PORTO-Y IMPRENSA PORTUGUEZA , BOMJARDIM , 181 . ALFREDO CAMPOS A FILHA DE+O CABIDA ROMANCE ORIGINAL PORTO EDITORES -- PEIXOTO & PINTO JUNIOR 119 , Rua do Almada , 123 1873 A filha do cabinda é formosa como a visão d' um sonho celeste ; meiga como o canto do sabiá , poisado nos galhos do cajueiro , e ingenua como a virgem da innocencia . O cabinda é negro , e negro de raça fina , mas é branca a sua filha , e filha , porque o velho escravo quer muito á senhora moça , que elle beijava e embalava no seu collo , quando era pequenina . Revê-se n ' ella , e n ' ella se mira doido d' affeição o pobre negro , e tanto a gravou na ideia , tanto a traz no coração , que chega até a esquecer-se do trabalho , sujeitando-se ás reprehensões do seu senhor , para , insensivelmente , se entregar a scismar n ' ella , que é tão bondosa , tão meiga e tão carinhosa para elle ; n ' ella , que , por uma destas illusões , d' estas miragens , d' estas doidices , d' um grande affecto e d' uma viva sympathia , chega a julgar realmente sua filha . E " filha do cabinda " lhe chama elle . O negro vivia na sua terra , alegre e feliz ; lá tinha seus paes , a sua companheira , os filhos e a sua familia . Um dia , não sabe como , achou-se com todos elles dentro d' um navio , que começou a affastal- o , cada vez mais , da sua patria . Passou assim algum tempo , entre as duas immensidões , o mar e o céo , sem sentir saudades da sua terra , porque levava ainda ao seu lado aquelles que lhe davam alegria . Depois , pozeram-o de novo em terra , levaram-o a elle e aos seus companheiros para uma grande casa , onde os brancos começaram a disputar o preço por que haviam de compral-os . O cabinda foi vendido e quizeram leval- o . Leval- o ? E a sua companheira ? e os filhos ? e seus paes ? Esses , foram vendidos tambem , e cada um a seu senhor . Tristissimo era o negocio da escravidão ! Reagiu o negro , quando o quizeram separar dos seus , e quando tambem os separavam d' elle . Teve , então , saudades da sua patria , terriveis , sem duvida , porque eram , ao mesmo tempo , saudades da sua liberdade . Fizeram-lhe , porém , estancar as lagrimas angustiosas as ameaças d' um açoite , e o Cabinda lá partiu , sem esperanças de tornar a vêr os filhos queridos , que nem sequer beijara na despedida , a esposa , que elle adorava com um culto rude , mas sincero , e os paes , que elle respeitava com a sua veneração selvagem . Partiu , mas ainda assim , boa estrella o guiava , porque , cortando-lhe as affeições mais caras da sua vida , ao menos o levaram para onde tinha de ser estimado , quasi como pessoa de familia , e não como escravo e negro que era . Em casa do seu senhor foi elle encontrar uma creancinha de dois annos , que tinha uns olhos lindos , os cabellos como os olhos , negros da côr do abysmo , e um rosto como o dos anjos d' um sonho de poeta , como o das fadas boas das visões nocturnas das mattas virgens . A convivencia foi-o affeiçoando áquella creancinha , que lhe sorria tão innocentemente ; que lhe estendia , alegre , os bracinhos mimosos , e , brincando , o abraçava carinhosamente pelas pernas . O negro , quando via a pequenina Magdalena , sentia não sei que doçuras n ' alma , não sei que effluvios no coração , mas que deviam ser gratissimos , porque os olhos desannuviavam-se-lhe logo das sombras de tristeza , que os velavam sempre , e os labios desatavam-se-lhe n ' um sorriso de sincero e intimo jubilo . E tomava-a no collo , sentava-se com ella á sombra das copadas tamarindeiras ou das laranjeiras em flor , cobria-a de beijos e affagos , entretecia-lhe corôas de jasmins e martyrios , e olhava-a , assim n ' uma especie de adoração sublime e concentrada , talvez com a recordação nos filhinhos , que perdera , e que eram tambem pequeninos como a mimosa Magdalena . Tinha dez annos a filha do cabinda , quando perdeu sua mãe . Ficavam-lhe os affagos d' um pae estremoso e os carinhos do negro affeiçoado ; mas que valia tudo isso ? que valia a gotta d' agua para tão grande sêde ? o atomo em face da immensidade desfeita ? O negro , que era dedicado á sua senhora , tanto como á pequenina Magdalena , esqueceu-se da sua condição de escravo , e arrojou-se , em um impeto de dôr e d' affecto , a entrar no quarto da moribunda , poucos momentos antes d' ella despedir o derradeiro alento . Estava junto ao leito Jorge de Macedo , que era o seu senhor , embebendo em beijos lacrymosos o rosto da innocente , que ia em breve ser o seu unico encanto n ' este mundo . Os dois , pae e filha , assistiam angustiados ao desabamento d' aquelle edificio da sua ventura . O cabinda entrou como perdido , olhou para Jorge com receio , com amor para Magdalena e foi ajoelhar-se , de mãos postas , junto ao leito da enferma , chorando como creança . -- Anda cá , cabinda , disse a moribunda , com voz amortecida , ao vêl- o de joelhos , alli , ao pé d' ella . Anda cá ; vem vêr como se vai para o céo ! ... -- Que fazes , atrevido ! exclamou Jorge a meia voz . -- Ah ! meu senhor ! a mãe do escravo é um anjo , e o negro quer despedir-se da sua senhora ! -- Sahe , cabinda ! -- Oh ! não ! não ! supplicou este . O negro é escravo , mas o negro tem coração ! E abraçava a roupa do leito para abraçar a moribunda , chorava como doido , soluçando em desespero e supplicando com ardor : -- A mãe do cabinda ha-de deixar a sua filhinha e o seu parceiro , a chorarem saudades como o bemtevi do matto ? Não , não nos deixes , mãe senhora ! -- Papae , atalhou Magdalena , affagando as faces de Jorge , humedecidas pelas lagrimas ; o cabinda chora , não trates mal o cabinda , que é nosso amigo . -- Oh ! sim , sim ! acudiu o preto . O cabinda quer muito á sua filhinha , quer muito á sua senhora e muito ao seu senhor ! O negro tem alma e não tem familia a quem a dar . É , como a palmeira do morro , que não tem coqueiro ao lado . -- O negro é bom , meu Jorge , disse a doente a custo . E se te peço muito que fiques sendo a mãe da nossa Magdalena , não te esqueças tambem de que o cabinda a trouxe ao collo muitas vezes , quando era mais pequenina . -- Não esqueço , minha Beatriz ! soluçou Jorge . -- E elle não ha-de ser mais nosso escravo , não , papae ? -- Não , minha filha . -- Mas o cabinda , atalhou o negro , não quer deixar a casa do seu senhor , não quer viver longe da sua filha . -- Não , não nos has-de deixar , que nós somos todos teus amigos , acudiu a creança , affagando o escravo , emquanto Jorge dizia comsigo , no intimo da consciencia : -- O negro tem a côr do urubú , mas tem alma de pomba rola ! Horas depois , Beatriz , a esposa de Jorge , tinha entregado a alma ao Creador . Jorge chorava , para um lado , profundamente ferido no coração , as dôres da sua viuvez . O negro e Magdalena soluçavam , abraçados , a perda da bondade da que tanto era mãe d' uma como anjo do outro . Jorge conheceu , então , até onde ia a dedicação do seu escravo , a grandeza da alma do negro , e começou a olhal- o , a tratal- o e a querer-lhe , muito mais como a um membro da sua familia , do que como a um ente , geralmente visto com desdem , com indifferença e até com desprezo . O cabinda perdera a sua familia , de que tão barbaramente o separaram , mas havia ganho muito pela sua dedicação . Bastavam as festas e os sorrisos de Magdalena , de quem elle dizia sempre : -- Agora não tem mãe , é filha do cabinda ! O Botafogo é , sem duvida , o mais formoso dos formosos arrabaldes do Rio de Janeiro . As aguas do vasto Guanabára , que , levemente onduladas , beijam constantemente a fimbria da purpura real da grande cidade , formam , n ' aquelle retiro , um como lago de sufficiente superficie , que é orlado , em grande parte da circumferencia , de " chacaras " magestosas , com vistosos e immensos jardins , vegetação opulenta e luxuriante , e explendidos e poeticos panoramas . Em 1859 , Jorge de Macedo , negociante de café em grande escala , e , ao mesmo tempo , abastado capitalista , vivia no Botafogo , em um formoso palacete , circumdado de lindissimos jardins . Magdalena , a filha do cabinda , n ' esta epocha , em que principia a nossa narrativa , tinha desenove annos , e era a fada d' aquelle arrabalde do Rio de Janeiro . O cabinda estava já entrado em edade , mas vigoroso ainda , e sempre dedicado . Occupava-se o negro da limpeza das parasitas , que tentavam envadir as aleas dos jardins , e em algum serviço de Magdalena , sendo , de resto , tractado com toda a estima e amisade . Magdalena exercia a profissão da caridade , não cuidando senão de dispensar a seu pae os carinhos e os affagos , que havia perdido na sua adorada Beatriz , e em dispensar , dos meios , que lhe abundavam , esmolas aos desgraçados e pobres . Jorge dedicava-se aos seus negocios e á felicidade de sua filha , que elle adorava muito , fanaticamente até . A chacara de Jorge de Macedo era um ninho de delicioso conforto , d' uma belleza invejavel , aonde não entrava nunca a sombra d' um desgosto , nem uma nuvem de desharmonia , pequenina que fosse . Alli , senhores e escravos , brancos e negros , todos viviam em perfeita alegria . Dos ultimos , porém , o mais querido , o mais estimado , o mais predilecto , sobre tudo de Magdalena , era inquestionavelmente o cabinda . O negro tambem não abusava , e , diga-se a verdade , bem merecia elle de todos , mas de ninguem tanto , como da que elle chamava , e queria , e estimava como filha . Era por uma tarde de maio , formosa e explendida . O sol doura , ainda , com os seus raios ardentes , os cumes do Pão d'Assucar , da Tijuca , do Corcovado , e a cupula de folhagem variada das arvores gigantes , que vestem os montes em volta do Rio de Janeiro . Uma brisa , suave , mas tepida , empregnada de perfumes de flôres e de fructos , perpassa , branda , para o norte , agitando as palmas dos coqueiros e as largas , compridas e pendidas folhas das bananeiras e das palmeiras . O sabiá trina ainda os seus