Mário de Sá-Carneiro A Confissão de Lúcio A primeira obra portuguesa sobre romance homossexual A António Ponce de Leão Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual , entanto , nunca me defendi , morto para a vida e para os sonhos ... nada podendo já esperar e coisa alguma desejando -- eu venho fazer enfim a minha confissão : isto é , demonstrar a minha inocência . Talvez não me acreditem . Decerto que não me acreditam . Mas pouco importa . O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro é nulo . Não tenho família ; não preciso que me reabilitem . Mesmo , quem esteve dez anos preso , nunca se reabilita . A verdade simples é esta . E aqueles que , lendo o que fica exposto , me perguntarem : -- " Mas por que não fez a sua confissão quando era tempo ? Por que não demonstrou a sua inocência ao tribunal ? " -- a esses responderei : -- A minha defesa era impossível . Ninguém me acreditaria . E fora inútil fazer-me passar por um embusteiro ou por um doido ... Ademais , devo confessar , após os acontecimentos em que me vira envolvido nessa época , ficara tão despedaçado que a prisão se me afigurava uma coisa sorridente . Era o esquecimento , a tranquilidade , o sono . Era um fim como qualquer outro -- um termo para a minha vida devastada . Toda a minha ânsia foi pois de ver o processo terminado e começar cumprindo a minha sentença . De resto , o meu processo foi rápido . Oh ! o caso parecia bem claro ... Eu nem negava nem confessava . Mas quem cala consente ... E todas as simpatias estavam do meu lado . O crime era , como devem ter dito os jornais do tempo , um " crime passional " . Cherchez la femme . Depois , a vítima um poeta -- um artista . A mulher romantizara-se desaparecendo . Eu era um herói , no fim de contas . E um herói com seus laivos de mistério , o que mais me aureolava . Por tudo isso , independentemente do belo discurso de defesa , o júri concedeu-me circunstâncias atenuantes . E a minha pena foi curta . Ah ! foi bem curta -- sobretudo para mim ... Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses . É que , em realidade , as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida . Atingido o sofrimento máximo , nada já nos faz sofrer . Vibradas as sensações máximas , nada já nos fará oscilar . Simplesmente , este momento culminante raras são as criaturas que o vivem . As que o viveram ou são , como eu , os mortos-vivos , ou -- apenas -- os desencantados que , muita vez , acabam no suicídio . Contudo , ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante . Os que o não vivem , têm a paz -- pode ser . Entretanto , não sei . E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso . Logo , todos são infelizes . Eis pelo que , apesar de tudo , eu me orgulho de o ter vivido . Mas ponhamos termos aos devaneios . Não estou escrevendo uma novela . Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos . E , para a clareza , vou-me lançando em mau caminho -- parece-me . Aliás , por muito lúcido que queira ser , a minha confissão resultará -- estou certo -- a mais incoerente , a mais perturbadora , a menos lúcida . Uma coisa garanto porém : durante ela não deixarei escapar um pormenor , por mínimo que seja , ou aparentemente incaracterístico . Em casos como o que tento explanar , a luz só pode nascer de uma grande soma de factos . E são apenas factos que eu relatarei . Desses factos , quem quiser , tire as conclusões . Por mim , declaro que nunca experimentei . Endoideceria , seguramente . Mas o que ainda uma vez , sob minha palavra de honra , afirmo é que só digo a verdade . Não importa que me acreditem , mas só digo a verdade -- mesmo quando ela é inverosímil . A minha confissão é um mero documento . Por 1895 , não sei bem como , achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris , ou melhor , não estudando . Vagabundo da minha mocidade , após ter tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido -- sedento de Europa , resolvera transportar-me à grande capital . Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos , e Gervásio Vila-Nova , que eu mal conhecia de Lisboa , volveu-se-me o companheiro de todas as horas . Curiosa personalidade essa de grande artista falido , ou antes , predestinado para a falência . Perturbava o seu aspeto físico , macerado e esguio , e o seu corpo de unhas quebradas tinha estilizações inquietantes de feminilismo histérico e opiado , umas vezes -- outras , contrariamente , de ascetismo amarelo . Os cabelos compridos , se lhe descobriam a testa ampla e dura , terrível , evocavam cilícios , abstenções roxas ; se lhes escondiam a fronte , ondeadamente , eram só ternura , perturbadora ternura de espasmos dourados e beijos subtis . Trajava sempre de preto , fatos largos , onde havia o seu quê de sacerdotal -- nota mais frisantemente dada pelo colarinho direito , baixo , fechado . Não era enigmático o seu rosto -- muito pelo contrário -- se lhe cobriam a testa os cabelos ou o chapéu . Entanto , coisa bizarra , no seu corpo havia mistério -- corpo de esfinge , talvez , em noites de luar . Aquela criatura não se nos gravava namemória pelos seus traços fisionómicos , mas sim pelo seu estranho perfil . Em todas as multidões ele se destacava , era olhado , comentado -- embora , em realidade , a sua silhueta à primeira vista parecesse não se dever salientar notavelmente : pois o fato era negro -- apenas de um talhe um pouco exagerado -- , os cabelos não escandalosos , ainda que longos ; e o chapéu , um bonet de fazenda -- esquisito , era certo -- , mas que em todo o caso muitos artistas usavam , quase idêntico . Porém , a verdade é que em redor da sua figura havia uma auréola . Gervásio Vila-Nova era aquele que nós olhamos na rua , dizendo : ali , deve ir alguém . Todo ele encantava as mulheres . Tanta rapariguinha que o seguia de olhos fascinados quando o artista , sobranceiro e esguio , investigava os cafés ... Mas esse olhar , no fundo , era mais o que as mulheres lançam a uma criatura do seu sexo , formosíssima e luxuosa , cheia de pedrarias ... -- Sabe , meu caro Lúcio -- dissera-me o escultor , muita vez -- , não sou eu nunca que possuo as minhas amantes ; elas é que me possuem ... Ao falar-nos , brilhava ainda mais a sua chama . Era um conversador admirável , adorável nos seus erros , nas suas ignorâncias , que sabia defender intensamente , sempre vitorioso ; nas suas opiniões revoltantes e belíssimas , nos seus paradoxos , nas suas blagues . Uma criatura superior -- ah ! sem dúvida . Uma destas criaturas que se enclavinham na memória -- e nos perturbam , nos obcecam . Todo fogo ! todo fogo ! Entretanto , se o examinávamos com a nossa inteligência , e não apenas com a nossa vibratilidade , logo víamos que , infelizmente , tudo se cifrava nessa auréola , que o seu génio -- talvez por demasiado luminoso -- se consumiria a si próprio , incapaz de se condensar numa obra -- disperso , quebrado , ardido . E assim aconteceu , com efeito . Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar . A uma criatura como aquela não se podia ter afeto , embora no fundo ele fosse um excelente rapaz : mas ainda hoje evoco com saudade as nossas palestras , as nossas noites de café -- e chego a convencer-me que , sim , realmente , o destino de Gervásio Vila-Nova foi o mais belo : e ele um grande , um genial artista . Tinha muitas relações no meio artístico o meu amigo . Literatos , pintores , músicos , de todos os países . Uma manhã , entrando no meu quarto , desfechou-me : -- Sabe , meu caro Lúcio , apresentaram-me ontem uma americana muito interessante . Calcule , é uma mulher riquíssima que vive num palácio que propositadamente fez construir no local onde existiam dois grandes prédiosque ela mandou deitar abaixo -- isto , imagine você , em plena Avenida do Bosque de Bolonha ! Uma mulher linda . Nem calcula . Quem me apresentou foi aquele pintor americano dos Óculos azuis . Recorda-se ? Eu não sei como ele se chama ... Podemos-la encontrar todas as tardes no Pavilhão de Armenonville . Costuma ir lá tomar chá . Quero que você a conheça . Vai ver . Interessantíssima ! No dia seguinte -- uma esplêndida tarde de inverno , tépida , cheia de sol e céu azul -- , tomando um fiacre , lá nos dirigimos ao grande restaurante . Sentamo-nos ; mandou-se vir chá ... Dez minutos não tinham decorrido , quando Gervásio me tocava no braço . Um grupo de oito pessoas entrava no salão -- três mulheres , cinco homens . Das mulheres , duas eram loiras , pequeninas , de pele de rosas e leite ; de corpos harmoniosos , sensuais -- idênticas a tantas inglesas adoráveis . Mas a outra , em verdade , era qualquer coisa de sonhadamente , de misteriosamente belo . Uma criatura alta , magra , de um rosto esguio de pele dourada -- e uns cabelos fantásticos , de um ruivo incendiado , alucinante . A sua formosura era uma destas belezas que inspiram receio . Com efeito , mal a vi , a minha impressão foi de medo -- de um medo semelhante ao que experimentamos em face do rosto de alguém que praticou uma ação enorme e monstruosa . Ela sentou-se sem ruído ; mas logo , vendo-nos , correu estendendo as mãos para o escultor : -- Meu caro , muito prazer em o encontrar ... Falaram-me ontem muito bem de si ... Um seu compatriota ... um poeta ... M. de Loureiro , julgo ... Foi difícil adivinhar o apelido português entre a pronúncia mesclada . -- Ah ... Não o sabia em Paris -- murmurou Gervásio . E para mim , depois de me haver apresentado à estrangeira : -- Você conhece ? Ricardo de Loureiro , o poeta das Brasas ... Que nunca lhe falara , que apenas o conhecia de vista e , sobretudo , que admirava intensamente a sua obra . -- Sim ... não discuto isso ... você bem vê , para mim já essa arte passou . Não me pode interessar ... Leia-me os selvagens , homem , que diacho ! ... Era uma das scies de Gervásio Vila-Nova : elogiar uma pseudo-escola literária da última hora -- o