A Rosa do Adro Manuel Maria Rodrigues A umas cinco ou seis léguas do Porto , e no fundo montanhoso de uma colina , surge , como por encanto , de entre as bouças de pinheiros e carvalhos , a pequena mas pitoresca aldeia de ... forma ela um gracioso montão de pequenas casas , com as suas paredes brancas de neve e os seus telhados vermelhos de sangue , sobrepujados por outras tantas chaminés , das quais respiram de vez em quando uns rolos esbranquiçados de fumo , que se desfazem nos ares ao mais leve sopro da viração . Do centro deste interessante grupo sobressai , majestosa , uma igreja de modesta e simples arquitetura , do cimo da qual se ergue , desafogada , uma grande cruz de granito , que eleva para o céu os seus toscos braços enegrecidos pelo tempo e pelos anos . É belo e cheio de poesia tudo aquilo ! Aquele acervo de modestas habitações , tão estreitamente aconchegadas umas Ãs outras , assemelham-se a pobres e tímidas fugitivas que , abandonando pressurosas o bulício das cidades , ali vieram apertar-se num terno abraço , procurando a paz e o descanso eterno em derredor daquela carinhosa mãe , que as abriga com a sua sombra e as protege do alto com os braços abertos , como para as livrar de qualquer perigo . Depois , ao longe , lá se levanta ainda sobre a relva dos campos uma ou outra casa , que parece espreitar invejosa , por entre a folhagem verdejante do arvoredo , aquela feliz fraternidade das suas companheiras . Enfim , as pequenas florestas , as viçosas planícies , as pitorescas encostas da colina , os estreitos e límpidos regatos serpenteando por toda a parte , o trinado alegre das aves na alvorada , o canto monótono e sentido do pegureiro , ao pôr do Sol , quando conduz os rebanhos , o mugido lastimoso das vacas que pascem , e uma outra infinidade de harmonias da natureza em toda a sua plenitude de rusticidade , dão Ãqueles lugares um aspeto de paz e felicidade inconcebíveis . Em uma das pequenas casas que mais se aconchegavam à igreja , e distanciada desta apenas por um pequeno largo , a que chamam adro , habitava em outro tempo , em companhia da sua avó , única parente que então lhe restava , a mais alegre , linda e engraçada rapariga daqueles arredores . Chamava-se Rosa , e tinha apenas dezoito anos . Não era uma dessas corpulentas mocetonas , de faces vermelhas e roliças , de grandes olhos castanhos e cabelos de azeviche , de que o nosso belo Minho nos dá tão apreciáveis exemplares . A Rosa do Adro , como lhe chamavam , era , muito ao contrário , alta e de compleição delicada ; tinha o rosto um pouco comprido , as faces aveludadas e cobertas de um ligeiro rosado , os lábios finos e vermelhos , os dentes pequenos e brancos , os olhos cor do céu , umas vezes travessos , outros meigos e de uma languidez angelical , os cabelos louros e nédios , e as mãos e os pés pequenos e bem conformados . Era um conjunto de belezas e graças que enfeitiçavam os olhares mais descuidados e indiferentes . Fazia gosto vê-la ao domingo , na missa do dia , vestida com a sua saia baeta-crepe , a cabeça caprichosamente envolta num lenço de cambraia , cuja alvura mais deixava sobressair o alourado dos seus cabelos e o rosado das faces , os virgíneos seios cuidadosamente recatados por um grande lenço de flores vermelhas , simetricamente encruzado , e cujas pontas vinham unir-se , por um nó , atrás , na cintura delicada e flexível , já apertada por um colete de fustão amarelo , salpicado de pequenas flores encarnadas , os braços cobertos até aos pulsos pelas mangas largas de uma camisa alvíssima e os pequenos pés semi-calçados num as apuradas chinelas de duraque com biqueiras de verniz . Quando ela e a sua avó , dirigindo-se para a igreja , apareciam no adro , um rumor surdo , uma exclamação de alegria exalava-se de todas as bocas . " Aí vem a Rosa do Adro ! " -- diziam . E , no mesmo instante , todos os olhares , todas as atenções se projetavam na graciosa rapariga , que , com o sorriso nos lábios , ia atravessando os grupos de povo , respondendo com um gracejo Ãs lisonjas dos velhos , Ãs banalidades amorosas dos rapazes , e aos elogios , nem sempre sinceros , das vizinhas e amigas . E , enquanto os sons da campainha não chamavam à oração , reunia-se a um qualquer grupo de raparigas , com as quais conversava , entretanto que a sua avó , entrando no templo , ia ajoelhar diante do altar da nossa Senhora , a fazer-lhe as suas costumadas orações e a pedir-lhe mil bênçãos para a querida neta . Terminada a missa , Rosa entretinha-se no adro a conversar os rapazes , que , azafamados , e depois de uma renhida questão de " primeiro vou eu e depois irás tu " , procuravam à porfia ocasião propícia de se lhe aproximarem , esforçando-se cada um por captar-lhe mais provas de simpatia e amor . Ela , porém , sem escolha nem deferência , com todos falava , com todos se ria , sem contudo demonstrar a mais leve predileção por qualquer deles . Depois , à tarde , quando os rapazes e raparigas vinham reunir-se em frente da sua pequena habitação , formando aí um dos seus prediletos bailados , era Rosa , entre todas , a que mais se distinguia , já pela sua voz sonora e engraçados improvisos , já pelo garbo e requebros sedutores com que dançava . Passados os domingos , pela semana adiante , era sempre a mesma , alegre e folgazã . Sentada à pequena janela da sua casa , trabalhando , a sua voz melodiosa não deixava sequer um momento de se fazer ouvir , indo o seu eco perder-se ao longe , nas quebradas dos montes ; e , se qualquer campónio passava e lhe dirigia alguma graça inocente , ela sempre risonha , não o deixava sem uma resposta zombeteira , com o que ele se ia vangloriado de contente . Não havia esfolhada , sarau ou festa para que não fosse convidada , sendo sempre a mais obsequiada em toda a parte onde aparecia . Finalmente , a Rosa do Adro era a alegria e o enlevo de toda a gente . A rainha , o tudo daqueles lugares . Quanto ao seu viver doméstico , era ele o mais simples e regular possível . Só com a sua avó , não carecia de grandes haveres para se sustentar a si e a ela . Não tinham o mais pequeno rendimento , mas o trabalho de Rosa dava o suficiente para que ambas pudessem viver sem privações de espécie alguma . A bela rapariga era costureira de profissão , e , como por aqueles arredores não havia quem , melhor do que ela trabalhasse ou fizesse um vestido , uma jaliota , uma capa ou outro qualquer adorno feminino , não lhe faltava por isso nunca que fazer . Além disso , como tivesse um gosto especial para aquele género de trabalhos , tornara-se de há muito a mais acreditada modista do pequeno mundo elegante da localidade , sendo ela a que inventava as modas e as punha em prática nas obras que lhe mandavam fazer , consistindo tais novidades em dar esta ou aquela forma a qualquer objeto de vestuário , e em aumentar ou diminuir uma prega , um folho ou uma fita num a saia , vestido , ou capa . Relativamente a namoros , como geralmente se diz , Rosa não tinha nenhum certo . Falava com a mesma afabilidade e com o mesmo agrado para todos os rapazes da aldeia , sem contudo patentear mais pronunciada deferência por qualquer deles . O seu coração , despreocupado e juvenil , parecia inabalável e insensível aos mais ternos olhares e Ãs mais ardentes declarações , e isso dava incentivo a algumas pessoas de a acoimarem de presunçosa e soberba . Rosa , porém , nada disso tinha : o seu coração , ainda pouco impressionável e talvez um tanto leviano , não era de fácil contento ; entre os rostos dos rapazes que lhe faziam a corte não encontrara até então uns olhos que lhe impressionassem profundamente a alma , nem vira entreabrir-se uns lábios que proferissem duas palavras que lhe soassem sonoramente ao coração . Havia , porém , de chegar-lhe um dia a sua vez . Cerca de um quarto de légua distante da igreja , e por detrás de um pequeno monte coberto de castanheiros velhos , estendia-se a rica herdade chamada do Capitão , nome que lhe viera dos avoengos do atual possuidor , o Sr.||_José_da_Costa José|_José_da_Costa da|_José_da_Costa Costa|_José_da_Costa , o mais abastado lavrador daquelas redondezas , homem honrado em toda a aceção da palavra , um pouco rude , sim , mas que nem por isso deixava de exercer , havia oito anos , com toda a consciência e retidão , o importante cargo de juiz eleito da freguesia , sendo , além disso , juiz , mesário ou irmão de quantas confrarias e irmandades ali existiam . Tinha ele um filho , único herdeiro dos seus haveres , chamado Fernando , a quem , por mera deliberação sua , mandara aos catorze anos para o Porto estudar preparatórios para se formar em medicina . Fernando , que não passara até então de um pobre rapaz , sem ilustração nem pretensões , acostumou-se depois por tal forma aos hábitos da cidade e Ãquela vida livre e risonha de estudante , que dentro em pouco tempo tornara-se o mais alegre , espirituoso e casquilho de todos os seus condiscípulos , pois que para tudo lhe dava de sobra a recheada bolsa do seu pai , sempre aberta Ãs suas mais pequenas necessidades e exigências . Apesar disso , Fernando não desaproveitava o tempo , e , como era dotado de uma bela inteligência e aplicado ao estudo , tornara-se ao mesmo tempo um aluno distinto nas aulas que frequentava , recebendo por vezes , com grande contentamento dos seus pais , algumas distinções e prémios pelo seu bom aproveitamento . Aos vinte e três anos achava-se já matriculado