modilhos deliciosissimos entre a ramagem mimosa d' uma jaboticábeira carregada de fructos , e o beija-flôr pequenino anda na sua peregrinação , voluvel sempre , e sempre rapido , deixando beijos nas flôres brancas do jasmineiro odorifero , ou nas flôres symbolicas do maracujá , que veste as paredes e os caramancheis dos jardins . O céo está sereno e limpido . Ao fundo da chacara de Jorge de Macedo ha um pequeno , mas formoso lago , coberto d' agua , que cáe , em monotono murmurio , da bocca d' um tritão de marmore fino . Por traz , encostado ao muro , e voltado ao lago , ha um vasto caramanchel formado de tranças de cipós e de maracujás , carregadas de flôres e fructos . Tem no meio uma meza de granito branco , e em volta assentos inglezes de madeira e ferro , talhados de modo que dêem ao corpo toda a possivel commodidade . A atmosphera tem a côr avermelhada dos raios do sol , que desce a esconder-se no mar , e faz brilhar , com côres phantasticas , as azas , meio diaphanas , das borboletas iriadas , que volitam dos cafezeiros para as goiabeiras , e d' estas para os ramos dos pés d' araçás . Magdalena , a formosa filha do cabinda , jantou e desceu aos jardins ; andou só , pensativa , ora alegre , ora rapida , ora vagarosa , de canteiro em canteiro , colhendo pequeninas flôres , que ia juntando entre as paginas d' um livro , mimosamente encadernado . Depois , lançou , atravez da gradaria de ferro , um olhar ao vapor da carreira , que passava em frente , atravessando o mar para o Rio , volveu-se passado um instante , e seguiu por uma alea , orlada de grandes jambeiros e pés de grumixama , em direcção ao lago , que jazia no fundo da chacara . Magdalena era formosa , d' esta formosura , que desperta um culto sincero , uma adoração em que não entra um atomo de sentimentos menos dignos , d' esta formosura , em que se espelha e revela a elevação do espirito , a bondade d' alma e a magnanimidade do coração . Aquelles olhos negros , scintillantes , orlados d' uma tenue sombra , e aquelle rosto , tão expressivamente angelico , estavam mostrando as flôres de ventura , em que se desataria o seu coração e a sua alma , para aquelle que um dia tivesse o supremo goso de a possuir . Era magestosa no andar , elegante de fórmas , e simples no vestir , mas d' esta simplicidade , que dá realce , que encanta , attráe e enleva . Como lhe fica bem aquelle vestido alvissimo , de fina cambraia , liso , desguarnecido , apertado apenas na cintura delicada por um grande laço de sêda azul clara ! Que belleza no modesto penteado dos seus negros cabellos , fartos e setinosos , formando apenas duas compridas tranças , que , cahindo-lhe pelas costas , se prendem , pela extremidade , uma á outra , ainda por um laço azul pequenino ! As pombas rolas , que andam aos pares , fallando amores na sua linguagem mysteriosa , levantam vôo com a approximação de Magdalena , que as segue depois com a vista , até as perder de todo ; mas as borboletas de côres variadissimas , seguem-a contentes , como se já a conhecessem de ha muito , e andam inquietas , em volta d' ella , ora subindo , ora descendo , como que desejando beijal-a , mas temendo fazel- o , receiando maculal-a . E ella lá vae vagarosa e muda , lançando , de quando em quando , um olhar ás flôres , que leva prêsas nas folhas do livro , talvez bem querido ! Chegou assim ao lago , debruçou-se n ' elle como procurando vêr os peixinhos dourados , que o habitavam , e foi sentar-se encostada á meza de pedra , n ' um dos bancos do caramanchel . Era expressivo o seu rosto , porque estava desenhando os desejos que sentia dentro de si , e que ella mesma não podia comprehender . Desejos vagos , mysteriosos , indefiniveis . Conservou-se absorta durante dois minutos , mas como que acordando , depois , d' um sonho que a prendia , tirou as flôres d' entre as folhas do livro , collocou-as a um lado e pôz-se a lêr alto , com a sua voz meiga , seductora e angelical . Era um livro de versos , era um livro d' amor , o que ella lia ! E tão prêsa estava com as phrases , que ia repetindo , tão scismadoramente como se em verdade as sentisse ; tão distrahida estava de tudo , de todos e de quanto a cercava , que nem ouvia os gorgeios compassados d' um bemtevi , que a sua voz harmoniosa havia desafiado , occulto entre as folhas do ramo d' uma grande mangueira , que quasi se debruçava sobre o lago . Chegou a um ponto da leitura e deteve-se suspirando . Depois repetiu ainda a quadra que acabára de recitar , e que dizia assim : Suspiras , alma , n ' um anceio languido ? Ninguem te affaga , perfumada flôr ? Ao sol as rosas da manhã desdobram-se , E a brisa affaga-as com carinho e amor ! E fechou o livro e ficou a scismar , com os olhos negros e formosos , cravados , vagamente , n ' um ponto do horisonte . Passados instantes , encostou a face á mão , como que cedendo ao pêso d' um somno voluptuoso , e por fim deixou cahir o braço sobre a meza e o rosto sobre o braço , n ' uma especie de somnolencia , sonhando , talvez , com as phrases do livro , que havia acabado de lêr , e que , sem duvida , a impressionaram ou lhe fallarám á alma . As borboletas d' azas douradas , lá andavam em volta d' ella , como que embalando-a nos sonhos , que deviam esmaltar-lhe a somnolencia . O sol havia-se já escondido o bastante para deixar a terra envolta nas sombras do crepusculo . E a não serem os murmurios da brisa e os queixumes da agua , cahindo no lago pela bocca do tritão , nada mais se ouvia n ' aquella hora da tarde , no retiro aonde repousava Magdalena . De subito começou a fazer-se sentir um leve ruido . Eram as folhas seccas do chão , gemendo debaixo dos pés d' alguem , que se aproximava . Quem seria ? As aves receiosas deixavam os seus asylos , architectados nos ramos das arvores frondosas , ante a passagem do ser que se aproximava . Um minuto depois , um negro surgia junto ao lago . Era o cabinda . O preto deu com os olhos em Magdalena , parou e susteve a respiração , com mêdo de a acordar , mas nos olhos e nos labios brilhou-lhe logo um sorriso de verdadeira alegria . -- Oh ! exclamou elle baixinho , é ella , a filha do cabinda ! E foi , pé ante pé , collocar-se de joelhos , junto á meza de pedra , em posição d' onde melhor podia contemplar a sua filha , e assim ficou sem despregar os olhos d' ella . Era uma loucura aquella affeição do negro ! O cabinda permanecia alli , como o verdadeiro crente , em face do altar do Christo crucificado . Magdalena prendia-lhe os sentidos , absorvia-o completamente . A cada respiração , a cada ondulação do seio da virgem , extremecia elle e abria mais os seus grandes olhos , n ' uma expressão alternativamente de receio e de esperança , que ella acordasse . Por fim , Magdalena estremeceu e levantou de subito o rosto formosissimo . O seu olhar meigo e deslumbrante foi encontrar o negro ajoelhado , com os olhos pregados n ' ella . -- Ah ! és tu cabinda ? -- O negro , senhora moça ! -- E que fazias ahi de joelhos ? -- Olhava para a minha filha , que dormia ... -- E que sonhava tambem , cabinda . Tu nunca sonhas , quando dormes ? -- Sonhar ? repetiu o cabinda . Á noite , quando o negro se deita , e faz escuro em volta d' elle , o cabinda vê a sua senhora , que foi para a terra do Pai dos brancos ; vê a senhora moça muito contente , com a cabeça cheia de rosas lindas , e o senhor a dar muitos beijos n ' ella . E o cabinda lembra-se , tambem , dos seus filhos e da sua companheira , e chora de noite lagrimas no escuro . -- Coitado ! -- Oh ! mas o cabinda é alegre , como o jacaiol da floresta , quando a sua filha ri e falla ao negro ! -- Pois olha , meu amigo , estou agora muito triste ... muito ! ... E Magdalena ficou como que embebida n ' uma ideia que a dominava , com o rosto em visivel expressão de melancholia . -- E que tem a senhora moça ? perguntou o negro com anciedade e receio . O cabinda não a quer triste ; as arapongas que chorem , quando o caçador as ferir . -- Nem eu sei o que tenho . Vamos andando que eu conto-t ' o . E tornando a prender as flôres entre as folhas do livro , seguiu , acompanhada pelo negro , uma das aleas oppostas áquella por onde tinha chegado ao lago . Magdalena ia vagarosa e pensativa ; o negro , ao lado d' ella , caminhava abstracto de tudo , sem vêr mais nada . Que magestoso quadro aquelle ! Magdalena era o anjo meigo e deslumbrante , da mocidade cheia d' explendores , a que sorriem todas as esperanças , e para o qual todos os horisontes são vastos , largos e floridos ! O cabinda era o velho escravo , fiel e dedicado , capaz de tudo para salvar a vida dos seus senhores , saltando de contente com dois affagos e humilhando-se submisso á menor reprehensão . Os dois caminhavam a par . Era n ' essa hora mysteriosa dos esponsaes do dia com a noite . Por sobre as suas cabeças arqueava-se , verdejante , o docel das jaqueiras , d' um lado , e dos ramos frondosos das mangueiras , do outro . As aves já se haviam retirado aos gratos asylos . -- Tu sabes o que são saudades , cabinda ? perguntou Magdalena ao negro . -- Saudades ? repetiu elle , scismando na resposta . -- Sim . -- Sei , senhora moça . É ter o negro a alma a doer muito , como á pomba rola , quando lhe tiram os filhos , ou o parceiro do ninho do matto . -- É isso . Pois olha , eu tenho saudades , e não sei de quê . Sinto a alma a pedir-me uma coisa , que eu não comprehendo , e arde-me o coração em desejos loucos , mas desconhecidos . Quero , e não sei o que quero ; desejo , e pergunto o que desejo . Não me falta nada , porque , graças a Deus , sou rica ; não ha vontade nem capricho que o papae me não satisfaça , e , olha , apesar de tudo , não vivo contente . De tarde , sempre que chega esta hora , sinto um peso na alma , que eu não sei de onde vem , nem para quê . De noite , então de noite , sonho muito e tenho saudades d' esses sonhos quando acordo . Vejo ao meu lado um rosto que me sorri , uns labios que me dizem coisas que ninguem ainda me disse , coisas bonitas , doces e encantadoras ; umas mãos que me fazem festas , que me alisam os cabellos e m ' os enfeitam de flores , e uns olhos que me olham muito , e que penetram até dentro do meu coração . Mas depois acordo , desapparece o sonho , vejo-me só , e tenho saudades , cabinda ... O negro , se bem que nada comprehendera de tudo quanto lhe dissera Magdalena , é certo que o havia adivinhado , porque acudiu rapidamente , apenas ella acabou : -- É a alma do branco que vem fallar á alma da senhora moça . -- Do branco ? perguntou Magdalena , com ar de quem não comprehendia . -- Do branco , sim . A onça do cannavial e o jabirú das lagôas teem o seu parceiro , como tinha o cabinda , quando veio da sua terra . E a senhora moça , vê o branco nos sonhos , como o cabinda vê a sua parceira e os filhos , mas o branco não apparece . -- Não te entendo , cabinda , acudiu Magdalena , scismando no que o negro lhe dizia . -- O mal da senhora moça é aqui , disse o cabinda , indicando no peito o logar do coração . O branco que a minha filha vê á noite , quando dorme , é que ha de vir cural-a . -- Como ? -- Não sei . -- Quando ? -- Elle virá . O negro tambem tinha isso , lá , na sua terra . No matto , no cannavial , quando o negro andava á caça , e no rio , quando dormia dentro da sua canôa , o cabinda não tinha a sua parceira , mas o negro via-a sempre . E um dia a parceira do cabinda appareceu , e o negro não soffreu mais , nem tornou a chorar . Magdalena continuou vagarosa ao lado do negro , mas visivelmente melancholica e pensativa , talvez com o que elle acabava de dizer-lhe . Estava ella na idade em que o coração começa a desabrochar as primeiras flôres e a sentir os primeiros desejos . Tinha algumas vezes ouvido fallar d' amor ás suas amigas ; vira umas alegres , tristes outras , umas cheias de enthusiasmo e ventura , outras soffredoras e melancholicas , e ella sempre indifferente a tudo , sempre sem lhes ligar outra importancia mais do que a que nascia da sua amisade . Nunca um homem lhe rendera uma fineza , nunca um homem lhe dardejára um olhar expressivo ; e se algum o fizera , Magdalena ou não o viu ou não o comprehendeu . Agora , sim . Agora , as saudades de que fallava ; os sonhos que lhe floriam ás noites , ou lhe esmaltavam o repouso , eram os traços claros dos desejos , que tinha na alma e no coração , de amar e ser tambem amada , de gozar os dulcissimos effluvios do sentimento , que lhe irrompia no peito . Tinham chegado assim ao terreiro , que havia na rectaguarda do palacete , para o qual se descia por uma escadaria de pedra , no extremo de uma vasta varanda . Jorge de Macedo estava de pé , no topo das escadas , fumando um charuto , e n ' uma attitude de quem esperava alguem . Magdalena , apenas o viu , desatou a correr e exclamou : -- Ah ! o papae ! O negro ficou só , e Jorge sorriu-se , dizendo : -- Olha que te canças , doidinha ! A filha do cabinda transpoz rapida o espaço que a separava de Jorge , e apenas se achou junto d' elle , fez dos braços um collar , com que lhe prendeu o pescoço , e começou a cobril- o de beijos carinhosissimos , a que elle correspondia em visivel expressão de jubilo e de ventura . Eram os beijos da flor ao tronco onde nascera ! eram os affectos gerados pelos laços mysteriosos do sangue ! Que beijos aquelles ! que affecto se não desdobrava alli ! -- Mausinho , que me deixou hoje jantar só , queixou-se ella com fingido agastamento . -- Tive muito que fazer , filha . Mas déste+este o teu passeio até ao lago , não ? -- Dei , papae , acompanhou-me o cabinda . O negro chegava n ' este momento , diringindo-se a Jorge : -- A sua benção , meu senhor ! -- Adeus , cabinda . -- E amanhã ? ... perguntou Magdalena , sorrindo com intenção . -- Amanhã ... -- É dia de festa ; faz o papae annos e havemos de jantar muito alegres ! atalhou ella . -- Muito . E vais ter hospedes . -- Hospedes ? interrogou com curiosidade . -- Sim . Convidei o guarda livros , e os caixeiros ; vem toda a gente do armazem . -- Oh ! que alegria vai ser a nossa , não é verdade , papae . -- Grande , minha filha , porque é de ti que ella vem . E deu-lhe um beijo , onde ia impressa a sua alma e o seu amor de pae extremosissimo . Magdalena foi , porém , a pouco e pouco , perdendo aquella alegria com que havia acariciado Jorge , e tornando-se pensativa , absorta , e como que esquecida de onde estava e com quem estava . O negro , do extremo opposto da varanda , tinha os olhos fitos n ' ella com a avidez de quem parecia estar estudando-a . Que nuvens , embora tenues , eram as que assombravam melancholicamente aquelle rosto tão formoso d' aquella mulher anjo ? Que pensamentos lhe agitavam a mente , para que soffresse aquella passagem suave do alegre para o triste ? O cabinda havia-lhe dito que o branco a curaria , e ella pensava n ' isso , lembrando-se dos hospedes que ia ter ao jantar , no dia seguinte . Eram as alvoradas do coração ; eram os pressentimentos do que ha de vir ! E scismando n ' isso , ia esquecendo-se de tudo , quando Jorge a accordou : -- Esqueces o piano , Magdalena ? -- Não , papae ; esperava por si . -- Vamos , então . -- Vamos . E tomou a mão a Jorge , e recolheram-se ambos alegres e contentes . Pouco depois , o piano gemia , debaixo dos formosos dedos da filha do cabinda , uma " reverie " de deliciosissimas harmonias , d' estas que levam presas , nas suas azas , o espirito até ao céo . Jorge ouvia-a n ' um extase . Sentado nas commodas almofadas d' uma cadeira estofada , tinha os olhos pregados no rosto da filha mimosa , da filha , que era o seu anjo , o seu encanto , a sua vida , a sua felicidade mais completa , mas alava o espirito ás regiões celestes , nas ondas d' aquella musica , onde , n ' uma especie de mystificação , estava vendo a sua adorada Beatriz , a esposa queridissima , que a morte desapiedada lhe arrebatára tão cedo dos braços ! O cabinda , no entanto , jazia no extremo da varanda , que deitava sobre o terreiro , dizendo comsigo a meia voz : -- Os brancos veem amanhã ; o mulato virá tambem . Cabinda , a senhora moça é tua filha ! Vai em meio o jantar , no dia seguinte . A animação é completa , e viva , sincera e espontanea a alegria , que referve em cada conviva . É que alli não ha superiores nem inferiores , não ha grandes nem subordinados ; ha uma familia festejando os annos do seu chefe estimado e querido , que só como pessoas de familia , olha Jorge para as que tem sentadas em volta da sua meza . Magdalena preside á festa , como o anjo bondoso e meigo d' aquelle lar , onde só ella é sol , que tudo aquece e vivifica , cuidando pouquissimo de si e tudo dos outros . Está esplendida de formosura ! deslumbrante de encantos ! Tem nos olhos a vivacidade de alegria intima , e os esplendores da belleza d' alma ; no rosto a sympathia que fascina , e nos modos a doçura que captiva . Veste um vestido de sêda côr de flôr d' alecrim , simples , mas elegantemente enfeitado , honesta e delicadamente aberto no seio , onde vem cahir , pendente d' um formoso collar de pequeninas perolas , uma medalha cravejada de brilhantes . Os cabellos , aquelles cabellos negros , tão feiticeiros , pendem setinosos em lindissimos cachos , ornados apenas d' uma perfumada rosa branca . Jorge cedeu as honras da festa á filha querida , que occupa a cabeceira da meza , occupando elle o primeiro lugar na face direita , á direita de Magdalena . Segue-se-lhe o guarda-livros , rapaz de 25 annos , portuguez , sympathico , elegantemente trajado , meigo no fallar e polido nas maneiras . Do outro lado , em face d' estes , estão o primeiro caixeiro , mulato brazileiro , de rosto duvidoso , olhar que pouco lhe favorece o caracter , e modos apparentemente delicados , e os outros empregados do armazem , que não merecem menção especial . Falla-se alegremente ; discute-se com placidez . Magdalena , a todos attende e não esquece nenhum . De si é que ella cuida pouco . Entre os serventes nota-se o cabinda . O negro anda entalado nas dobras d' uma gravata branca , cujo laço fôra feito pela sua filha , e veste uma roupa nova de pano preto fino . Anda doido d' alegria , ebrio com a alegria da sua filha . O negro lança todavia , de quando em quando , uns olhares de expressivo despreso ao mulato que janta , e volve-os depois para Magdalena , como que dizendo-lhe : -- Foge d' elle ! O guarda-livros , que se chama Luiz de Mello , e o mulato caixeiro , de nome Americo de Abreu , olham tambem a seu turno para Magdalena e depois um para o outro . Ella , porém , a formosa filha do cabinda , parece prestar mais attenção a Luiz , sem que por isso deixe de ser delicada com todos os outros . Os pratos teem-se succedido , os copos esvasiado algumas vezes , e tanto se tem comido como fallado . A alegria assentou-se com os convivas á meza d' aquelle festim . Começam as sobremezas e vão principiar os brindes . Magdalena é a primeira . Está porém , um pouco acanhada em presença dos seus hospedes porque tomando o calix , vieram colorir-lhe o rosto duas rosas de purissimo rubor . -- Quero ser a primeira , disse ella , porque sou filha . Brindo aos seus annos , papae . E levou o calix aos labios , mas mal provou o vinho . -- Acompanho a V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a , acudiu Luiz , desejando com ardor que d' aqui a muitos annos os possa brindar e festejar , tão alegre e tão feliz como hoje . -- Do mesmo modo , repetiram os outros . -- Obrigados , meus amigos . Agradecido , filha . E Jorge levou a seu turno o calix á bôcca , continuando depois : -- Agora , Magdalena , á saude dos nossos hospedes ... -- E , ajuntou Luiz , á felicidade da filha de V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a , fazendo , todos nós , sinceros e ardentes votos , para que um bom anjo a proteja sempre , a ella , que nos recebe aqui como irmã nossa , e irmã muito affectuosa . Magdalena tornou a ruborisar-se , olhando para Luiz com olhos de reconhecimento , e respondendo-lhe : -- Obrigada , meus amigos . Faço o que devo e menos do que merecem . -- Á felicidade de V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a , brindaram todos . -- Obrigado , agradeceu Jorge pela filha . E o jantar seguiu , e os brindes continuaram . Luiz olhava cada vez mais para Magdalena , e é certo que encontrava sempre os olhos d' ella pregados nos seus . Americo analysava aquillo , e o cabinda analysava o mulato . No entanto , a alegria ia ganhando de intensidade , porque os convivas d' aquelle festim intimo e familiar de Jorge e sua filha , iam perdendo , sem sahirem dos limites do respeito , um resto de acanhamento que a franqueza do capitalista e a bondade da filha do cabinda não poderam de todo dissipar . Os negros e serventes , tinham por sua vez festa no aposento destinado á sua refeição . O cabinda , porém , lá chegava , de quando em quando , para , com a sua prudencia , e digamos mesmo , bom senso , impedir excessos e pôr obstaculos a abusos . Estava a terminar o jantar . Já se fallava muito e nada se comia . Jorge levantou-se então , e , tomando uma garrafa de finissimo vinho do Porto , dirigiu-se aos seus convidados : -- Vamos ao ultimo brinde . E encheram-se os copos . -- Bebo , não só á saude e á prosperidade d' aquelles que chamei hoje a minha casa , como pessoas a quem estimo e considero , mas bebo tambem á saude das suas familias ausentes . -- Agradecidos , senhor , accudiram todos . -- A sua mãe , senhor||_Luiz Luiz|_Luiz , brindou Magdalena . -- Mil vezes grato , minha senhora , respondeu elle , vivamente impressionado . -- Agora , para de todo terminarmos esta festa , proseguiu Jorge , e d' ella ficar uma lembrança aos amigos , que aqui tenho em volta de mim , lembrança tão grata , quão grande foi a alegria que me porporcionaram , declaro ao senhor||_Luiz_de_Mello Luiz|_Luiz_de_Mello de|_Luiz_de_Mello Mello|_Luiz_de_Mello e ao senhor||_Americo Americo|_Americo d'Abreu que deixam , desde este dia , de ser , um , meu guarda-livros , e meu caixeiro o outro , para se considerarem meus socios nas transacções da minha casa . Não esqueço os outros , que trabalham para a minha prosperidade , e fica desde já o meu socio e amigo Luiz de Mello , encarregado de lhes augmentar os ordenados . Minha filha festejou-me os annos , collocando-os em volta d' esta meza , eu commemoro-os d' este modo , esperando que recolherão assim mais contentes . -- Como é bom , papae ! murmurou Magdalena . Houve então uma verdadeira chuva de agradecimentos , que é desnecessario pintar , e da alegria passou-se ao enthusiasmo , quasi ao delirio . Luiz levantou-se pallido e tremulo de commoção , mas extremamente sympáthico , e dirigiu-se a Jorge : -- Se V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a me confunde com a grandissima distincção , com que acaba de honrar-me , chamando-me seu socio , por muitos titulos me honra mais , e mais me confunde ainda , dando-me o nome de amigo , para a conservação e engrandecimento do qual , não deixarei nunca de empregar todos os meus esforços . -- Obrigado , respondeu Jorge , apertando-lhe a mão . E dispunha-se a deixar a meza . N ' este momento , porém , entrava o cabinda , trazendo pela mão uma negrinha de 10 annos , que o negro foi apresentar-lhe . -- Que é isso , cabinda ? -- A Belmira traz ao seu senhor as flôres dos negros , porque o cabinda e os seus parceiros tambem festejam os annos do pae da senhora moça , respondeu o negro , em quanto a pretinha offerecia a Jorge um lindissimo ramo de mimosas flôres . -- Obrigado , Belmira , obrigado , cabinda , disse o capitalista , affagando a creança . E tu , Magdalena , ficas encarregada de ir agradecer a todos , em quanto vamos para o jardim esperar o café . -- Como és nosso amigo , cabinda ! disse Magdalena . E foi assim que terminou o jantar . Jorge e os convivas desceram para o jardim . Magdalena foi agradecer em nome de seu pae a lembrança dos escravos . O cabinda seguia-a com os olhos , a faiscarem alegria , gritando como doido : -- O branco veiu , senhora moça ; o branco é bom e gosta da minha filha ! Americo , descendo para o jardim , approveitava um momento , em que só Luiz podia ouvil- o , para lhe dizer , com certo ar de cynismo ; -- Temos ambos igual quinhão no negocio : agora veremos quem leva a filha ! Pouco depois era servido o café . Jorge e Americo , tomavam-o , conversando sentados em duas pittorescas cadeiras de bambús , á entrada de um formoso caramanchel de trepadeiras floridas . Os caixeiros mais novos passeiavam pelo jardim e pela chacara , gosando a liberdade , que lhes era concedida , desforrando-se da prisão quotidiana , e do serviço quasi aturado do armazem . Magdalena , a formosa filha do cabinda , andava de canteiro em canteiro , mostrando a Luiz de Mello as suas flôres ; apontando , deslumbrante de candidez , as particularidades de cada uma , a idade e a procedencia , com a convicção de quem conhecia alguma coisa de botanica , e um tanto orgulhosa dos cuidados , que empregava com as predilectas suas irmãs . Luiz segui-a e ouvia-a como fascinado , parecendo-lhe mais que estava passando por um d' estes magicos sonhos de delicioso encanto , que tantas vezes embalam a imaginação juvenil , do que assistindo á realidade de vêr e ouvir ao seu lado um anjo , esplendoroso d' encantos , e suavissimo d' harmonia nas fallas . -- Olhe , dizia Magdalena alegre , radiante e sempre formosa ; olhe este pé de " suspiros_$. suspiros_$. Não é tão , bonito ? -- Formoso , minha senhora . -- E estas " saudades_$, saudades_$, não são tão lindas ? -- Muitissimo . Saudades ... as flôres symbolicas dos que soffrem ; dos que , como eu , longe da patria , aonde deixaram a familia , vivem na esperança de lá voltar , sem terem , comtudo , n ' ausencia d' ella , um affago , que lhes adoce a aridez do trabalho ; um carinho , que lhes lisongeie o sentimento , um consolo n ' este correr da existencia , isolado , monotono e , por muitas vezes , triste . -- O senhor||_Luiz Luiz|_Luiz tem muitas saudades da sua terra , tem ? -- Se tenho ! ... -- Tambem eu as sinto ! disse Magdalena com ar melancholico . -- Saudades , minha senhora ? ! perguntou Luiz admiradissimo . -- Sim , admira-se ? -- E com razão . Pois V. Ex. ^ a , cercada de todas as commodidades da vida , dos extremos e affagos d' um pae , que é mais que muito carinhoso ; nova , formosa , permitta-me V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a esta verdade ; vendo realisados todos os desejos , satisfeitas todas as vontades ; V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a , que é , que deve realmente ser muito e muito ditosa aos olhos de toda a gente , e aos olhos proprios , confessa que sente saudades , e não ha de querer que eu , exilado , sem familia , sem estes nadas da vida , que a dulcificam e embellezam , me admire e espante d' essa confissão ? -- Que quer ? Tenho-as , sim , mas tambem não sei de que , para lhe fallar a verdade . -- Comprehendo . N ' esse caso melhor será que V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a diga antes que tem desejos ... E emfim , quem sabe ? Na idade de V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a , na idade florida dos amores , dos enthusiasmos , das alegrias , das expansões e dos sonhos formosissimos , ha sempre , póde pelo menos haver , muita vez , algumas d' essas melancholicas florinhas , que são , então , como pequeninas nuvens no azul d' um céo estrellado e deslumbrante . -- Não é isso , disse Magdalena levemente contrariada . Não é isso , porque eu nunca amei . -- Ah ! V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a nunca amou ? -- Nunca , pelo menos que eu saiba , respondeu ella ingenuamente . -- Mais um motivo para eu crêr que o que V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a tem , são desejos de amar e ser tambem amada . -- Talvez , accudiu Magdalena córando , e pregando em Luiz os seus negros , grandes e formosos olhos . -- E acreditaria V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a no amor do primeiro homem , que ousasse render-lhe um culto , confessando-lhe esse sentimento ? -- Conforme . O coração é que havia de decidir . -- E o coração de V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a não lhe diz nada ? não lhe lembrou ainda um nome ? um homem , a quem tenha de dar as perolas valiosissimas do seu affecto ? -- Já . Luiz estava pallido e tremulo de commoção . -- Oh ! se fosse eu ! ... murmurou elle . -- Que tinha ! era muito feliz , era ? -- Se era , minha senhora ! muito ! muito ! -- E amava-me ? perguntou Magdalena anciosa , e um tanto agitada . -- Oh ! com delirio até ! -- Pois então não dê a mais ninguem o seu amor , porque ... eu tambem o amo muito ! E a formosa filha do cabinda olhou para todos os lados como receiando que alguem a ouvisse . Creança ! Que commoções a não abalaram n ' aquelle momento ! que agitação n ' aquelle seio tão estreito , agora , para as ondulações do coração , que tantas flôres estava desabrochando ! Era a primeira vez que lhe fallavam d' amor ! era a primeira vez que um homem a impressionava . O que ella viu , o que ella sentiu , era o Paraiso com as bellezas deslumbrantissimas dos seus vastos e perfumados jardins ! era o céo com todas as harmonias das suas orchestras , afinadas pelos dedos dos anjos ! Luiz esqueceu-se da patria , da familia , das saudades , que tinha por uma e outra , e começou , n ' uma como visão phantastica , a vêr diante de si um horisonte illimitado de felicidades sem fim ! Que dia aquelle ! que dia tão venturoso ! D ' um lado os beijos carinhosos da fortuna , do outro , as flôres magicas do amor d' um seio de virgem ! Eram tão violentas as commoções que o abalavam que apegas poude murmurar : -- Juro-lhe que a hei de amar