava sobre a meza , soluçando : -- Não posso ! não posso mais ! E tinha uma lettra tão linda ! ... Na propria desgraça cahem por vezes resquicios de sol . Assim houve tempo em que respiraram . Tinham-lhe dado escriptas , mas ia-lhe faltando a luz dos olhos , e a vida d' expedientes tornára- se mais aziaga . Achavam-no ridiculo , ninguem o tomava a serio , a esse homem gordo e chorão , que vivia com esta pedra a gastal- o -- a sorte da filha . Escondido da mulher empenhára a casinha onde moravam , e passava as noites trabalhando nos livros . Quasi sempre ao deitar falavam da filha . -- É o que nos vale a nossa filhinha . -- Sempre nos dá mais animo . -- É tão boa , tão nossa amiga ! ... A velha trabalhava , ruminava projectos desconnexos para enriquecerem ; a roupa andava defendida e cuidada até ás ultimas . Luziam as coisas e quasi não comiam para poupar , sobretudo ella que tudo guardava para o Gebo e para a filha . -- Ó homem , mas então ? Toda a gente , se arranja e tu estás sempre na cepa torta ! -- Deixa estar , mulher ! As coisas não vão como tu pensas . -- Ora não vão ! não vão ! ... Era ella afinal que o empurrava , áquelle ser gordo e inutil . Fortalecia-o . -- Por vossa causa é que eu lucto , -- dizia elle sempre . Ás vezes visitava-os uma parenta afastada , a tia||_Anninhas Anninhas|_Anninhas e as duas mulheres punham-se a falar das pessoas conhecidas . Ha creaturas que só apparecem quando a desgraça entra n ' uma casa . Era uma velha , de chale preto sem pello , e que vivia de aproveitar os restos da miseria . Trazia novidades e com que alegria a mulher do Gebo , ao ouvir-lhe dizer , que pessoas suas conhecidas tambem eram infelizes , tinha pena dos que soffriam como ella ! -- Ó Anninhas ouvi dizer que a Desideria está por baixo , coitada ! ... -- Tem tudo empenhado , filha . Passa muita fome . E ella n ' uma ancia : -- Fome ? passa fome ? Coitada ! -- Mesmo fome , filha . -- Que me dizes ? -- É isto que te digo . E tu como vaes com a tua vida ? -- Agora , graças a Deus , vamos indo . As coisas vão-se remediando . Entretanto o Gebo ia para uma loja conhecida onde se juntavam os negociantes fallidos , os professores sem discipulos , os burguezes desesperados por terem perdido tudo . Falavam muito , procuravam illudir-se . Enganavam-se uns aos outros , não por mentirem , mas para tornarem mais visivel a sua aspiração , o sonho que traziam escondido . Discutiam imaginarias emprezas , negocios impossiveis . -- Oh como eu sou feliz ! ... -- dizia o Gebo -- Agora tenho ahi um logar ... Nem sequer o escutavam e , se um sahia , diziam os outros : -- Cuido que está cada vez peor . -- Um homem que teve um credito na praça ! -- Tem a fome á porta . -- Coitado ! Eu agora é que trago entre mãos um negocio ... Porque é que elles não trabalham ? Porque a quebra , as afflicções , a ruina , tolheram-nos para sempre . Perderam a energia e só sonham em se tornar ricos . Vivem illudidos e tombam no sepulchro gastos e com a scisma em maravilhosos lucros . E não têm porventura razão ? Não vão amanhã quinhoar d' essa larga e mysteriosa empreza -- a Morte ? PHILOSOPHIA DE+O GABIRU E que tu acreditas na immortalidade da alma ? Bem fundo , bem arreigado ? Tenho horas em que creio : é uma esperança , um raio de luz entrando n ' um tumulo vasio pela juncta abalada d' uma pedra . Porque crêr ? porque não crêr ? Theorias , palavras ... No intimo , porém , sou materialista como toda a gente . Dormir na terra funda e gorda é bom -- dormir para sempre . Ir ser arvore , luz , detricto , correr nas veias da terra , é quasi consolador -- excellente somno sem sonhos , depois da lide canceirosa d' um dia . Na primavera quasi sempre sou materialista , no inverno idealista e com a mesma sinceridade , quasi com ferocidade . Ser só , sem amigos , sem apertos de mão , sem conhecidos , ser só e livre , que sonho ! ... Ser só por cobardia , para não ter este aguilhão da vaidade a espicaçar-me : -- Então tu não fazes , e este , aquelle , o diabo , fizeram ! -- Ser só para sonhar e para vêr este espectaculo unico -- -a natureza ; para passar os meus dias vendo as transformações d' uma d' aquellas arvores que d' aqui contemplo ! ... Quando me fecho e estou só , sou tão differente ! ... Como o homem é desconhecido até de si proprio , porque o tempo passa , vem a morte e elle não esteve sósinho ! Se estou só vêm falar-me vozes -- eu mesmo -- mas com que palavras unicas ! Os sêres de que sou composto , se me habituo á solidão , nos primeiros tempos balbuciam , mas depois falam ! pregam ! ... Tenho a certeza de que fui arvore e é por isso que tanto as amo . Ha livros que falam baixinho , ha livros que falam alto . Uns têem por si o encanto , outras a força . Ás vezes as palavras murmuradas impressionam mais : passado tempo ainda ellas acordam em nós fibras adormecidas . Porque é que a agua , até o mais humilde charco , attrahe e faz sonhar os homens de imaginação ? Quanto mais desprezo o homem , mais amo a natureza . Ella é inalteravel . O homem prende-se com muitas coisas inuteis : a riqueza , a ambição , interesses mesquinhos : vive emaranhado n ' uma teia . De forma que não tem tempo