Selvagismo , cuja novidade residia em os seus livros serem impressos sobre diversos papéis e com tintas de várias cores , numa estrambótica disposição tipográfica . Também -- e eis o que mais entusiasmava o meu amigo -- os poetas e prosadores selvagens , abolindo a ideia , " esse escarro " , traduziam as suas emoções unicamente em jogo silábico , por onomatopeias rasgadas , bizarras : criando mesmo novas palavras que coisa alguma significavam e cuja beleza , segundo eles , residia justamente em não significarem coisa alguma ... De resto , até aí , parece que apenas se publicara um livro dessa escola . Certo poeta russo de nome arrevesado . Livro queGervásio seguramente não lera , mas que todavia se não cansava de exalçar , gritando-o assombroso , genial ... A mulher estranha chamou-nos para a sua mesa , e apresentou-nos** os seus companheiros , que ainda não conhecíamos : o jornalista Jean Lamy , do Fígaro , o pintor holandês Van Derk e o escultor inglês Tomás Westwood . Os dois outros eram o pintor americano dos Óculos azuis e o inquietante viscondezinho de Naudières , louro , diáfano , maquilhado . Quanto Ãs duas raparigas , limitou-se apontando-nos : -- Jenny e Dora . A conversa logo se entabulou ultracivilizada e banal . Falou-se de modas , discutiu-se teatro e music-hall , com muita arte à mistura . E quem mais se distinguiu , quem em verdade até exclusivamente falou , foi Gervásio . Nós limitávamo-nos -- como acontecia com todos , perante ele , perante a sua intensidade -- a ouvir , ou , quando muito , a protestar . Isto é : a dar ensejo para que ele brilhasse ... -- Sabe , meu querido Lúcio -- uma vez contara-me o escultor -- , o Fonseca diz que é um ofício acompanhar-me . E uma arte difícil , fatigante . É que eu falo sempre ; não deixo o meu interlocutor repousar . Obrigo-o a ser intenso , a responder-me ... Sim , concordo que a minha companhia seja fatigante . Vocês têm razão . Vocês -- note-se em parêntese -- era todo o mundo , menos Gervásio ... E o Fonseca , de resto , um pobre pintorzinho da Madeira , " pensionista do Estado " , de barbichas , lavallière , cachimbo -- sempre calado e oco , olhando nostalgicamente o espaço , à procura talvez da sua ilha perdida ... Um santo rapaz ! Depois de muito se conversar sobre teatro e de Gervásio ter proclamado que os atores -- ainda os maiores , como a Sara , o Novelli -- não passavam de meros cabotinos , de meros intelectuais que aprendiam os seus papéis , e de garantir -- " creiam os meus amigos que é assim " -- que a verdadeira arte apenas existia entre os saltimbancos ; esses saltimbancos que eram um dos seus estribilhos e sobre os quais , na noite em que nos encontráramos em Paris , logo me narrara , em confidência , uma história tétrica :o seu rapto por uma companhia de pelotiqueiros , quando tinha dois anos e os pais o haviam mandado , barbaramente , para uma ama da serra da Estrela , mulher de um oleiro , do qual , sem dúvida , ele herdara a sua tendência para a escultura e de quem , na verdade , devido a uma troca de berços , era até muito possível que fosse filho -- a conversa deslizou , não sei como , para a voluptuosidade na arte . E então a americana bizarra logo protestou : -- Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque , meus amigos , a voluptuosidade é uma arte -- e , talvez , a mais bela detodas . Porém , até hoje , raros a cultivaram nesse espírito . Venham cá , digam-me : fremir em espasmos de aurora , em êxtases de chama , ruivos de ânsia -- não será um prazer bem mais arrepiado , bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial , um poema de bronze ? Sem dúvida , acreditem-me . Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos , saber provocá-los . E eis o que ninguém sabe ; eis no que ninguém pensa . Assim , para todos , os prazeres dos sentidos são a luxúria , e se resumem em amplexos brutais , em beijos húmidos , em carícias repugnantes , viscosas . Ah ! mas aquele que fosse um grande artista e que , para matéria-prima , tomasse a voluptuosidade , que obras irreais de admiráveis não altearia ! ... Tinha o fogo , a luz , o ar , a água , e os sons , as cores , os aromas , os narcóticos e as sedas -- tantos sensualismos novos ainda não explorados ... Como eu me orgulharia de ser esse artista ! ... E sonho uma grande festa no meu palácio encantado , em que os maravilhasse de volúpia ... em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes , dos fogos multicolores -- e que a vossa carne , então , sentisse enfim o fogo e a luz , os perfumes e os sons , penetrando-a a dimaná-los , a esvai-los , a matá-los ! ... Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo , na perversidade da água , nos requintes viciosos da luz ? ... Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual -- mas de desejos espiritualizados de beleza -- ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato , ao contemplar um braseiro incandescente , ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes elétricas , luminosas ... Meus amigos , creiam-me , não passam de uns bárbaros , por mais requintados , por mais complicados e artistas que presumam aparentar ! Gervásio insurgiu-se : " Não ; a voluptuosidade não era uma arte . Falassem-lhe do ascetismo , da renúncia . Isso sim ! ... A voluptuosidade ser uma arte ? Banalidade ... Toda a gente o dizia ou , no fundo , mais ou menos o pensava ... E por aqui fora , adoravelmente dando a conhecer que só por se lhe afigurar essa a opinião mais geral , ele a combatia . Durante toda a conversa , apenas quem nunca arriscara uma palavra tinham sido as duas inglesinhas , Jenny e Dora -- sem também despregarem ainda de Gervásio , um só instante , os olhos azuis e louros . Entretanto as cadeiras haviam-se deslocado e , agora , o escultor sentava-se junto da americana . Que belo grupo ! Como os seus dois perfis se casavam bem na mesma sombra esbatidos -- duas feras de amor , singulares , perturbadoras , evocando mordoradamente perfumes esfíngicos , luas amarelas , crepúsculos de roxidão . Beleza , perversidade , vício e doença ... Mas a noite descera . Um par de amorosos do grande mundo entrava a refugiar-se no célebre estabelecimento , quase deserto pelo inverno . A americana excêntrica deu o sinal de partida ; e quando ela se ergueu eu notei , duvidosamente notei , que calçava umas estranhas sandálias , nos pés nus ... nos pés nus de unhas douradas ... Na Porta Maillot , tomamos o tramway para Montparnasse , começando Gervásio : -- Então , Lúcio , que lhe pareceu a minha americana ? -- Muito interessante . -- Sim ? Mas você não deve gostar daquela gente . Eu compreendo bem . Você é uma natureza simples , e por isso ... -- Ao contrário -- protestava eu em idiotice -- , admiro muito essa gente . Acho-os interessantíssimos . E quanto à minha simplicidade ... -- Ah , pelo meu lado , confesso que os adoro ... Sou todo ternura por eles . Sinto tantas afinidades com essas criaturas ... como também as sinto com os pederastas ... com as prostitutas ... Oh ! é terrível , meu amigo , terrível ... Eu sorria apenas . Estava já acostumado . Sabia bem o que significava tudo aquilo . Isto só : Arte . Pois Gervásio partia do princípio de que o artista não se revelava pelas suas obras , mas sim , unicamente , pela sua personalidade . Queria dizer : ao escultor , no fundo , pouco importava a obra de um artista . Exigia-lhe porém que fosseinteressante , genial , no seu aspeto físico , na sua maneira de ser -- no seu modo exterior , numa palavra : -- Porque isto , meu amigo , de se chamar artista , de se chamar homem de génio , a um patusco obeso como o Balzac , corcovado , aborrecido , e que é vulgar na sua conversa , nas suas opiniões -- não está certo ; não é justo nem admissível . -- Ora ... -- protestava eu , citando verdadeiros grandes artistas , bem inferiores no seu aspeto físico . E então Gervásio Vila-Nova tinha respostas impagáveis . Se por exemplo -- o que raro acontecia -- o nome citado era o de um artista que ele já alguma vez me elogiara pelas suas obras , volvia-me : -- O meu amigo desculpe-me , mas é muito pouco lúcido . Esse de quem me fala , embora aparentemente medíocre , era todo chama . Pois não sabe quando ele ... E inventava qualquer anedota interessante , bela , intensa , que atribuía ao seu homem ... E eu calava-me ... De resto , era outro traço característico em Gervásio : construir as individualidades como lhe agradava que fossem , e não as ver como realmente eram . Se lhe apresentavam uma criatura com a qual , por qualquer motivo , simpatizava -- logo lhe atribuía opiniões , modos de ser do seu agrado ; embora , em verdade , a personagem fosse a antítese disso tudo . É claro que um dia chegava a desilusão . Entretanto , longo tempo ele tinha a força de sustentar o encanto ... Pelo caminho , não pude deixar de lhe observar : -- Você Reparou que ela trazia os pés descalços , em sandálias , e as unhas douradas ? -- Você crê ? ... Não ... A desconhecida estranha impressionara-me vivamente e , antes de adormecer , largo tempo a relembrei e à roda que a acompanhava . Ah ! como Gervásio tinha razão , como eu no fundo abominava essa gente -- os artistas . Isto é , os falsos artistas cuja obra se encerra nas suas atitudes ; que falam petulantemente , que se mostram complicados de sentidos e apetites , artificiais , irritantes , intoleráveis . Enfim , que são os exploradores da arte apenas no que ela tem de falso e de exterior . Mas , na minha incoerência de espírito , logo me vinha outra ideia : -- Ora , se os odiava , era só afinal por os invejar e não poder nem saber ser como eles ... Em todo o caso , mesmo abominando-os realmente , o certo é que me atraíam como um vício pernicioso . Durante uma semana -- o que raro acontecia -- estive sem ver Gervásio . Ao fim dela , apareceu-me e contou-me : -- Sabe , tenho estreitado relações com a nossa americana . É na