eternamente ! mas supplico- lhe que não me engane nunca ! -- Nunca ! prometto-lh ' o pela memoria sagrada de minha mãe ! ... E embebidos nas doçuras , nos enthusiasmos d' este colloquio , que jámais devia ser esquecido Luis e Magdalena tinham-se affastado um pouco para um dos angulos do jardim . Sentaram-se como que machinalmente . Magdalena voltava e revoltava entre as suas mãos mimosas e pequeninas um viçoso suspiro ; Luiz aspirava o fumo d' um delicioso charuto bahiano , e arrojava depois ao espaço as ondas azuladas , as nuvens pequeninas do fumo aspirado . Os pés dos jasmineiros floridos impregnavam a atmosphera de perfumes que inebriavam . E o pôr do sol , o cahir das primeiras sombras do crepusculo da tarde , começavam a pesar na alma d' aquelles dois namorados , estremosos como duas juritys . -- Parto d' aqui a pouco , minha senhora , disse Luis olhando com saudade para Magdalena . -- Mas ha de vir ver-me sempre que poder ; sim ? -- Sempre que não haja quebra de conveniencias . -- Conveniencias ? interrogou Magdalena . -- Sim , minha senhora . Bem vê V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a que a minha presença muito frequente n ' esta casa , póde despertar suspeitas , e eu não desejo , nem devo desgostar o senhor||_Jorge_de_Macedo Jorge|_Jorge_de_Macedo de|_Jorge_de_Macedo Macedo|_Jorge_de_Macedo , que apesar de estimar-me muito , talvez não approve esta affeição , que começa a prender-nos hoje . -- Ha de approval-a , basta que eu lhe diga que o amo . -- Em todo o caso não a descubra V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a por ora , não ? -- Não . -- -E se um outro homem , um homem qualquer se dirigir a V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a , ou se mesmo seu pae lhe apontar algum , como digno de partilhar do nome da sua familia ? -- Despedilei- o- . -- Agradecido , minha senhora . -- E olhe , quando não possa vir vêr-me , dê-me ao menos noticias suas , sim ? Fico com tantas saudades e com tantas lembranças d' este dia ! -- Tambem eu as levo . Mas por quem lhe heide dar as minhas noticias ? -- Pelo cabinda . O negro quer-me muito ; bem sabe que sou a filha d' elle . -- Muito bem . Agora retiro-me que são horas . Levo-a a V._Ex._^ V._Ex._^ V._Ex._^ a gravada nos olhos , e no coração . -- Faça-me ainda uma coisa , faz ? -- Tudo , minha senhora . -- Deixe as " excellencias " com que me trata e mostre-me mais confiança . -- Seja . Era essa a minha vontade . Adeus ... Magdalena . -- Até breve ... Luiz ! E apertaram-se as mãos n ' uma effusão de grandissimo sentimento , e separaram-se depois , saudosos ambos , ambos melancholicos e impressionados . Americo e os outros empregados do armazem partiram tambem . Jorge deixou depois a filha e sahiu . Magdalena ficou só . Nas salas havia aquella meia escuridão da hora melancholica da transição do dia para a noite . No céo já brilhavam , formosas , algumas estrellas . Magdalena foi sentar-se ao piano . Não ia tocar , ia fazer mais , porque ia gemer saudades com aquelle amigo . As harmonias que encheram a sala eram suaves e melancholicas ; casavam-se em tudo com o que ella estava sentindo , e transportavam-a a mundos onde nunca tinha subido . As mãos formosas e delicadas premiam suavemente as teclas de marfim , mas o seu espirito só via uma imagem , aquella musica só lhe repetia um nome : -- Luiz . E tão embebida estava , tão embrenhada jazia n ' aquelle sonho que a dominava , que nem sequer deu pelo cabinda , que surgiu cautelloso a uma das portas . O negro parou n ' uma contemplação , que era a maior prova do seu culto por Magdalena . Mas ao vela assim tão preoccupada , ao parecer-lhe triste , approximou-se carinhoso e disse , com toda a sua affeição a transparecer-lhe na voz : -- Ainda está triste a minha filha ? Magdalena como que accordando d' um sonho respondeu : -- Não , cabinda . Agora penso na felicidade . -- E o branco ? -- Tenho-o aqui , respondeu , indicando o coração . -- Mas a senhora moça é ainda a filha do cabinda ! -- Sou , sim ; tu és meu amigo , e elle ... elle amo-o muito ! Vai um pouco adiantada a noite . A lua dardeja os seus raios de prata nos morros da Tijuca , do Pão d'Assucar e Corcovado , e côa a sua luz pallida pelos intresticios da vegetação luxuriante dos arrabaldes do Rio de Janeiro . Que noite formosa ! Prendem-se as estrellas umas ás outras pelas suas palhetas luminosas , e bordam , como brilhantes de subido valor , o manto azul da vasta abóbada do céo . Dormem as aves ao som do murmurio suave das auras , que perpassam entre a ramaria das arvores alentadas e fórtes . A atmosphera impregnou-se durante o dia , dos perfumes das flôres e dos fructos , que o sol fecundante fez amadurecer e desabrochar . O ananáz e o jasmin , o cajú e as acacias brancas , a pitanga e as rosas de Alexandria , as flôres todas , e todos os pômos das arvores fructiferas , casam , umas com as outras , os seus aromas deliciosos , do conjunto dos quaes , se fórma uma essencia , que embriaga , que é doce , e suave , e agradavel . O Botafogo dorme , velado pelo manto das suas bellezas , no centro d' um silencio , apenas quebrado pelo cicio das agoas da sua poetica enseada . No meio de tudo isto , de todas estas bellezas , ha um ente que ainda não repousa , enlevado em sonhos de fascinadora poesia . É Magdalena , a filha do cabinda . A formosa virgem encostou-se ao peitoril da sua janella , e , silenciosa , firmou os olhos pensativos , n ' um ponto , onde a imaginação e o espirito , estão fazendo passar , desenrolando-se rapidos , uns variadissimos panoramas , umas paisagens de infinitas bellezas ! Está como que sonhando . Sonha , jurity mimosa e meiga , que os sonhos das alvoradas do amor são formosos e bellos ! Abre o sacrario virgem do teu coração , que começa a fecundar as primeiras flôres , aos perfumes que a aragem da noite transporta nas suas azas ! Faz as tuas confidencias á lua ; conta os teus segredos ás estrellas ; porque uma e outras virão , em cada noite , reflectir da altura , onde andam suspensas , a imagem que te povoa a alma , o coração e a soledade ! Scisma ; prende pelo espirito , por esse élo mysterioso , que aniquila as distancias , o pensamento ao pensamento , que vem , de longe fundir-se com o teu , em um só ! Deixa que o coração se dilate , que a alma se expanda , e se aqueça ao calor do sentimento que a anima ! Oh ! mas cahem-te dos olhos , que reflectem o céo , como se a proprio céo elles fossem , duas perolas mimosas ! Porque choras , criança ? Que pêso poderão ter na balança do teu destino essas duas lagrimas , que ninguem vê , mas que alguem beberia soffrego , embora occultassem a morte ? São o baptismo do teu amor ? ou o preço da tua felicidade ? E Magdalena com o seu rosto formoso , mas nublado de melancholia , tinha duas lagrimas a marejarem-lhe os olhos fascinadores . Aquellas duas gotas crystallinas eram as flôres das primeiras saudades d' amor , saudades pelo primeiro homem , que lhe tocára o coração com a varinha magica do condão do infinito sentimento . Magdalena pensava em Luiz , estava-o vendo n ' aquella hora , como o vira em sonhos tantas vezes , nas noites em que o seu coração sentia o mal estar d' um vacuo incomprehensivel . Meigo e bondoso , affavel e doce , lá lhe estava sorrindo , lá lhe estava fallando com a sua voz attrahente ! E ella tinha saudades d' elle , saudades do dia que havia passado , e saudades d' aquelle passeio pelo jardim , ao seu lado ! Quizera- o alli sempre , quizera-o junto a si eternamente ! Oh ! que alternativa não estava passando o seu viçosissimo coração ! D ' um lado as claridades magicas do amor nascente , as promessas de Luiz , o preenchimento do vacuo , dos desejos ardentes que ella não comprehendia ! Do outro , a ausencia , a distancia , o atear d' aquelle fogo sublime , a sêde d' aquellas flôres , que haviam brotado na sua alma , a noite d' aquelle dia tão repleto de encantos , a soledade , emfim ! Ó mocidade ! como és formosa com as tuas esperanças , com os teus receios , com as tuas alegrias , com as tuas lagrimas , com todos esses contrastes , que te agitam o seio , onde tudo é vida , onde tudo é enthusiasmo e delirio ! Sonhas de dia acordada , e velas de noite repousando ! Nas paginas do teu livro , se ha cantos melancholicos , ha tambem poemas d' infinita ventura , por que o amor , que te doura as flôres e os dias , é a fonte , onde , com uma lagrima , brotam muitos gosos . E Magdalena continuava a scismar . Era a primeira noite d' amor ; o somno cedeu o logar aos receios e ás esperanças . Dentro de sua alma e do seu coração havia um murmurio de harmonias , constante , como o murmurio das cachoeiras da floresta . Ella tinha diante de si uma imagem e nos labios um nome -- a imagem e o nome de Luiz . Este velava tambem . Scismava em Magdalena , e estava-a vendo com os olhos do seu amor , perpassando diante dos olhos do corpo , airosa , gentil e meiga , como a vira n ' aquelle jantar , que nunca mais poderá esquecer , e como a ouvira n ' aquelle jardim , de que ella era a flor mais candida e mais formosa . Luiz habitava na rua dos Pescadores , no Rio de Janeiro , o terceiro andar da casa do armazem de Jorge -- Macedo . Era confortavel o seu aposento , que elle andava percorrendo , visivelmente preoccupado , d' um a outro extremo . É pequeno agora o ambito do seu coração para conter tudo quanto está sentindo . Um mundo , vastissimo d' esperanças , se está desenvolvendo diante dos seus olhos , no meio do qual avulta , radiante , o anjo de Magdalena . Encheu-lhe o amor o seio . Elle , que vivia tão descuidado , entregue ás saudades da patria e da familia , e ao desempenho das suas obrigações , esquece-se de tudo isso , agora , esquece mesmo a imagem , duplamente santa , de sua mãe , para só se lembrar de Magdalena , que lhe era uma pessoa estranha , uma pessoa indifferente . Oh ! o primeiro amor ! ... Eram fortissimas