Conde DE FICALHO UMA ELEIÇÃO PERDIDA LISBOA Livraria Ferin 70 -- Rua Nova do Almada-71 1888 -- José Duarte -- leu alto o Castro , que tinha a cópia do caderno de recenseamento aberta diante de si . A luz do candeeiro de petróleo , concentrada num círculo nítido pelo abat-jour de papel verde , iluminava fortemente a mesa , recortava sobre o pano escuro o quadrado branco do caderno , ensebado nos ângulos pelos dedos , e punha toques vivos no tinteiro de latão bem areado , e na calva brilhante do Castro , inclinado sobre as colunas de letrinha miúda . O resto da sala , e as doze ou quinze pessoas , sentadas ao longo das paredes , ficavam numa penumbra vaga , onde de tempo a tempo luziam os pontos rubros dos cigarros , puxados em fumaças longas . -- Quem é esse José Duarte ? -- perguntou uma voz . -- É o sapateiro da Rua da Fonte . -- Ah ! esse falo-lhe eu ! é certo , marque-o lá ... -- disse um velho magro . -- Pudera ... se o tem entalado por oito libras que lhe emprestou pelo Natal -- observou em voz baixa um rapaz muito pálido de bigode preto , que escrevia na secretária da câmara . -- José Francisco Salgueiro -- continuou o Castro . -- Falo-lhe eu -- disse um grosso de suíças grisalhas . -- Esse também é certo ; lavra uma sorte na herdade de meu irmão António , e não há-de querer que lhe tirem a terra . -- Arrocho ! ! ... -- murmurou o amanuense da câmara , que decididamente tinha ideias subversivas . -- José Francisco Simões -- ia continuando o Castro . -- Morreu há mais de dois anos -- observou alguém . -- Então está seguro -- disse uma voz no fundo da sala . Duas ou três risadas altas acolheram esta graça um tanto fúnebre ; mas o Castro , imperturbável , continuou a ler : -- José Francisco Tavares . -- Esse é todo deles ! ... é escusado falar-lhe . -- Quem é ? -- É o feitor dos Carvalhos do Lendroal . -- Ah ! sim , com esse não se faz nada ! -- Já cá está uma cruz -- disse o Castro ; e leu : -- José Francisco Trigueiro . -- O sacristão , fala-lhe ali o nosso prior . -- Por eu lhe falar não seja a dúvida ; mas olhem que ele já ma pregou mesmo à última hora na eleição da câmara -- respondeu o prior , que se tinha levantado para acender o cigarro sobre o vidro do candeeiro . O Castro interrompeu-se , enrolando também um cigarro ; e um velhinho , já muito quebrado , aproveitou a ocasião para se despedir . Como o dono da casa o acompanhasse , ficaram um instante cá fora , no patamar da escada , enquanto o velho levantava a gola do capote , e puxava sobre as orelhas de pergaminho o barrete de seda preta . -- Vai-se hoje muito cedo , Sr.||_Galrão Galrão|_Galrão -- disse o dono da casa amavelmente . -- Nada , não senhor , Sr.||_João_Lopes João|_João_Lopes Lopes|_João_Lopes , são as minhas horas ... são as minhas horas -- respondeu o Galrão . Prontos já a sair , com o capotinho azul abotoado em cima , e a bengala de castão de prata na mão , o Galrão acrescentou : -- Depois manda-me lá a lista dos eleitores que são meus criados ou meus seareiros . -- Esteja descansado , lá vai tudo em ordem ; já disse ao Castro que tirasse a nota . E amanhã vem à estação ? -- Vou , vou com toda a certeza . Sempre chega amanhã o nosso candidato ? -- Chega amanhã sim senhor ! Ainda hoje recebi uma parte confirmando-me a sua chegada . Vem aqui passar estes dois meses por conselho meu . Nós temos elementos poderosos , mas necessitamos congregá-los sem perda de tempo . Eles têm por si a autoridade , não recuam diante de meio algum ; e nós devemos dar-lhes uma boa lição . -- Decerto ... decerto . O Azevedo vai para a sua casa da Rua do Álamo , segundo ouvi ? -- Vai ! também por lembrança minha . É a antiga casa da sua família , e faz bom efeito na opinião vê-lo ali estabelecido . A casa está muito mal preparada , como não pode deixar de estar uma casa desabitada há catorze anos ... -- Já há catorze anos , como o tempo passa ! -- interrompeu o Galrão . -- Catorze anos seguros . Foi logo depois da morte da avó , a D. Margarida , que o rapaz partiu para Lisboa na companhia do tio , e que fecharam a casa ... assim está ela ! Mas enfim eu mandei-lhe fazer uns arranjos , tomei-lhe os criados , e o Dr. Azevedo não fica mal . Tinha-o hospedado aqui em minha casa com muitíssimo prazer ; mas faz melhor efeito que vá para a sua própria casa , sendo , como é , um dos principais proprietários da localidade . Nestas coisas é necessário atender muito ao efeito . -- Decerto ... decerto -- disse o Galrão despedindo-se . E desceu a escada , encostado ao corrimão , chamando o moço , que o esperava em baixo com a lanterna . -- Cuidado com os dois degraus de pedra da loja -- gritou-lhe de cima o João Lopes . Dentro , o Castro continuava a leitura ; ia nos Manuéis . Na tarde seguinte , o aspecto da estação era brilhante . Em dias ordinários , a pequena casa caiada e o barracão das mercadorias , perdidos num país chato e feio , onde raras culturas zebravam de amarelo o verde-negro da charneca , tinham um ar muito abandonado , como se os pardais atrevidos , que piavam nuns eucaliptos magros e despenteados , fossem os seus únicos habitantes . E , defronte , na erva alta de uma terra inculta , alguns fardos de cortiça , denegridos pela chuva , melancolicamente alinhados , pareciam irremediavelmente esquecidos , esperando o comboio de mercadorias do dia de juízo . À passagem dos trens , a estação mal acordava daquele sono ; às vezes não desciam passageiros . O carregador , aborrecido e vagaroso , tirava do break volumes de encomendas , enquanto o chefe , um gordo de barba por fazer , conferia papelinhos amarelos com o condutor ; e , lá fora , atada àcancela de ferro da passagem de nível , a mula velha do correio abanava as orelhas , sacudindo as moscas . Mas , naquela tarde , a estação mudara completamente de aparencia . O comendador João Lopes , o chefe do partido , veio na sua carruagem grande dos machos castanhos ; o Galrão e o sobrinho na traquitana de cortinas ; o Castro no carrinho , com o Loureiro da loja ; e o João Gualberto , presidente da câmara transacta , a cavalo com todos os rapazes -- o Moniz da botica , o amanuense da câmara e os outros . Um carro toldado transportou a Civilização e Harmonia , a filarmónica de feição oposicionista . E o Castro havia recrutado na vila uma ou duas dúzias de rapazitos , que , juntos aos criados de lavoura do Galrão e do Lopes , deviam representar as massas populares . O Lopes tinha mesmo -- com uma louvável preocupação da cor local -- mandado vir o seu rancho da monda , que andava ali perto nos tremeses da sua herdade do Freixo . Esta parte mais popular da recepção estava pouco animada . As mondadeiras , não percebendo bem a que vinham , apertavam-se a um canto , como um rebanho de ovelhas assustadas ; e ao pé das raparigas , os ganhões , com as grandes mantas riscadas a rastos , esperavam tranquilos , um tanto cépticos , numa indiferença fatalista de semitas . Mas enfim , o efeito geral era bom . O Castro multiplicava-se , alinhando a filarmónica , dispondo os grupos de ganhões , falando Ãs moças pelos seus nomes . Quando , à chegada do comboio , o Júlio de Azevedo , no seu fato de viagem verde-escuro , com o coco cinzento à banda , a luneta de um vidro só encaixada na órbita , e o bigodito atrevidamente retorcido , saltou sobre o asfalto , foi recebido ao som do hino da Carta , e dos vivas , levantados pelo Castro , e frouxamente correspondidos pelos ganhões . O comendador adiantando-se para ele , assegurou-o : ... " da satisfação e justo orgulho com que os seus patrícios acolhiam um moço , que no alvorecer da vida era já a glória da terra , que lhe fora berço " . Houve depois um momento de confusão , em que todos procuraram as carruagens e os cavalos , enquanto as mondadeiras e os ganhões dispersavam a pé , e os músicos trepavam para o carro , com os trombones mal limpos debaixo do braço . Afinal toda a linha de veículos e cavaleiros se pôs em movimento , levando na frente a carruagem dos machos castanhos , com o João Lopes e o candidato . -- Temos perto de oito quilómetros a andar , Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo -- dizia o comendador . -- E por culpa dos engenheiros , que o caminho-de-ferro podia ter chegado mesmo aos farrejais da vila ... coisas da nossa terra ! O trote dos machos deixava já atrás a charneca ; e a estrada seguia por uns chaparrais arroteados de novo , onde o sol oblíquo da tarde doirava a baganha das aveias maduras . Na carruagem o comendador ia nomeando e explicando os sítios ; e , numa volta , apontando para a direita , disse ao seu companheiro : -- A sua herdade da Gafeira , Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo . Então , o rapaz debruçou-se , subitamente interessado . Em Lisboa , quando recebia as rendas em letras sobre Anjos & Cª , ou sobre Mayer & Filhos , tinha apenas a impressão vaga de ser rico ; mas agora , aquela encosta de montado , onde as sombras das azinheiras desciam muito longas , e os últimos raios de sol punham uma gaze alaranjada sobre a erva viçosa , deu-lhe a sensação forte e nova da propriedade , de uma coisa que era sua , de árvores e de terra que lhe pertenciam . Ao lado , o comendador continuava as suas explicações : -- Uma boa herdade , muito boa de pastagem no cedo ; é talvez o melhor invernadouro do concelho . Mas boa , o que se pode chamar boa de lei , é a sua Pedra Negra ... E abrangendo num gesto vago todo o lado do nascente , como se lhe quisesse marcar onde ficavam , ele ia dando ao Azevedo uma miúda descrição das suas terras . Os machos subiram a longa encosta a passo . Agora a carruagem chegava ao alto , donde se dominava o largo vale , com as manchas escuras dos olivais , apagados na luz morta do crepúsculo ; e , em frente , o perfil da vila e as torres quadradas da matriz , negras no violeta do céu . O Júlio começava a reconhecer os sítios . A linha familiar da vila , uma ponte à esquerda sobre o ribeiro , o portão velho de uma horta , acordavam pouco a pouco no seu espírito as impressões de infância , que ali dormiam esquecidas havia tantos anos . Afinal , a carruagem rodou sobre a calçada , atravessou a praça por entre os grupos de curiosos , e toda a comitiva , num grande ruído de escorregões de mulas e de guizeiras , parou à porta do comendador . -- Por aqui , Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo , por aqui se me faz favor -- dizia o João Lopes entrando na loja , e virando à esquerda para uma casa grande ao rés-do-chão , onde estava armada uma mesa de vinte talheres . -- A primeira coisa necessária depois de uma jornada destas é uma sopa quente , por isso eu tomei a liberdade de o trazer directamente a esta nossa casa . Confidencialmente acrescentou : -- Peço-lhe desculpa de lhe não apresentar hoje minha esposa e minhas irmãs , mas estamos mais à vontade só com os amigos ... e estas coisas da política não interessam Ãs senhoras . E como todos entrassem , parando à porta da sala , o comendador distribuiu os lugares : -- Galrão faz-me favor senta-se aí defronte ; Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo à minha direita ; João Gualberto aqui à esquerda ; meus senhores , fazem obséquio , sem cerimonia . As moças , muito limpas , com os lenços de chita cruzados sobre os peitos duros , começaram a servir a sopa , e estabeleceu-se um silêncio profundo ; mas pouco a pouco a conversa animou-se . O comendador completava as apresentações , rapidamente feitas no barulho da estação : -- Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo , o Sr.