verdade uma criatura interessantíssima . E muito artista ... Aquelas duas pequenas são amantes dela . É uma grande sáfica . -- Não ... -- Asseguro-lhe . E não falamos mais da estrangeira . * * Passou-se um mês . Eu já me esquecera da mulher fulva , quando uma noite o escultor me participou de súbito : -- É verdade : aquela americana que eu lhe apresentei outro dia dá amanhã uma grande soirée . Você está convidado . -- Eu ! ? ... -- Sim . Ela disse-me que levasse alguns amigos . E falou-me de si . Aprecia-o muito ... Aquilo deve ser curioso . Há uma representação no fim -- umasapoteoses , uns bailados ou o quer que é . Entanto se é maçador para você , não venha . Eu creio que estas coisas o aborrecem ... Protestei , idiotamente ainda , como era meu hábito ; afirmei que , pelo contrário , tinha até um grande empenho em o acompanhar , e marcamos rendez-vous para a noite seguinte , na Closerie , Ãs dez horas . No dia da festa , arrependi-me de haver aceitado . Eu era tão avesso à vida mundana ... E depois , ter que envergar um smoking , perder uma noite ... Enfim ... enfim ... Quando cheguei ao café -- caso estranho ! -- já o meu amigo chegara . E disse-me : Ah ... sabe ? Temos que esperar ainda pelo Ricardo de Loureiro . Também está convidado . E ficou de se encontrar aqui comigo . Olhe , aí vem ele ... E apresentou-nos : -- O escritor Lúcio Vaz . -- O poeta Ricardo de Loureiro . E nós , um ao outro : -- Muito gosto em o conhecer pessoalmente . * * Pelo caminho a conversa foi-se entabulando e , ao primeiro contato , logo experimentei uma viva simpatia por Ricardo de Loureiro . Adivinhava-se naquele rosto árabe de traços decisivos , bem vincados , uma natureza franca , aberta -- luminosa por uns olhos geniais , intensamente negros . Falei-lhe da sua obra , que admirava , e ele contou-me que lera o meu volume de novelas e que , sobretudo , lhe interessara o conto chamado João Tortura . Esta opinião não só me lisonjeou , como mais me fez simpatizar com o poeta , adivinhando nele uma natureza que compreenderia um pouco a minha alma . Efetivamente , essa novela era a que eu preferia , que de muito longe eu preferia , e entretanto a única que nenhum crítico destacara -- que os meus amigos mesmo , sem mo dizerem , reputavam a mais inferior . Brilhantíssima aliás a conversa do artista , além de insinuante , e pela vez primeira eu vi Gervásio calar-se -- ouvir , ele que em todos os grupos era o dominador . Por fim o nosso coupé estacou em face de um magnífico palácio da Avenida do Bosque , todo iluminado através de cortinas vermelhas , de seda , fantasticamente . Carruagens , muitas , à porta -- contudo uma mescla de fiacres mais ou menos avariados , e algumas soberbas equipagens particulares . Descemos . À entrada , como no teatro , um lacaio recebeu os nossos cartões de convite , e outro imediatamente nos empurrou para um ascensor que , rápido , nos ascendeu ao primeiro andar . Então , deparou-se-nos um espetáculo assombroso : Uma grande sala elíptica , cujo teto era uma elevadíssima cúpula rutilante , sustentada por colunas multicolores em mágicas volutas . Ao fundo , um estranho palco erguido sobre esfinges bronzeadas , do qual -- por degraus de mármore rosa -- se descia a uma larga piscina semicircular , cheia de água translúcida . Três ordens de galerias -- de forma que todo o aspeto da grande sala era o de um opulento , fantástico teatro . Em qualquer parte , ocultamente , uma orquestra moía valsas . À nossa entrada -- foi sabido -- todos os olhares se fixaram em Gervásio Vila-Nova , hierático , belíssimo , na sua casaca negra , bem cintada . E logo a estrangeira se nos precipitou a perguntar a nossa opinião sobre a sala . Com efeito , os arquitetos apenas há duas semanas a tinham dado por concluída . Aquela festa sumptuosa era a sua inauguração . Gritamos o nosso pasmo em face à maravilha , e ela , a encantadora , teve um sorriso de mistério : -- Logo , é que eu desejo conhecer o vosso juízo ... E , sobretudo , o que pensam das luzes ... Um deslumbramento , o trajo da americana . Envolvia-a uma túnica de um tecido muito singular , impossível de descrever . Era como que uma estreita malha de fios metálicos -- mas dos metais mais diversos -- a fundirem-se numa cintilação esbraseada , onde todas as cores ora se enclavinhavam ululantes , ora se dimanavam , silvando tumultos astrais de reflexos . Todas as cores enlouqueciam na sua túnica . Por entre as malhas do tecido , olhando bem , divisava-se a pele nua ; e o bico de um seio despontava numa agudeza áurea . Os cabelos fulvos tinha-os enrolado desordenadamente e entretecido de pedrarias que constelavam aquelas labaredas em raios de luz ultrapassada . Mordiam-se-lhe nos braços serpentes de esmeraldas . Nem uma joia sobre o decote profundo ... A estátua inquietadora do desejo contorcido , do vício platinado ... E de toda a sua carne , em penumbra azul , emanava um aroma denso a crime . Rápida , após momentos , ela se afastou de nós a receber outros convidados . A sala enchera-se entretanto de uma multidão bizarrada e esquisita . Eram estranhas mulheres quase nuas nos seus trajos audaciosos de baile , e rostos suspeitos sobre as uníssonas e negras vestes masculinas de cerimónia . Havia russos hirsutos e fulvos , escandinavos suavemente louros , meridionais densos , crespos -- e um chinês , um índio . Enfim , condensava-se ali bem o Paris cosmopolita -- rastaquouère e genial . Até à meia-noite , dançou-se e conversou-se . Nas galerias jogava-se infernalmente . Mas a essa hora foi anunciada a ceia ; e todos passamos ao salão de jantar -- outra maravilha . Pouco antes chegara-se a nós a americana e , confidencialmente , nos dissera : -- Depois da ceia , é o espetáculo -- o meu Triunfo ! Quis condensar nele as minhas ideias sobre a voluptuosidade-arte . Luzes , corpos , aromas , o fogo e a água -- tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualizada em outro ! Ao entrarmos novamente na grande sala -- por mim , confesso , tive medo ... recuei ... Todo o cenário mudara -- era como se fosse outro o salão . Inundava-o um perfume denso , arrepiante de êxtases , silvava-o uma brisa misteriosa , uma brisa cinzenta com laivos amarelos -- não sei por que , pareceu-me assim , bizarramente -- , aragem que nos fustigava a carne em novos arrepios . Entanto , o mais grandioso , o mais alucinador , era a iluminação . Declaro-meimpotente para a descrever . Apenas , num esforço , poderei esboçar onde residia a sua singularidade , o seu quebranto : Essa luz -- evidentemente elétrica -- provinha de uma infinidade de globos , de estranhos globos de várias cores , vários desenhos , de transparências várias -- mas , sobretudo , de ondas que projetores ocultos nas galerias golfavam em esplendor . Ora essas torrentes luminosas , todas orientadas para o mesmo ponto quimérico do espaço , convergiam nele num turbilhão -- e , desse turbilhão meteórico , é que elas realmente , em ricochete enclavinhado , se projetavam sobre paredes e colunas , se espalhavam no ambiente da sala , apoteotizando-a . De forma que a luz total era uma projeção da própria luz -- em outra luz , seguramente , mas a verdade é que a maravilha que nos iluminava nos não parecia luz . Afigurava-se-nos qualquer outra coisa -- um fluido novo . Não divago ; descrevo apenas uma sensação real : essa luz , nós sentíamos-la mais do que a víamos , E não receio avançar muito afirmando que ela não impressionava a nossa vista , mas sim o nosso tato . Se de súbito nos arrancassem os olhos , nem por isso nós deixaríamos de ver . E depois -- eis o mais bizarro , o mais esplêndido -- nós respirávamos o estranho fluido . Era certo , juntamente com o ar , com o perfume roxo do ar , sorvíamos essa luz que , num êxtase iriado , numa vertigem de ascensão -- se nos engolfava pelos pulmões , nos invadia o sangue , nos volvia todo o corpo sonoro . Sim , essa luz mágica ressoava em nós , ampliando-nos os sentidos , alastrando-nos** emvibratilidade , dimanando-nos** , aturdindo-nos** ... Debaixo dela , toda a nossa carne era sensível aos espasmos , aos aromas , Ãs melodias ! ... E não foi só a nós , requintados de ultracivilização e arte , que o mistério rutilante fustigou . Pois em breve todos os espectadores evidenciavam , em rostos confundidos e gestos ansiosos , que um ruivo sortilégio os varara sob essa luz de além-Inferno , sob essa luz sexualizada . Mas de súbito toda a iluminação se transformou divergindo num resvalamento arqueado : e outro frémito mais brando nos diluiu então , como beijos de esmeraldas sucedendo a mordeduras . Uma música penetrante tilintava nessa nova aurora , em ritmos desconhecidos -- esguia melopeia em que soçobravam gomos de cristal entrechocando-se , onde palmas de espadas refrescavam o ar esbatidamente , onde listas húmidas de sons se vaporizavam subtis ... Enfim : prestes a esvairmo-nos num espasmo derradeiro da alma -- tinham-nos sustido para nos alastrarem o prazer . E , ao fundo , o pano do teatro descerrou-se sobre um cenário aureolal ... Extinguiu-se a luz perturbadora , e jorros de eletricidade branca nos iluminaram apenas . No palco surgiram três dançarinas . Vinham de tranças soltas -- blusas vermelhas lhes encerravam os troncos , deixando-lhes os seios livres , oscilantes . Ténues gazes rasgadas lhes pendiam das cinturas . Nos ventres , entre as blusas e as gazes , havia um intervalo -- um cinto de carne nua onde se desenhavam flores simbólicas . As bailadeiras começaram as suas danças . Tinham as pernas nuas . Volteavam , saltavam , reuniam-se num grupo , embaralhavam os seus membros , mordiam-se nas bocas ... Os cabelos da primeira eram pretos , e a sua carne esplêndida de sol . As pernas , talhadas em aurora loura , esgueiravam-se-lhe em luz radiosa a nimbar se , junto do sexo , numa carne mordorada que apetecia trincar . Mas o que as fazia mais excitantes era a saudade