as inspirações que o dominavam e tanto mais quanto menos as esperava . Magdalena deslumbrara-o , não só com a sua belleza , mas muito mais ainda com a sua ingenuidade , com os seus modos despertenciosos , e com a sua franqueza . Foi um anjo que lhe surgiu do céo , a elle , que andava na terra com a aridez no coração . Todavia um vago pressentimento d' uma fatalidade o vinha acabrunhar por vezes . Aquellas palavras d' Americo , quando , depois do jantar , desciam ambos para o jardim , soavam-lhe ainda aos ouvidos e eram-lhe desagradaveis . Deram-lhe a conhecer que o mulato pertendia tambem Magdalena , e o mulato era capaz até d' uma infamia para a conseguir . Luiz conhecia-o bem , estava ha muito tempo em contacto com elle , e tinha-o mesmo estudado . Americo tinha os maus instinctos e a indole dos da sua raça , embora apparentemente adoçados por uma educação rasoavel , e pela convivencia d' aquelles com quem as suas obrigações o levavam a tratar . O jantar tinha sido n ' aquelle dia , e desde que elle findara , ou antes , desde que em casa de Jorge , os dois se separaram , ainda não tinham trocado uma palavra , porque ainda se não tinham encontrado . Luiz tinha , porém , a certeza de que o mulato não guardaria silencio , e dispunha-se a combater a todo o transe , se tanto fosse preciso ... Que importavam a Luiz as pretenções d' Americo , se Magdalena jurára amal- o , invocando a sacratissima memoria de sua mãe ? Que lhe importava que o mulato , ferido no seu amor proprio , no seu orgulho e nas suas ambições , pelo despreso ou pela indifferença de Magdalena , o tentasse desthronar por meios ardilosos , por infamias até ? Não tinha Luiz a sua consciencia limpa ? Não lhe dizia ella que elle havia de vencer ? Dizia . No entanto , é certo que o drama ia começar , que a lucta ia travar-se , mas não face a face , e a peito descoberto . E em quanto Luiz pensava n ' isto e na sua Magdalena , lá ia a lua caminhando pelos páramos do azul sem fim , namorando a formosa filha do cabinda , que a olhava melancholica nas saudades do primeiro amor , e reflectindo as suas mil agulhas de prata reluzentes nas aguas murmuradoras das cachoeiras da floresta , e no espelho do vasto Guanabára . Ó noite ! que de pensamentos não desabrocham , no meio do teu silencio , nos corações que viçam amores á luz do teu astro argenteo ! Eram oito horas da manhã do dia immediato , quando Luiz desceu para o escriptorio . Americo já andava dando as suas ordens para o embarque de uma porção de saccas de café . Os dois comprimentaram-se amigavelmente na apparencia , porém , com certa reserva e um pouco de frieza , o que não era costume . Luiz trazia no rosto a pallidez impressa pela vigilia d' uma noite inteira ; Americo os traços de quem tinha uma ideia a dominal- o . E os dois socios de Jorge de Macedo dirigiram-se ambos ao escriptorio , situado no fundo do armazem . Luiz sentou-se a escrever ; Americo começou a examinar a correspondencia do dia anterior . Os negros e os outros caixeiros andavam na labutação de pesar e ensacar o café . -- Nao sei onde te meteste hontem , desde que nos separamos no Botafogo , principiou Americo , passando a vista de umas para outras cartas . -- Eu é que te não tornei a vêr ; respondeu Luiz placidamente , sem volver os olhos dos livros , que tinha diante de si . -- Fui ao theatro . -- E eu vim para casa . -- Ah ! exclamou Americo com certo ar intencional . -- Nao sei de que te admiras . -- Eu ? de nada . -- Esse " ah ! " solto assim ... -- Foi natural . -- Talvez , mas nao creio . Parece-me que queria dizer alguma coisa . -- Não . Já tiveste noticias de Magdalena ! -- Noticias de Magdalena ? ! perguntou Luiz com certo ar d' altiva admiração . -- Sim ; ou não deixaste ainda as coisas n ' essa altura ? -- Gracejas de certo , Americo . -- Não gracejo , não . Então has-de negar que a não desfitaste um momento , durante o jantar de hontem , e que lhe fizeste uma confissão d' amor , em quanto passeiavas com ella pelo jardim ? -- -- Não nego , nem affirmo . -- Calas ; quem cala consente . -- Não sei . Mas d' um ou d' outro modo o que me parece é que nada deves ter com isso . -- Outro tanto não digo eu . -- Não sei porque . -- Porque tambem sou pretendente . -- Ah ! sim ! -- Tu começaste ; veremos agora qual dos dois acabará . -- Veremos . -- Mas porque não has-de ser franco comigo ? -- Franco em que ? e para que ? És homem como eu ; tens o campo aberto , propões a lucta , acceito-a . Se tiver a franqueza de confessar-te que amo Magdalena , retiras ? Não . Ella é que escolhe ; se algum de nós lhe convier , o outro já sabe o que tem a fazer . -- E se eu fôr o escolhido ? -- Paciencia . E se não fores tu ? -- Hei-de empregar todos os meios . -- Todos ? -- Todos , sim . Os da minha raça bem sabes que não recuam nunca , e se o ignoras fica-o sabendo agora . -- Em todo o caso diz-me : Queres a mulher pelo dinheiro , ou queres a mulher porque a amas . -- Quero-a por ambas as causas ... principalmente . -- Comprehendo . -- Julgas , talvez , que na balança da conquista , o prato pende mais para o teu lado ? Enganas-te . Nós , os brazileiros , e sobre tudo os que , como eu , teem na face a côr bronzeada do cruzamento das raças , estamos fartos de vêr que os pobretões dos portuguezes nos venham , de tão longe , roubar as mulheres e o dinheiro . Luiz córou e pôz-se d' um pulo em pé . -- Insultas-me ! exclamou elle . -- Não ; digo a verdade . -- Dizes a verdade ! bradou Luis com ironia . Havia de fazer engulir-te a phrase se não conhecesse que fallas despeitado . Fallas dos pobretões dos portuguezes ! Que seria de ti e dos teus se não fossem elles ! Morriam todos de fome , haviam de ser uns miseraveis ! Nós é que trabalhamos , nós é que vos sustentamos , pódes ter a certeza d' isto . Se vos levamos o dinheiro , levamos apenas uma parte do fructo do nosso suor , ficando tu e todos os teus com a outra , com a maior , sem o minimo esforço de corpo e de espirito ; se nos ligamos com as vossas filhas é por que as merecemos , é porque somos verdadeiramente dignos d' ellas , para não dizer que mais honra lhes vai com estas allianças , do que a nós . Repito ; eu queria vêr o que seria de vós se não fossem os pobretões dos portuguezes ; de vós , que apenas nascesteis para vos bamboleardes na rêde , indolentes , occiosos , tomando o vosso café e fumando o vosso cachimbo . -- Seja como fôr ; não discuto nobrezas de nacionalidade . O que te digo é que hei-de empregar todos os meios para conseguir Magdalena . -- E eu affirmo-te que nem um só vingará . -- Veremos . -- Veremos . Declaras-te meu inimigo , atiras-me a luva , levanto-a . Conheço agora que has-de usar de todas as armas , desde a hypocrisia , desde o ardil apurado até á infamia , até ao crime refinado . Pouco importa . Hei-de bater-te com a verdade , só com ella te hei-de derrotar . Todavia , recommendo-te prudencia , porque se o meu braço se envergonhar de castigar-te , talvez haja quem o faça sem que o esperes . -- Ameaças-me ? -- Não ; previno-te . -- Pois bem ; eu me defenderei . -- Mas de modo que não vás ferir aquelle que ainda hontem , além de nos sentar á sua meza como amigos , nos elevou á dignidade de partilharmos da sua fortuna . A lucta é comigo , e só comigo , e se me encontras disposto a combater-te , não me encontrarás disposto a tolerar-te a minima coisa que possa , mesmo de leve , ferir Jorge de Macedo , que é hoje meu socio , meu protector e meu amigo , finalmente . Mais ainda , Americo , e isto vale uma ameaça . Magdalena é uma pessoa sagrada para mim , e exijo que o seja para ti . A menor falta de respeito da tua parte , a menor insolencia que lhe dirijas , pagal-a , bem paga , fica certo d' isso . A contenda é comigo e só comigo , ainda uma e ultima vez t ' o digo . -- Pouco me importam as tuas ameaças , e respondo a ellas com uma gargalhada . -- Bem sei que vai até ahi o teu cynismo e a tua cobardia . -- Luiz ! ... -- Cobardia , sim ! affirmou Luiz perfilando-se destemido em face de Americo . Este ia , n ' um impeto de raiva , a lançar-se ao guarda livros , mas ao vêl- o tão resoluto , ao vêr-lhe nos olhos a chamma da valentia e a coragem com que o esperava , recuou , deteve-se , e volveu-se , saindo a dizer : -- Ia-me zangando ! A occasião não era propria , e nem mesmo valia a pena . Tenho tempo de desforrar-me . -- Ou de levares uma licção que te aproveite , canalha ! respondeu Luiz . Dois minutos depois , já Americo andava ordenando e vigiando o trabalho dos negros e mais caixeiros do armazem , e Luiz continuava escrevendo , como se nada lembrasse a cada um d' elles d' aquella scena que o mulato havia provocado . No entanto Luiz estava livido , d' esta lividez produzida pela raiva sopeada , e Americo , no meio da labutação dos seus subordinados , trazia nos olhos espelhado claramente , o pensamento , o desejo de vingança , que lhe avultava no seio . A imagem , formosa sempre , e sempre sympathica de Magdalena , lá estava , apesar de tudo , interposta entre os dous , a separal-os , a affastal-os , a lançal-os , sem mesmo ella o pensar , em uma lucta tremenda , que devia necessariamente terminar muito mal para um d' elles , pelo menos . Luiz via-a com os olhos do seu amor , do seu affecto , da sua virtude ; Americo com os olhos dos seus desejos desenfreados de vingança , com os olhos da sua ambição e do seu calculo . Magdalena era o centro d' uma linha nos extremos da qual se agitavam convulsivamente sentimentos inteiramente oppostos . Teriam ambos a mesma força ? Qual d' elles tinha de attrahil-a ? É facil prevel- o . A imagem de Luiz já lhe enchia o seio , já lhe havia povoado os sonhos da primeira noite d' amor , aquelles sonhos porque ella passára accordada , solitaria na sua janella , com os olhos cravados na lua , e a alma a sentir o " gosto amargo " d' uma saudade indefinida . Eram tres horas da madrugada , quando