||_Galrão Galrão|_Galrão , um antigo amigo de sua avó , e de todos da sua família . -- Decerto ... decerto , um grande respeitador da Srª D. Margarida , que sempre me honrou com a sua amizade . -- Talvez se lembre ainda do nosso Moniz ? -- disse o comendador , indicando um rapaz gordo na extremidade da mesa . Como o Júlio hesitasse , o Moniz explicou : -- Eu tive o gosto de andar no latim com V. Ex ª Então o Júlio lembrou-se , e numa inspiração de bom rapaz exclamou : -- E verdade ... és tu António ! E o Moniz , muito lisonjeado , levantou-se do seu lugar , e veio fazer shake-hands com o candidato em grandes expansões de velhos amigos . As moças passavam travessas de frango ensopado e perus assados , indo de quando em quando à porta do fundo receber as ordens de uma autoridade invisível e suprema . Começavam a acender-se os cigarros -- à espanhola . E , depois do arroz-doce , todos falaram alto , principalmente da eleição . O Júlio foi então miudamente informado ... " do estado das coisas , das influências em jogo " . Soube que o José Carlos não trabalhava por estar mal com o cunhado , desde as partilhas que fizeram por morte da tia ; e que o Sá devia três contos e quinhentos aos Carvalhos do Lendroal , que o apertariam para o pagamento se ele saísse a campo ; soube que os eleitores da aldeia -- S. Miguel só viriam à urna se lhes consertassem o telhado da igreja ; e os da Corte Pequena se lhes aforassem o baldio ; soube que o José António tinha um lugar prometido na alfândega ; e o António José queria tomar uma empreitada na construção da estrada municipal . E desta ladainha de nomes próprios desconhecidos , destas coisas pequenas e vazias , elevava-se pouco a pouco como um grande tédio , que se misturava com o calor da casa , e com o cheiro forte da comida . O Azevedo combateu a custo esta sensação de enjoo , fumando cigarros laferme , e bebendo golinhos de aguardente de erva-doce do comendador , que na verdade era excelente -- parecia anisette . Já passava da meia-noite , quando o Moniz e o Castro , com três ou quatro dos mais entusiastas , vieram acompanhar o candidato a casa , e se despediram dele à porta do palacete da Rua do Álamo . Ao entrar na loja , grande , húmida , calçada de seixo miúdo , imperfeitamente alumiada pela moça , que levantava na mão um candeeiro de três bicos , o Júlio recebeu uma impressão fortíssima . Aquela casa era a sua , a velha casa dos Azevedos , onde tinham nascido e vivido todos os seus , onde ele próprio nascera e se criara . Mal se lembrava dos pais , mortos sendo ele ainda muito criança , mas conservava viva a memória da avó . Era já um rapazito crescido , quase um homenzinho , quando , entre as criadas que soluçavam , veio ajoelhar ao lado da cama , em que a velha senhora , serena e branca , expirava docemente . E parecia-lhe ainda sentir na testa o contacto dos seus beiços já frios , num último beijo em que ela pôs todo o seu amor , um amor mais que maternal . Parecia-lhe ainda ver aquela mesma loja , como estava na tarde do enterro , toda cheia de convidados ; e ele , um rapazito pálido , vestido de luto , de pé no alto da escada , assistindo à saída do caixão , que descia por entre as capas pretas dos irmãos da Misericórdia e as luzes vermelhas das tochas . Dias depois , partia dali com o tio e tutor , o Dr. Manuel de Azevedo , então juiz da 3ª vara em Lisboa , que viera de propósito buscá-lo ; e , naquele mesmo sítio em que agora ficara parado , grupavam-se os criados da casa , a velha Mariana , o João coxo que dava água , todos eles , todos chorando ao verem o menino subir para a antiga traquitana da família , que o levava para a estação ... para tão longe ! Lembrava-se bem da longa viagem , metido a um canto do compartimento de primeira classe , sentindo as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos . E do seu espanto de pequeno alentejano , que só vira as ribeiras quase secas , orladas de loendros floridos , quando ao chegar ao Barreiro entrou no vapor -- o Sol caia para além de Almada , e a enorme superfície da água , rosada , espelhada , apenas vibrante , estendia-se até aos pés da grande cidade , reflectindo as suas casarias resplandecentes . Como eram dolorosas e doces ao mesmo tempo estas evocações das velhas coisas , ainda agora quase esquecidas ! E as primeiras recordações pareciam suscitar todas as outras . Numa concentração súbita , viu a sua vida inteira . O tempo do colégio , e as visitas ao domingo a casa do Dr. Manuel de Azevedo na Rua da Emenda , uma casa tranquila e triste , sem crianças , onde a tia , pálida e loira , lhe dava um beijo distraído , e tocava piano na sala escura , com os estores descidos . Os anos da Universidade , deixando-lhe uma impressão confusa e já remota , de trabalho , de cantos de rouxinóis ao luar , e de fados corridos . Ali , o rapaz passava pouco a pouco a homem , afirmava a sua situação de estudante premiado , de membro influente de um cenáculo literário , de redactor principal do Facto , um jornal positivista , bastante avançado e algum tanto ingénuo . Mas o tempo corria , e um dia achava-se bacharel formado em Direito , maior , independente e rico -- muito mais rico mesmo do que tinha imaginado . Começava então a sua vida ociosa de Lisboa , com os quartos de garçon Ãs Chagas , com os jantares no Bragança , com a cadeira em S. Carlos , com a série dos amores fáceis , as Lolas e as Cármens , entremeadas de duas ou três portuguesas , uma modista de chapéus do Matos e Irmão , e a Adelaide do Príncipe Real . Destas nebulosas do amor destacava-se um pouco a sua grande aventura com a D. Sofia , a mulher do Mosqueira do banco ; uma aventura esboçada no fim da estação de S. Carlos da cadeira para a frisa , desenrolada durante o Verão no terraço do Vítor , e prosaicamente rematada em um quarto com saleta , alugado aos meses na Rua dos Douradores . No fundo uma aventura tão banal como todas as outras , deixando-lhe a mesma impressão de vazio triste . E era tudo , toda a sua vida durante quatro ou cinco anos . Apenas uns restos de amor ao trabalho e à Arte , as correspondências semanais para o Facto , um livrito de contos e estudos da rua , publicado sob o titulo de Asfalto e macadame , o haviam preservado de cair absolutamente na irremediável chateza da reles vida elegante . Parecia-lhe singular , que nestes últimos anos tão despreocupados e inúteis se não tivesse lembrado uma só vez de visitar a sua terra e a sua casa ; e no entanto era assim . Deixara ao tio , mesmo depois de formado , todos os cuidados da administração ; a sua vida ociosa retinha-o com o imperioso despotismo da monotonia ; e as recordações da província iam-se lentamente apagando . Fora necessário que uma candidatura , oferecida pelo João Lopes e outros amigos do Manuel de Azevedo , o viesse arrancar aos seus hábitos ; e só agora , ao cabo de catorze anos , entrava de novo na sua casa . Mas aos primeiros passos dados naquela loja , toda a sua infância revivia , nítida , actual , como se nunca dali tivesse saído ; e , por um fenómeno curioso , eram os acontecimentos da véspera , que pareciam recuar para um passado remoto , numa flutuação de coisa falsa , sonhada . Parado na porta , o Júlio não via a moça , que continuava a erguer na mão o candeeiro , nem a outra criada , esperando em cima no patamar . E as duas , admiradas já daquela imobilidade , pensavam lá consigo : " ... que o senhor era muito esquisito " . Quando afinal reparou nelas , teve um desejo irreflectido de as mandar embora , uma necessidade de ficar isolado , como um pudor dos seus sentimentos ; e , tirando o candeeiro das mãos da moça , disse para as duas : -- Podem-se ir deitar , eu não preciso mais nada esta noite . Então , só , com uma espécie de respeito religioso , começou a visitar a casa . Estava muito abandonada e velha . Dos vidros partidos , dos postigos desconjuntados e podres , vinham correntes fortes de ar , em que a luz do candeeiro , mal abrigada pela mão , vacilava , pondo nas paredes das salas caiadas clarões incertos , cortados de grandes sombras oscilantes . Em cima , os tectos de castanho , denegridos pelo tempo , esverdeados pela água que filtrava dos telhados , ficavam numa obscuridade indecisa . Os móveis antigos , tamboretes de coiro mal de aprumo , contadores de pau-santo sem ferragens , encostavam-se Ãs paredes , como abatidos pela idade , procurando um arrimo . E as manchas escuras dos grandes armários vazios , recortavam-se na cal branca , que se esfacelava em partes , deixando ver o reboco . Alguns ratos escaparam-se ao longo das paredes ; e , numa das salas , dois ou três morcegos giravam no seu voo incerto e sem ruído . Mas o Júlio não sentia este abandono ; visões alegres , claras , da sua vida de criança , povoavam , iluminavam em volta dele aquele pardieiro . Os móveis , as paredes , eram como amigos velhos , vistos ao cabo de longos anos , que recordam o passado com circunstâncias pequeninas , muito definidas : cá estava o corrimão de pedra da escada , polido da mão rude dos ganadeiros que vinham ao avio , e que ele descera tantas vezes , a cavalo , deixando-se escorregar ; com grandes sustos e muitos ralhos da velha criada Mariana ; o armário alto donde furtava as pêras , quando a Mariana descia à adega medir azeite para os pastores ; e o outro armário mais pequeno , sempre fechado à chave , onde se guardava o doce , uma gila encandilada , e uns quartos de marmelo ressequidos com cravo de cabecinha , que a avó lhe dava sobre grandes fatias , nas merendas das tardes de Verão . Parecia-lhe então ver passar a avó , alta , magra , um pouco deitada para diante , com os cabelos brancos alisados sob o lenço de seda preta , o xaile de lá cinzenta nos ombros , levando na mão o molho das chaves luzidias , que se chocavam num tinir fino . Que encanto eram para ele aquelas chaves ! Como gostava de ver abrir as arcas , donde se tiravam os lençóis de linho , e as toalhas de mesa de Guimarães , tendo um cheiro bom , de roupa bem lavada , seca ao sol pelas colinas aromáticas , sobre moitas de tomilho e rosmaninho ! Ou então , nos dias de festa , o armário da prata , donde saiam as salvas grandes , com lavores maciços , um pouco denegridas ! Quantas coisas , ontem tão esquecidas ... e agora vivas , nítidas , como se se estivessem passando naquele momento ! Mais nítidas , talvez , porque a memória dá às vezes como umas provas fotográficas , que parecem mais definidas que a própria realidade . E o futuro deputado , o céptico redactor do Facto , sentiu um nó na garganta e os olhos rasos de lágrimas ... Sacudiu este enternecimento pouco digno , e foi em busca do seu quarto , onde havia um conforto relativo . O esteirão novo do Algarve , o travesseiro de folhos , a colcha de cetim , denunciavam os cuidados e a solicitude do comendador . Já ali estava a sua bagagem . O Júlio abriu o Gladstone bag , dispôs sobre a pedra da cómoda a complicada colecção de frascos e escovas , e , depois de proceder minuciosamente à sua toilette nocturna , procurou o romance começado , a caixa de pheresly très fort , acendeu o último cigarro , e estendeu-se na cama . Achava-se numa disposição feliz . A emoção de estar na velha casa da sua família dissipara a impressão desagradável da conferência eleitoral . Aos vinte e oito anos , com uma boa fortuna , um nome já feito , uma liberdade completa , e a porta aberta para a vida pública , parecia-lhe bom viver . Adormeceu , tendo visões vagas de triunfos oratórios , de ministérios derrotados e desfeitos a grandes golpes de eloquência . Era tarde , quando ao outro dia o Júlio de Azevedo abriu a janela do seu quarto , e , assustando as lagartixas , que durante anos haviam gozado a posse tranquila da pedra da sacada , veio encostar-se à velha grade de ferro forjado , com um cigarro entre os dentes . Ao sair da atmosfera um pouco húmida do grande quarto ladrilhado , o ar daquela esplêndida manhã de Maio envolveu-o num banho tépido . O Sol ia alto ; e da cimalha da casa caía sobre a ruazita só , muito quieta , uma estreita faixa de sombra . Da sua janela elevada , o Júlio dominava os telhados das casas térreas fronteiras , e os seus terraços de ladrilho , orlados de craveiros , plantados em fundos de bilhas partidas ; devassava mesmo os segredos dos pequenos quintais , que se estendiam por detrás das casas . Havia ali um cantinho de vida doméstica , surpreendida na sua intimidade tranquila e abandonada : grupos de galinhas em boa camaradagem com porquitos ruivos . ; alguidares ainda cheios de água espumosa do sabão ; roupa molhada , enxambrando ao sol presa de cordas , imóvel no ar parado , muito clara na luz intensa ; e , num quintal um pouco maior do que os outros , como um toque de esmero nas ruas varridas , nos goiveiros amarelos , nas rosas vermelhas brilhando por entre as ramas das árvores . A vila por aquele lado alargava-se pouco , e o campo começava logo para além dos quintais , desenrolando-se em ondulações doces . Em frente , umas colinas baixas , vestidas do verde frio dos olivais , limitavam o horizonte ; mas à direita , na queda do terreno , o vale abria-se em uma larga várzea de trigos altos , amadurecendo já num tom claro de espigas . E , ao longo do ribeiro , marcado pela linha de faias esguias , os laranjais e romeirais das hortas destacavam-se em manchas escuras , picadas de pequeninas casas brancas . Pela abertura do vale , a vista alongava-se aos tons dos planos distantes , esfumados , esbatidos , adelgaçados até à cor docemente azulada das últimas serras , fundidas quase no azul-claro do céu . Havia ainda na entoação fina dos verdes , na folhagem vibrante , uma frescura nova de primavera ; mas os cevadais quase brancos , os trigos espigados , o fundo morno do ar , anunciavam já a proximidade do ardente verão alentejano . O Júlio ficou ali muito tempo , embalado pela absoluta quietação . Na rua não passava gente ; as andorinhas corriam , tocando quase as pedras da calçada no seu voo rasteiro , quebrado em voltas rápidas ; ou vinham , com um pequenino grito alegre , poisar nos ninhos presos à cimalha . Ao fim da rua , por cima das árvores de um quintal , via-se um dos torreões das antigas muralhas da vila , e em volta os gaviões revoando , passando como pontos negros , apenas distintos , na limpidez clara do céu . Um grande silêncio abafava tudo ; um destes silêncios mortos , pesados , de vila de província donde todos saíram para o trabalho , que deixava ouvir , lá ao longe , no vale , o bater da roupa nas pedras do ribeiro , e as vozes das lavadeiras bradando pelos filhos . Todas estas coisas tão conhecidas , tão familiares , tão absolutamente iguais ao que tinha deixado , acordavam no espírito do Júlio os velhos tempos esquecidos ; sentia reviver as suas impressões de infância nas formas , nos sons , até nos cheiros -- naquele perfume bravo , muito alentejano , que subia das medas de estevas , empilhadas à porta do forno . E , quando as onze horas soaram lentamente na torre da matriz , ele teve a sensação fantástica de que o tempo só agora recomeçava a correr , de que tudo parara durante a sua ausência , de que a vilazita de província o esperara , imóvel e adormecida como a princesa de um conto de fadas . Depois , pelos postigos abertos de uma das casas fronteiras , começou a sair o som das vozes de criança soletrando . Era um soletrar antigo , cantado , estranho à influência de João de Deus ; mas as vozes puras das pequerruchas davam graça à cantilena , fundiam-se num chilrear alegre com o canto das andorinhas nos ninhos da cimalha . E , de repente , aquela casa , em que agora reparava melhor , evocou no espírito do Júlio uma nova onda de recordações . Aquela casa fora mais sua do que a sua própria . Morava ali nos antigos tempos o João Pascoal , o escrivão . Era um homem alto , malfeito , desgracioso , com os olhos húmidos , muito tímidos . Tinha uma única paixão -- a dos pássaros . As horas que podia roubar Ãs audiências , ao escrever monótono no papel selado , passava-as pelos valados e barrancos , armando . E o Júlio estava sempre em casa dele , ajudando-o a fazer gaiolas de cana , ou a consertar as redes das codornizes , vendo-o preparar grandes tachadas de visco . Que boas tardes de Verão tinham passado juntos , quando ao sair da aula do padre||_Salgado Salgado|_Salgado vinha a casa deixar a Selecta , e pedir licença à avó para ir com o Pascoal ! Com que seriedade o escrivão o iniciava nos segredos da arte , ensinando-o a distinguir os chamarizes dos tentilhões , fazendo-o escutar o canto dobrado dos chapins reais -- os cheichapins , como ele dizia -- , ou o prrrt ... metálico dos trigueirões , poisados sempre nos mais altos raminhos das moitas ! Que ansiedade quando a bandada dos pintassilgos se dirigia para as varas . . eles deitados atrás de um valado , e o Pascoal pondo-lhe a mão no ombro , fazendo-o estar quieto ... quieto ... sem respirar ! Que ferros , quando ao longe estalava a funda de um guarda de vinhas , e todo o bando fugia assustado ! Que bons tempos ! O Pascoal fora sempre pobre e pouco considerado . Chamavam-lhe o passarinheiro . Era um sonhador , um poeta a seu modo . Ficava horas esquecidas escutando os melros nos balseiros , ou os papa-figos nos chaparrais , vendo as névoas brancas , leitosas , a levantarem-se dos barrancos , e a luz , coada pela folhagem verde , a acordar reflexos nos espelhos das péguias . Depois , chegava tarde , suado , mal arranjado para as audiências . Sujava os autos de visco . E -- coisa mais grave -- apesar de pobre , esquecia-se às vezes de receber o dinheiro dos órfãos e das viúvas , o que indignava algumas pessoas sérias , como um mau exemplo . -- Quer-se fazer generoso , e não tem onde cair morto , que tolo ! -- diziam . Pobre Pascoal , que seria feito dele ? Decerto já não morava na mesma casa , pois agora era ali a escola . Devia estar muito velho , se vivesse ? E as filhas , deviam estar duas mulheres , a mais moça talvez casada ? Lembravam-lhe agora as duas pequenas , com quem brincava , que tratava como irmãs ; e parecia-lhe estranho , mal feito até , ter-se esquecido da sua existência tantos anos . A mais velha , a Henriqueta , devia ter a idade dele . Era uma rapariguinha galante , com perfil fino , olhos grandes , e um esplêndido cabelo castanho ; mas era contrafeita , coitadita . Os seus ombros desiguais , as suas mãos delgadas , demasiado compridas , muito brancas com veiazitas azuis , e o seu sorriso triste , faziam pena . A Margarida -- uma afilhada da avó -- era pelo contrário uma criança linda , direitinha , de um trigueiro sadio , tendo uma alegria constante nos olhos pretos , e um cabelo crespo , vigoroso , escuro na sombra , mas cheio de reflexos vermelhos , quase ruivos , quando o sol o feria . Lembrava-se bem da amizade terna que tinha à pequenita . Na sua importância de homenzinho , julgava-se o seu protector natural ; e ela admirava-o muito -- a sua superioridade de rapaz de treze anos , já crescido , as suas audácias , as suas invenções . Como ela ria , quando ele , trepado ao damasqueiro grande no fundo do quintal , lhe lançava os damascos no regaço ; enquanto a corcundita , muito séria , já maternal , ralhava com os dois ! Decididamente queria vê-las hoje ... agora mesmo ... ia perguntar à criada se o Pascoal vivia , onde morava ? ... Mas nisto uma rapariga delgada apareceu em baixo no quintal grande das roseiras , que pertencia à escola ; e começou a despregar das cordas a roupa já enxuta . Para tirar os alfinetes , levantava-se nos bicos dos pés , erguendo nos braços nus , curvando a cintura flexível ; e o sol , caindo sobre ela , doirava-lhe ligeiramente a massa espessa dos cabelos escuros . Passados instantes , como se sentisse de longe o peso do olhar do Júlio , voltou-se , deu com ele na janela , corou e fugiu para dentro . Era a Margarida ... com certeza ... e quase a mesma , com os seus olhos alegres , com o seu cabelo crespo de criança ! Então ... ainda ali morava o Pascoal ! E o Júlio , num primeiro impulso , desceu a escada , atravessou a rua sem chapéu , meteu o braço pelo postigo da porta , correu o ferrolho muito seu conhecido , e entrou na escola . À sua entrada , quinze ou vinte pequenitas interromperam a leitura , contemplando-o pasmadas , com os olhos redondos de admiração ; e , do estrado do fundo , a corcunda levantou-se , alegre , um pouco perturbada a princípio : -- O Sr.||_Júlio Júlio|_Júlio ! -- A mana Henriqueta -- disse o Júlio , usando instintivamente o antigo tratamento , e apertando nas duas mãos as mãos débeis da inválida . -- E o Pascoal ? -- perguntou . -- O pai está muito doente , entrevado ! Mas venha vê-lo ... ele vai ficar tão contente . E levou-o pelo corredor ao quarto do fundo , que dava sobre o quintal , onde o escrivão , muito acabado , com o cabelo todo branco , estava sentado na cama . -- Ó pai , o Sr.||_Júlio Júlio|_Júlio -- disse a Henriqueta . -- O menino Júlio ! ... o menino Júlio ! E tão crescido ... um homem ! E não se esqueceu do pobre Pascoal , veio logo cá ... -- dizia o velho chorando , na facilidade banal das lágrimas , que dão a fraqueza e a doença . Então o Júlio , querendo cortar aquele enternecimento , e reparando nas gaiolas penduradas das paredes , perguntou-lhe pelos pássaros . -- Ai ! ainda se lembra ! Eu já não vou armar , estou aqui preso na cama vai para cinco anos , com o reumático . Mas vai o Pedro ... o Pedro , o filho do carpinteiro ... há-de ter ideia dele ? E olhe o rapaz tem jeito , tem muito jeito ... Nisto entrava a Margarida , que tinha posto um lenço novo nos ombros , e tentado alisar o cabelo , tão rebelde como em criança . -- Sabes Margarida ... -- disse o Júlio , indo para ela ; mas emendou-se , ao vê-la tão mudada , tão mulher : -- Sabe , conheci-a logo , logo . De mim é que já se não lembrava ? -- Então não havia de lembrar -- respondeu a rapariga , corando . -- O pai falava tantas vezes no Sr.