límpida que lembravam de um grande lago azul de água cristalina onde , uma noite de luar , elas se mergulhassem descalças e amorosas . A segunda bailadeira tinha o tipo característico da adolescente pervertida . Magra -- porém de seios bem visíveis -- , cabelos de um louro sujo , cara provocante , nariz arrebitado . As suas pernas despertavam desejos brutais de as morder , escalavradas de músculos , de durezas -- masculinamente . Enfim , a terceira , a mais perturbadora , era uma rapariga frígida , muito branca e macerada , esguia , evocando misticismos , doença , nas suas pernas de morte -- devastadas . Entanto o baile prosseguia . Pouco a pouco os seus movimentos se tornavam mais rápidos até que por último , num espasmo , as suas bocas se uniram e , rasgados todos os véus -- seios , ventres e sexosdescobertos -- , os corpos se lhes emaranharam , agonizando num arqueamento de vício . E o pano cerrou-se na mesma placidez luminosa ... Houve depois outros quadros admiráveis : dançarinas nuas perseguindo-se na piscina , a mimarem a atração sexual da água , estranhas bailadeiras que esparziam aromas que mais entenebreciam , em quebranto , a atmosfera fantástica da sala , apoteoses de corpos nus , amontoados -- visões luxuriosas de cores intensas , rodopiantes de espasmos , sinfonias de sedas e veludos que sobre corpos nus volteavam ... Mas todas estas maravilhas -- incríveis de perversidade , era certo -- nos não excitavam fisicamente em desejos lúbricos e bestiais : antes numa ânsia de alma , esbraseada e , ao mesmo tempo , suave : extraordinária , deliciosa . Escoava-se por nós uma impressão de excesso . Entanto os delírios que as almas nos fremiam , não os provocavam unicamente as visões lascivas . De maneira alguma . O que oscilávamos , provinha-nos de uma sensação total idêntica à que experimentamos ouvindo uma partitura sublime executada por uma orquestra de mestres . E os quadros sensuais valiam apenas como um instrumento dessa orquestra . Os outros : as luzes , os perfumes , as cores ... Sim , todos esses elementos se fundiam num conjunto admirável que , ampliando-a , nos penetrava a alma , e que só nossaalma sentia em febre de longe , em vibração de abismos . Éramos todos alma . Desciam-nos só da alma os nossos desejos carnais . Porém nada valeu em face da última visão : Raiaram mais densas as luzes , mais agudas e penetrantes , caindo agora , em jorros , do alto da cúpula -- e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático ... Ao som de uma música pesada , rouca , longínqua -- ela surgiu , a mulher fulva ... E começou dançando ... Envolvia-a uma túnica branca , listada de amarelo . Cabelos soltos , loucamente . Joias fantásticas nas mãos ; e os pés descalços , constelados ... Ai , como exprimir os seus passos silenciosos , húmidos , frios de cristal ; o marulhar da sua carne ondeando ; o álcool dos seus lábios que , num requinte , ela dourara -- toda a harmonia esvaecida nos seus gestos ; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava , nevoadamente ... Entretanto , ao fundo , numa ara misteriosa , o fogo ateara-se ... Vício a vício a túnica lhe ia resvalando , até que , num êxtase abafado , soçobrou a seus pés ... Ah ! nesse momento , em face à maravilha que nos varou , ninguém pôde conter um grito de assombro ... Quimérico e nu , o seu corpo sutilizado , erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais . Como os lábios , os bicos dos seios e o sexo estavam dourados -- numouro pálido , doentio . E toda ela serpenteava em misticismo escarlate a querer-se dar ao fogo ... Mas o fogo repelia-a ... Então , numa última perversidade , de novo tomou os véus e se ocultou , deixando apenas nu o sexo áureo -- terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas ... Vencedora , tudo foi lume sobre ela ... E , outra vez desvendada -- esbraseada e feroz , saltava agora por entre labaredas , rasgando-as : emaranhando , possuindo , todo o fogo bêbado que a cingia . Mas finalmente , saciada após estranhas epilepsias , num salto prodigioso , como um meteoro -- ruivo meteoro -- ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul cendrado . Então foi apoteose : Toda a água azul , ao recebê-la , se volveu vermelha de brasas , encapelada , ardida pela sua carne que o fogo penetrara ... E numa ânsia de se extinguir , possessa , a fera nua mergulhou ... Mas quanto mais se abismava , mais era lume ao seu redor ... ... Até que por fim , num mistério , o fogo se apagou em ouro e , morto , o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas -- tranquilas , mortas também . A luz normal regressara . Era tempo . Mulheres debatiam-se em ataques de histerismo ; homens , de rostos congestionados , tinham gestos incoerentes ... As portas abriram-se e nós mesmos , perdidos , sem chapéus -- encontramo-nos na rua , afogueados , perplexos ... O ar fresco da noite , vergastando-nos , fez-nos** despertar , e como se chegássemos de um sonho que os três houvéssemos sonhado -- olhamo-nos** inquietos , num espanto mudo . Sim , a impressão fora tão forte , a maravilha tão alucinadora , que não tivemos ânimo para dizer uma palavra . Esmagados , aturdidos , cada um de nós voltou para sua casa ... Na tarde seguinte -- ao acordar de um sono de onze horas -- eu não acreditava já na estranha orgia : A Orgia do Fogo , como Ricardo lhe chamou depois . Saí . Jantei . Quando entrava no Café Riche , alguém me bateu no ombro : -- Então como passa o meu amigo ? Vamos , as suas impressões ? Era Ricardo de Loureiro . Falamos largamente acerca das extraordinárias coisas que presenciáramos . E o poeta concluiu que tudo aquilo mais lhe parecia hoje uma visão de onanista genial do que a simples realidade . Quanto à americana fulva , não a tornei a ver . O próprio Gervásio deixou de falar nela . E , como se se tratasse de um mistério de Além a que valesse melhor não aludir -- nunca mais nos referimos à noite admirável . Se a sua lembrança me ficou para sempre gravada , não foi por a ter vivido -- mas sim porque , dessa noite , se originava a minha amizade com Ricardo de Loureiro . Assim sucede com efeito . Referimos certos acontecimentos da nossa vida a outros mais fundamentais -- e muitas vezes , em torno de um beijo , circula todo um mundo , toda uma humanidade . De resto , no caso presente , que podia valer a noite fantástica em face do nosso encontro -- desse encontro que marcou o princípio da minha vida ? Ah ! sem dúvida amizade predestinada aquela que começava num cenário tão estranho , tão perturbador , tão dourado ... Decorrido um mês , eu e Ricardo éramos não só dois companheiros inseparáveis , como também dois amigos íntimos , sinceros , entre os quais não havia mal-entendidos , nem quase já segredos . O meu convívio com Gervásio Vila-Nova cessara por completo . Mesmo , passado pouco , ele regressou a Portugal . Ah ! como era bem diferente , bem mais espontânea , mais cariciosa , a intimidade com o meu novo amigo ! E como estávamos longe do Gervásio Vila-Nova que , a propósito de coisa alguma , fazia declarações como esta : -- Sabe você , Lúcio , não imagina a pena que eu tenho de que não gostem das minhas obras . ( As suas obras eram esculturas sem pés nem cabeça , pois ele só esculpia torsos contorcidos , enclavinhados , monstruosos , onde , porém , de quando em quando , por alguns detalhes , se adivinhava um cinzel admirável . ) Mas não pense que é por mim . Eu estou certo do que elas valem . É por eles , coitados , que não podem sentir a sua beleza . Ou então : -- Creia , meu querido amigo , você faz muito mal em colaborar nessas revistecas lá de baixo ... em se apressar tanto a imprimir os seus volumes . O verdadeiro artista deve guardar quanto mais possível o seu inédito . Veja se eujá expus alguma vez ... Só compreendo que se publique um livro numa tiragem reduzida ; e a 100 francos o exemplar , como fez o ... ( e citava o nome do russo chefe dos selvagens ) . Ah ! eu abomino a publicidade ! ... As minhas conversas com Ricardo -- pormenor interessante -- foram logo , desde o início , bem mais conversas de alma , do que simples conversas de intelectuais . Pela primeira vez eu encontrara efetivamente alguém que sabia descer um pouco aos recantos ignorados do meu espírito -- os mais sensíveis , os mais dolorosos para mim . E com ele o mesmo acontecera -- havia de mo contar mais tarde . Não éramos felizes -- oh ! não As nossas vidas passavam torturadas de ânsias , e incompreensões , de agonias de sombra ... Subíramos mais alto : delirávamos sobre a vida . Podíamo-nos embriagar de orgulho , se quiséssemos -- mas sofríamos tanto ... tanto ... O nosso único refúgio era nas nossas obras . Pintando-me a sua angústia , Ricardo de Loureiro fazia perturbadoras confidências , tinha imagens estranhas . -- Ah ! meu caro Lúcio , acredite me ! Nada me encanta já ; tudo me aborrece , me nauseia . Os meus próprios raros entusiasmos , se me lembro deles , logo se me esvaem -- pois , ao medi-los , encontro os tão mesquinhos , tão de pacotilha ... Quer saber ? Outrora , à noite , no meu leito , antes de dormir , eu punha-me a divagar . E era feliz por momentos , entressonhando a glória , o amor , os êxtases ... Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer . Acastelei os maiores ... eles próprios me fartaram : são sempre os mesmos -- e é impossível achar outros ... Depois , não me saciam apenas as coisas que possuo -- aborrecem-me também as que não tenho , porque , na vida como nos sonhos , são sempre as mesmas . De resto , se às vezes posso sofrer por não possuir certas coisas que ainda não conheço inteiramente , a verdade é que , descendo-me melhor , logo averiguo isto : Meu Deus , se as tivera , ainda maior seria a minha dor , o meu tédio . De forma que gastar tempo é hoje o único fim da minha existência deserta . Se viajo , se escrevo -- se vivo , numa palavra , creia-me : é só para consumir instantes . Mas dentro em pouco -- já o pressinto -- isto mesmo me saciará . E que fazer então ? Não sei ... não sei ... Ah ! que amargura infinita ... Eu punha-me a animá-lo ; a dizer-lhe inferiormente que urgia pôr de parte essas ideias abatidas . Um belo futuro se alastrava em sua face . Era preciso ter coragem ! -- Um belo futuro ? ... Olhe , meu amigo , até hoje ainda me não vi no meu futuro . E as coisas em que me não vejo , nunca me sucederam . Perante tal resposta , esbocei uma interrogação muda , a que o poeta volveu : -- Ah ! sim , talvez não compreendesse ... Ainda lhe não expliquei . Ouça : Desde criança que , pensando em certas situações possíveis numa existência , eu , antecipadamente , me vejo ou não vejo nelas . Por exemplo : uma coisa onde nunca me vi , foi na vida -- e diga-me se na realidade nos encontramos nela ? Mas descendo a pequenos detalhes : " A minha imaginação infantil sonhava , romanescamente construía mil aventuras amorosas , que aliás todos vivem . Pois bem : nunca me vi ao fantasiá- las , como existindo-as mais tarde . E até hoje eu sou aquele que em nenhum desses episódios gentis se encontrou . Não porque lhes fugisse ... Nunca fugi de coisa alguma . " Entretanto , na minha vida , houve certa situação esquisita , mesmo um pouco torpe . Ora eu lembrava-me muita vez de que essa triste aventura havia de ter um fim . E sabia de um muito natural . Nesse , contudo , nunca eu me figurava . Mas noutro qualquer . Outro qualquer , porém , só podia dar-se por meu intermédio . E por meu intermédio -- era bem claro -- não se podia , não se devia dar . Passou-se tempo ... Escuso de lhe dizer que foi justamente a " impossibilidade " que se realizou ... " Era um estudante distinto , e nunca me antevisionava com o meu curso concluído . Efetivamente um belo dia , de súbito , sem razão , deixei a universidade . Fugi para Paris ... " Dentro da vida prática também nunca me figurei . Até hoje , aos vinte e sete anos , não consegui ainda ganhar dinheiro pelo meu trabalho . Felizmente não preciso ... E nem mesmo cheguei a entrar nunca na vida , na simples Vida com V grande -- na vida social , se prefere . É curioso : sou um isolado que conhece meio mundo , um desclassificado que não tem uma dúvida , uma nódoa -- que todos consideram , e que entretanto em parte alguma é admitido ... Está certo . Com efeito , nunca me vi " admitido " em parte alguma . Nos próprios meios onde me tenho embrenhado , não sei por que senti me sempre um estranho ... " E é terrível : martiriza-me por vezes este meu condão . Assim , se eu não vejo erguida certa obra cujo plano me entusiasma , é seguro que a não consigo lançar , e que depressa me desencanto da sua ideia -- embora , no fundo . a considere admirável . " Enfim , para me entender melhor : esta sensação é semelhante , ainda que de sentido contrário , a uma outra em que provavelmente ouviu falar -- que talvez mesmo conheça -- , a do já visto . Nunca lhe sucedeu ter visitado pela primeira vez uma terra , um cenário , e -- numa reminiscência longínqua , vaga , perturbante -- chegar-lhe a lembrança de que , não sabe quando nem onde , já esteve naquela terra , já contemplou aquele cenário ? ... " É possível que o meu amigo não atinja o que há de comum entre estas duas ideias . Não lhe sei explicar -- contudo pressinto , tenho a certeza , que essa relação existe . Respondi divagando , e o poeta acrescentou : -- Mas ainda lhe não disse o mais estranho . Sabe ? É que de maneira alguma me concebo na minha velhice , bem como de nenhuma forma me vejo doente , agonizante . Nem sequer suicidado -- segundo às vezes me procuro iludir . E creia , é tão grande a minha confiança nesta superstição que -- juro-lhe -- se não fosse haver a certeza absoluta de que todos morremos , eu , não me " vendo " morto , não acreditaria na minha morte ... Sorri da vontade . Vagos conhecidos entravam no café onde tínhamos abancado . Sentaram-se junto de nós e , banal e fácil , a conversa deslizou noutro plano . Outras vezes também , Ricardo surgia-me com revelações estrambóticas que lembravam um pouco os esnobismos de Vila-Nova . Porém , nele , eu sabia que tudo isso era verdadeiro , sentido . Quando muito , sentido já como literatura . Efetivamente o poeta explicara-me , Uma noite : -- Garanto-lhe , meu amigo , todas as ideias que lhe surjam nas minhas obras , por mais bizarras , mais impossíveis -- são , pelo menos em parte , sinceras . Isto é : traduzem emoções que na realidade senti ; pensamentos quena realidade me ocorreram sobre quaisquer detalhes da minha psicologia . Apenas o que pode suceder é que , quando elas nascem , já venham literalizadas ... Mas voltando Ãs suas revelações estrambóticas : Como gostássemos , em muitas horas , de nos embrenhar pela vida normal e nos esquecer a nós próprios -- frequentávamos bastante os teatros e os music-halls , numa ânsia também de sermos agitados por esses meios intensamente contemporâneos , europeus e luxuosos . Assim uma vez , no Olímpia , assistíamos a umas danças de girls inglesas misturadas numa revista , quando Ricardo me perguntou : -- Diga-me , Lúcio , você não é sujeito a certos medos inexplicáveis , destrambelhados ? Que não , só se muito vagamente -- volvi . -- Pois comigo -- tornou o artista -- não acontece o mesmo . Enfim , quer saber ? Tenho medo destas dançarinas . Soltei uma gargalhada . Ricardo prosseguiu : -- É que , não sei se reparou , em todos os music-halls tornaram-se agora moda estes bailados por ranchos de raparigas inglesas . Ora essas criaturinhassão todas iguais , sempre -- vestidas dos mesmos fatos , com as mesmas pernas nuas , as mesmas feições ténues , o mesmo ar gentil . De maneira que eu em vão me esforço por considerar cada uma delas como uma individualidade . Não lhes sei atribuir uma vida -- um amante , um passado ; certos hábitos , certas maneiras de ser . Não as posso destrinçar do seu conjunto daí , o meu pavor . Não estou pousando , meu amigo , asseguro-lhe . " Mas não são estes só os meus medos Tenho muitos outros . Por exemplo o horror dos arcos -- de alguns arcos triunfais e , sobretudo , de alguns velhos arcos de ruas . Não propriamente dos arcos -- antes do espaço aéreo que eles enquadram . E lembro-me de haver experimentado uma sensação misteriosa de pavor , ao descobrir no fim de uma rua solitária de não sei que capital um pequeno arco ou , melhor , uma porta aberta sobre o infinito Digo bem -- sobre o infinito . Com efeito a rua subia e para lá do monumento começava , sem dúvida , a descer De modo que , de longe , só se via horizonte através desse arco . Confesso-lhe que me detive alguns minutos olhando o fascinado Assaltou me um forte desejo de subir a rua até ao fim e averiguar para onde ele deitava . Mas a coragem faltou-me . Fugi apavorado . E veja , a sensação foi tão violenta , que nem sei já em que triste cidade a oscilei ... " Quando era pequeno -- ora , ainda hoje ! -- apavoravam-me as ogivas das catedrais , as abóbadas , as sombras de altas colunas , os obeliscos . as grandes escadarias de mármore ... De resto , toda a minha vida psicológica tem sido atéagora a projeção dos meus pensamentos infantis -- ampliados , modificados ; mas sempre no mesmo sentido , na mesma ordem : apenas em outros planos . " E por último , ainda a respeito de medos : Assim como me assustam alguns espaços vazios emoldurados por arcos -- também me inquieta o céu das ruas , estreitas e de prédios altos , que de súbito se partem em curvas apertadas . O seu espírito estava seguramente predisposto para a bizarria , essa noite , pois ainda me fez estas esquisitas declarações à saída do teatro : -- Meu caro Lúcio , vai ficar muito admirado , mas garanto-lhe que não foi tempo perdido o que passei ouvindo essa revista chocha . Achei a razão fundamental do meu sofrimento . Você recorda-se de uma capoeira de galinhas que apareceu em cena ? As pobres aves queriam dormir . Metiam os bicos debaixo das asas , mas logo acordavam assustadas pelos jorros dos projetores que iluminavam as " estrelas " , pelos saltos do compadre ... Pois como esses pobres bichos , também a minha alma anda estremunhada -- descobri em frente deles . Sim , a minha alma quer dormir e , minuto a minuto , a vêm despertar jorros de luz , estrepitosas vozearias : grandes ânsias , ideias abrasadas , tumultos de aspirações -- áureos sonhos , cinzentas realidades ... Sofreria menos se ela nunca pudesse adormecer . Com efeito , o que mais me exacerba esta tortura infernal é que , em verdade , a minha alma chega muitas vezes a pegar no sono , a fechar os olhos -- perdoe a frase estrambótica . Mal os cerra , porém , logo a zurzem -- e de novo acorda perdida numa agoniaestonteada ... Mais tarde , relembrando-me esta constatação , ajuntara : -- O meu sofrimento mora , ainda que sem razões , tem aumentado tanto , tanto , estes últimos dias , que eu hoje sinto a minha alma fisicamente . Ah ! é horrível ! A minha alma não se angustia apenas , a minha alma sangra . As dores morais transformam-se-me em verdadeiras dores físicas , em dores horríveis , que eu sinto materialmente não no meu corpo , mas no meu espírito . É muito difícil , concordo , fazer compreender isto a alguém . Entretanto , acredite-me ; juro lhe que é assim . Eis pelo que eu lhe dizia a outra noite que tinha a minha alma estremunhada . Sim , a minha pobre alma anda morta de sono , e não a deixam dormir -- tem frio , e não sei aquecer ! Endureceu-me toda , toda ! secou , ancilosou-se-me ; de forma que movê-la -- isto é pensar -- me faz hoje sofrer terríveis dores . E quanto mais a alma me endurece , mais eu tenho ânsia de pensar ! Um turbilhão de ideias -- loucas ideias ! -- me silva a desconjuntá- la , a arrepanhá-la , a rasgá-la , num martírio alucinante ! Até que um dia -- oh ! é fatal -- ela se me partirá -- voará em estilhaços . A minha pobre alma ! a minha