Magdalena se retirou da janella , onde a vimos tão scismadora , tão embebecida na contemplação silenciosa da rainha da noite , que , apesar de bem alta , ainda ia vaidosa a mirar-se nos crystallinos espelhos dos lagos adormecidos , e gosando as suaves emanações das flores dos jardins . Nunca a formosa virgem tivera uma noite de sensações tão violentas , esmaltada de tantos receios e de tantas esperanças , de tantas rosas e de tantos espinhos . A imagem de Luiz , ora lhe sorria cariciosa , meiga , e cheia de bondade , ora lhe apparecia gelada , fria , e grave , com todos os traços d' uma indifferença verdadeira . Eram as alternativas do amor ; era esta serie de contrastes e antitheses que o constituem , e de que elle proprio se alimenta , inflamma e vive ! Todavia , n ' esta opposição de ideias , de phantasias , d' aspirações , que a dominavam e agitavam , o predominio era inquestionavelmente para o pensamento da felicidade , que tão magicamente lhe sorria no amor de Luiz . O amor de Luiz ! ... Aquelle sentimento era o céo com todas as suas bellezas ; com as harmonias dulcissimas das harpas afinadas dos seus anjos ; com todos os cambiantes das luzes formosas dos seus astros scintilladores ! E foi n ' este diliciosissimo vago d' uma esperança de ventura que Magdalena adormeceu . Os olhos , aquelles olhos sempre formosos , cederam por fim ao pêso da somnolencia , e deixaram-se velar docemente pelas palpebras , quasi transparentes . Não cessaram porém as ondulações do seio , que estava sendo o leito d' um vasto oceano d' amor . Não cessaram , não , porque ainda se prolongava o sonho , em que , inteiramente embebida , se havia demorado na janella , d' onde sahira momentos antes . A formosa filha do cabinda estava vendo diante de si vastissimas campinas de flores perfumadas ; estava ouvindo umas harmonias alegres , como nunca ouvira ; tinha por cima o céo azul , limpido e sereno dos dias tropicaes , e em baixo , na terra , a esteira matizada de flores , que a mão d' uma fada branca , aeria e vaporosa , andava espargindo prodigamente . Ó mocidade ! como são magicos os teus sonhos , quando te perfumam o seio largo , as emanações balsamicas dos roseiraes floridos do amor ! Como é deslumbrante e querida a imagem , que te faz palpitar o coração , gravada nos raios prateados de cada estrella , reflectida na superficie serena de cada lago , envolta nas harmonias suaves e doces do cahir da agua de cada cachoeira , presa nas mil palhetas douradas do sol de cada esperança , e engastada na muldura valiosa das perolas de cada crença ! Sonha , Magdalena , sonha ! Na tua idade , os sonhos são vida , a vida é ventura e a ventura parece não ter fim ! ... Sonha , em quanto te doura a fronte , e se reflecte no negro assetinado dos teus formosos cabellos , o sol vivificante dos teus vinte annos tão perfumados . E Deus queira que um dia não tenhas de beber a sicuta das desillusões , o calix amargo e mortal do fel da desventura ! Desponta propicia a estrella do teu amor ; te alegrias os canticos suaves , que te embalam o somno leve ... Dorme , virgem ; dorme , sonha , vive , e gosa ! E Magdalena sonhava . N ' aquelle momento , havia , porém , dois homens que a estavam vendo com olhos d' affecto formosamente sincero , mas inteiramente distincto . Eram Luiz , que não podera conciliar o somno , e o negro , o cabinda , que havia accordado a pensar na felicidade da sua filha . As seis horas da manhã já o sol dourava , com todo o seu deslumbrante explendor , a vegetação opulenta das mattas virgens , e as florinhas mimosas dos jardins vicejantes . As aves mandavam ao céo , nas azas invisiveis da viração do sul , o seu cantico matinal de graças e louvor . Sorria-se inteira a natureza , n ' um sorriso que era como um hymno abençoando o Creador ! O cabinda andava já , contente do seu trabalho , entregue á limpeza das folhas seccas , cahidas , durante a noite , em volta do lago , onde Magdalena costumava ir sentar-se , pensativa , no fim de cada tarde . E tão embebido andava o negro , que nem viu a sua filha approximar-se d' elle , surgindo d' uma das aleas da chacara , orlada de mangueiras , cajueiros e pitangueiras . -- Tão entretido , cabinda ! disse Magdalena approximando-se . -- A minha filha ! exclamou o negro , depois de se volver admiradissimo , com um sorriso d' intima alegria a pairar-lhe no semblante . -- Então ? volveu ella . Julgas que só tu te levantas com o sabiá das laranjeiras ? -- O negro não esperava a senhora moça , não . A sua benção . -- Quero que vás á cidade . -- Ao branco ? perguntou elle com rapidez . -- Sim . Vais levar este bilhete ao senhor||_Luiz Luiz|_Luiz , mas has de entregal- o só a elle , ouviste ? -- Descance a minha filha , o negro vai já . E depois , como recordando-se d' alguma coisa passada , o negro continuou : -- Oh ! o cabinda bem dizia , que o branco dos sonhos da senhora moça havia de chegar . É elle ; o branco veiu e a minha filha gosta do branco . -- Ah ! suspirou Magdalena , enlevando-se nos sonhos do seu affecto . Ah ! se tu soubesses como eu o amo ! -- É como o cabinda á sua parceira e aos seus filhos que lhe tiraram . -- Mais , mais ainda ! Tu não imaginas como eu sou doida por elle ! Pertence-lhe a minha vida , o meu coração , a alma , o pensamento ! Sou toda d' elle , e não poderia viver sem elle . Tu , oh ! tu não sabes o que eu sinto , não ! Penso n ' elle de dia , de noite , a toda a hora , e sempre ! Tu contentas-te em ter saudades da parceira , que te tiraram , dos filhos de que te separaram ; e eu morria se elle me faltasse , morria , sim ! -- E o branco tambem quer muito á minha filha , muito ; acudiu o cabinda , a quem o enthusiasmo de Magdalena , havia enthusiasmado tambem . -- Quem sabe ? murmurou ella , n ' uma expressão d' alguma duvida . -- O negro vê . Hontem , no jantar , os olhos do branco buscavam os olhos da senhora moça . Eram como a jurity do matto , a chamar a companheira entre as folhas do capim ... -- Isso era hontem , mas agora ? ... respondeu Magdalena com melancholia . -- Agora , senhora moça , o negro vai e hade trazer alegrias á sua filha . -- Vem depressa , ouviste ? -- O negro não tardará . E o cabinda guardou o bilhete que Magdalena lhe déra , e partiu apressado , volvendo-se , de quando em quando , para traz . No seio da formosa virgem havia uns alvoroços immensos . Era a esperança que os originava , a dourada esperança , em que Magdalena ficava , de que depois das suas noticias , que mandava a Luiz , este lh'as mandaria tambem , n ' um repetido protesto de grandissimo affecto . Subiu . Ao chegar ao topo da escada , encontrou-se com Jorge . -- Tão cêdo cá por fóra , filha ! exclamou elle , um tanto admirado ao vêl-a . -- Estava uma manhã tão bonita ! vim vêr as minhas flôres . E beijou-lhe a mão e abraçou-o , cariciosa e meiga . -- E tão cêdo as deixas , doidinha ! -- Já as vi , já lhes fallei , papae . -- E agora que vaes fazer ? -- Uma visita a outro amigo ... disse ella , sorrindo . -- Pois ainda tens mais affeiçoados , Magdalena ? -- Se tenho , papae ! disse ella , suspirando . Então o meu piano ? -- D ' aqui a pouco esqueces-me de certo . Se vaes assim a repartir o teu affecto , não deixas no teu coração um cantinho para teu pae ! -- Oh ! o logar do papae ninguem o tira , ninguem ! -- Nunca ? -- Nunca ! E Magdalena prendeu-o pelo pescoço , sorrindo com meiguice , e imprimiu-lhe na face dous osculos purissimos . Jorge acolheu-os como os paes acolhem os beijos dos filhos , quando os paes são paes , e os filhos não degeneram . O cabinda chegou á rua dos Pescadores , no Rio , alguns minutos depois de terminada a disputa entre Luiz e Americo . O escriptorio , como já dissemos , era situado no fundo do armazem , e resguardado por uns tapamentos de madeira , que interceptavam a vista do seu interior ás pessoas que entravam . Americo estacou , e como que teve um estremecimento , vendo surgir o negro . Dissimulou-o , porém , o mais que pôde , e foi encostar-se a uma porta lateral . -- Louvado seja o Senhor ! disse o negro , entrando . -- Adeus , cabinda ; respondeu Americo docemente . -- O negro quer fallar ao senhor||_Luiz Luiz|_Luiz . -- O teu senhor não vem hoje á cidade ? perguntou Americo com intenção . -- O negro não sabe . -- Quem te mandou , então ? -- A senhora moça . E o cabinda lançou a Americo um olhar perscrutador . -- A senhora moça ? perguntou o mulato , admirado do pouco segredo que o negro guardava da sua missão . -- Sim . -- Trazes recado ou carta ? acudiu Americo rapidamente . -- O negro traz carta . -- Dá cá , que eu vou entregal- a ao senhor||_Luiz Luiz|_Luiz . -- A ordem da senhora moça é só para entregar a elle . Americo encolerisou-se com a resposta do cabinda , e disse , raivoso : -- Bem se vê que és negro ! -- Como o pae de muita gente , respondeu aquelle . -- Patife ! ... -- O negro é cabinda , e o cabinda é raça fina . O mulato é filho de branco e de negro ... Americo sentiu-se altamente atacado , mas enguliu a affronta , que provocára . Teve vontade de atirar logo dous murros ao negro , mas o receio deteve-o , porque tinha diante de si um homem possante , que , embora escravo , era , comtudo , um escravo estimado e querido . No meio da sua ira , e , digamos , da sua cobardia , limitou-se a ameaçar : -- Deixa estar , que o teu senhor saberá que andas a trazer e a levar recados da senhora moça , patife ! -- O negro não tem mêdo . E o cabinda deu-lhe as costas , e dirigiu-se ao escriptorio , onde lhe parecêra ouvir a voz de Luiz . Chegou á porta e metteu a cabeça . -- Licença . -- Ah ! és tu , cabinda ? Entra ; acudiu Luiz , largando a penna . -- O negro , meu branco . -- A que vens ? -- Trazer isto . Manda a senhora moça . E tirando do bolço o bilhete de Magdalena , entregou-o a Luiz , esperando com alegria , sorrindo de contentamento . Luiz sentiu um d' esses abalos , grandemente bello ; um d' esses