||_Júlio Júlio|_Júlio , e mais agora , sabendo que o esperavam . Ficaram ali de pé conversando , o velho em êxtase diante do seu menino , do seu grande valido , as raparigas voltando rápida e facilmente à velha intimidade de crianças . O Júlio fez mais perguntas ; quis saber o que se tinha passado naqueles longos anos ; e a Henriqueta então contou-lhe como tinham sofrido grandes privações , necessidades até , depois de o pai cair de cama , e ser obrigado a deixar o lugar . Venderam uma a uma as suas fazenditas , o olival da Fonte Fria , os três milheiros de vinha à Canada ; só lhes restava aquela casa . Agora estavam um pouco melhor ; a Henriqueta ensinava primeiras letras . -- Ao princípio não queriam mandar as pequenas , por eu ... ser assim -- dizia ela com o seu antigo sorriso triste . -- Mas agora vêm muitas , e todos na vila são muito bons para mim . A Margarida trabalhava para fora , cosia , engomava , fazia renda . -- Tem muita habilidade -- acrescentava a Henriqueta com orgulho . O tempo corria rapidamente . O Júlio achava-se em família , contente de ver o velho sorriso tranquilo e resignado da mana Henriqueta , e a pequenina Margarida , transformada naquela rapariga airosa , adoravelmente bonita no seu vestidinho pobre e no seu lenço vermelho . Conservava os fortes cabelos crespos , e o olhar alegre e claro de criança ; mas , vendo-a bem , estava muito mudada , com o oval mais longo e afinado , com uma expressão nova , funda e doce , nos seus esplêndidos olhos negros , levemente pisados em roda . E o rapaz ficou-se a olhar para ela , enlevado , voltando-lhe a ternura protectora dos tempos passados , sentindo já , como a Henriqueta , um orgulho de irmão mais velho . O candidato esquecera-se completamente da hora , do comendador e da eleição , quando ouviram bater à porta . A Margarida foi lá fora correndo , e voltou a dizer : " ... que a moça vinha chamar o Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo , porque o Sr.||_João_Lopes João|_João_Lopes Lopes|_João_Lopes e muitos senhores estavam defronte , no palácio , à sua procura " . O candidato atravessou a rua , subiu os degraus da escada dois a dois , como nos bons tempos de rapaz de escola , e entrou na sala desculpando-se de se ter demorado um instante : " tinha ido ali defronte , visitar o seu velho amigo Pascoal " . -- E muito o honra não olvidar as pessoas com quem tratou na infância , mormente sendo ... enfim sendo pessoas de condição humilde , observou benignamente o comendador . Estavam já ali , além do João Lopes , o Castro , o Moniz e mais alguns convidados do jantar da véspera , com três ou quatro novos amigos políticos . O Moniz apresentou particularmente um destes , um rapaz amarelo , apertado na sobrecasaca preta , com uma gravata de cetim azul bastante ensebada : -- O meu amigo José Mena . -- Tenho o maior prazer em conhecer pessoalmente a V. Exª -- disse o rapaz , estendendo a mão ao Júlio . -- Tenho admirado muito os seus belíssimos artigos no Facto . -- O Mena também é escritor , é uma das ilustrações cá da nossa terra -- explicou o Moniz . -- Pelo amor de Deus ! -- atalhou modestamente o Mena . -- Publiquei apenas alguns contitos insignificantes , muito singelos ... um pouco vividos talvez ... naquele género simples do Daudet . -- Ah ! ... no género do Daudet ! -- disse o Júlio numa surpresa profunda . -- E escrevo as crónicas literárias no jornal do distrito , no Clarão do Sul . É possível que V. Exª as tenha notado ? -- Li alguns números do jornal , mas não ... não me lembro bem ... -- Eu na crónica não uso o meu nome , assino Sagaz . -- Ah ! ! A entrada de novas visitas veio interrompê-los . O comendador fazia cerimoniosamente as apresentações ; e os amigos políticos sentavam-se em roda , com os chapéus altos sobre os joelhos , enquanto o Júlio começava a notar com uma certa inquietação , que tinha poucas cadeiras , e algumas quebradas . Mas a conversa tornou-se geral . O João Gualberto falou : " na situação desgraçada do pais " . Então o Lopes , com as pernas abertas , as mãos nos joelhos , expôs as suas ideias : -- O que não pode continuar é esta desconsideração sistemática da propriedade . A agricultura , a nossa primeira indústria , descurada ; salários cada vez mais caros ; encargos pesadíssimos ; o preço do género como todos nós sabemos ; nisto é que ninguém pensa . Porque afinal quem nos governa são empregados públicos ... moços de inteligência , não há dúvida ! ... mas sem sisudez , sem terem interesses ligados à terra ... -- E que no fim de contas o que querem é comer , interrompeu o Castro mais positivo . -- Não digo tanto , Castro , não digo tanto ! ... Ainda que desgraçadamente parece , que alguns se têm locupletado à custa dos dinheiros públicos . O remédio , tenho-o eu dito muitas vezes , está em restituir à propriedade a sua legítima influência . A propriedade territorial é a verdadeira , é a única aristocracia dos nossos dias ... -- Não devemos esquecer a aristocracia do talento , Sr.||_João_Lopes João|_João_Lopes Lopes|_João_Lopes -- observou o Mena . -- Ora , sior Mena -- atalhou o Castro sempre positivo . -- Faz favor de me dizer o que paga a tal aristocracia do talento ? Quem paga é a terra , e quem deve governar é quem paga ... tudo o mais são histórias . -- Felizmente o nosso Azevedo reúne as duas aristocracias -- disse o Moniz conciliador . O Júlio tinha-se levantado para ir receber o velho Galrão , que entrava , coberto pelo capotinho apesar do calor ; e lhe apresentou um homem gordo , de suíças brancas , sem gravata , com os colarinhos altos , bem lavados , presos por dois botões de filigrana de oiro : -- Sr.||_Dr._Azevedo Dr.|_Dr._Azevedo Azevedo|_Dr._Azevedo , o Sr.||_Francisco_Dias Francisco|_Francisco_Dias Dias|_Francisco_Dias , um antigo amigo de toda a sua família . -- Ora ainda bem que torno a ver um Azevedo nesta casa ! -- disse o lavrador , apertando fortemente a mão fina do candidato . E começou a falar-lhe do pai , da avó , " uma santa senhora , uma dona de casa como já as não havia " ; tudo isto num tom de amizade , de respeito sincero pelo nome e pela família dos Azevedos , que lisonjeou o rapaz , descansando-o da eloquência do comendador . Gostou do homem , achou-o original , muito fino sob a sua bonomia rude . Mas o Mena veio dizer-lhe ao ouvido , com a familiaridade de um confrade em letras : -- Um bom tipo , hem ! V. Exª vai-se divertir muito com estes selvagens . E o Júlio sorriu , pensando que o bom tipo , o tipo divertido e reles , era o Mena e não o lavrador . As visitas demoravam-se , hesitando em se despedir . Mas , quando o Moniz e o Mena deram o exemplo , foi uma debandada geral . Agora ficavam unicamente o João Lopes , o Galrão e o Castro , de pé junto de uma das janelas . E sós , mais à vontade , o Lopes desenvolveu o plano de campanha : -- Passado amanhã vamos a S.||_Gens Gens|_Gens , por causa do João Máximo . O João Máximo está duvidoso . -- Ah ! O João Máximo está duvidoso ? -- disse o Júlio para dizer alguma coisa . -- Está ! O homem está retirado . Ficou descontente desde a última eleição ... desde o caso que se deu com o Dr. Fragoso . Há-de saber ? -- Bem sei -- respondeu o Júlio , que não sabia nada . -- Pois ficou ; mas indo nós lá , estou certo que o levamos a campo . E pode dar-nos um bom contingente ... ele tem ali muita influência ! -- Não esqueça a carta para o visconde -- insinuou o Castro . -- Ah ! é verdade ; fez bem em me lembrar , Castro . É necessário que o conselheiro Freitas escreva ao visconde . -- Eu mando pedir a meu tio que lhe fale , e estou certo que o Freitas manda imediatamente a carta . -- Pois é urgente . O visconde sempre pertenceu ao partido , mas tem antigas relações de amizade com este governador civil , e por ora não quis dar a cara . Escrevendo-lhe o conselheiro Freitas , que foi quem lhe deu o título , quando era ministro do Reino , estou certo que se decide ... Mas o comendador interrompeu-se , vendo o relógio ; e , dirigindo-se de novo para o candidato , acrescentou amavelmente : -- Isto são horas das sopas , e o Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo vem jantar comigo . -- Eu não quero incomodar . -- Incómodo , nenhum ! E depois o meu amigo hoje não tem remédio senão vir . Isto cá na sua casa está ainda tudo no ar ... Vem , Sr.||_Galrão Galrão|_Galrão ? -- Obrigado ... obrigado , a minha esposa espera-me . -- Você vem , Castro , pode ser preciso tomar alguma nota depois do jantar . E o comendador enfiou o braço no do Júlio , dando-lhe apenas tempo de pegar no chapéu e nas luvas , protestando contra qualquer mudança de toilette : -- Isto é sem cerimónia , meu caro amigo , não estamos na capital . Se o Júlio se não tivesse esquecido um pouco da topografia da vila , teria notado que o comendador o levava por um caminho singularmente longo . Subiram toda a Rua do Álamo , e foram virar à Rua de S. José , direitos à Praça . O João Lopes levava-a fisgada . Queria atravessar a Praça e passar diante da loja do Faria , o baluarte dos contrários , em toda a sua glória , com o seu candidato pelo braço . Quando desembocaram na Praça , viu imediatamente que não perdera o tempo . À porta da loja estava o Faria , um beirão atarracado , de barriga em bico , e barretinho de pala de seda preta . E , encostado à ombreira , o administrador de concelho , muito engoiado sob o chapéu alto , conversava com o Joaquim Carvalho , o mais moço dos do Lendroal , um rapaz forte , de chapéu à serrana , botas de montar , e jaqueta de alamares . Trocaram saudações corteses , mas frias : -- Sr. administrador ... meus senhores . -- Sr.||_João_Lopes João|_João_Lopes Lopes|_João_Lopes . E os três ficaram examinando criticamente o veston justo de quadradinhos e as calças escuras do Azevedo . -- Parece um palhaço ! -- disse o Joaquim Carvalho , que tinha visto em Lisboa os clowns da companhia do Dias . Na véspera à noite , o Júlio apenas entrara na casa de jantar improvisada ao rés-dochão ; mas hoje , o comendador fê-lo subir a escada de ladrilho , escrupulosamente limpa e almagrada de fresco ; e , atravessando uma pequena casa de espera , introduziu-o na sala . Estava claríssima a sala do comendador , com o tecto e as paredes bem caiadas , reluzindo numa brancura maculada . O sol daquela bonita tarde de Maio entrava largamente pelas duas janelas que davam sobre a Praça , e , passando através das cortinas transparentes , apanhadas nos patères de folha doirada , caía em faixas oblíquas sobre o esteirão espanhol de esparto , amarelo e vermelho . Não havia ali tambores carunchosos , nem veneráveis e inválidos bufetes de pau-santo , como no palacete da Rua do Álamo ; pelo contrário , todos os móveis pareciam sair naquele momento do armazém . Um canapé e doze cadeiras , de mogno e repes verde , recentemente comprados na Rua Augusta , guarneciam as paredes em linhas regulares e simétricas . Ao fundo , por cima do canapé , estava suspenso um largo espelho , com a sua moldura doirada , nova , muito crua sobre o branco forte da cal . E , das paredes dos lados , encaixilhadas em madeira preta com filetes doirados , pendiam quatro litografias de Julien , aux deux crayons : uma pastorinha da Suíça com as tranças caídas ; uma castelã da Idade Média ; uma tirolesa , rechonchuda e alambicada ; e uma contemporânea qualquer de M . lle de Montpensier , largamente provida de caracóis . Entre as janelas , um piano ; e , defronte , uma mesa de jogo -- da Rua Augusta -- fechada , tendo em cima dois castiçais de prata , assentes em tapetinhos de lã , ornados de contas de vidro . Diante do canapé , uma mesa oval -- sempre da Rua Augusta -- sobre a qual se via um candeeiro de petróleo de zinco esverdeado , um cestinho de prata arrendada contendo bilhetes-de-visita , um álbum de retratos , e um volume do Musée des families . Tudo isto era nítido , correcto , e absolutamente novo . O Júlio apenas teve tempo de ver rapidamente estas coisas , porque a porta do fundo se abriu , dando passagem Ãs duas velhas irmãs do João Lopes , seguidas por um padre moço , alto e magro . E , ao ver entrar as duas senhoras no antigo traje da província , as saias redondas e um pouco curtas , os xailes de lã nos ombros , os lenços de seda escura sobre os cabelos grisalhos , o rapaz teve uma emoção . Achou-as parecidas com a avo . Era o mesmo vestuário , era o mesmo ar sereno , bondoso , um pouco apagado mas digno , formado pela longa influência da vida tranquila , passada no conforto pálido da casa abastada . Ao vê-las , sentiu como um toque suave e . doce das velhas ternuras , do aconchego tépido de umas saias de mulher em que se aninhava em pequeno . O sorriso , com que inventariara a sala do comendador , apagou-se ; e foi com um respeito comovido que ele se curvou perante as duas senhoras . Mas o João Lopes apresentou-lhe o padre , um antigo condiscípulo ; e o Júlio lembrou-se logo de o ter visto na aula do padre||_Salgado Salgado|_Salgado , rapaz já feito , esgrouviado , muito pobre , com uma quinzena roçada de mangas curtas , que deixava ver os punhos da camisa esfiados , e os pulsos ossudos , vermelhos do frio : " Com que então tinha-se ordenado ? " -- O nosso padre||_José José|_José está capelão da Misericórdia -- explicou o João Lopes . -- Favores aqui do Sr.