de vêr , nem de ouvir , nem de se conhecer . Quantas creaturas , existem que nunca olharam para o céo ? A natureza , arvores , montes , rios , esse pelago que vejo do meu quarto deixa-os indifferentes ; as horas de preguiça e sonho deixam-os indifferentes . Nunca tiveram tempo para amar as coisas simples e grandes da vida . O que é eterno não no viveram . Por mim antes quero comer pão e scismar , deixar correr as minhas idéas como um regato corre -- até onde tem agua . Alguns morrem sem terem reparado que existiram . É por isso que eu corto sempre com tudo que me não deixa sonhar -- e que quando encontro razões para acabar com um amigo tenho um suspiro d' allivio . É uma amarra de menos . Habituar-se a gente a viver com idéas simples é como habituar-se a andar com fatos velhos e rotos . Indigna os outros . De forma que tem de se viver arredado . A morte aterra-me pouco . Porquê ? Porque só penso na morte como n ' uma divida distante . Fica para muito longe ainda . Ha horas , porem , á noite , de subito , em que , sem ligação , essa idéa rapidamente me toma e abala até ás mais reconditas fibras . Suffoco então aterrado . Com que facilidade se matam até os entes mais queridos ! ... Quantas vezes me surprehendo a assassinar eu a desejar a morte -- é a mesma coisa , com este acrescimo , a cobardia -- de pessoas que soffreram por mim ! Por a menor causa , por o mais leve transtorno , o primeiro pensamento é este : -- Se elle morresse ... É claro que protestas logo . Protesta o teu coração , a tua educação , os teus habitos e até a tua hypocrisia . Mas se deixares trabalhar a imaginação á vontade , sem peias , é uma hecatombe -- por futilidades . PRIMAVERA O Gabiru sentiu-se aquecido , como a terra quando vem a primavera . Ia crear ! ia crear ! ... Aquelle chão que só o arado do sonho lavrára , eil- o atravessado por este veio turvo , que tudo remexe e transforma -- a Vida . Consumira-o o sonho , tornando-o cambado e gasto , esguio e d' olhos perdidos de scisma ... Acordára emfim para a realidade e elle , que tinha passado a vida a revolver um brazido d' idéas , longe da terra e do seu lodo , amou a Mouca , raza como o chão . Todos se riam d' ella , magra e pallida , de pacho n ' um olho , com um ar de mascara que vae gritar d' afflicção . O seu ideal prendera-lhe os olhos tal ' qual nol- os prende o lume , de fórma que ao erguel-os , déra de cara com a vida e perguntára : Que é isto ? o mundo , a tempestade , tudo o que do cubiculo vejo , arfando ao sol , penetrado de ruidos e de sombras ? Arvores acenando-me com os braços , vozes d' aguas fartando as terras imbebidas ? Isto ? ... Tudo é luz , é uma chamma ? E como tudo é bello ! Vêr ao pé arvores e montes , a esse esguio philosopho habituado a conviver com velhos cartapacios , parecia-lhe tão irrealisavel como subir ás estrellas . Nos alfarrabios fala-se de tudo menos da vida . Por isso acordando espantado , interrogava as ondas luminosas , os rios correndo , o extraordinario mar : " Vós que me quereis ? " E no alto da mansarda sorria para a terra , pencudo e triste , esguio como um enterro . -- Porque a amas tu , philosopho ? -- Sei lá ! Amo-a . Dá-me vontade de chorar ao vel a. Amo os seus olhos tristes , o seu feitio do cão espancado . Amo-a , porque qualquer outra me desprezaria , envelhecido a sonhar . Ella é parecida commigo , talvez tenha pena de mim . Todos somos constructores . De terra e de emoção andamos pelo mundo a amassar estatuas ; de realidade e de sonho architectamos as figuras que se misturam na nossa vida . Ellas existem mais pelo que lhes damos de nós mesmos , do que pelo que na realidade são . De saudade , de sonho , de lodo e piedade , construira uma figurinha offendida e triste , andando no mundo aos tombos , sem pão e sem abrigo . A elle que passára a vida inteira a atear um brazido , cabia-lhe em sorte a Mouca , escarneo de ladrões e de soldados . A casa das mulheres de dia é funebre , mas de noite , á luz do petroleo que esvoaça e deixa tudo n ' uma meia tinta d' afflicção -- candieiros partidos , luzes fumarentas -- lembra um circo de desgraça , onde palhaçadas tragicas façam gargalhar e onde os ladrões e as mulheres enfarinhadas representem a serio vicios e crimes , com risos e choros á mistura , para que o publico que paga se possa rir . Vem um Velho , que sem falar gargalha toda a noite ao velas maltratadas , e o Morto , palido e soturno , com um laivo na cara . Tem as mãos osseas e enormes sempre frias e as mulheres temem-no pela sua crueldade , pelo seu sorriso tragico . Despreza a dor e os gritos . Sente-se que d' elle não ha a esperar piedade . Só a Mouca se atreve a resistir-lhe . Apparecem outros e toda a noite , se ouvem insultos , choros , gargalhadas . Cada um alli arranca a mascara , transforma-se , fica um ser nu : as feições endurecem , o riso é atroz . O homem tem vontade de ouvir gritos . Paga , maltrata . É lodo , não ha que ter piedade . E as mulheres cantam sempre na mesma toada triste e soluçante ... Nenhuma fala do passado , com medo ao escarneo , mas guardam-no para si , sem o esquecerem . A historia é identica , o eterno humus amassado em lagrimas .