no quarto ano da Escola Médica , tendo até ai dado provas bem patentes da sua feliz vocação para a carreira a que se destinava . É nesta época que precisamos travar com ele conhecimento . Terminara o ano letivo , e Fernando , depois de fazer os competentes actos , viera passar o resto das férias junto da sua família , a quem no ano antecedente não visitara por causa dos seus trabalhos , tomando-se por isso a sua visita mais apetecida e festejada . Seus pais receberam-no , como de costume , de braços abertos e com as lágrimas nos olhos , revendo-se com ufania naquele esbelto rapaz , que fazia o orgulho da família , não só pelo seu comportamento exemplar como pela posição distinta que em pouco deveria ocupar na sociedade . -- Estás um rapaz como um cravo -- dizia a boa da mãe do estudante , olhando-o de alto a baixo e com esses bigodes assim retorcidos à moda dos sobrados ... -- Aquelas senhoritas lá do Porto não hão de ter folgado nada contigo , hem , que digo eu ? Fernando limitava-se a responder Ãqueles gracejos maternos com um ligeiro sorriso , enquanto que o seu pai exclamava com um ar bondosamente sério : -- Anda , meu tratante , que me estás por um bom par de moedas ; ainda assim , louvado Deus , não tens sido dos piores , não , porque enfim sempre estudaste e aproveitaste o tempo , que é o que eu desejava ; lá do mais , vocês são rapazes , gostam de figurar e de estroinar ... é verdade , eu na vossa idade fazia o mesmo ; vamos , não tens sido dos piores ... Para o ano , se Deus quiser , já teremos um cirurgião cá na aldeia , não é verdade ? -- Assim o creio , meu pai -- respondeu o rapaz . -- Para o ano termino o curso , e então já terá um filho médico-cirurgião . -- Eh , eh , eh ! -- respondeu o José da Costa , rindo-se -- um médico-cirurgião , dizes tu ; diz antes um mata-gente ! Eh , eh , eh ! -- Oh , meu pai ! ... -- A propósito -- continuou o pai de Fernando , rindo-se . -- Tu já serás capaz de dar aí um remédio para um doente cá da casa ? -- Então quem é que está doente ? -- Ora quem há de ser ? É a pobre da nossa égua preta , que deu aqui há dias um tropeção e ficou com uma perna aleijada ; já a levei ao ferrador , mas o diabo tanto lhe fez como nada . Fernando , ao ouvir estas palavras , soltou uma estrepitosa gargalhada . -- Tu de que te ris ? -- perguntou o José da Costa um pouco sério por aquela desconsideração Ãs suas palavras . -- Pois o pai mandou-me aprender a curar gente , ou burros ? -- retorquiu Fernando , por entre uma nova risada . -- Não julguei que houvesse a menor ofensa no meu pedido ... -- É com efeito um belo elogio à minha ciência : querer fazer de um médico-cirurgião um alveitar ! ... -- Está bom , homem , fico entendendo -- respondeu o pai do rapaz , meio atrapalhado . No entanto atalhou Fernando , compadecido da ignorância do seu pai , -- vamos lá ver a égua por ser coisa cá da casa , mas fique sabendo que eu não estudo há oito ou nove anos para curar bestas ; essa clínica deixamos-la a quem de direito pertence . Fernando examinou a parte afetada do animal , mandou buscar um medicamento à farmácia da aldeia , ligou a perna doente , e , para terminar a história , daí a quatro dias a égua estava completamente curada e caminhava com todo o desembaraço . Foi a primeira vitória alcançada pelo novo filho de Hipócrates . Prossigamos agora na nossa narração , interrompida por este episódio . Fernando era inegavelmente um belo e simpático rapaz . De estatura um pouco mais do que regular , tinha o rosto levemente anguloso , a tez branca , tendendo um tanto para o pálido , os olhos grandes e expressivos , os cabelos pretos e naturalmente anelados , e o pequeno bigode , da mesma cor dos cabelos , era luzidio e nédio como uma tira de azeviche . Além destes dotes físicos , que de per si já o recomendavam aos olhos de qualquer filha de Eva , Fernando , que possuía formas bem contornadas tinha um gosto particular no modo de trajar , era engraçado no dizer , e um desafetado abandono nos movimentos completava os predicados necessários para o extremarem da trivialidade de certo dandismo que nem se aprecia pelos dotes do corpo nem pelos do espírito . No primeiro domingo que sucedeu ao dia da sua chegada , foi ele , em companhia dos seus pais , ouvir missa à igreja da aldeia , e tornou-se por essa ocasião o alvo de todas as atenções e de todos os elogios do povo da freguesia , que aí estava reunido . Era isso sempre de costume todas as vezes que o jovem vinha de férias , com a diferença , porém , de que havia dois anos , última ocasião em que estivera na aldeia , não apresentava ele um desenvolvimento de formas e de atrativos como agora . A Rosa do Adro não foi também nesse dia indiferente à admiração geral , e por entre os grupos de povo que coalhavam o adro , lançou um olhar furtivo para a graciosa figura de Fernando , que se destacava no meio de toda aquela gente , e não pôde deixar de comentar de si para consigo : " É na verdade um bonito rapaz ! ... " Mas , dito aquilo , os olhos distraíram-se-lhe imediatamente para as outras pessoas , e nem o coração nem a mente sofreram o mais leve abalo com aquele pensamento que , como um raio , lhe atravessou a imaginação . Não sucedeu , contudo , outro tanto ao jovem facultativo , que , ao fitar de longe a graciosa rapariga , exclamou meio assombrado , dirigindo-se a sua mãe , que estava próxima : -- Quem é aquela jovem loura , que está acolá ? -- e indicava a Rosa do Adro , que nessa ocasião se ria no meio de um grupo de raparigas . -- Oh ! -- respondeu a mãe de Fernando -- pois tu não a conheces ? -- Tenho ideias daquele rosto , mas não sei ... -- É a Rosita do Adro . -- Pois na verdade aquela lindíssima rapariga é a Rosa do Adro ? ! -- exclamou Fernando , não podendo ocultar a sua admiração . -- E , sim ; mas que espanto é esse ? Quem te ouvisse havia de dizer que tu não vens aqui há dez anos . -- Efetivamente encontro-a tão demudada , que decerto não a reconheceria se não mo dissessem . Há dois anos , quando cá estive , era uma criança , já encantadora , sim , mas agora encontro-a uma mulher perfeita ! ... -- Pois é o que vês ; em verdade aquele corpo e aquela boniteza deitou-a ela há dois anos a esta parte ; é a melhoria destes arredores e pena é ser tão pobre ... Fernando , desde aquele momento , não mais perdeu de vista a sedutora aldeã . Ao toque da sineta , o povo entrou no templo , e Fernando , em todo o tempo que durou a cerimónia do santo mistério , não desfitou , sequer um momento , o olhar do rosto que tanto o impressionara . Terminou a missa ; o rapaz , ao sair , aproximou-se de Rosa , e com o sorriso nos lábios exclamou : -- Se há pouco não me dizem quem tu eras , Rosa , quase que não te conhecia . -- Porquê , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho ? -- perguntou ela . -- Porque , da última vez que estive aqui , eras tu uma criança , e venho agora encontrar-te uma mulher bela e encantadora como um serafim , capaz de endoideceres a cabeça a um velho , se lhe lançasses um desses olhares magnéticos ... feiticeiros . -- Ora , o senhor||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho está decerto a gracejar com uma pobre rapariga . -- Gracejar , eu ? -- atalhou o jovem com seriedade . -- Mas vamos a saber : como tens passado ? -- Graças -- Deus , sempre bem ; o Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho , creio que tem igualmente gozado de boa saúde ... -- Felizmente assim sucede . -- Além disso , cada vez mais bonito ... mais ... -- Ah , também caçoas comigo ? -- Oh , meu Deus , pois eu caçoo consigo , dizendo a verdade ? ! ... Visto isso , o senhor também escarnecia de mim há pouco ... -- Maliciosa ! ... -- Pois sim , sim , serei o que quiser . -- Ainda moras ali , na mesma casa ? -- Ainda , sim ; mas porquê uma tal pergunta ? -- Porque amanhã , quando for à caça , desejo vir fazer-te uma visita . -- Uma visita , a mim ! -- Então não queres ? -- É demasiada honra , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho . -- Pois virei , a não haver nisso comprometimento para ti . -- Não o compreendo ... -- Sim , quero dizer que poderia ver-me algum teu conversado , e depois ... -- Conversados ? ... São todos os rapazes da aldeia . -- Entre eles não há algum mais teu predileto ? -- Creio que não ... -- Alegro-me muito com isso -- concluiu Fernando com intenção . -- E agora , que não posso demorar-me mais porque meu pai já me espera , digo-te adeus , até amanhã , sim ? -- Até quando quiser , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho . O jovem retirou-se , mas pelo caminho foi sempre cabisbaixo e como que embebido em reflexões estranhas . Dar-se-ia-o caso de que o belo rosto da rapariga tivesse impressionado seriamente o seu coração ' ? É o que veremos no decorrer desta simples narração . Quanto à Rosa do Adro , dir-se-ia-que as palavras de Fernando em nada lhe tinham feito mudar a sua habitual alegria , e bem depressa pareceu até esquecê- lo . Não sei o que se passou no coração de Fernando durante o resto daquele dia ; o que é certo é que , no dia seguinte , logo que acabou de jantar , subiu apressadamente ao seu quarto , substituiu a roupa ligeira que trazia por uma própria de caça , lançou mão de uma bela espingarda de dois canos , que no dia antecedente se entretivera a limpar e preparar , desceu a um quarto onde estava a matilha , chamou dois cães e pôs-se a caminho em direção à igreja . Fernando