||_Provedor Provedor|_Provedor -- acrescentou o padre curvando-se . -- Não tem que agradecer , padre , foi justiça ... foi simples justiça . Neste momento a porta abriu-se de novo , e uma senhora entrou majestosamente , apertada no vestido de faille preto . -- Permita-me que o apresente a minha esposa -- disse o comendador : -- Amália , o Sr.||_Dr._Azevedo Dr.|_Dr._Azevedo Azevedo|_Dr._Azevedo . -- Muitíssimo prazer em o ver nesta casa -- disse ela , estendendo correctamente a mão ao seu hóspede . E , voltando-se para o João Lopes : -- Menino , o jantar está pronto . Passaram para a casa de jantar , pegada com a sala , muito alegre também , iluminada por uma porta de vidros que dava sobre o terraço . À mesa , ao principio , ficaram calados ; mas o Júlio , em excelente disposição de espírito , pôs todos à sua vontade , falando dos antigos tempos , lembrando-se de tudo , dos nomes das pessoas , dos sítios onde ia passear . Interrogou directamente o padre||_José José|_José , querendo notícias dos condiscípulos : ... " o Moniz tinha-o visto já ! ... Mas o Chico Saraiva ? E os dois Sequeiras , os filhos do capitão reformado ? E o ... aquele , um gordo ... que nunca sabia a lição ? " -- O António Soares ? -- Isso ! -- Está prior na Corte . -- O quê , também se fez padre ? ! -- O rapaz , coitado , precisava de um modo de vida ... o pai tinha-lhe dado cabo de tudo -- explicou muito naturalmente o padre||_José José|_José . Mas o que encantou sobretudo as duas velhas irmãs , foi o modo por que o rapaz falava da avó , com um respeito profundo , com uma saudade ainda viva . No dia seguinte , não se calavam em elogios ao Azevedo : " Tão bom rapaz " , diziam elas , " parece impossível que seja dos que escrevem nos papéis ! " O comendador , porém , emendou-as , advertindo : " que entre os redactores havia pessoas muitíssimo serias ... que a imprensa era uma instituição útil , sendo regrada " . E , na verdade , as duas santas senhoras faziam dos jornalistas uma ideia singular . Julgavam todos pelo José Mena , que -- segundo afirmavam na vila -- tinha roubado os resplendores de prata dos santos no oratório da mãe , para ir jogar a batota no bilhar do Caxinha , à esquina do Terreirinho . Durante o jantar , e apesar da conversa , o Júlio observou dissimulada e curiosamente a sua vizinha do lado . Deu-lhe trinta e cinco ... talvez quarenta anos . Em todo o caso era uma bela mulher , alta e forte sem ser gorda , com um busto amplo , muito apertado no vestido de faille , que reluzia como uma couraça . Quando se voltava para ele , nas atenções naturais de uma dona de casa , envolvia-o no olhar directo dos seus olhos verdes , a que os cabelos muito pretos e lustrosos , e as sobrancelhas espessas davam uma expressão um pouco dura . Pareceu-lhe uma senhora muito decidida . Trinchou o peru assado com gestos correctos mostrando os anéis ricos de gosto duvidoso ; e dava Ãs duas moças que serviam , ordens curtas e claras , prontamente obedecidas . Falou pouco ao jantar , como se os assuntos locais , que seduziam as duas cunhadas , fossem menos dignos da sua atenção ; mas depois , quando serviu o café na sala , mostrou-se muito amável , pedindo ao Júlio que fumasse : -- Faz favor de se não prender , Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo , nós as senhoras estamos todas tão acostumadas . E , como o Júlio colocasse a xícara do café sobre o piano , perguntou-lhe se tocava , dizendo-lhe que a música era a sua distracção favorita , que passava ali horas e horas . O Júlio tocava também , de ouvido , bocados de valsas , e umas peteneras e tangos , aprendidos em má companhia . Esta semelhança de talentos estabeleceu logo uma familiaridade . Falaram de S.||_Carlos Carlos|_Carlos e das últimas óperas . D. Amália ia todos os invernos passar uma temporada em Lisboa , e o teatro lírico era a sua paixão . Ao lembrar-se dos prazeres da capital , lamentou-o : -- Vai-se aborrecer muito nestes dois meses . -- Não me parece , minha senhora , e basta para me não aborrecer o ter .a honra de ser recebido em casa de V. Exª -- É muito amável , Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo , mas vai ... olhe que se vai aborrecer muito ! Isto é uma terra impossível , sem passatempos de espécie alguma , sem convivência quase . É um desterro para as pessoas criadas de uma certa forma ... Lentamente , numa conversa cortada , fazia-lhe as suas confidências . Disse-lhe quantos anos tinha passado em Lisboa , no colégio da madama||_Santos Santos|_Santos , a Buenos Aires , uma senhora finíssima , de uma educação esmerada . Falou-lhe da sua terra , Setúbal , uma terra boa , e tão próxima da capital . Tinha conhecido ali o João Lopes , que estava a banhos . Havia uma grande diferença de idade entre os dois ; mas a sua família toda desejava muito aquela união , e ... o tempo das primeiras ilusões já tinha passado . Podia dizer que fora muito feliz . Nunca se arrependera de ter dado aquele passo ; ninguém decerto seria mais atencioso , mais delicado do que o comendador : -- ... mas tenho uma criação , um modo de pensar muito diverso das pessoas daqui . É muito triste não ser compreendida ! ... -- terminava ela com um suspiro . -- V. Exª não tem filhos ? -- perguntou o candidato talvez indiscretamente . -- Ai não , Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo , e felizmente ... filhos são cadilhos . O João Lopes desejou muito ter um herdeiro , mas hoje , coitado , nem pensa nisso . Havia nesta última frase um desapego tão desdenhoso , que o Júlio involuntariamente levantou os olhos para o comendador . Viu-o sentado na extremidade da sala , conversando com o Castro e o padre||_José José|_José . De pernas abertas , por causa da barriga , a papeira caída sobre a gravata preta , tinha um ar lamentável de abatimento pomposo e gordo . O Júlio começava a interessar-se -- neste interesse muito especial , despertado sempre pela mulher que parece fácil , ou simplesmente possível . E , muito amável , num principiozinho já de corte , insistiu para a ouvir . Ela então pôs-se ao piano , e , depois de uns acordes , cantou-lhe uma romance qualquer , muito conhecida . A tarde caía . Lá fora havia um silêncio , corta do apenas pelo ruído dos carros de mulas , que atravessavam a Praça , voltando do trabalho . Na obscuridade que invadia a sala , o João Lopes e o padre||_José José|_José escutavam sonolentamente ; e , encostado ao piano , a luneta no olho , o Júlio via de vez em quando os olhos verdes de D. Amália voltarem-se para ele numa expressão exagerada . A romance esfriou-o ; achou-a mal cantada , com uma pronúncia detestável . Pareceu-lhe a cantora ridícula . Mas , apesar de tudo , quando recolheu a casa pensou muito na nuca forte e bem encabelada , no buço esfumado sobre os beiços vermelhos , e no olhar directo da mulher do comendador . -- Que diabo quererá ela ? -- foi a sua última reflexão . No dia marcado , o João Lopes e o Azevedo foram a S.||_Gens Gens|_Gens , visitar o João Máximo ; e ao outro dia à Corte , onde estava prior o Antonico Soares ; e no dia seguinte a S. Miguel . As noites juntavam-se na sala pequena à esquerda da casa de espera -- a que o comendador chamava o seu escritório , apesar de nunca escrever . Ali , à luz do candeeiro de petróleo , o Castro lia o recenseamento ; tomavam-se notas ; faziam-se cálculos ; vinham trazer notícias os galopins subalternos , o Chico barbeiro , e o Norberto , um oficial de diligências demitido , que esperava ser reintegrado quando o ministério caísse . Mas pouco a pouco os trabalhos afrouxaram . Por maior que fosse o zelo do João Lopes e do Castro , era impossível ficar dois meses inteiros na brecha . Depois , as coisas tomavam bom aspecto ; o João Máximo decidiu-se ; o visconde pronunciou-se ; os governamentais andavam muito descoroçoados . Finalmente o candidato podia respirar . Ia todas as noites a casa do comendador , mas , enquanto ao emprego do dia , conquistara uma independência relativa . Estava já regularmente instalado na sua velha casa . Uma das suas moças , a Josefa , saiu-se uma cozinheira de talento . Tinha-lhe chegado de Lisboa um caixote de livros ; e , mesmo no seu quarto de dormir , improvisara uma grande mesa de trabalho , com o seu tinteiro , as suas penas válidas , e uma boa provisão de papel almaço . Ali , durante as horas de calor , redigia as correspondências para o Facto , ou os primeiros capítulos de um romance esboçado . E sentia-se em veia , escrevia umas páginas mais vivas , mais naturais do que tudo quanto tinha escrito até então . Afastado de todos os modelos , em contacto intimo com a poesia penetrante e severa daquela natureza um pouco árida , o seu modo de dizer despia-se das fórmulas convencionais , tornava-se mais simples e mais vibrante , como se o animasse o ar fino , que entrava largamente pela janela , aberta de par em par , como se o iluminasse a luz forte , que inundava o vale . Quando passeava no quarto , procurando uma frase , mascando nos dentes a ponta do cigarro apagado , sucedia-lhe ficar-se parado defronte da janela , absorvido na contemplação daqueles campos vastos , alongados sem fim , onde as searas iam branqueando de dia para dia . As ceifas das cevadas temporãs começavam já . Pelas onze horas , as moças recolhiam do trabalho , andando depressa sob o sol pesado ; e os ranchos de figuritas negras , graciosamente envoltas nos xailes , animavam um momento a solidão das estradas , poeirentas e claras . As vezes , de manhã , passavam vacadas , voltando das pastagens da serra -- as reses vermelhas vinham lentamente , marcando o passo no aceno das cabeças finas , fazendo soar os chocalhos num ritmo demorado , que acentuava o largo silêncio tranquilo . Sentia-se o Verão chegar . Os trigos amadureciam . O trabalho misterioso da vida completava-se , pondo nas sementes o germe da vida futura . O ar vinha de longe , morno , em sopros leves , carregado das emanações aromáticas e bravas das grandes charnecas fortemente aquecidas . E ele então experimentava o prazer puramente animal de viver , da retina que se banha de luz , dos pulmões que se enchem , dos contactos tépidos na pele ; qualquer coisa como a beatitude reflectida nos olhos mansos dos bois , ruminando ao sol , enterrados na erva até ao joelho . E sempre , antes de recolher para dentro , deitava os olhos para o quintal das roseiras . Uma ou outra vez via a Margarida a despregar roupa no seu gesto gracioso , em bicos de pés , os braços erguidos . Trocavam de longe uma saudação e um sorriso ; e ele vinha sentar-se à mesa de trabalho , com os olhos e o cérebro cheios de luz -- talvez do sol , talvez do sorriso da rapariga . Terminada a página , o Júlio demorava-se ainda numas voltas pelo quarto ; e depois descia , dando-se a si próprio uma explicação ... " ia fazer um bocado de companhia ao Pascoal , coitado ! ... ouvir-lhe repisar pela centésima vez as velhas histórias " . Ao acabar da aula , a Henriqueta vinha sentar-se numa cadeirinha baixa , ao lado da cama do pai . Como o tempo ia quente , a janela abria-se , deixando ver um cantinho do quintal , a ruazita fugindo entre linhas de alfazema as roseiras altas , mal talhadas , batendo na ramagem clara das amendoeiras . Os prisioneiros do Pascoal chilreavam ; e , lá fora , na sua gaiola de cana , dois melros ensaiavam assobios hesitantes , numa modulação fresca de primavera . Uma roseira-de-toucar orlava a janela , e os cachos compactos de rosinhas brancas , miúdas , caíam em festões . A Margarida , que ensaboava no quintal , vinha encostar-se ao parapeito da janela , pelo lado de fora , com os braços trigueiros , muito puros de forma , ainda húmidos do sabão . E ficava ali muito tempo , imóvel , os olhos pretos atentos , escutando o Júlio . O sol , reflectido na parede do fundo , orlava-lhe os cabelos crespos de um contorno luminoso , deixando-lhe o rosto numa sombra vaga ; e as rosinhas-de-toucar formavam-lhe em volta uma espécie de moldura de vieux saxe , fresca e virginal . Quando o Júlio tinha graça -- o que lhe sucedia várias vezes -- , Margarida descerrava os lábios num dos seus risos claros de criança ; e uma atmosfera viva e alegre de mocidade e primavera enchia o quarto do pobre paralítico . Pouco a pouco as visitas amiudavam-se e prolongavam-se . O Júlio agora passava as manhãs no quarto do Pascoal . Às vezes , com um pretexto qualquer , voltava de tarde . As suas criadas já sabiam onde ele estava . Ali lhe vinham trazer os escritinhos urgentes do comendador ; e as grandes bandejas de doces da D. Amália : " ... com muitas recomendações da senhora " , como dizia o moço dos recados . Ele sentia-se bem , à vontade , entre as duas raparigas muito singelas , e muito inteligentes na sua singeleza . Todas as vulgaridades da meia civilização que o feriam na casa do comendador , desapareciam ali , naquele interior primitivo . E , sem que o pressentisse a principio , a paixão da Margarida retinha-o , envolvendo-o , penetrando-o , como o envolvia e o penetrava o ar fino daquelas manhãs límpidas de Primavera . E era uma paixão ! Logo nos primeiros dias , sem o saber e sem o querer , ele tomara posse do coração da rapariga , como de uma coisa naturalmente sua . Margarida tinha chegado aos vinte e dois anos sem um namoro , guardada pela vigilância da Henriqueta , pela vida quase clausurada , sobretudo pela timidez altiva . Arredada de uns pela sua situação humilde , de outros por um principiozinho de educação e pelos instintos finos , encerrara-se no retraimento doloroso da sua pobreza . O aparecimento do Júlio , superior a tudo quanto tinha visto e tinha sonhado , veio trazer uma funda perturbação à sua existência sossegada . Sentiu-se subitamente presa por aquela inteligência clara , elevada , ocupada de mil coisas que ela não percebia , mas começava a adivinhar na sua intuição subtil de mulher já namorada . E ao mesmo tempo que o Júlio a deslumbrava como um ente quase sobrenatural , tranquilizava-a pela familiaridade alegre e franca de antigo companheiro . Na fisionomia original do Azevedo , tão fina-mente insolente , quando em presença de estranhos encaixava o monóculo na órbita , havia sempre para ela o sorriso carinhoso e bom de um irmão mais velho . E ela achava-se bem na sua inferioridade , na sua admiração sem limites de mulher submissa . Tudo nele a seduzia , a finura do seu espírito , como os requintes absolutamente desconhecidos da sua elegância . Para a pobre rapariga , que só vira a jaqueta domingueira do Pedro carpinteiro , ou , à porta da igreja nos dias de festa , as gravatas vistosas do Mena e do Moniz , houve uma revelação nos vestons de flanela branca do Júlio , nas suas meias azuis com estrelinhas vermelhas , nas suas mãos bem cuidadas , nos anéis sólidos , tendo as esmeraldas e os rubis fundamente cravados no oiro fosco . Todos os pequenos objectos da elegância masculina a surpreendiam : a pérola do alfinete ; a cigarreira de prata , onde os phereslies descansavam em simetria no fundo doirado ; as firmas de cor nos lenços perfumados , que ela admirava muito com os seus conhecimentos práticos de costureira . Então , diante dele , achava-se ignorante e rude , nos seus vestidinhos de chita , na vulgaridade das suas mãos bonitas , mas um pouco avermelhadas e grossas do sabão . Julgava-se duramente , muito humilde , muito distante dele , apenas digna de ser sua criada , uma das suas moças , como eram a Josefa , ou a Bárbara . Mas depois lembrava-lhe a camaradagem de outros tempos . Via nele a antiga imagem do rapaz enérgico e forte , que protegia a sua fraqueza de pequenita de oito anos . Feria-a assim com todo o vigor de uma impressão nova , e com toda a suavidade de uma recordação de infância . E , docemente , confiada , deixava-se ir sem resistência para aquele amor , que era como a continuação natural de uma amizade inocente . Com um atrevimento puro de criança fixava nele largos espaços os olhos meigos , sem fugir aos seus olhares . Mas , às vezes , sentia-se perturbada , numas revelações súbitas , quase brutais , da intensidade da sua paixão . Um dia que estava fazendo renda , o Júlio veio ver a obra , passando-lhe o braço à roda da cintura . Assim , muito perto dela , a sua respiração agitava-lhe levemente os cabelinhos da nuca ; e ela julgou desfalecer , uma onda rosada tingiu-lhe o pescoço e as faces , e , na pele até à raiz dos cabelos , correu-lhe um arrepio doce , de uma doçura tão funda que era dolorosa . Ao mais leve contacto percebia que era toda dele , o corpo como a alma . E , vagamente , sabia que a um aceno lhe teria caído nos braços , rendida antes de combater , sem defesa possível . O Júlio , porém , estava a mil léguas de pensar em uma sedução . Se lhe ocorresse tal ideia decerto a teria repelido sem hesitar -- a casa do seu velho Pascoal era sagrada para ele . Mas , na verdade , nem mesmo resistiu à tentação , porque não tinha consciência do amor pela rapariga . E , se lhe tivessem dito , que ele gostava da Margarida , teria dado uma gargalhada . Que disparate ! Era amigo das duas irmãs ... da Margarida como da corcundita . Isso era ! muito amigo dela ... nada mais . Somente , quando passava algumas horas sem a ver faltava-lhe o que quer que fosse . Os dias e as semanas passavam , e -- contra o que prognosticara a D. Amália -- o Júlio não se aborrecia . Uma única coisa lhe bulia às vezes com os nervos , e era exactamente a que o trouxera ali -- a eleição . O ingénuo redactor do Facto trazia sobre eleições ideias um tanto falsas ; sonhara comícios , movimentos de opinião , vontades populares energicamente manifestadas ; e vinha cair em umas transacções mesquinhas de pequeninos favores e de ressalvas de recrutamento . Como entendia pouquíssimo destes manejos , sentia-se inútil nas complicações da sua própria eleição . Via que o não consultavam ; percebia que o tinham mandado vir unicamente para o mostrar , como um objecto de luxo , uma espécie de coche de respeito , um cavalo do estado -- S. Jorge bem encaparazonado . Esta situação um pouco singular não o incomodava , divertia-o até , vendo-lhe bem todo o lado cómico ; mas outras coisas mais positivas repugnavam-lhe . Ele viera naturalmente com a intenção firme de não dever a sua eleição ao dinheiro . Não se lhe dava de gastar alguns centos de mil réis em despesas indispensáveis ; mas coisa que cheirasse a compra não queria -- positivamente não queria . Ninguém lhe falou em gastar um real . Não lhe era difícil , porém , perceber que o comendador gastava por ele , e gastava bastante . Isto no fim de contas vinha a dar no mesmo ; simplesmente , era mais económico e ... mais reles . E , sempre que demorava nesta ideia , sempre que uma alusão qualquer a despertava no seu espírito , ficava mal à vontade , aborrecido , envergonhado quase . Uma tarde , já luzes acesas , entrando ao passar na botica , encontrou o Moniz todo paramentado , de colarinhos altos , um botão de rosa do fraque preto -- era o dia da recepção intima do comendador . O Mena , pelo contrário , pareceu-lhe particularmente sujo , com a barba de três dias , e a pele amarela muito lustrosa . O comendador nunca o convidava para casa , apesar de ele pertencer ao partido -- isto irritava-o . Afectava então maior desalinho , um desprezo do mundo , uma superioridade de homem de letras . Enquanto o Moniz se inundava de água-de-colónia , e dizia ao Josezinho , o praticante , que podia fechar mais cedo , o Júlio ficou vendo a partida de damas do João Gualberto com o prior -- dois jogadores de fama . O Mena , entre portas , assobiava ; e , de repente , voltando-se : -- Então o João Máximo sempre entalou o Lopes com a fiança ? -- Parece que sim -- respondeu o João Gualberto secamente , sem levantar os olhos do tabuleiro . -- Estava claro que o tal sujeito não dava os votos de graça ! -- acrescentou o Mena no seu tom azedo de homem amarelo . O Júlio não fez reflexões , e a conversa caiu . Mas depois , quando saíram todos para a Praça , deu o braço ao Moniz , obrigando-o a ficar para trás , perguntando-lhe : " que história era aquela da fiança ? " -- Homem , é simplicíssima ! -- respondeu o Moniz . -- É uma dívida de novecentos mil réis que o João Máximo aí tinha , de que lhe não queriam renovar a obrigação , e de que o Lopes ficou agora por fiador . -- Para que o outro lhe desse os votos de S.||_Gens Gens|_Gens ? -- Provavelmente . -- Que diabo ... isso é extremamente desagradável ! -- Desagradável , o quê ? -- Desagradável que o Lopes esteja assim a gastar dinheiro na minha eleição . -- Deixa lá , que tens tu com isso ? Estás muito enganado se cuidas que o Lopes te faz deputado pelos teus belos olhos ... É para conservar a sua influência ... para ser o reizinho cá da terra . Ora essa ! se quer custe que lhe custe ... Olha , deixa-o gastar , e vem dai para casa dele ... a D. Carolina já passou há que tempos com as sobrinhas . Esta filosofia prática do Moniz não quadrava completamente ao Azevedo , que subiu a escada do comendador muito contrariado . Logo na casa de espera , vendo os xailes das senhoras sobre as cadeiras , e os chapéus pendurados , o Moniz exclamou : -- Olá ! temos enchente ! E , ao entrarem , ficaram parados , para não interromper . As duas sobrinhas da D.