choques , que se sentem sempre que nos chega a mão a primeira e suspirada carta do objecto do nosso amor . Que papel aquelle ! que thesouro não estava alli ! Fossem dizer ao sympathico moço que o não lêsse ! offerecessem-lhe por elle todas as riquezas do mundo ! Recusava , de certo , e recusava sem a minima hesitação ! Apenas o perfumado papel lhe chegou ás mãos , Luiz abriu-o com uma rapidez vertiginosa , e lançou ao contheudo os olhos , mais como quem o devorava , do que como quem o estava lendo . Era uma soffreguidão nervosa , natural , exigida até pelas circumstancias . O cabinda que lhe seguia o menor dos movimentos , que parecia mesmo estar lendo o que se passava no seu intimo , permanecia immovel , suspenso , n ' uma contemplação profunda e silenciosa ; A leitura da pequenina carta foi rapida , mas , n ' esse pequeno momento da sua duração , Luiz subiu todas as notas da escala harmoniosa dos transportes sublimes da ventura . O bilhete dizia o seguinte : " Luiz " Ainda não ha vinte e quatro horas que me deixaste e já não posso com as saudades , que me magoam . Vem-me vêr quando poderes e diz-me sempre que nunca hasde esquecer a ... tua Magdalena . " " P. S. Passei a noite a pensar em ti , e até nas tres horas , que a fadiga me obrigou a repousar , tive sempre , ao meu lado , em sonhos lindos , a tua imagem , que me sorria e eu acariciava . " Era curta a missiva mas , em compensação , eloquentissima . E Luiz olhou para o negro . -- Então ? perguntou este . -- Ah ! cabinda ! cabinda ! exclamou o moço com duas grossas lagrimas a brilharem-lhe nas pupillas . -- O branco chora ? que tem ? interrogou o negro rapidamente , passando do extremo da alegria ao extremo do receio . -- Choro , sim , e olha que nunca os meus olhos verteram lagrimas como estas ! São de ventura , são de felicidade ! Cada uma me vale o céo , cada uma é um hymno , cada uma é um poema ! Choro , porque nem só a dôr , nem só a tristeza , nem só o infortunio , tem lagrimas . A alegria , quando é tão grande , como a que eu estou sentindo , tambem as tem , tambem se adorna com ellas . Aquellas são amargas , são negras , queimam e ferem ; estas , que tu vês nos meus olhos , teem o explendor d' um sol formoso , são dôces , porque resumem a essencia d' um nectar suavissimo , dão vida , porque contéem em si os elementos que a vigorisam ! Choro , porque sou feliz , cabinda ! O negro ouviu Luiz n ' uma anciedade indiscriptivel . O peito arfava-lhe com violencia ; era um mar tempestuoso . Os olhos , os seus grandes olhos , estavam pregados em Luiz . Susteve-se assim em quanto o amoroso moço ia fallando , enlevado nos transportes do seu grandissimo affecto . Mas apenas elle acabou , o negro acudiu logo immediatamente : -- E o branco gosta da senhora moça ? -- Oh ! se a amo ! ... -- Muito ? -- Até ao delirio ! -- Obrigado , meu branco ! obrigado , meu branco ! exclamou o negro , beijando phreneticamente as mãos ao moço . -- Que fazes , cabinda ? acudiu Luiz , commovido , porque traduzia n ' aquelles beijos a affeição do escravo por Magdalena . -- É porque a senhora moça é filha do cabinda , e o negro quer a senhora moça muito feliz . -- És uma grande alma ! -- Mas o mulato ... -- Oh ! o mulato , acudiu de prompto Luiz , é preciso cautela com elle ! -- O cabinda não dorme ! disse o negro em um tom d' ameaça . -- Bem . Agora vou escrever duas linhas e não te demores . Vai logo , sim ? -- A minha filha espera , bem sei . Luiz sentou-se e escreveu as seguintes linhas : " Magdalena " Poderei esquecer tudo , mas esquecer-te a ti , nunca . Fizeram-me bem as tuas palavras , E se estás soffrendo a melancholia das saudades que sentes por mim , eu estou entre as nuvens da tristeza , d' esta ausencia , em que nos tem uma distancia tão curta . Passaste a noite scismando em mim ; eu não repousei , pensando em ti . Lá havias de sentir no teu seio os echos do meu pensamento . Irei vêr-te quando podér , e crê que te amo , que te adoro muito , muitissimo . " Luiz . " O negro partiu . Quando chegou ao Botafogo ainda Magdalena estava sentada ao piano , para onde a vimos encaminhar-se depois de ter affagado Jorge , seu pae , com dous affectuosissimos beijos . O piano não estava agora gemendo deliciosas harmonias ; estava sendo a victima da anciedade , em que Magdalena esperava o cabinda . As mãos ora corriam rapidas , ora vagarosas , traduzindo claramente os sentimentos e as ideias que se iam succedendo na sua juvenil imaginação . De quando em quando , corria á janella a vêr se divisava o negro , mas voltava com a melancholia no rosto , sempre formoso . O cabinda entrou n ' um dos intervallos em que ella tocava . Apenas elle surgiu á porta da sala , Magdalena deu um grito . Inundou-lhe o rosto todo o explendor do sol das alegrias . Os olhos faiscaram centelhas de felicidade . -- Então ? que trazes ? perguntou ella , correndo para o negro . -- Carta do branco . -- Dá cá , depressa , anda . O negro entregou a carta de Luiz e Magdalena começou a lêl- a do mesmo modo que aquelle havia lido a d' ella . Eram eguaes as impressões , eguaes as circumstancias , eguaes os sentimentos da occasião . Ao findar a leitura , Magdalena deitou os braços aos hombros do escravo , e exclamou , ébria de contentamento , douda d' alegria : -- Ah ! cabinda ! cabinda ! -- Está contente a senhora moça ? -- Oh ! muito ! muito ! nem tu sabes como eu sou feliz ! -- É isso o que o negro quer , porque a senhora moça é filha do cabinda ! Jorge de Macedo chegou ao armazem pouco depois do negro ter sahido . Luiz e Americo cumprimentaram-o com a delicadeza devida . O capitalista recebeu-os como socios seus , affavel , risonho , bondoso , mesmo com um tanto da meiguice que o caracterisava . Jorge de Macedo era um homem sympathico , moral e physicamente . A sua physionomia era d' estas que attrahem á primeira vista , os seus actos modelados em harmonia com a virtude , com a honra , com a probidade , com todo o cavalheirismo , emfim . Ficára viuvo muito cedo . A necessidade obrigou-o a ser carinhoso com a filhinha , que ficava orphã das dulcissimas meiguices de mãe . A sua alma identificou-se com aquella necessidade e Jorge tornou-se homem sensivel , bondoso e em extremo meigo . Os seus subordinados eram tratados , não como taes , mas como amigos . Os pobres tinham sempre aberta a sua bolça . Para as grandes emprezas , para qualquer melhoramento do progresso era sempre o primeiro a dar o seu nome e a concorrer com os seus fundos . Tudo isto o fazia estimado e querido , tudo isto lhe valia um nome honrosissimo , apesar da sua vida retirada , porque Jorge , não por systema , mas por indole , apenas tinha e alimentava a convivencia com as pessoas , a quem o ligavam os seus negocios . Desde que fallecera Beatriz , a sua esposa querida , ninguem mais o viu em um baile , em um club , em uma associação recreativa . Magdalena resumia-lhe todos os encantos , todas as distracções , todos os prazeres . Com ella , com a sua adorada filha , passeiava elle muitas vezes , n ' aquella alegria d' um doce bem estar , d' um gosar inalteravel de venturas suavissimas . Magdalena fôra educada esmeradamente , com todos os vivos cuidados d' um pae amantismo , mas sem o desenvolvimento , que mais tarde se desata em grandes exigencias , em superfluidades , em loucas ostentações . Jorge cercara-a sempre de todas as commidades , mas não a affastára nunca d' uma simplicidade abundante . As amigas de Magdalena fallavam-lhe de bailes , das alegrias , dos ehthusiasmos de qualquer reunião d' este genero , ella respondia , fallando do seu piano , das musicas novas , das bellezas d' algum livro , das alegrias d' um passeio ao lado do seu pae . E Magdalena vivia assim , contente , satisfeita , risonha e feliz , graças ao systema d' educação empregado por Jorge . A affabilidade , porém , do nosso capitalista , não se limitava á sua filha , não se resumia só n ' ella ; estendia-se , como já dissemos , a todos os que tinham o prazer de o tratar , fossem grandes ou pequenos , pobres ou ricos . Os proprios escravos eram os primeiros a estimal- o , porque não deixando de se fazer tratar por elles com o respeito devido , tambem os não olhava , como em geral , com olhos de despreso , nem os carregava d' asperidades , maus tratos e indifferença . Jorge acolheu , pois , affavelmente os seus novos socios e dirigiu-se ao escriptorio , para resolver os trabalhos e negociações do dia com elles . Leu-se a correspondencia , fizeram-se deliberações , disposeram-se algumas transacções de commum accordo . Jorge tinha no negocio uma longa pratica de muitos annos . O seu modo de vêr as cousas era d' um alcance vasto . Luiz e Americo ouviam-o attentos e tomavam as suas palavras como conselhos e lição . Depois de uma hora de conferencia o capitalista sahiu . Luiz ficou entregue á escripturação e Americo passou ao armazem a dirigir o trabalho dos negros e caixeiros . Os dois associados não mostraram o menor vislumbre do resentimento , nem das más disposições em que se achavam um com outro , na presença de Jorge . Bem pelo contrario , fallavam , consultavam-se , e olhavam-se , como duas pessoas ligadas por estreitissimos laços de amisade e de sympathia . A presença de Jorge continha-os dentro dos limites do respeito . Além de que , qualquer d' elles se julgava culpado perante a propria consciencia . Luiz ainda podia alliviar a culpa com a ideia do sentimento que o dominava , do amor que lhe estava enchendo o coração . Americo , esse , não tinha uma unica appellação . Jorge voltou de novo ás duas horas e foi encerrar-se com Luiz no escriptorio . Conversaram por largo tempo , e quando ás tres da tarde sahiu para regressar á chacara , chamou Americo e disse-lhe : -- O senhor||_Luiz Luiz|_Luiz sahe amanhã no vapor das 8 horas para Macahé . Vai a negocios meus . Quando vier a correspondencia abra e dê as suas ordens como entender conveniente .