ia visivelmente preocupado . Com a cabeça baixa e os olhos no chão , parecia que um pensamento qualquer lhe dominava todas as faculdades mentais , e , se alguma vez levantava distraidamente a vista , era só para medir a distância que o separava ainda daquela torre que alvejava ao longe entre a folhagem do arvoredo , como se fosse o ponto principal da sua excursão . Assim caminhou durante alguns minutos , até que , achando-se já próximo da igreja , parou repentinamente , como se uma força oculta lhe detivesse os passos . É que aos seus ouvidos tinham chegado as harmonias de uma voz fresca e sonora , cujas vibrações ecoavam suavemente na sua alma , a ajuizar por um sorriso alegre que lhe deslizou nas faces . Fernando deteve-se a escutar , como enlevado , aquela voz , que cantava : Quem me dera amar um dia , Se eu tivesse um peito amigo Ter amor , ter afeição , Que me desse um tal amor ... Ser escrava , dar a vida Eu , então , igual afeto Por um terno coração . Em seu peito ia depor . O canto cessou , e Fernando , continuando a sorrir-se , exclamou : -- Vá , sejamos também poeta . E , começando de novo a caminhar , foi cantando esta resposta Ãquelas duas quadras : Se tu queres amor . ó bela . Não te esquives , não me negues Dou-te amor , amor bem puro ; Esse amor , almo prazer ; Se tu juras ser só minha , Dá-me a vida ; neste mundo Será belo o teu futuro . Sem amor não há viver . A Rosa do Adro , pois era ela que , segundo o seu costume , trabalhava , junto da janela , embalsamando de contínuo os ares com a fragância dos seus cantos , ao ouvir resposta tão adequada e proferida por voz para ela estranha , debruçou-se um pouco sobre o peitoril , e , ao avistar Fernando , que caminhava risonho para aquele sítio , soltou uma desenvolta gargalhada , exclamando ao mesmo tempo : -- O Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho ... Ora esta ! -- Eu mesmo , minha flor ; pensas que só tu sabes coisas bonitas ? Fernando chegara em frente da janela , sobre a qual se reclinava a alegre rapariga , e , levando graciosamente a mão à aba do chapéu , continuou : -- Boas-tardes , Rosa . -- Salve-o Deus , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho -- respondeu ela . -- Então que tal achas as minhas cantigas ? -- Oh , muito lindas , muito lindas ; estava quase capaz de o desafiar para a primeira esfolhada que por cá houvesse . -- E eu estou pronto a aceitar com o maior gosto o torneio . -- Pois na verdade atrever-se-ia-... -- E porque não ? -- Ainda assim , Deus me defendesse de tal ; estava bem servida se fosse cantar consigo ao desafio ... O Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho , que tanto sabe ... Eu decididamente ficava mal . -- Ficarias ou não ; mas vamos a saber : estás pelo contrato ? -- Qual contrato ? -- Pelo das cantigas que há pouco trocámos ? Rosa , a esta inesperada pergunta , estremeceu involuntariamente , e um leve rubor lhe coloriu as faces ; depois , encarando em Fernando um olhar sedutor , exclamou com essa franqueza tão característica , às vezes , nas filhas do povo : -- à fé de quem sou , lhe juro , Fernandinho , que , se o senhor fosse tão pobre como eu , aceitava ... -- Então gostas de mim , Rosa ? -- O senhor nunca me deu motivos para o contrário -- respondeu a rapariga , baixando modestamente os olhos , como se aquela resposta a embaraçasse . -- Pois ouve , Rosa , eu morro por ti ! ... Se soubesses o sentimento que despertaste no meu coração ... A sedutora rapariga , a estas palavras , sentiu faltar-lhe completamente a audácia que até aí nunca a abandonara em momentos críticos como aquele ; deixou pender a cabeça para o peito e exclamou tristemente : -- E de que vale isso , Fernandinho ? O senhor só deve gostar daquelas que , pelos seus haveres e pela sua posição , se lhe possam igualar . -- Louca ! -- respondeu o jovem em tom apaixonado -- pois crês o meu amor tão mesquinho , que precise dessas vaidades para se alimentar ? -- Não falemos mais nisso -- atalhou Rosa , cada vez mais perturbada . -- Diga-me : vai para a caça , não é verdade ? -- Vou , sim -- respondeu Fernando com mau humor , por ver fugir-lhe ocasião tão azada para satisfazer o motivo principal da sua visita . -- Então não se esqueça de trazer-me uma peça da sua caça , não ? -- Satisfarei da melhor vontade o teu pedido , e adeus até à volta . -- Vá na paz do Senhor , Fernandinho . O jovem retirou-se desgostoso por não ter podido atingir o alvo a que mirava : de declarar a Rosa , francamente , a paixão que o abrasava e seguiu o seu caminho malcontente de si próprio . Sem ter bem a consciência do que fazia , logo que Fernando partiu , debruçou-se maquinalmente sobre o peitoril da janela , e seguiu-o com o olhar até o ver desaparecer na volta de um caminho , depois retirou-se e , como se a presença daquele homem lhe tivesse sugerido um pensamento doloroso , ficou por instantes abstraída . Um observador atento que tivesse seguido por um instante as diversas contrações daquele rosto , ainda há pouco tão alegre e despreocupado , vê-lo-ia umas vezes iluminar-se com um gesto de funda tristeza , ora tingir-se com o vivo carmim das rosas , ora assombrear-se com a palidez do lírio . Como o rosto é o mais saliente objetivo da alma , inegavelmente no intimo do coração daquela rapariga passava-se alguma coisa de extraordinário e de desconhecido para ela . E , na verdade , aquelas poucas palavras que Fernando proferira , mas que exprimiam muito , tinham impressionado a estouvada rapariga ; sentia , pela primeira vez na sua vida , arrastar-se pelo magnetismo dessas maviosas frases , e no íntimo da alma perguntava-se a si própria se semelhante mal-estar de espírito era o começo desse sentimento a que chamavam amor . A resposta era um estremecimento do coração , uma dessas sensações que dizem mil venturas e mil pesares ; e Rosa , em cujo peito pulsava um coração , virgem , mas capaz de uma grandiosa afeição , começava a entregar-se a ela quase cegamente e a experimentar os primeiros sintomas de uma dessas paixões extraordinárias que conduzem ao desespero e à morte quando não são correspondidas como merecem . Rosa passou o resto daquela tarde toda entregue aos seus pensamentos , e ao escurecer , como de costume , deixou o trabalho e veio encostar-se à ombreira da porta . Pela primeira vez na sua vida , Rosa sentiu naquele momento afastar-se-lhe o espírito de todas as sensações terrenas para elevar-se Ãs infindas regiões do idealismo . Fitava os seus belos olhos no azul do céu , e parecia querer penetrar com a vista os arcanos daquele mundo misterioso ; e , em cada nuvem que esvoaçava nos ares e em cada estrela que mal começava a fulgir , dir-se-ia-tentar ler uma palavra que soasse sonoramente à sua alma , ou procurar uma revelação que esclarecesse as trevas em que se achava envolvido o seu coração . Permanecia assim esquecida havia longo tempo , deixando-se embriagar pelas doçuras daquele delicioso êxtase , quando um pequeno incidente veio fazer voltar o pensamento para o objeto real das suas sensações . Sentira ao longe o latir de alguns cães e uma voz alegre que cantava uma toada que ela nunca ouvira a nenhum dos pastores das suas vizinhanças . Por certo aquela voz era a de algum desconhecido , e o desconhecido não podia ser outro senão Fernando , que a essa hora devia voltar da caça . Este pensamento fê-la estremecer de secreta alegria e de viva ansiedade . Alongou a vista pelo caminho donde parecia partir o som da voz , e , forcejando por penetrar as sombras em que o espaço se envolvia , esperou com angústia a chegada daquele que se lhe tornava já tão querido . Passados poucos momentos , Rosa distinguiu um vulto que se encaminhava para o sítio em que ela estava , e reconheceu Fernando . Subiu então de ponto a sua comoção . O corpo estremecia-lhe a cada momento , e o coração batia-lhe apressado , irrequieto ; quis retirar-se para dentro de casa , para ocultar aos olhos de Fernando o segredo da sua alma , que bem claro se patenteava nas convulsões do rosto , mas não o pôde fazer ; uma força oculta parecia retê-la naquele lugar . Abandonou-se então ao acaso ; esforçou-se por dominar as palpitações do coração , compôs-se um ar de indiferença e esperou . Fernando , passados alguns minutos , acercou-se dela e , com um malicioso sorriso de esperançado triunfo , exclamou : -- Boas-noites , minha Rosa . -- Boas-noites , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho -- respondeu , com a voz mal segura . -- Esperavas há muito por mim , não é verdade ? -- continuou o rapaz , sem intenção . Esta pergunta , que noutra qualquer ocasião não teria produzido na travessa rapariga o menor efeito , naquela , quase a deixou muda de espanto , por ver que o segredo mais íntimo do seu coração fora decerto adivinhado . Pois que queriam dizer aquelas palavras , senão que ela , esperando por Fernando , lhe dava nisso já a primeira prova de interesse e quem sabe se de amor ? Esta simples reflexão , que como uma sombra lhe passou rápida pela mente , teve-a , por um momento , quase traída . Conteve-se , porém , e , ainda um esforço para se dominar , respondeu , com mal disfarçada indiferença : -- Eu não o esperava , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho . -- Não me esperavas ! -- retorquiu o rapaz . -- Então que fazias aqui a esta hora ? -- Bem se vê que o senhor desconhece os nossos hábitos , ou pelo menos os meus . -- Não te compreendo ... -- Eu lhe explico : nós outras , as raparigas que trabalhamos em casa , costumamos deixar o trabalho logo que a noite começa , e vimos depois descansar um pouco para junto da porta ; as que têm conversados esperam por eles e entretêm-se algum tempo a falar-lhes ; as que os não têm divertem-se com as raparigas das vizinhanças . -- Visto isso , tu , que não estás a divertir-te com as tuas companheiras , esperas decerto pelo teu conversado , não é assim ? -- e Fernando proferiu estas últimas palavras , dando à voz uma inflexão de tristeza . -- Oh , meu Deus ! -- respondeu Rosa em tom magoado . -- Pois eu não lhe disse já que não tinha conversado algum ? -- Juras-mo , Rosa ? -- exclamou Fernando com exaltação . -- Que loucura ! ... Pois que necessidade tinha eu de mentir-lhe ? -- Bem , fico satisfeito . Agora cumpre-me satisfazer o teu pedido : aqui tens esta galinhola ; foi a única peça de caça que pude hoje matar . -- Ora esta ! ... Pois o Fernandinho tomou a sério o meu pedido ? -- E porque não ? -- Mas o que lhe disse foi por simples brinquedo . -- Fosse o que fosse ... Aceitas ou não ? -- Aceito para não o desgostar . -- Ora ainda bem ; estava a ver se , depois de tanto trabalho ... -- Então não havia caça ? Esforçou-se muito só para me obsequiar ? -- Caça havia até de mais ; mas eu é que estava de uma infelicidade atroz . Não sei se deva atribuir isso à falta de exercício , se a outro qualquer motivo . O que é certo é que todos os tiros me falhavam , e , se não fosse o teu pedido , Rosa , juro-te que tinha pegado em espingarda e pólvora e atirado tudo para o inferno . -- Não sei como pagar-lhe tantos sacrifícios , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho . -- É bem fácil satisfazeres o teu desejo . Deveras queres recompensar-me ? -- Decerto , mas infelizmente não vejo com quê . -- Vejo eu ... -- Oh ! então peça ; se for coisa que só dependa de mim ... -- Olha , Rosa , dá-me o teu coração , a tua vida , e eu ficarei bem recompensado -- exclamou o jovem em tom apaixonado . -- Não brinque com essas coisas , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho -- respondeu a rapariga , tristemente . Momentos depois , Fernando parava em frente da janela onde estava Rosa , e levava jovialmente a mão ao seu largo chapéu , acompanhando este movimento com as palavras : -- Boas-tardes , branca Rosa ... -- Deus lhe dê as mesmas , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho -- respondeu ela , ainda um pouco comovida . -- Tua avó ralhou-te ontem à noite pela minha causa ? -- Continuou ele . -- Nada , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho , não me disse a mínima coisa , e até me parece que não soube que o senhor esteve aqui . -- Ainda bem ; me-de bastante pesar se sofresses o mais leve desgosto pela minha causa . -- Olhe , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho , tenho aqui uma coisa para lhe dar ; é a paga do seu presente de ontem . Uma recompensa bem insignificante , não é verdade ? ... Mas eu não tenho outra melhor -- e , dizendo isto , entregou ao mancebo o ramalhete que pela manhã tinha colhido . Fernando olhou-o por um momento , levou-o aos lábios e exclamou : -- É muito lindo este ramo e estimo-o por vir das tuas mãos ... Ah , mas ainda assim não é com flores que se retribuem paixões ! A jovem corou levemente , mas , fingindo não perceber o sentido daquelas palavras , encaminhou a conversa para assuntos estranhos . Depois de um curto diálogo , Fernando retirou-se , continuando o seu passeio . Ao fim da tarde , quando voltava , notou com desgosto que a janela da casa estava fechada e que Rosa não se achava , como na tarde antecedente , encostada à ombreira da porta . Esperou ainda alguns minutos , mas , como não aparecesse , retirou-se bastante pesaroso e quase descrente das esperanças que havia nutrido a respeito do amor que ambicionava . Decorreram seis ou sete dias depois dos sucessos que deixamos narrados . Durante este espaço de tempo nada se passou de notável , a não ser o completo silêncio que ambos os jovens se tinham guardado sobre os sentimentos das suas almas . Rosa , desde a última tarde em que Fernando lhe patenteara o seu amor , evitava toda a ocasião de se achar a sós com ele e fugia arteiramente ao mais simples galanteio que tentava dirigir-lhe . Nunca mais fora descansar , ao anoitecer , para junto da porta , e , de tarde , quando o esbelto caçador passava alguns minutos em frente da sua janela , a conversa era sempre de uma frieza e seriedade bem patentes . Quem os tivesse observado nalguns desses curtos diálogos , diria que entre um e outro não existia a menor afeição . E , contudo , Rosa , apesar da sua simulada indiferença , amava Fernando , e amava-o com um amor excessivo , mas concentrado . E a prova mais manifesta desse amor era que a pobre rapariga , desde muito , vivia triste e pensativa , como se um pesar oculto lhe trouxesse enlutado o coração . A sua voz alegre e sonora já não ecoava tantas vezes na imensidão daqueles prados ; e , se por um momento esse canto ainda se fazia ouvir , era sempre monótono , triste e repassado de amargura . O sorriso dos lábios , a alegria que transpirava de todos os seus movimentos mudara-se em dolorosa languidez e inação . A Fernando , porém , não passara despercebida aquela repentina mudança , e , como perfeito conhecedor do coração feminino , chegara quase a convencer-se de que Rosa efetivamente o amava em extremo , mas que por motivos que ele ainda não pudera alcançar , procurava ocultar-lhe esse amor à custa dos maiores sacrifícios . Em vista disto , o jovem não desesperou do seu intento , e , agora mais do que nunca , procurava momento oportuno de poder arrancar-lhe do peito esse segredo que ela tanto se obstinava em confessar . A ocasião desejada chegou enfim . Uma tarde , Rosa , ou por acaso ou porque realmente sentisse a necessidade de desabafar as angústias do seu coração , aproveitara-se da saída da sua avó , que fora a casa de uma vizinha que se achava enferma , e viera , como antigamente , sentar-se , depois de terminado o trabalho , na soleira da porta , esperando desta vez com viva ansiedade a chegada de Fernando . Este não se fez esperar por muito tempo , e , apesar da escuridão já crescente da noite , Rosa pôde distinguis-lo ao longe , por entre as sombras que envolviam o caminho . É escusado descrever os receios , os júbilos e os estremecimentos do coração da pobre rapariga ao lembrar-se do que iria passar-se naquela entrevista , da qual proviria talvez ou a sua desventura perpétua ou o começo da série de felicidades e enlevos que tinham feito as delícias dos seus sonhos virginais . Passados momentos , Fernando aproximava-se da habitação , e , ao dar com os olhos no objeto dos seus constantes cuidados , não pôde calar no peito um grito de expansiva alegria . -- Bravo ! -- exclamou , correndo para ela -- até que enfim pude pilhar-te , minha esquiva andorinha . Rosa , que percebeu a intenção daquelas últimas palavras , procurou ainda encobrir e salvar a fraqueza do passo que tinha dado , e respondeu com mal simulada indiferença : -- Não sei donde provenha essa sua admiração , Fernandinho ; como minha avó saiu há pouco para casa de uma vizinha que está bastante mal , vim para aqui enquanto ela não chega . -- Pois tu estás só , minha Rosa ? ! ... -- interrogou Fernando com júbilo . -- Ó felicidade das felicidades ! ... -- Jesus , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando , -- atalhou ela com dissimulação -- parece que enlouqueceu ! Não vejo motivo para tanta expansão . -- Cala-te , Rosa ; tu não sabes que , desde a última tarde que estivemos neste mesmo lugar , tenho debalde procurado encontrar-te outra vez só , sem isso me ter sido possível ? -- Mas eu não compreendo ainda para quê ... -- Rosa -- prosseguiu o jovem com seriedade -- , deixemo-nos de rodeios : os momentos são-nos preciosos e , antes que a tua avó venha , como da outra vez , roubar-me a preciosidade destes poucos instantes , é preciso que nos declaremos . A jovem não respondeu ; sentia-se mais que nunca alanceada por essas pulsações do coração que só experimentam aqueles que verdadeiramente amam , e , apesar dos esforços que fazia para dominar a sua angústia , via-se a pouco e pouco na impossibilidade de ocultar por mais tempo esse segredo da alma , essa paixão imensa que lhe agitava os castos seios . Fernando , que percebera de um relance a causa daquele silêncio , pareceu ganhar novas forças , e , dando à voz a mais pronunciada expressão de ternura , continuou : -- Vamos , minha Rosa , terminemos com isto ; nada de simulações ; aqui , neste mesmo lugar , não há muito te declarei francamente quais eram os sentimentos do meu pobre coração ; disse que te amava , que foste tu a primeira mulher que me fez estremecer de amor e que a retribuição desse afeto , da tua parte , seria para mim a suprema ventura ; todas essas declarações , todos esses protestos , tos faço ainda neste momento . Rosa , por quem és , tira-me desta horrível incerteza ; um único gesto , uma só palavra tua , e ficarei satisfeito ; não prolongues por mais tempo o horrível martírio em que estou . E o jovem calou-se , esperando que Rosa , vencida finalmente por aquelas palavras , lhe respondesse . Ela , porém , continuava a conservar-se muda , com a cabeça pendida para o seio , como querendo ocultar a ansiedade que se lhe patenteava em todos os gestos . -- Então -- atreveu-se ainda o jovem com acento resignado -- nada me respondes , Rosa ? Não serei digno de uma só palavra tua ? -- Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho ... -- exclamou ela afinal , tentando ainda disfarçar a sua agitação . -- Ora vamos , minha querida filha , sê franca ; não faças tão desesperados esforços para me ocultares o teu amor . De que vale isso ? Torturas-te , e torturas-me . Olha , minha louca , eu sei o que se passa na tua alma ; sei que também se insuflou no teu coração esse sentimento sublime e terno , sei que ... -- Meu Deus -- interrompeu Rosa -- quem lhe disse tanto ? ... -- Ninguém , louquinha , ninguém , adivinhei-o eu ! ... -- Adivinhou ? ! ... -- Sim , e admiras-te disso ? Ora diz-me : porque é que já não cantas como outrora , e por que , quando isso sucede , a tua voz é sempre repassada de tristeza e de amargura ? porque vives tão recolhida e taciturna ? porque foges de mim e evitas todas as minhas frases de amor ? ... Decorreram alguns minutos de profundo silêncio . Afinal , Rosa , como se acabasse de tomar uma resolução desesperada , levantou a cabeça com impetuosidade , lançou um olhar ardente ao jovem e exclamou com a voz ainda mal segura : -- Pois bem , Fernandinho , tudo isso é verdade , e seria loucura negá-lo . O senhor diz que me tem amor , que a sua felicidade depende de mim . Pois ouça : eu também o amo , também senti no coração um não sei quê de irresistível que me impeliu para si desde o momento em que declarou ter-me um amor sincero ; tentei desviar de mim , quanto pude , essa afeição que senti pelo senhor , fiz os mais inauditos esforços para lhe ocultar o que se passava no meu peito , fugi-lhe muitas vezes para não me trair , e estava resolvida , por fim , a morrer com o meu segredo . Afinal , como fraca que sou , deixei-me vencer , e digo-lhe : Amo-o ! ... Agora , que da minha própria boca ouviu esta confissão , não me escarneça ; perdoe-me ... eu sou uma desgraçada ... -- E não pôde continuar : uma torrente de lágrimas abafou-lhe a voz . Fernando , delirante de felicidade , tomou-lhe as mãos , que cobriu de beijos , e continuou com exaltação : -- Ah , minha querida Rosa , eu escarnecer-te , eu perdoar-te de quê ? Vamos , sossega . Para quê tantas lágrimas e tantas angústias ' ? Ora diz-me : porque é que tanto forcejavas em ocultar-me o teu amor ? Acaso duvidas de mim ? -- Ouça , Fernandinho -- respondeu a jovem com os olhos ainda marejados de lágrimas -- , eu sou uma pobre rapariga , que tenho apenas , por únicos bens de fortuna , os meus braços ; vivo do meu trabalho e , faltando-me ele , me-talvez tão desgraçada que morrerei à míngua , porque à minha querida avó já lhe faltam as forças com que poderia ajudar-me no granjeio do pão quotidiano . O Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho , pelo contrário , é rico , é o morgado de uma casa que Deus beneficiou com avultados haveres , e , desta forma , que poderei eu esperar do senhor ? Diz que me ama , que me tem uma amizade sincera , mas afinal que valerá isso se daqui a pouco me abandonará , para dar o seu coração e talvez até o seu nome a outra mais digna do que eu ? É este o motivo porque tentei sempre afastar de mim o seu amor , e que me obrigou a ocultar-lhe até hoje o segredo mais íntimo da minha alma ; por fim , como vê , não pude ser superior a mim própria ; fui fraca de mais para poder vencer os impulsos do coração e confessei-lhe tudo . Conheço que sou indigna do seu amor ; vejo até que cometi uma grande imprudência em o amar , porque é imensa a distância que nos separa . Mas a culpada , ainda assim , não fui eu ... Oh , perdoe-me ! Eu sou uma insensata ... -- Que loucura a tua , Rosa ! -- atalhou Fernando . -- Pois que fizeste tu para me pedires perdão ? Não duvides sequer um momento da pureza dos meus sentimentos ; não te arrependas desse amor que me votaste , porque todas as tuas dúvidas me mortificam e me desesperam . Dizes que não és digna dos meus afetos , que és pobre , e que um dia te trocarei por outra ! ... Como te enganas , minha pobre criança ! ... Pois quem será digna de mim , senão tu , a quem amo tão loucamente ? Que me importa que tu sejas pobre ? Acaso não me deu a Providência o bastante para vivermos felizes ? Olha , minha Rosa , para mim possuis tu os dotes mais preciosos que uma mulher pode ambicionar . As tuas riquezas são esses olhos , que roubaram a cor azul do céu ; são esses cabelos de ouro ; são esses lábios finos como pétalas de uma rosa ; são essas faces de cetim ; são finalmente os sentimentos desse teu coração virgem . Aparta , pois , de ti tão tristes apreensões ; ama-me desassombradamente e com todas as forças da tua alma , porque eu também te amo muito ! A pobre jovem ouvira como extasiada aquela linguagem ainda desconhecida para ela , mas que tão direita lhe ia ao coração , e , ao levantar o rosto purpureado para Fernando , exclamou com ar de descrença : -- Ah , Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho , prouvera a Deus que essas últimas palavras fossem verdadeiras ... -- Sempre a dúvida , sempre a dúvida ! -- atalhou Fernando em tom amargurado . -- Não haverá meio de te convencer de uma vez para sempre da pureza dos meus afetos e da sinceridade das minhas promessas ? -- Perdoe-me , Fernandinho ; mas há felicidades tão imensas , há venturas tão supremas , que uma pobre rapariga como eu , quando chega a pensar nelas , olha-as mais como um sonho do que como um facto que possa realizar-se . Daí partem todas as minhas dúvidas , todos os meus receios . -- Pois impele-os para longe de ti , minha Rosa ; e , se queres provas mais convincentes , pede-me o maior dos sacrifícios , porque te obedecerei como um escravo ; dessa forma não te restará a mais pequena dúvida do meu amor , me-sem receio , e te-da realidade de todas essas felicidades e venturas que crês impossíveis . Rosa , por quem és , não dilaceres este meu pobre coração com a descrença e a dúvida ; jura que me amas ; abre-me sem receio a tua alma ; deixa-me ler nela os inefáveis gozos que a anseiam . Diz-me , querida filha : tu amas-me ? ... Tu queres-me muito ? Estas palavras , proferidas com uma suprema ternura , acabaram de render a pobre jovem que , por entre contínuos soluços , exclamou fora de si : -- Se o amo , meu Deus ! ... se lhe quero ! ... Amo-o , sim ; amo-o como nunca amei neste mundo e quero-lhe mais que à minha própria vida ! Nunca senti os enlevos que neste momento me extasiam o coração . Como é belo o amor ! ... Diga-me , Fernandinho , repita-me muitas vezes que me ama também , ainda que eu creia impossível que sinta no coração quanto eu sinto ... E a desvairada rapariga , sem a consciência do que fazia , deixou pender a cabeça sobre o peito de Fernando , ocultando nele as lágrimas incessantes que lhe resvalavam dos olhos . O jovem estudante , também louco de felicidade , comprimiu ao seio aquele corpo flexível e delicado que se lhe abandonava , e exclamou com voz que bem demonstrava os transportes que lhe iam na alma : -- Agora , sim , meu anjo , agora vejo quanto amor há nesse peito ; já me não resta a mais pequena dúvida ... Sei que me amas e é isso o bastante para que a minha felicidade seja completa . Rosa , filha da minha alma , ergue esse rosto , deixa-me admirar bem de perto todos os encantos que o enfeitiçam ... Como és linda , querida ! ... Como te ficam bem essas lágrimas no aveludado das faces ! ... E dizias que não eras digna do meu amor ! ... Pobre louca ! ... Pois quem há aí que possa resistir a tantas graças , e que não fique fascinado ao contemplar-te ? ... E , proferindo estas palavras , o apaixonado jovem erguia entre as mãos a cabeça da vencida rapariga , e , enlevado em muda contemplação , ora lhe enxugava as lágrimas que se deslizavam dos olhos languidamente amortecidos , ora lhe afagava o rosto , ora lhe anediava os louros cabelos que em desalinhadas madeixas lhe caíam sobre os ombros . Rosa , como esquecida de si própria e como dominada pelas visões de um sonho , abandonava-se cegamente a todas aquelas carícias sem proferir a mínima palavra , sem dar o mais pequeno sinal de enfado , e os seus belos olhos , naquele momento de uma expressão encantadora , fitavam-se com ternura no rosto do mancebo . Depois de alguns minutos passados naqueles ternos enlevos , Fernando interrompeu o silêncio com estas palavras : -- Vamos , minha Rosa , sossega , basta de lágrimas ! Fala-me do teu amor , dos transportes da tua alma , do nosso futuro de venturas , de tudo finalmente que diga respeito à felicidade que hoje começamos a gozar . Diz-me , meu anjo : Consideras-te agora verdadeiramente feliz ? -- Oh ! sim , muito ! Parece-me que uma nova existência se abriu para mim ; diga-me muitas vezes que me ama , repita-me a todos os instantes essa palavra mágica que me faz estremecer de alegria o coração . O Fernandinho ama-me muito , não é verdade ? -- Amo-te , sim , louquinha , amo-te o quanto é possível amar-se na Terra . -- E não quererá nunca outra mulher para sua esposa , não foi o que me disse ? -- Sim , sim , és tu a única que será capaz de me fazer verdadeiramente ditoso . -- Como havemos de ser felizes ! ... Unidos para sempre ! ... Olhe , Fernandinho , há de depois estar sempre junto de mim , repetindo a todos os momentos que me quer muito , que não vê outra mulher senão a mim , e que sou para si a mais bela de quantas há , não é verdade ? -- Assim