pobre alma ! ... Em tais ocasiões os olhos de Ricardo cobriam-se de um véu de luz . Não brilhavam : cobriam-se de um véu de luz . Era muito estranho , mas era assim . Divagando ainda sobre as dores físicas do seu espírito ; num tom de blague que raramente tomava , o poeta desfechou-me uma tarde , de súbito : -- Tenho às vezes tanta inveja das minhas pernas ... Porque uma perna não sofre . Não tem alma , meu amigo , não tem alma ! Largas horas , solitário , eu meditava nas singularidades do artista , a querer concluir alguma coisa . Mas o certo é que nunca soube descer uma psicologia , de maneira que chegava só a esta conclusão : ele era uma criatura superior -- genial , perturbante . Hoje mesmo , volvidos longos anos , é essa a minha única certeza , e eis pelo que eu me limito a contar , sem ordem -- à medida que me vão recordando -- os detalhes mais característicos da sua psicologia , como meros documentos na minha justificação . Factos , apenas factos -- avisei logo de princípio . * * Compreendiam-se perfeitamente as nossas almas -- tanto quanto duas almas se podem compreender . E , todavia , éramos duas criaturas muito diversas . Raros traços comuns entre os nossos caracteres . Mesmo , a bem dizer , só numa coisa iguais : no nosso amor por Paris . -- Paris ! Paris ! -- exclamava o poeta -- Por que o amo eu tanto ? Não sei ... Basta lembrar-me que existo na capital latina , para uma onda de orgulho , de júbilo e ascensão se encapelar dentro de mim . É o único ópio louro para a minha dor -- Paris ! " Como eu amo as suas ruas , as suas praças , as suas avenidas ! Ao recordá-las longe delas -- em miragem nimbada , todas me surgem num resvalamento arqueado que me traspassa em luz . E o meu próprio corpo , que elas vararam , as acompanha no seu rodopio . " De Paris , amo tudo com igual amor : os seus monumentos , os seus teatros , os seus bulevares , os seus jardins , as suas árvores ... Tudo nele me é heráldico , me é litúrgico . " Ah , o que eu sofri um ano que passei longe da minha Cidade , sem esperanças de me tornar a envolver nela tão cedo ... E a minha saudade foi então a mesma que se tem pelo corpo de uma amante perdida ... " As ruas tristonhas da Lisboa do sul , descia-as Ãs tardes magoadas rezando o seu nome : O meu Paris ... o meu Paris ... " E à noite , num grande leito deserto , antes de adormecer , eu recordava-o -- sim , recordava-o -- como se recorda a carne nua de uma amante dourada ! " Quando depois regressei à capital assombrosa , a minha ânsia foi logo de a percorrer em todas as avenidas , em todos os bairros , para melhor a entrelaçar comigo , para melhor a delirar ... O meu Paris ! o meu Paris ! ... " Entretanto , Lúcio , não creia que eu ame esta grande terra pelos seus bulevares , pelos seus cafés , pelas suas atrizes , pelos seus monumentos . Não ! Não ! Seria mesquinho . Amo-a por qualquer outra coisa : por uma auréola , talvez , que a envolve e a constitui em alma -- mas que eu não vejo ; que eu sinto , que eu realmente sinto , e lhe não sei explicar ! ... " Só posso viver nos grandes meios . Quero tanto ao progresso , à civilização , ao movimento citadino , à atividade febril contemporânea ! " , Porque , no fundo , eu amo muito a vida . Sou todo de incoerências . Vivo desolado , abatido , parado de energia , e admiro a vida , entanto como nunca ninguém a admirou ! " Europa ! Europa ! Encapela-te dentro de mim , alastra-me da tua vibração , unge-me da minha época ! ... " Lançar pontes ! lançar pontes ! silvar estradas férreas ! erguer torres de aço ! ... E o seu delírio prosseguia através de imagens bizarras , destrambelhadas ideias . -- Sim ! Sim ! Todo eu sou uma incoerência ! O meu próprio corpo é uma incoerência . Julga-me magro , corcovado ? Sou-o ; porém muito menos do que pareço . Admirar-se-ia-se me visse nu ... " Mas há mais . Toda a gente me crê um homem misterioso . Pois eu não vivo , não tenho amantes ... desapareço ... ninguém sabe de mim ... Engano ! Engano ! A minha vida é pelo contrário uma vida sem segredo . Ou melhor , o seu segredo consiste justamente em não o ter . " E a minha vida , livre de estranhezas , é no entanto uma vida bizarra -- mas de uma bizarria às avessas . Com efeito a sua singularidade encerra-se , não em conter elementos que se não encontram nas vidas normais -- mas sim em não conter nenhum dos elementos comuns a todas as vidas . Eis pelo que nunca me sucedeu coisa alguma . Nem mesmo o que sucede a toda a gente . Compreende-me ? Eu compreendia sempre . E ele fazia-me essa justiça . Por isso as nossas conversas de alma se prolongavam em geral até de manhã ; passeando nas ruas desertas , sem sentirmos frio nem cansaço , numa intoxicação mútua e arruivada . Em horas mais tranquilas , Ricardo punha-se-me a falar da suavidade da vida normal . E confessava-me : -- Ah , quantas vezes isolado em grupos de conhecidos banais , eu não invejei os meus camaradas ... Lembro-me tanto de certo jantar no Leão de Ouro ... numa noite chuvosa de Dezembro ... Acompanhavam-me dois atores e um dramaturgo . Sabe ? O Roberto Dávila , o Carlos Mota , o Álvares Sesimbra ... Eu diligenciara , num esforço , descer até eles . Por último , consegui iludir-me . Fui feliz , instantes , creia ... E o Carlos Mota pedia a minha colaboração para uma das suas operetas ... Carlos Mota , o autor da Videirinha , o grande sucesso da Trindade ... Bons rapazes ! bons rapazes ... Ai , não ser como eles ... " Porque afinal essa sua vida -- ` a vida de todos os dias ' -- é a única que eu amo . Simplesmente não a posso existir ... E orgulho-me tanto de não a poder viver . . orgulho-me tanto de não ser feliz ... Cá estamos : a maldita literatura ... E , depois de uma breve pausa : -- Noutros tempos , em Lisboa , um meu companheiro íntimo , hoje já morto , alma ampla e intensa de artista requintado -- admirava-se de me ver acamaradar com certas criaturas inferiores . É que essas andavam na vida , e eu aprazia-me com elas numa ilusão . As minhas eternas incoerências ! Vocês , os verdadeiros artistas , as verdadeiras grandes almas -- eu sei -- nunca saem , nem pretendem sair , do vosso círculo de ouro -- nunca lhes vêm desejos de baixar à vida . É essa a vossa dignidade . E fazem bem . São muito mais felizes ... Pois eu sofro duplamente , porque vivo no mesmo círculo dourado e , entretanto , sei-me agitar cá embaixo ... -- Ao contrário , eis pelo que você é maior -- comentava eu , -- Esses a quem se refere , se não ousam descer , é por adivinharem que , se se misturassem à existência quotidiana , ela os absorveria , soçobrando o seu géniode envolta com a banalidade . São fracos . E esse pressentimento instintivamente os salva . Enquanto que o meu amigo pode arriscar o seu génio por entre medíocres . É tão grande que nada o sujará . -- Quimera ! Quimera ! -- volvia o poeta . -- Sei lá o que sou ... Em todo o caso , olhe que é lamentável a banalidade dos outros ... Como a " maioria " se contenta com poucas ânsias , poucos desejos espirituais , pouca alma ... Oh ! é desolador ! ... Um drama de Jorge Ohnet , um romance de Bourget , uma ópera de Verdi , uns versos de João de Deus ou um poema de Tomás Ribeiro -- chegam bem para encher o seu ideal . Que digo ? Isto mesmo são já requintes de almas superiores . As outras -- as verdadeiramente normais -- ora ... ora . . deixemo-nos de devaneios , contentam-se com as obscenidades lantejouladas de qualquer baixo-revisteiro sem gramática ... " A maioria , meu caro , a maioria ... os felizes ... E daí , quem sabe se eles é que têm razão ... se tudo o mais será frioleira ... " Em suma ... em suma ... Correram meses , seguindo sempre entre nós o mesmo afeto , a mesma camaradagem . Uma tarde de domingo -- recordo-me tão bem -- íamos em banalidade Avenida dos Campos Elísios acima , misturados na multidão , quando a sua conversa resvalou para um campo , que até aí o poeta nunca atacara , positivamente : -- Ah ! como se respira vida , vida intensa e sadia , nestes domingos de Paris , nestes maravilhosos domingos ! ... É a vida simples , a vida útil , que se escoa em nossa face . Horas que nos não pertencem -- etéreos sonhadores de beleza , roçados de Além , ungidos de Vago ... Orgulho ! Orgulho ! E entanto como valera mais se fôssemos da gente média que nos rodeia . Teríamos , pelo menos de espírito , a suavidade e a paz . Assim temos só a luz . Mas a luz cega os olhos ... Somos todos álcool , todos álcool ! -- álcool que nos esvai em lume que nos arde ! " E é pela agitação desta cidade imensa , por esta vida atual , quotidiana , que eu amo o meu Paris numa ternura loura . Sim ! Sim ! Digo bem , numa ternura -- uma ternura ilimitada . Eu não sei ter afetos . Os meus amores foram sempre ternuras ... Nunca poderia amar uma mulher pela alma -- isto é : por ela própria . Só a adoraria pelos enternecimentos que a sua gentileza me despertasse : pelos seus dedos trigueiros a apertarem os meus numa tarde de sol , pelo timbre subtil da sua voz , pelos seus rubores -- e as suas gargalhadas ... as suas correrias ... " Para mim , o que pode haver de sensível no amor é uma saia branca a sacudir o ar , um laço de cetim que mãos esguias enastram , uma cintura que se verga , uma madeixa perdida que o vento desfez , uma canção ciciada em lábios de ouro e de vinte anos , a flor que a boca de uma mulher trincou ... " Não , nem é sequer a formosura que me impressiona . É outra coisa mais vaga -- imponderável , translúcida : a gentileza . Ai , e como eu a vou descobrir em tudo , em tudo -- a gentileza ... Daí , uma ânsia estonteada , uma ânsia sexual de possuir vozes , gestos , sorrisos , aromas e cores ! ... " ... Lume doido ! Lume doido ! ... Devastação ! Devastação ! ... Mas logo , serenando : -- A boa gente que aí vai , meu querido amigo , nunca teve destas complicações . Vive . Nem pensa ... Só eu não deixo de pensar ... O meu mundo interior ampliou-se -- volveu-se infinito , e hora a hora se excede ! É horrível . Ah ! Lúcio , Lúcio ! tenho medo -- medo de soçobrar , de me extinguir no meu mundo interior , de desaparecer da vida , perdido nele ... " ... E aí tem o assunto para uma das suas novelas : um homem que , à força de se concentrar , desaparecesse da vida -- imigrado no seu mundo interior ... " Não lhe digo eu ? A maldita literatura ... Sem motivos nenhuns , livre de todas as preocupações , sentia-me entanto esquisitamente disposto , essa tarde . Um calafrio me arrepiava toda a carne -- o calafrio que sempre me varara nas horas culminantes da minha vida . E Ricardo , de novo , apontando-me uma soberba vitória que dois esplêndidos cavalos negros tiravam : -- Ah ! como eu me trocaria pela mulher linda que ali vai ... Ser belo ! ser belo ! ... ir na vida fulvamente ... ser pajem na vida ... Haverá triunfo mais alto ? ... " A maior glória da minha existência não foi -- ah ! Não julgue que foi -- qualquer elogio sobre os meus poemas , sobre o meu génio . Não . Foi isto só : eu lhe conto : " Uma tarde de Abril , há três anos , caminhava nos grandes bulevares , solitário como sempre . De súbito , uma gargalhada soou perto de mim ... Tocaram-me no ombro ... Não dei atenção ... Mas logo a seguir me puxaram por um braço , garotamente , com o cabo de uma sombrinha ... Voltei-me ... Eram duas raparigas ... duas raparigas gentis , risonhas ... Àquela hora , duas costureiras -- decerto -- saídas dos ateliers da Rua da Paz . Tinham embrulhos nas mãos ... " E uma delas , a mais audaciosa : " -- Sabe que é um lindo rapaz ? " Protestei ... E fomos andando juntos , trocando palavras banais ... ( Acredite que meço muito bem todo o ridículo desta confidência . ) " À esquina do Faubourg Poissonnière , despedi-me : devia-me encontrar com um amigo -- garanti . Efetivamente . Num desejo de perversidade , eu resolvera pôr termo à aventura . Talvez receoso de que , se ela se prolongasse , me desiludisse . Não sei ... " Separamo-nos ... " Essa tarde foi a mais bela recordação da minha vida ! ... " Meu Deus ! Meu Deus ! Como em vez deste corpo dobrado , este rosto contorcido -- eu quisera ser belo , esplendidamente belo ! E , nessa tarde , fui-o por instantes , acredito ... É que vinha de escrever alguns dos meus melhores versos . " Sentia-me orgulhoso , admirável ... E a tarde era azul , o bulevar ia lindíssimo ... Depois , tinha um chapéu petulante ... ondeava-se-me na testa uma madeixa juvenil ... " Ah ! como vivi semanas , semanas , da pobre saudade ... que ternura infinita me desceu para essa rapariguinha que nunca mais encontrei -- que nunca mais poderia encontrar porque , na minha alegria envaidecida , nem sequer me lembrara de ver o seu rosto ... Como lhe quero ... Como lhe quero ... Como a abençoo ... Meu amor ! meu amor ! ... E , numa transfiguração -- todo aureolado pelo brilho intenso , melodioso , dos seus olhos portugueses -- , Ricardo de Loureiro erguia-se realmente belo , esse instante ... Aliás , ainda hoje ignoro se o meu amigo era ou não era formoso . Todo de incoerências , também a sua fisionomia era uma incoerência : Por vezes o seu rosto esguio , macerado -- se o víamos de frente , parecia-nos radioso . Mas de perfil já não sucedia o mesmo ... Contudo , nem sempre : o seu perfil , por vezes , também era agradável ... sob certas luzes ... em certos espelhos ... Entretanto , o que mais o prejudicava era sem dúvida o seu corpo que ele desprezava , deixando-o " cair de si " , segundo a frase extravagante , mas muito própria , de Gervásio Vila-Nova . Os retratos que existem hoje do poeta , mostram-no belíssimo , numa auréola de génio . Simplesmente , não era essa a expressão do seu rosto . Sabendo tratar-se de um grande artista , os fotógrafos e os pintores ungiram-lhe a fronte de uma expressão nimbada que lhe não pertencia . Convém desconfiar sempre dos retratos dos grandes homens ... -- Ah ! meu querido Lúcio -- tornou ainda o poeta -- , como eu sinto a vitória de uma mulher admirável , estiraçada sobre um leito de rendas , olhando a sua carne toda nua ... esplêndida ... loura de álcool ! A carne feminina -- que apoteose ! Se eu fosse mulher , nunca me deixaria possuir pela carne dos homens -- tristonha , seca , amarela : sem brilho e sem luz ... Sim ! numentusiasmo espasmódico , sou todo admiração , todo ternura , pelas grandes debochadas que só emaranham os corpos de mármore com outros iguais aos seus -- femininos também ; arruivados , sumptuosos ... E lembra-me então um desejo perdido de ser mulher -- ao menos , para isto : para que , num encantamento , pudesse olhar as minhas pernas nuas , muito brancas , a escoarem-se , frias , sob um lençol de linho ... Entanto , eu admirava-me do rumo que a conversa tomara . Com efeito , se a obra de Ricardo de Loureiro era cheia de sensualismo , de loucas perversidades -- nas suas conversas nada disso surgia . Pelo contrário . Às suas palavras nunca se misturava uma nota sensual -- ou simplesmente amorosa -- e detinham-no logo súbitos pudores se , por acaso , de longe se referia a qualquer detalhe dessa natureza . Quanto à vida sexual do meu amigo , ignorava-a por completo . Sob esse ponto de vista , Ricardo afigurava-se-me , porém , uma criatura tranquila . Talvez me enganasse ... Enganava-me com certeza . E a prova -- ai , a prova ! -- tive-a essa noite pela mais estranha confissão -- a mais perturbadora , a mais densa ... Eram sete e meia . Havíamos subido todos os Campos Elísios e a Avenida do Bosque até à Porta Maillot . O artista decidiu que jantássemos no Pavilhão de Armenonville -- ideia que eu aplaudi do melhor grado . Tive sempre muito afeto ao célebre restaurante . Não sei ... O seu cenário literário ( porque o lemos em novelas ) , a grande sala de tapete vermelho e , ao fundo , a escadaria ; as árvores românticas que exteriormente o ensombram , o pequeno lago -- tudo isso , naquela atmosfera de grande vida , me evocava por uma saudade longínqua , subtil , bruxuleante , a recordação astral de certa aventura amorosa que eu nunca vivera . Luar de outono , folhas secas , beijos e champanhe ... Correu simples a nossa conversa durante a refeição . Foi só ao café que Ricardo principiou : -- Não pode imaginar , Lúcio , como a sua intimidade me encanta , como eu bendigo a hora em que nos encontramos . Antes de o conhecer , não lidara senão com indiferentes -- criaturas vulgares que nunca me compreenderam , muito pouco que fosse . Meus pais adoravam-me . Mas , por isso exatamente , ainda menos me compreendiam , Enquanto que o meu amigo é uma alma rasgada , ampla , que tem a lucidez necessária para entrever a minha . É já muito . Desejaria que fosse mais ; mas é já muito . Por isso hoje eu vou ter a coragem de confessar , pela primeira vez a alguém , a maior estranheza do meu espírito , a maior dor da minha vida ... Deteve-se um instante e , de súbito , em outro tom : -- É isto só : -- disse -- não posso ser amigo de ninguém ... Não proteste ... Eu não sou seu amigo . Nunca soube ter afetos -- já lhe contei -- , apenas ternuras . A amizade máxima , para mim , traduzir-se-ia-unicamente pela maior ternura . E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso : um desejo de beijar ... de estreitar ... Enfim : de possuir ! Ora eu , só depois de satisfazer os meus desejos , posso realmente sentir aquilo que os provocou . A verdade , por consequência , é que as minhas próprias ternuras , nunca as senti , apenas as adivinhei . Para as sentir , isto é , para ser amigo de alguém ( visto que em mim a ternura equivale à amizade ) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse , ou mulher ou homem . Mas uma criatura do nosso sexo , não a podemos possuir . Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo , se essa criatura ou eu mudássemos de sexo . " Ah ! a minha dor é enorme : Todos podem ter amizades , que são o amparo de uma vida , a " razão " de uma existência inteira -- amizades que nos dedicam ; amizades que , sinceramente , nós retribuímos . Enquanto que eu , por mais que me esforce , nunca poderei retribuir nenhum afeto : os afetos não se materializam dentro de mim ! É como se me faltasse um sentido -- se fosse cego , se fosse surdo . Para mim , cerrou-se um mundo de alma . Há qualquer coisa que eu vejo , e não posso abranger ; qualquer coisa que eu palpo , e não posso sentir ... Sou um desgraçado ... um grande desgraçado , acredite ! " Em certos momentos chego a ter nojo de mim . Escute . Isto é horrível ! Em face de todas as pessoas que eu sei que deveria estimar -- em face de todas aspessoas por quem adivinho ternuras -- assalta-me sempre um desejo violento de as morder na boca ! Quantas vezes não retraí uma ânsia de beijar os lábios de minha mãe ... " Entretanto estes desejos materiais -- ainda lhe não disse tudo -- não julgue que os sinto na minha carne ; sinto-os na minha alma . Só com a minha alma poderia matar as minhas ânsias enternecidas . Só com a minha alma eu lograria possuir as criaturas que adivinho estimar -- e assim satisfazer , isto é , retribuir sentindo as minhas amizades . " Eis tudo ... " Não me diga nada ... não me diga nada ! ... Tenha dó de mim ... muito dó ... Calei-me . Pelo meu cérebro ia um vendaval desfeito . Eu era alguém a cujos pés , sobre uma estrada lisa , cheia de sol e árvores , se cavasse de súbito um abismo de fogo . Mas , após instantes , muito naturalmente , o poeta exclamou : -- Bem ... Já vai sendo tempo de nos irmos embora . E pediu a conta . Tomamos um fiacre . Pelo caminho , ao atravessarmos não sei que praça , chegaram-nos ao ouvido os sons de um violino de cego , estropiando uma linda ária . E Ricardo comentou : -- Ouve esta música ? É a expressão da minha vida : uma partitura admirável , estragada por um horrível , por um infame executante ... No dia seguinte , de novo nos encontramos , como sempre , mas não aludimos à