||_Carolina Carolina|_Carolina tocavam a quatro mãos um pot-pourri da Traviata ; e , junto do piano , o amanuense da câmara , sério e pálido , passando de vez em quando os dedos no bigode preto , voltava a folha . Isto desagradou ao Moniz , que namorava a mais velha . Encostado à ombreira da porta , escutando o piano por polidez , mas sem o ouvir , o Júlio via distraidamente as senhoras , sentadas em fila ao longo da parede , nas cadeiras de repes verde . Conhecia-as todas : a velha esposa do Galrão e a filha , uma rapariga dos seus trinta e tantos anos , seca e magra , de uma magreza ácida de solteira ; a prima D. Joana , na sua apatia mole , entre as duas irmãs do Lopes ; a D. Carolina , uma viúva ossuda e rica , de buço preto , sempre afogueada ; a D. Plácida , a mulher do cirurgião , pequenina , muito puxada , fresca ainda nos seus quarenta anos . Abanavam-se lentamente num abatimento doce , tendo nas fisionomias apagadas um ar tranquilo , como uma resignação à monotonia indefinida e vaga da vida . E , mais no fundo , no canapé por baixo do espelho , o Júlio via as meninas , duas ou três , direitas nos vestidinhos malfeitos , deixando . escorregar os olhares sonsos até ao grupo dos homens , compacto na porta da casa de jantar . Quando entrou , o Júlio abaixou de longe a cabeça à D. Amália ; e , ao terminar o pot-pourri num murmúrio de aplausos , atravessou a sala para lhe falar . -- Vem hoje muito tarde ! -- disse-lhe ela , envolvendo-o todo nos olhos verdes , pondo nesta simples frase uma queixa imperiosa . -- Demorei-me um bocado na botica do Moniz -- respondeu ele quase secamente . A sua flirtation com a D. Amália continuava , mas frouxa , sem um passo decisivo , cortada de hesitações , de escrúpulos , de faltas de pachorra ; e demais , naquela noite estava nervoso , pensando ainda nos novecentos mil réis do João Máximo . Mentindo à sua reputação já bem estabelecida de amabilidade com as senhoras , passou um pouco desdenhoso , com a luneta caída , indo juntar-se ao grupo dos homens , que fumavam no terraço . Teve um momento a intenção de se explicar com o Lopes sobre aquela secantíssima questão do dinheiro ; mas francamente a ocasião era mal escolhida . E não tinha mesmo tempo de lhe falar ; todas as senhoras estavam de pé , entrando para a casa de jantar . Era a hora do chá , que se costumava servir ali à roda da mesa . E neste movimento forçado , elas animaram-se um pouco , em conversas mais íntimas , mas lentas , no tom discreto de pessoas bem-educadas . Junto da mesa , a D. Amália fazia as honras na sua solicitude vigilante de boa dona de casa . -- Os merendeiros que estão frescos , prima Joana ! ... mais uma chávena , Sr.||_Galrão Galrão|_Galrão ? ... com pouco açúcar , não é verdade , Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo ? ... De pé , a um lado , os homens graves conversavam , sorvendo devagar pequeninos goles do chá muito quente . Vinham os assuntos mil vezes repisados : os olivais que estavam bonitos com muita flor ; os trigos que não engradeciam , queimados por aqueles calores de Maio ; toda uma vida de esperanças e decepções . E , naquelas queixas de lavradores , sentia-se passar o amor à terra , o amor vivo e entranhado a uma ingrata , que pagava tão mal aos seus apaixonados . Pouco a pouco caíram na eterna questão do trabalho ; falaram dos criados que se não podiam sofrer , uma súcia de bêbedos , sem respeito aos amos , sem zelo pelas casas onde serviam ; mas os jornaleiros eram piores , mais insolentes , e depois os salários subiam de dia para dia . O Galrão perguntou : -- A como traz os homens esta semana ? Então o Lopes teve um gesto de desolação , como se o mundo acabasse : -- Não me fale nisso ... a catorze vinténs ! ... e olhe que não pegam no trabalho senão com uma e duas horas de sol . -- Eu não sei onde isto há-de ir parar ! -- disse o padre||_José José|_José , remexendo lentamente o açúcar no fundo da xícara . Calaram-se , meditando aquela reflexão profunda ; e , na pausa da conversa , o Júlio , que escutava distraído , ouviu distintamente atrás de si a sobrinha de D. Carolina dizer em voz baixa : -- Passas amanhã ? -- Às duas horas -- respondeu o Moniz . Mas no ruído abafado , comedido , das conversações lentas , as vozes das senhoras levantaram-se agora , mais altas , num entusiasmo , que os atraiu a todos para junto da mesa ; tratava-se de uma proposta do João Gualberto , acolhida com muito favor . Habitualmente , depois do chá , a D. Amália organizava uma partida de loto , ali mesmo em volta da mesa grande ; e o João Gualberto acabava de propor o monte , baratinho , uma brincadeira , para divertir as senhoras . Teve um sucesso ; todas aplaudiram , num desejo de ganho , numa tentação aguda do fruto proibido . A prima D. Joana , saindo da sua apatia , exclamou : -- É mais divertido , não é prima Amália ? O próprio comendador sorriu com benevolência , explicando ao " Dr. Azevedo : " que o jogo era um vicio funesto , mas assim em família podia considerar-se um divertimento aprazível " . Apenas o Castro protestou tacitamente ... não se divertia com aquelas coisas . Esgueirou-se para o escritório , a tomar certas notas sobre uns diabos de uns eleitores de S. Miguel , que lhe não pareciam seguros . Todos rodeavam a mesa ; e , mal se levantaram as bandejas , o João Gualberto instalou-se para talhar , pondo diante de si quatro libras e uns cassoquinhos em prata , dizendo amavelmente : -- Vinte mil réis para quem os quiser ! D. Carolina estava já sentada ao pé do banqueiro ; a mulher do cirurgião do outro lado . A D. Amália chamou o candidato para junto de si : -- Venha fazer uma vaca , Sr.||_Azevedo Azevedo|_Azevedo , mas eu é que administro , que o senhor é um perdulário . Dê-me cá dez tostões . O principio da cartada foi fatal para os pontos ; o João Gualberto ganhava de todos os lados . A D. Carolina , já muito excitada , estendia nos dedos uma moeda de dois tostões , dizendo : -- Cerco à sena ... mas espere lá , o que é que está morto em baixo ? -- Deve estar morto o valete da cor ... mas se a Srª D. Carolina quer não se mata nada -- respondeu o João Gualberto , que carteava finamente , com muito bons ditos . -- Ora muito obrigada ao seu favor ! ... bem , está morto o valete de oiros , então cerco à sena . -- Jogo -- disse pausadamente o João Gualberto ; e voltou na palma o valete de paus . Apertado pela fogosa D. Carolina , o Júlio arredou-se um pouco para trás , pondo o braço sobre as costas da cadeira da D. Amália , assistindo à sua administração prudente e hábil dos dinheiros da vaca . Via-lhe o perfil perdido , a nuca forte , redonda , muito branca sob o nó preto dos cabelos duros . Pareceu-lhe bonita assim , na sua elegância sólida , as costas largas , o peito oscilando no ritmo da respiração descansada . Quando se encostava para trás , a abertura em bico do vestido descobria-lhe o princípio do sulco fundo entre os seios , perdendo-se em baixo na sombra tépida e provocante . Sentia-a muito perto de si , roçando-lhe no braço em contactos demorados talvez intencionais , envolvendo-lhe as pernas nas pregas do vestido azul , num calor penetrante de saias . De toda ela partia a emanação quente de uma mulher robusta , com o sangue vigoroso , muito desejável na perfeição outoniça da sua beleza . Esta vizinhança excitou-o , deu-lhe um momento a necessidade puramente animal de a apertar , de lhe pôr um beijo mordido na nuca branca , ali mesmo , diante de todos ... Mas a sua imaginação indómita e caprichosa fugiu-lhe para longe dali . Tudo em volta dele se apagava pouco a pouco . A D. Amália , o João Gualberto carteando , as senhoras à roda da mesa , a fila dos homens de pé , estendendo os braços para receberem os tostões , sumiam-se gradualmente sem contornos já e sem forma , como se os cobrisse o véu de gaze de uma mágica -- daqueles véus que se vão multiplicando , espessando , obscurecendo , até se tornarem opacos num cinzeiro negro de nuvens carregadas . E agora , nesta obscuridade , criada pela fantasia , uma janela abriu-se . Dava sobre um fundo luminoso e claro , todo cheio de sol , de folhagem viçosa e de flores . Em torno pendiam cachos de rosas-de-toucar , miudinhas , brancas , apenas tintas de carmim diluído . E ao parapeito da janela veio encostar-se pelo lado de fora uma rapariga . Tinha o oval fino , sob os cabelos escuros tocados de reflexos quentes , os olhos negros e alegres , os beiços entreabertos deixando ver o esmalte brilhante dos dentes pequeninos . E ficou ali , fitando-o e sorrindo ... Passado um instante , a sua expressão mudou ; os olhos negros , levemente pisados em roda , tornaram-se sérios na concentração intima de um sentimento absorvente . E aqueles olhos negros eram transparentes , apesar da sua negrura ; via-se através deles , como em algumas noites escuras se vê a profundidade infinita do céu . E do fundo , muito do fundo da sua transparência , vinha uma corrente de amor intensa e doce . Na criação desordenada do sonho , ele sentia aquela corrente , como se fosse material e palpável . Sentia-a na testa e no cabelo , semelhante ao sopro de um leque brando , agitado de manso ... E a expressão mudou de novo ; o círculo escuro em volta dos olhos negros marcou-se mais , e eles tomaram a tristeza magoada de uma queixa humilde e muito submissa ; mas esta expressão dorida e queixosa não lhes apagou o amor , como se coisa alguma neste mundo nem no outro fosse capaz de o apagar ... Em volta da mesa houve um movimento , e o Júlio acordou sobressaltado -- o João Gualberto acabava de ir à glória , e a sua vaca com a D. Amália ganhava sete mil e oitocentos . Todos se levantaram para sair : era um escândalo ... mais de meia-noite ! O Galrão já tinha partido com a esposa e a filha . A prima D. Joana , embrulhando-se muito , saiu também , acompanhada da moça e de um criado de cacete , porque era uma senhora muito tímida . Os outros desceram a escada em rancho , numa conversa animada , debicando ainda com o João Gualberto sobre a perda dos vinte mil réis . -- É um porquinho de menos na vara -- disse o Castro , que acabava de sair do escritório com a tal lista dos eleitores de S. Miguel . E já na rua a conversa continuava : -- Que noite tão linda ! -- Faz um luar que parece dia -- observou o padre||_José José|_José . -- Ó D. Carolina , sempre é bom abafar-se , que está húmido -- disse a D. Amália da janela . -- Ai não , menina , até está calma . -- Boas noites ! -- Boas noites ! Foram deixar a D. Plácida e a filha em casa logo ali na Rua de S. José , e a D. Carolina mais adiante à esquina da Rua dos Ferreiros . O João Gualberto , o Castro e o padre||_José José|_José seguiram conversando ; e o Júlio , sozinho , tomou a travessa do Fosso ao longo das muralhas . Veio devagar pelas ruas desertas da vila adormecida , fumando maquinalmente , todo cheio de sensações novas e complicadas . Antes de bater ao portão ficou um bocado olhando para a janela da Margarida . Tudo estava fechado e quieto . O luar iluminava cruamente as paredes caiadas da escola , enquanto a sua casa parecia mais alta , toda na sombra , recortada em negro sobre o cinzento-claro do céu sem estrelas . À volta não havia nem um ruído , nem um movimento ; apenas as corujas brancas passavam em cima no seu voo fofo , absolutamente silencioso . Como era singular tudo aquilo ! Aquela revelação justamente ali à mesa do monte ! Aquela interposição de uma imagem entre ele ... e um desejo banal ! O rapaz passeava no quarto , ruminando estas coisas , dando voltas à roda de uma ideia , sempre a mesma , insistente e teimosa . Grupava um a um todos os acontecimentos das últimas semanas , pequeninos , insignificantes , um gesto , um olhar , uma entoação mais vibrante na voz , coisas vagas , despercebidas no momento ; mas que , agrupadas agora , lhe mostravam o amor da Margarida tão claro , como aquele sol claro de Maio . O seu primeiro sentimento foi uma alegria intensa e irreflectida , um desejo vivo de a ter junto de si , de lhe tomar as duas mãos , de ficar longamente com os olhos mergulhados na transparência dos seus olhos negros . Mas nesta mesma alegria percebeu de repente , que ele ... gostava também da Margarida ; e no seu espírito formulou-se uma pergunta , que ficou sem resposta : Para quê ? Para ter com ela uma aventura semelhante Ãs outras ? ... para lhe pegar e largá-la , como teria