sucederá . Imagina que delicioso porvir nos aguarda ! ... -- Ah , Fernandinho , e se o senhor um dia se aborrecesse de mim ? -- interrompeu ela subitamente . -- Eu aborrecer-me ... Acaso desvairas , Rosa ? -- atalhou o enamorado jovem com sinceridade . -- Ah , Santa Virgem , se tal sucedesse , parece-me que morreria de pesar ; dizem que os homens são tão ingratos ... E , como se aquele triste pensamento lhe magoasse profundamente o coração , as lágrimas começaram de novo a brilhar-lhe nos olhos e o peito a arfar-lhe de angústia . Fernando , comovido , fora de si , apertou-a com delírio nos braços , e , num desses momentos em que o amor venda os olhos ao decoro para só obedecer a essa atração , natural , irresistível , imprimiu-lhe nos lábios um beijo ardente ! O primeiro beijo , infinito , cego , delirante como a paixão que o concebeu ! Ao sentir o contacto daqueles lábios , Rosa estremeceu toda , como se tivesse recebido um choque elétrico . Desprendeu-se subitamente dos braços que a cingiam , e , encarando o jovem com um olhar cheio de dignidade , exclamou com voz mal segura : -- Fernandinho , vejo que abusa demasiadamente da minha fraqueza e que a continuação da minha presença neste lugar pode ser-me bem fatal ... A noite já vai alta , minha avó não poderá tardar e por isso é melhor separarmo-nos . Fernando , que compreendeu o verdadeiro sentido daquelas palavras , acusou-se secretamente da cegueira de que se possuíra e da falta que acabava de cometer , e exclamou como arrependido : -- Perdão , Rosa , perdão ! Sei a imprudência que cometi ! Deixei-me arrastar pelos impulsos do coração , mas , apesar disso , nada temas ; esse beijo que te dei foi como o selo eterno do meu amor ; vamos , não te retires assim despeitada ; diz que me perdoas , jura ainda que me amas e não queiras que eu parta com o desespero no coração . Rosa , perdoa-me . -- Não tenho de que perdoar-lhe , Fernandinho ; a culpada fui eu -- respondeu ela comovida . -- O que eu temia era que o senhor se esquecesse dos seus deveres ... -- Nada tinhas a temer de mim , Rosa ; amo-te muito para que ousasse ... Mas diz-me : Não afrouxou por isso o amor que disseste ter-me , não é verdade ? -- Oh , não , não ! Este fogo que me abrasa o peito só a morte o poderá extinguir , juro-lhe&lhes+o . -- Obrigado , minha querida , obrigado . E , agora que já me não resta a mais pequena dúvida do teu amor , retiro-me porque a noite já vai bastante adiantada , e a tua avó pode vir surpreender-nos . Antes , porém , de nos separarmos , tenho que fazer-te um pedido : de hoje em diante começa para nós uma nova época de venturas e por isso espero que não perderás um só momento de nos podermos encontrar a sós , para falarmos , sem receio , do nosso amor e do nosso futuro : recomendo-te também que nunca te esqueças das tuas promessas . -- Descanse , Fernandinho ; era já impossível deixar de o amar ... -- Adeus , Rosa , até amanhã . -- Adeus . Os dois amantes apertaram ternamente as mãos , e Rosa , apoderando-se instintivamente de uma das de Fernando , levou-a aos lábios , e , talvez sem ter bem a consciência do que fazia , imprimiu-lhe um beijo , murmurando : -- Que amor este , meu Deus ! ... Depois , como arrependida ou envergonhada da sua fraqueza , fugiu para casa , enquanto que Fernando , com passo vagaroso , caminhava para a sua habitação , com o pensamento suavemente preocupado pelas cenas que tinham ocorrido . Quem o seguisse de perto teria ouvido , num momento , proferir em voz baixa estas palavras : -- Parece que a amo realmente ! ... Mas Deolinda ? ... Durante todo o tempo da entrevista dos dois jovens , alguém , uma única pessoa , tinha sido testemunha ocular de tudo quanto se passara entre eles , e ouvira decerto todo o colóquio . Esse alguém era um homem , que , encoberto pelo tronco de um velho álamo que havia próximo da casa de Rosa , e favorecido pela escuridão da noite , assistira imóvel como uma estátua , e sustendo até a própria respiração , Ãquela cena de amor , que faria a inveja de muitos entes desgraçados que nunca conseguiram sequer apertar a mão do anjo dos seus sonhos . Esse homem , logo que os dois amantes se retiraram , saiu cautelosamente do seu esconderijo , encaminhou-se para em frente da porta da habitação , e , postando-se alguns minutos em frente dela , estendeu os braços em ar de desespero ou ameaça , acompanhando este movimento de algumas palavras impercetíveis , depois do que se retirou com passos pouco firmes e a cabeça pendida para o peito como subjugado por uma grande dor . No dia seguinte , pouco depois do meio-dia , parava em frente da janela de Rosa um dos rapazes que mais assiduamente faziam a corte à travessa rapariga , e a quem esta igualmente parecia ligar mais consideração que a nenhum outro . Tinha ele cerca de vinte e dois anos , era alto , bem proporcionado de formas , feições simpáticas , e possuía além disso umas maneiras engraçadas e agradáveis . Chamava-se António , e era jovem de um padre que habitava uma herdade não longe da igreja , e ao serviço do qual estava desde criança . Quanto ao seu carácter e costumes , eram eles os melhores possíveis . Alegre , franco , serviçal , de um comportamento irrepreensível e inimigo de rixas , soubera por todos estes dotes conquistar a estima de todo o povo da freguesia . No momento em que estacara em frente da janela de Rosa , dir-se-ia-que um pesar oculto , um sofrimento qualquer , lhe torturava a alma , a ajuizar pela palidez do rosto e pela tristeza que lhe ensombrava as feições . A bela aldeã , com a face reclinada sobre a mão , tão abstraída estava que não dera pela chegada do rapaz , que , com os olhos fitos nela , parecia esperar com angústia o despertar daquele embevecimento , pouco vulgar na gentil rapariga . Passados momentos , Rosa levantou maquinalmente a cabeça , e , dando de rosto com António , não pôde reprimir uma pequena exclamação de espanto , contrafazendo ao mesmo tempo o rosto com um leve sorriso . -- Estavas aí , António ? -- perguntou ela naturalmente . -- Cheguei mesmo agora , Rosa -- respondeu o jovem com ar amargurado . -- Já me ' não lembra que te visse . Por onde tens andado ? -- Por aí ... -- Talvez entretido com novos amores , não é verdade ? -- Os meus amores ... és tu só , Rosa -- respondeu António , baixando os olhos . -- Pois não o parece ; dantes ainda vinhas por aqui vezes a miúdo ; mas , de um certo tempo a esta parte , não há quem te veja ... -- Isto pouco te deve custar ; ia até jurar , se tal fosse preciso , que desejarias muito não me veres mais junto de ti . -- Tu enlouqueceste , António ! ? Por acaso tenho eu deixado alguma vez de te demonstrar que sou tua amiga ? ! -- Sim , minha amiga ... mas , infelizmente , há agora outro a quem melhor dispensas essa amizade . -- Estás enganado ; com tão bom modo falo para ti como para outro qualquer ... -- Não mintas , Rosa ! -- Então tu ... -- Olha , Rosa -- atalhou o rapaz , um esforço -- , deixemo-nos de mais dissimulações : tu a quem queres mais do que a ninguém é ao filho do Capitão . Ora aí está a verdade . -- E o que há nisso de extraordinário ? -- É que lhe tens já uma amizade cega -- continuou António , sem atender Ãquela resposta . -- Mas o que há nisso de extraordinário ? pergunto outra vez ! -- exclamou a jovem com mau modo . António , a estas palavras , sentiu-se estremecer de despeito ; cravou na rapariga um olhar que não se poderia conhecer se era de ódio , se de desespero , olhar que ela suportou com o maior sangue-frio , e exclamou um pouco fora de si : -- o que há nisso de extraordinário , perguntas tu ? É que só agora conheci o quanto me tens sido falsa ... -- Falsa , eu ? -- respondeu a rapariga , soltando uma fina gargalhada . Pois dará-se-o caso que eu algum dia te declarasse essa amizade que tu Imaginaste . para assim me falares ? -- Nada me disseste a tal respeito , é verdade , mas a maneira como sempre me trataste , a preferência que me davas , é o que me fez supor ... -- Pois foi uma má suposição , meu António . Tive-te sempre em muita conta , é verdade ; preferia-te sempre a outro qualquer , não o nego ; mas tudo isso não passava de uma simples afeição , filha dos nossos primeiros anos . -- Visto isso , tenho sido iludido até hoje ? -- murmurou o pobre rapaz , esforçando-se por conter a sua comoção . -- Não que eu te iludisse ; tu é que te iludiste . -- Tens razão , Rosa ; eu nunca deveria ter aspirações à tua estima ; sou um pobre enjeitado ... ; não tenho sequer um palmo de terra ... ; além disso , não sei dizer essas palavras arteiramente estudadas com que se prendem os corações ... -- António ! -- exclamou a Rosa do Adro , sentindo afluir-lhe o sangue no rosto . -- Não sei a quem te referes ; desejava que te explicasses . -- Quero falar desse senhor que por aqui costuma passar todas as tardes ; antes de ele vir lá do inferno , tu eras muito outra do que hoje és ; falavas para todos , com todos te rias , dançavas , cantavas e vinhas sempre alegrar as nossas festas com a tua presença ; agora , porém , dá-se bem o contrário ; foges de todos nós , já poucas vezes se ouve a tua voz alegre , e passas horas e horas encostada à janela a olhar para a Lua , como se visses nela o retrato do Sr. Fernando , que é todo o teu feitiço ! ... Estás servida , rapariga ; crê nas suas promessas , toma-lhe uma amizade cega e depois verás o pago que ele te dá ... Rosa não pôde ouvir mais . Ferida no