estranha conversa da véspera . Nem no dia seguinte , nem nunca mais ... até ao desenlace da minha vida ... Entretanto , a perturbadora confidência do artista não se me varrera da memória . Pelo contrário -- dia algum eu deixava de a relembrar , inquieto , quase numa obsessão . Sem incidentes notáveis -- na mesma harmonia , no mesmo convívio de alma -- a nossa amizade foi prosseguindo , foi-se estreitando . Após dez meses , nos fins de 1896 , embora o seu grande amor por Paris , Ricardo resolveu regressar a Portugal -- a Lisboa , onde em realidade coisa alguma o devia chamar . Estivemos um ano separados . Durante ele , a nossa correspondência foi nula : três cartas minhas ; duas do poeta -- quando muito . Circunstâncias materiais e as saudades do meu amigo levaram-me a sair de Paris , definitivamente , por meu turno . E em Dezembro de noventa e sete chegava a Lisboa . Ricardo esperava-me na estação . Mas como o seu aspeto físico mudara nesse ano que estivéramos sem nos ver ! As suas feições bruscas haviam-se amenizado , acetinado -- feminilizado , eis a verdade -- e , detalhe que mais me impressionou , a cor dos seus cabelos esbatera-se também . Era mesmo talvez desta última alteração que provinha , fundamentalmente , a diferença que eu notava na fisionomia do meu amigo -- fisionomia que se tinha difundido , Sim , porque fora esta a minha impressão total : os seus traços fisionómicos haviam-se dispersado -- eram hoje menores . E o tom da sua voz alterara-se identicamente , e os seus gestos : todo ele , enfim , se esbatera . Eu sabia já , é claro , que o poeta se casara há pouco , durante a minha ausência . Ele escrevera-mo na sua primeira carta ; mas sem juntar pormenores , muito brumosamente -- como se se tratasse de uma irrealidade . Pelo meu lado , respondera com vagos cumprimentos , sem pedir detalhes , sem estranhar muito o facto -- também como se se tratasse de uma irrealidade ; de qualquer coisa que eu já soubesse , que fosse um desenlace . Abraçamo-nos com efusão . O artista acompanhou-me ao hotel , ficando assente que nessa mesma tarde eu jantaria em sua casa . De sua mulher , nem uma palavra ... Lembro-me bem da minha perturbação quando , ao chegarmos ao meu hotel , reparei que ainda lhe não perguntara porela . E essa perturbação foi tão forte , que ainda menos ousei balbuciar uma palavra a seu respeito , num enleio em verdade inexplicável ... Cheguei . Um criado estilizado conduziu-me a uma grande sala escura , pesada , ainda que jorros de luz a iluminassem , Ao entrar , com efeito , nessa sala resplandecente , eu tive a mesma sensação que sofremos se , vindos do sol , penetramos numa casa imersa em penumbra . Fui pouco a pouco distinguindo os objetos ... E , de súbito , sem saber como , num rodopio nevoento , encontrei-me sentado num sofá , conversando com o poeta e a sua companheira ... Sim . Ainda hoje me é impossível dizer se , quando entrei no salão , já lá estava alguém , ou se foi só após instantes que os dois apareceram . Da mesma forma , nunca pude lembrar-me das primeiras palavras que troquei com Marta -- era este o nome da esposa de Ricardo . Enfim , eu entrara naquela sala tal como se , ao transpor o seu limiar , tivesse regressado a um mundo de sonhos . Eis pelo que as minhas reminiscências de toda essa noite são as mais ténues . Entretanto , durante ela , creio que nada de singular aconteceu . Jantou-se ; conversou-se largamente , por certo ... À meia-noite despedi-me . Mal cheguei ao meu quarto , deitei-me , adormeci ... E foi só então que me tornaram os sentidos . Efetivamente , ao adormecer , tive a sensação estonteante de acordar de um longo desmaio , regressando agora à vida ... Não posso descrever melhor esta incoerência , mas foi assim . ( E , entre parênteses , convém-me acentuar que meço muito bem a estranheza de quanto deixo escrito . Logo no princípio referi que a minha coragem seria a de dizer toda a verdade , ainda quando ela não fosse verossímil . ) * * A partir daí , comecei frequentando amiudadas noites a casa de Ricardo . As sensações bizarras tinham-me desaparecido por completo , e eu via agora nitidamente a sua esposa . Era uma linda mulher loira , muito loira , alta , escultural -- e a carne mordorada , dura , fugitiva . O seu olhar azul perdia-se de infinito , nostalgicamente . Tinha gestos nimbados e caminhava nuns passos leves , silenciosos -- indecisos , mas rápidos . Um rosto formosíssimo , de uma beleza vigorosa , talhado em ouro . Mãos inquietantes de esguias e pálidas . Sempre triste -- numa tristeza maceradamente vaga -- mas tão gentil , tão suave e amorável , que era sem dúvida a companheira propícia , ideal , de um poeta . Cheguei a invejar o meu amigo ... Durante seis meses a nossa existência foi a mais simples , a mais serena . Ah ! esses seis meses constituíram em verdade a única época feliz , em névoas , da minha vida ... Raros dias se passavam em que não estivesse com Ricardo e Marta . Quase todas as noites nos reuníamos em sua casa , um pequeno grupo de artistas : eu , Luís de Monforte , o dramaturgo da Glória ; Aniceto Sarzedas , o verrinoso crítico ; dois poetas de vinte anos cujos nomes olvidei e -- sobretudo -- o conde||_Sérgio_Warginsky Sérgio|_Sérgio_Warginsky Warginsky|_Sérgio_Warginsky , adido da legação da Rússia , que nós conhecêramos vagamente em Paris e que eu me admirava de encontrar agora assíduo frequentador da casa do poeta . Às vezes , com menor frequência , apareciam também Raul Vilar e um seu amigo -- triste personagem tarado que hoje escreve novelas torpes desvendando as vidas íntimas dos seus companheiros , no intuito ( justifica-se ) de apresentar casos de psicologias estranhas e assim fazer uma arte perturbadora , intensa e original : no fundo apenas falsa e obscena . Os serões corriam lisonjeiros entre conversas intelectuais -- vincadamente literárias -- onde a nota humorística era dada em abundância por Aniceto Sarzedas , nos seus terríveis ereintements contra todos os contemporâneos . Marta misturava-se por vezes nas nossas discussões , e evidenciava-se de uma larga cultura , de uma finíssima inteligência . Curioso que a sua maneira de pensar nunca divergia da do poeta . Ao contrário : integrava-se sempre com a dele reforçando , aumentando em pequenos detalhes as suas teorias , as suas opiniões . O russo , esse exprimia a sensualidade naquele grupo de artistas -- não sei por que , eu tinha esta impressão . Era um belo rapaz de vinte e cinco anos , Sérgio Warginsky . Alto e elançado , o seu corpo evocava o de Gervásio Vila-Nova , que , há pouco , brutalmente se suicidara , arremessando-se para debaixo de um comboio . Os seus lábios vermelhos , petulantes , amorosos , guardavam uns dentes que as mulheres deveriam querer beijar -- os cabelos de um loiro arruivado caíam-lhe sobre a testa em duas madeixas longas , arqueadas . Os seus olhos de penumbra áurea , nunca os despregava de Marta -- devia-me lembrar mais tarde . Enfim , se alguma mulher havia entre nós , parecia-me mais ser ele do que Marta . ( Esta sensação bizarra , aliás , só depois é que eu reconheci que a tivera . Durante este período , pensamentos alguns destrambelhados me vararam o espírito . ) Sérgio tinha uma voz formosíssima -- sonora , vibrante , esbraseada . Com a predisposição dos russos para as línguas estrangeiras , fazendo um pequeno esforço , pronunciava o português sem o mais ligeiro acento . Por isso Ricardo se aprazia muito em lhe mandar ler os seus poemas que , vibrados por aquela garganta adamantina , se sonorizavam em auréola . De resto era evidente que o poeta dedicava uma grande simpatia ao russo . A mim , pelo contrário , Warginsky só me irritava -- sobretudo talvez pela sua beleza excessiva -- , chegando eu a não poder retrair certas impaciências quando ele se me dirigia . Entretanto bem mais agradáveis me eram ainda as noites que passava apenas na companhia de Ricardo e de Marta -- mesmo quase só na companhia de Marta pois , nessas noites , muitas vezes o poeta se ausentava para o seu gabinete de trabalho . Longas horas me esquecia então conversando com a esposa do meu amigo . Experimentávamos um pelo outro uma viva simpatia -- era indubitável . E nessas ocasiões é que eu melhor podia avaliar toda a intensidade do seu espírito . Enfim , a minha vida desensombrara-se . Certas circunstâncias materiais muito enervantes tinham-se-me modificado lisonjeiramente . Ao meu último volume , recém-saído do prelo , estava-o acolhendo um magnífico sucesso . O próprio Sarzedas lhe dedicara um grande artigo elogioso e lúcido ! ... Por sua parte , Ricardo só me parecia feliz no seu lar . Em suma , tínhamos aportado . Agora sim : vivíamos . Decorreram meses . Chegara o verão . Haviam cessado as reuniões noturnas em casa do artista . Luís de Monforte retirara-se para a sua quinta ; Warginsky partira com três meses de licença para S.||_Petersburgo Petersburgo|_Petersburgo . Os dois poetazinhos tinham-se perdido em Trás-os-Montes . Só , de vez em quando -- com o seu monóculo e o seu eterno sobretudo -- , surgia Aniceto Sarzedas , queixando-se do reumático e do último volume que aparecera . Depois de projetar uma viagem à Noruega , Ricardo decidiu ficar por Lisboa . Queria trabalhar muito esse verão , concluir o seu volume Diadema , que devia ser a sua obra-prima . E , francamente , o melhor para isso era permanecer na capital . Marta estando de acordo , assim sucedeu . Foi neste tempo que a intimidade com a mulher do meu amigo mais se estreitou -- intimidade onde nunca a sombra de um desejo se viera misturar , embora passássemos largo tempo juntos . Com efeito , numa ânsia de trabalho , Ricardo , após o jantar , logo nos deixava , encerrando-se no seu gabinete até Ãs onze horas , meia-noite ... As nossas palavras , de resto , apesar da nossa intimidade , somavam-se apenas numa conversa longínqua em que não apareciam as nossas almas .