feito à sua moça , a Bárbara , uma rapariga desembaraçada e instruída , que decerto se não incomodaria muito com o caso ? Isto era simplesmente impossível ; nem o queria , nem mesmo ... o desejava . Ele não podia tocar na Margarida , na velha companheira , na filha do Pascoal , na afilhada da avó ! Então ... para quê ? Esbarrava nesta pergunta , como em um muro sem porta . Sim ... para quê ? E , gradualmente , diante desta embaraçosa interrogação , veio-lhe uma reacção de juízo . Começou a formar planos sensatos , todos cheios de prudência e de razão . A eleição estava à porta ; logo em seguida partia para Lisboa ; e até lá tudo ficaria assim . Mais tarde , a paixoneta da Margarida passava facilmente ... se acaso a tinha . Para se sossegar , diminuía-lhe a importância ... teria inventado talvez ... exagerado decerto . Chegou a pensar no futuro da rapariga , bem estabelecida , tranquila e honestamente casada . Mas esta ideia do casamento ... com outro , deu-lhe um arrepio ; repugnou-lhe violentamente . Não ... casada não ... assim tranquila e honesta como estava . Era isso , nem podia ser outra coisa ! No entretanto não alterava os seus hábitos ... mesmo por prudência , para se não reparar . E na verdade não tinha nada que alterar , pois se no fundo não havia nada ! Justamente era a hora da sua visita ao Pascoal , e desceu a escada , mais lentamente talvez do que costumava . Achou o velho melhor nesse dia , animado , muito entretido a mudar de gaiola uns verdilhões que o Pedro lhe trouxera na véspera . No quarto ao lado , com a porta aberta , a Margarida engomava , atenta ao trabalho , encanudando habilmente uma saia complicada da D. Carolina . -- Viva ! -- disse o rapaz da porta , num tom que julgou perfeitamente natural . -- Muitos bons dias , Sr.||_Júlio Júlio|_Júlio . Então divertiu-se muito ontem ? -- perguntou ela levantando os olhos da tábua . -- Nem muito , nem pouco ... uma coisa . Porque pergunta isso ? -- Porque veio muito tarde . -- Como sabe ? Eu olhei para cá , e estava tudo fechado . Mas ela demorou-se a responder , pondo o ferro nas brasas para tomar outro ; e , direita , aproximando o novo ferro da face , experimentando-lhe o calor : -- Ouvi-o bater ao portão a sua pancada do costume , e dali a um instantinho deu uma hora . -- Ah ! então o que fazia a menina acordada Ãquelas horas ? -- perguntou ainda o Júlio , forçando-se a brincar . -- Eu ... não sei ... não podia dormir . Calaram-se . Ambos eles sentiam instintivamente que o som das suas vozes os atraiçoava , que as palavras não significavam nada , que tinham outra coisa a dizer , a verdadeira coisa , a que estava lá dentro . Margarida foi a primeira a cortar o silêncio : -- É verdade , e a sua rosa ! Pagava-lhe o foro diário de uma rosa para o veston ; e era sempre uma longa escolha no quintal , de botão em botão , a que o Júlio assistia sem querer intervir . Naquele dia escolheu-lhe uma rosita vermelha , meia aberta , e veio enfiar-lhe&lhes+a na casa , muito unida com ele , séria , tendo apertado entre os beiços o alfinete com que a devia pregar . Quando terminou , recuou um passo para admirar a sua obra , levantando para ele um olhar tão franco e tão claro , que o rapaz ficou indeciso . Sentiu-se penetrado pela paz íntima da sua expressão . Pareceu-lhe um olhar de irmã . Decididamente ... talvez se tivesse enganado . Era melhor assim . E , pouco a pouco , nos dias seguintes , recaiu na sua segurança . Julgava de novo , que era unicamente muito amigo da Margarida . Uma coisa contribuía para o iludir -- a sua tranquilidade junto dela , aquele efeito tantas vezes repetido do seu olhar franco e claro . Longe , tinha-a sempre no pensamento , sentia-se inquieto e impaciente como um verdadeiro namorado ; mas ao entrar na escola ficava bem , contente de a ter ali , de a ver trabalhar , de a ouvir no quintal , cantando a meia voz a moda nova da vila . E não desejava outra coisa , não se violentava para a respeitar -- respeitava-a pelo simples instinto do seu amor naturalmente casto . Não lhe reparava no pé bonito e fino , no tom quente do braço trigueiro , nos peitos pequeninos , direitos sob as pregas do lenço . Não , não gostava dela assim -- gostava dela de outro modo , do que via no fundo dos seus olhos negros , da alegria do seu sorriso , do seu modo de falar doce e grave , um pouco cantado à alentejana . Tinha às vezes a necessidade quase irresistível de a puxar para si , pondo-lhe um beijo longo e apertado na testa , à raiz dos cabelos -- nada mais , O desejo masculino e rude que sentira tantas vezes sem uma parcela de amor , que sentia junto da D. Amália , apesar de a achar ridícula , de quem teria nojo uma hora depois , nunca o sentiu ao pé da Margarida . A sua virilidade diluía-se na intensidade da sua ternura . E julgando o seu amor menos forte , exactamente porque era mais fundo , adormecia numa segurança toda fictícia , sem ver o que se passava dentro de si , sem ver mesmo o que se passava em volta . E era necessário ser cego para o não ver . A história do Azevedo com a Margaridinha do Pascoal andava na boca de todos . Uma personagem da importância do candidato não podia dar um passo , sem que dezenas de olhos curiosos o seguissem ; e a frequência das suas visitas a casa do velho escrivão foi notada , logo desde os primeiros dias . Naturalmente todos acertaram com o motivo ; e naturalmente também ninguém acreditou na inocência do idílio . Alguns acharam aquilo malfeito . Os adversários pensaram mesmo em levantar a questão . Na loja do Faria chegou-se a falar em " sedução de menores " . Mas um advertiu logo dali : " que era uma asneira , que a rapariga tinha vinte e dois anos já feitos " . Isto calou-os . E , como a especulação política fosse impossível , o zelo pela moralidade esfriou . De resto , a opinião geral não os seguia , muito indiferente , favorável mesmo ao Azevedo , numa deferência pelos que estão de cima . Quando na loja do Loureiro se discutiu o caso , todos se desinteressaram , achando desculpas : " Que diacho , o Azevedo era um rapaz solteiro , tratava de arranjar a sua vida conforme podia ... e a rapariga lá lhe encontraria também as suas conveniências . " O velho Peres , o antigo juiz ordinário , bom latinista e muito devasso , teve um dito feliz , recordando-se a propósito do seu Terêncio . -- Homo sum : humani nihil a me ... -- disse ele , não terminando a citação , numa meia palavra de bom entendedor . Na roda , sem perceberem bem , ficaram convencidos , celebrando o dito , penetrados de respeito pelo texto latino . Unicamente o Galrão , tocado pela esposa , se mostrou um pouco inquieto . Chegou a consultar o Lopes ; mas este tranquilizou-o : -- Olhe , Sr.||_Galrão Galrão|_Galrão , eu não sei o que há , nem quero saber . Em todo o caso não me parece coisa de circunstância ... sim , não anda nisso envolvida uma família das nossas relações . É uma rapaziada ! ... E nós quando éramos rapazes não fizemos também o que pudemos ? -- Lá isso é verdade ... e mesmo agora , hem ! ... e mesmo agora ! -- disse o Galrão , com as rugas apanhadas num sorrisinho brejeiro . Olharam um para o outro satisfeitos , remoçados até por aquela aventura , numa alegria de velhos gastos , que folgavam na taberna . E nunca mais falaram no assunto -- era uma questão liquidada . A opinião feminina ... essa foi contrária à Margarida , absolvendo o sedutor . Achavam-lhe simplesmente mau gosto . Uma das moças do Azevedo , a Bárbara , rapariga de muitas posses e nada má , resumiu-a no fim de uma conversa com a Rita do forno : -- Até parece impossível , com uma lesma daquelas ! Nisto é que todas se matavam : o que encontraria o Azevedo naquela lesminha , naquela santinha de pau carunchoso ? " Mas algumas senhoras protestaram com mais aspereza . Uma manhã , à missa das dez , quando as Pascoais vieram ajoelhar ao pé da capela do Santíssimo , a D. Plácida , a amiga íntima da D. Amália , puxou ostensivamente a filha para o lado , arredando-a daquele contacto impuro . A Margarida não percebeu ; mas a corcunda viu o gesto , e , muito pálida , abaixou os olhos sobre o livrinho de missa . Efectivamente a Margarida não percebia . Vivia , como o Júlio , nas regiões aéreas . Concentrava-se no gozo intimo de uma coisa que ela sabia sem ninguém lhe ter dito , por um saber lá de dentro , todo instintivo . Repetia mil vezes consigo : " Ele gosta de mim " ; e a felicidade que lhe davam estas palavras transbordava , enchendo-lhe os olhos de lágrimas . No entanto , ambos iam dando que falar às más e às boas línguas da vila . O Júlio agora vinha todas as manhãs , e voltava todas as tardes -- naquelas tardes intermináveis de Junho . Entrava ao cair do dia , quando o Sol se ia escondendo atrás das últimas serras numa cor sanguinolenta de incêndio . Nesta hora , morta para o trabalho , as duas raparigas , ao largar da agulha , andavam no quintal , ocupadas nos arranjos da casa . E o Júlio sentava-se também cá fora , ao pé da janela do velho . Uma ou duas vezes estranhou a Henriqueta . Pareceu-lhe constrangida , hesitante , como desejosa de lhe falar . Achou-a mesmo mais pálida , com o perfil mais afilado . Coitada ... talvez estivesse mais doente ? Mas sempre activa , girando de um lado para o outro no seu passinho desigual , entretida com os pássaros do pai , mudando a água dos bebedouros ; e , quando se aproximava dele , sempre com o mesmo sorriso triste e bom . Algumas tardes vinha por ali o Pedro carpinteiro : " dar noticias ao sior Pascoal da passarada " . Era um grande amigo do Azevedo , andava sempre a desafiá-lo para irem Ãs perdizes , ao reclamo ; tinha dois perdigões como não havia outros na vila , nem dali muito longe : -- Ó sior doutor , onte à tarde ali òs carrascais da Mãe-d'Água era uma praga . Abalei daqui já depois das três horas , e inda matei quatro . -- Homem , é tempo de defeso -- objectava-lhe o Júlio . -- Ora , isso o que monta ? ... Ninguém repara . A conversa esgotava-se , e ficavam muito tempo em silêncio . O Pedro , sentado no fundo de um cesto , inclinava-se para diante na sua fisionomia parada e paciente de homem do povo , enrolando lentamente o cigarro nos dedos duros . Ficava ali como ficaria noutra parte , numa tranquilidade de animal , habituado a todas as maçadas . E o Júlio caía num sonhar vago , tocado daquele adormecimento contagioso . Mas a Margarida voltava do terraço do fundo , de regar os goivos , corada , levemente despenteada do trabalho , sacudindo os pingos de água da saia ; e , sentando-se no ângulo do alegrete , voltava para ele os olhos negros , calada também , embebida na quietação da hora . Sob as árvores , as sombras cresciam , mais negras e mais húmidas . Na obscuridade nascente , as formas veladas perdiam as proporções ; a ruazita das alfazemas alongava-se ; todo o quintal parecia maior , sem limites definidos . E defronte , do outro lado da rua , o Júlio via a sua casa , a janela do seu quarto aberta , a fachada cinzenta , um pouco vermelha ainda nos últimos clarões do céu . Vista assim de baixo , a velha casa dos Azevedos , com as grades negras de ferro batido , e , nas ombreiras de pedra , as manchas amareladas e redondas dos líquenes mortos , tinha um ar severo , dominando o quintalzinho plebeu do alto da sua aristocracia . O Júlio às vezes julgava ler uma censura naqueles muros denegridos ; mas desviava os olhos , procurando o perfil da sua Margarida , indeciso já na luz quase extinta . Sentia-se preso no amor da rapariga ;