íntimo do coração por ouvir falar assim daquele que já lhe era tão caro , levantou-se impetuosamente , encarou o jovem com um aspeto cheio de desprezo e exclamou encolerizada : -- Nunca , nunca consentirei que na minha presença fales assim de uma pessoa a quem estimo ; não tenho culpa das tuas tolices , e além disso sou nova , solteira , e por isso posso entregar o meu coração , e a minha alma até , a quem muito me aprouver ; quanto a ti , não te faltam raparigas que te mereçam ; eu é que nunca poderei retribuir-te a afeição que mostras ter-me . António ficou como petrificado ao ouvir aquelas palavras . Sabia que Rosa já amava muito o seu rival , mas não tanto . Aquela revelação tão franca , tão clara , sentiu fugir-lhe a derradeira esperança , deixou pender a cabeça , sem sequer ter forças para fugir da mulher que lhe tinha talvez , desde esse momento , envenenado toda a existência , e assim permaneceu por muito tempo , não se atrevendo a encarar aquele rosto que vira ainda há pouco tão demudado pela exaltação de um amor ardente , incrível . Rosa , passado o primeiro ímpeto , quase se arrependeu amargamente do mal que havia produzido com a sua resposta precipitada , e teria decerto cedido aos impulsos da sua bondosa alma , pedindo perdão ao atribulado rapaz , se não o visse repentinamente levantar para ela o olhar magoado e entreabrir os lábios para falar . Efetivamente , António , depois de travar consigo uma luta desesperada , procurou acalmar as angústias que lhe torturavam o coração e , em tom quase suplicante , exclamou : -- Perdão , Rosa , se te ofendi , mas não era esse o meu intento ; deves convencer-te de que as minhas palavras não são mais do que um vivo reflexo dos bons sentimentos que nutro por ti . Se eu não temesse uma desgraça ! ... Assalta-me um triste pressentimento . -- Pressentimento ! ? ... E de quê ? -- perguntou Rosa com curiosidade . -- Não sei ... mas vaticina-me o coração que Fernando nunca será digno do teu amor ; é quase impossível que ele te ame como mereces ! -- Como te enganas , meu António ! Era preciso nunca o ter visto , nunca o ter ouvido , para assim pensar ; Fernando ama-me com desinteresse , e esse amor tornará-nos a ambos completamente felizes . Ele assim mojurou . -- Palavras vãs , coisas que se dizem , mas que se não sentem . E , mesmo que assim fosse , por muito que ele te ame , o seu amor não será mais sincero e desinteressado do que o meu ; além disso , ele é rico e aspirará também a uma esposa que o seja igualmente . Quanto a ti , pobre Rosa , o seu único fim é perder-te ... e depois abandonar-te ... -- António ! ... -- exclamou a rapariga , começando de novo a agastar-se . -- Vamos , não te zangues . Eu bem sei que estas verdades são amargas e que soam mal a um coração apaixonado ; mas , afinal , quais são as garantias que possuis de que não suceda o que prevejo ? Comigo , bem sabes , não se dariam esses receios porque te quero pura e santamente ; além disso , as nossas sortes são quase iguais : tu és pobre e eu também o sou ; a minha única ambição , pois , era unir-me a ti , partilharmos juntos da nossa pobreza , mas vivermos , apesar disso , felizes , como felizes vivem os anjos do Céu . Tu , porém , não o entendes assim ; tens mais altas ambições , porque sabes o que vales ... Olha , minha Rosa , acredita nas palavras desse baldevinos e verás como ele te recompensará tanto amor ! ... Prevejo-te um fim bem triste ! ... -- Basta ! -- interrompeu Rosa , vermelha de cólera -- nem mais uma palavra ! Ouvi-te silenciosa , sim , mas com raiva e o desespero no coração , por tantas insolências ; vejo que o despeito e o egoísmo é que te fazem assim falar ; mas que me importa isso ? Acaso quererás obrigar-me a deixar esse rapaz , em tudo muito diferente de ti e de todos esses teus companheiros , incapazes de compreenderem sequer a mais leve pulsação de uma alma como a que sinto agitar-se sob este seio ? Pois bem ... Já que a tanto me obrigaste , ouve : Nunca te amei como talvez julgaste ; dei-te sempre a preferência a todos os outros rapazes , porque te tinha amizade de irmã , porque quase fomos criados juntos , e também porque te extremas bastante de todos esses rapazes da aldeia ; essa amizade , porém , é que nunca se transformou em amor , nem tal poderá suceder , porque ... Deus não o quer . Quanto a Fernando , amo-o como se pode amar nesta vida ; quero-lhe mais que à minha própria existência , e este sentimento , que nasceu tão rápido no meu coração , nunca poderá extinguir-se . me-ele ser infiel e quebrar um dia os juramentos que fez ? ... Não o creio ; Fernando tem uma boa alma e seria incapaz de cometer uma tal perversidade ! ... Mas , ainda assim , se ele um dia me deixasse , não me deveria eu considerar bem feliz por me ter amado sequer uma hora que fosse ? Vês , portanto , qual é o meu propósito : amarei-lo enquanto a vida me fizer pulsar o coração . Quanto a ti , bem conheces que nunca te poderia amar , e por isso faz por esquecer essa afeição que dizias consagrar-me , e trata-me como se tratasses uma estranha . -- Ah ! E foi ele quem , num só momento , me roubou todas as esperanças , toda a felicidade do meu futuro ... Oh ! amaldiçoado ! ... -- Não o arguas de nada , António ; se alguma culpa há , é toda minha ; disse que me queria muito , que só eu podia fazer a sua felicidade ; acreditei-o , aceitei-lhe os seus protestos e entreguei-lhe o meu coração . -- Dessa forma é forçoso perder qualquer esperança que eu ainda pudesse nutrir , não é verdade ? -- Seria escusado repetir o que já te disse . Estas palavras foram para o pobre jovem o último golpe . Inclinou a cabeça para o peito e ocultou o rosto entre as mãos , como se quisesse esconder as angústias e o desespero que o alanceavam . No meio das torturas em que se debatia , brilhara-lhe nos olhos um lampejo sinistro , terrível , ameaçador , como se do íntimo da alma houvesse feito um juramento de insaciável vingança . De repente , porém , esse fogo extinguira-se , e , encarando Rosa com um aspeto de amargurada resignação , murmurou tristemente : -- Como sou desgraçado , meu Deus ! -- e duas lágrimas escoaram-se-lhe , vagarosas , pelas faces pálidas . Rosa pareceu comover-se , e , cedendo a um impulso de compaixão , aventurou-se a dizer : -- Então que é isso , António ? Assim desesperas por um mal que não tem cura ! Olha , meu amigo , há muitas raparigas na aldeia ! escolhe uma de entre elas , ama-a muito e verás como me esqueces e como serás feliz . -- Impossível , Rosa , impossível . Acaso ignoras ainda o que é o amor ? Deves sabê-lo porque também amas . Só tu poderias fazer-me completamente feliz ! ... Esta estranha afeição que te devotei não nasceu ontem nem há dois dias : amo-te desde criança , desde aqueles dias felizes em que ambos , na solidão dos montes , passávamos aí horas esquecidas em inocentes brinquedos , em enlevos infantis . Como éramos felizes nesses tempos ! ... Afinal tudo passa ! ... Para mim , Rosa , está tudo acabado ! Possas tu ao menos ser feliz e Deus permita que nunca se realizem as minhas tristes predições . Ao terminar estas palavras , Rosa , que voltara um pouco o rosto para o lado direito de onde estava , soltou um pequeno grito de alegria . António também se voltou para o sítio que Rosa fixava com tanta atenção e sentiu-se empalidecer . Ambos tinham visto Fernando , que , com a espingarda ao ombro e seguido de dois perdigueiros , se encaminhava para aquele lugar . -- Aí vem o Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando -- disse António a meia voz . -- Retiro-me . Adeus , Rosa . -- Não -- atalhou ela -- , agora fica ; não vá ele persuadir-se que evitaste a sua presença e dar isso motivo a suposições menos justas . -- Sim , tens razão ; não queres comprometer-te ; efetivamente podia persuadir-se que não era só ele que merecia as tuas boas graças . E ambos esperaram ansiosos a chegada de Fernando : Rosa , com alegria nos olhos , e António com um ar frio e indiferente que forcejava por simular . Decorridos minutos , o jovem caçador acercava-se dos dois , e , apesar de os saudar com ar prazenteiro , relanceou-lhes um olhar perscrutador e desconfiado , como se tentasse adivinhar na expressão das suas fisionomias o que se passara antes da sua chegada . -- Peço desculpa -- disse António , com intenção . -- Entretinha-me um pouco a gracejar com este papagaio , que faz a alegria de nós todos ; porém , como agora o Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando chegou , retiro-me para me não tornar importuno . -- Isso é graça , rapaz ! -- respondeu Fernando , parecendo perceber o verdadeiro sentido daquelas palavras . -- Deixa-te estar à vontade ; creio que tanto eu , como tu , ou como outro qualquer , tem direito a captar as boas graças da pérola desta aldeia ; quem ficar vencedor na contenda , que seja feliz , porque eu , pela minha parte , não me zango com isso . -- Tem razão , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando ; gosto de o ouvir assim falar ; mas do que deve estar certo é que eu nunca tal tentei nem tentarei , e para prova ela que o diga . É certo que entre nós existia de há muito uma certa amizade ... -- Amizade ? ! ... -- interrompeu o rapaz , fitando o rosto impassível e sereno de Rosa . -- Sim , uma amizade livre de qualquer ambição ... uma amizade de irmãos , de crianças ... -- És já mais feliz do que eu , António : as afeições que se conseguem nos primeiros anos da mocidade são ardentes , sinceras ... -- Engana-se , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando : essas afeições duram apenas até uma certa idade , até ao dia em que se não conhece no mundo outro ente mais caro , ou se não ouvem juramentos mais acreditáveis , mas menos verdadeiros que as simples declarações que se trocam durante esses primeiros dias de inocentes enlevos . Muitas vezes , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando , a mulher que acompanhámos nos primeiros alvores da vida , e que parecia querer-nos tanto , chega a detestar-nos , a aborrecer-nos** do íntimo da alma , desde que uma nova afeição lhe nasceu no peito . Ao que parece , achas-te ferido desse mal , não é verdade ? Ora vamos : sê franco e explica-te mais claramente ; parece-me ver uma segunda intenção nas tuas palavras ... -- Pois bem ! Quer que seja franco ? Aí vai tudo sem rodeios . O Sr. Fernando é namorado de Rosa e ela ama-o tão cegamente que quase chega a aborrecer todas as pessoas que dantes lhe mereciam alguma consideração e confiança ; eu conto-me no número dos queixosos . O Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando procurou agradar-lhe e conseguiu-o ; foi uma grande vitória , e tão grande , que até hoje nenhum rapaz da aldeia a pudera alcançar ; do que , porém , nunca me persuadi foi que o senhor chegasse a inspirar-lhe uma paixão tão intensa ! ... Tive ainda há bem pouco uma prova do que afirmo , porque ela quase chegou a mostrar-me desejos de nunca mais me falar , a mim que até há bem pouco tempo gozava de toda a sua estima e a quem ela dava toda a preferência ! Quer saber ainda mais ? Eu fui tão louco que chegara a acreditar até que ela me amava e que se daria , como eu , por muito feliz , se um dia Deus juntasse os nossos destinos e as nossas almas ! ... Como me enganei ! ... Enfim , não era eu o predestinado para tantas venturas ! -- Talvez te iludas , António -- respondeu Fernando , secretamente orgulhoso por aquelas palavras . -- Sonda bem o coração de Rosa e talvez encontres nele um desmentido Ãs tuas suposições ; as aparências muitas vezes enganam . -- Oh , não me enganam estas ! O Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando matou para o mundo o coração desta pobre criança e fechou-lhe até os sentimentos de amizade para todos nós ... -- Parece que a amas muito , não é verdade ? -- Amei-a , sim ; para que negá-lo ? Esta afeição começou quase no berço . -- E já não a amas ? -- Talvez não ; quem sabe ? Há bálsamos para todas as feridas . Não haverá também um para esta que me dilacera a alma ? -- Deves aborrecer-me bastante ! ... -- Não sei pelo quê ... -- Por ter roubado o coração que julgavas pertencer-te , se é que to roubei . Estas palavras emudeceram António por alguns minutos , e nesse espaço pareceu meditar a resposta que deveria dar . Ergueu afinal a cabeça com ímpeto , cravou no seu interlocutor um olhar calmo , mas expressivo , e respondeu com exaltação : -- Não o aborreço . Chegaria , porém , a odiá-lo de morte , se ... ( Interrompeu-se para lançar um olhar de mágoa para a pobre rapariga , que no meio deste diálogo se conservava opressa e receosa , esperando com viva ansiedade o final dele . ) -- Se as suas intenções , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando , fossem menos puras e se o seu amor se tornasse a causa da infelicidade deste pobre anjo ! -- Ah , se são esses os teus receios , então alimento desde já a certeza de que terei em ti o meu melhor amigo , não é assim ? -- Quem sabe ? ... -- E porque não ? Acaso duvidas de que eu seja capaz de fazer a felicidade desta rapariga ? -- Duvido . -- Duvidas ? ! E porquê ? -- Porque ... porque o senhor nunca lhe dará o nome de esposa . -- Cautela , António ! Olha que me ofendes com os teus loucos preconceitos . -- Ofendi-o ? ! Não o julgava ... É verdade que há coisas que custam sempre a ouvir ; receou talvez que as minhas palavras fossem frustrar todos os seus planos . Ah , sossegue , tal não há de suceder . Rosa ama-o demasiado para que o seu amor se abale com estas minhas tolices , como talvez o senhor lhes chame . -- É de mais ! Emprazo-te para que declares imediatamente o verdadeiro sentido das tuas palavras ! -- E , dizendo isto , o jovem sentia afluir-lhe todo o sangue ao cérebro , começando a experimentar a falta de serenidade que conservara até ali . António , pelo contrário , conservava-se impassível e sereno , brincando-lhe apenas nos lábios um sorriso irónico e quase provocador . -- Pois bem ! -- exclamou ele -- Já que assim o quer , sejam ; ' francos . O Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando tem um único ponto de vista neste amor ; conseguiu já bastante , isto é , fazer-se amar ardentemente por esta rapariga : foi o mais difícil ; agora o resto , o mais fácil , é abusar do seu afeto e da sua inexperiência para a lançar no caminho da desgraça , roubando-lhe o mais precioso dote -- a honra ! -- Está agora satisfeito ? A esta nova provocação , Fernando perdeu completamente a paciência . -- Infame ! -- exclamou ele encolerizado -- Vais pagar com a vida os insultos que acabas de dirigir-me ! E , recuando alguns passos , engatilhou e levou à cara a espingarda , dispondo-se a dispará-la contra o seu rival , quando Rosa , fora de si , exclamou com voz suplicante : -- Fernando , por quem é , pelo nosso amor lhe peço que se contenha ! Estas palavras produziram no jovem o efeito que era de esperar : deixou pender os braços , olhou com indizível ternura para Rosa , e , voltando-se em seguida para António , que durante aquela cena se conservara imóvel como uma estátua , não perdendo nem sequer por um momento o sangue-frio que sempre conservara , exclamou : -- Agradece a Rosa o não estares a esta hora na eternidade . Agora peço-te que te retires imediatamente ; a tua permanência aqui poder-nos-ia ser a ambos bem fatal . Vai , mas previno-te que te livres de repetir-me qualquer expressão das que acabaste de proferir . -- Retiro-me , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando -- respondeu António , com gravidade -- , não porque tema as suas ameaças ; a morte , para mim , neste momento , me-ia talvez um grande alívio ; retiro-me , sim , porque não quero agravar mais este incidente , e porque também temo exaltar-me . Pela última vez , repito-lhe : a desgraça de Rosa será a sua morte . Nunca se esqueça destas palavras . E , saudando com um simples aceno de cabeça os dois amantes , retirou-se com passos vagarosos , mas firmes . Fernando seguiu-o com a vista até o ver desaparecer ao longo do caminho , depois , voltando-se para Rosa , exclamou com um sorriso forçado : -- Iria jurar que este pobre diabo endoideceu , não te parece ? Rosa nada respondeu , contentando-se apenas em dirigir ao seu interlocutor um olhar aflitivo . -- Não me respondes ? -- continuou o rapaz , franzindo um pouco as sobrancelhas . -- Acaso darias crédito Ãs sandices desse miserável , ralado de ciúmes e de despeito ? -- Oh , não , não o acreditei -- respondeu a rapariga . -- Confio muito no seu amor , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando , para que duvide sequer um momento ... -- Ainda bem . Mas diz-me : qual é a causa dessa tua consternação ' ? -- Nem eu mesma o sei . Esse pobre rapaz , antes de o Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando chegar , já me tinha dito tanta coisa ... -- Provavelmente tudo no teor do que acabo de ouvir . -- É verdade ; conquanto as suas palavras não pudessem operar em mim senão tédio e despeito , ainda assim algumas delas impressionaram-me profundamente ! ... -- Imagino a quanto o teria levado o seu desespero ; mas diz-me ainda : antes de mim era ele o teu namorado ? -- Não , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando , nunca nos declarámos a mais leve afeição ; no entanto tratava-o com mais urbanidade do que a nenhum outro , e foi isso decerto o que o fez persuadir que eu lhe tinha um verdadeiro amor . Enganou-se completamente . -- Outra pergunta : posso saber os motivos que se davam para essas provas de deferência ? -- Motivos muito simples : em primeiro lugar porque , como o Sr. Fernandinho sabe , fomos criados quase juntos , e em segundo porque notei sempre nele alguma coisa que o distinguia de todos os outros rapazes da aldeia : possui uma certa inteligência , tem maneiras agradáveis , enfim , reúnem-se nele qualidades que o extremam da maioria da gente do campo . -- Também eu notei isso mesmo ainda há pouco . Não é vulgar encontrar aldeões que se exprimam como ele . Viveu algum tempo na cidade ? -- Não , Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando , nunca saiu destes sítios . Este rapaz ficou , segundo dizem , órfão de pai e mãe , de tenra idade . O Sr.||_padre|_Francisco padre||_padre|_Francisco Francisco|_padre|_Francisco teve pena dele , levou-o para sua casa e deu-lhe uma boa educação , ensinando-o a ler e escrever , e tencionando até ordená-lo padre . O rapaz , porém , começou desde logo a mostrar uma pronunciada negação para tal ministério e não cessava de lhe demonstrar o quanto mais lhe aprazia a vida do campo . O Sr.||_Padre_Francisco Padre|_Padre_Francisco Francisco|_Padre_Francisco fez-lhe por fim a vontade e teve-o sempre na sua companhia , tratando-o mais como próximo parente do que como seu servo . É de então que datam as nossas relações , porque , como o Sr.||_Padre_Francisco Padre|_Padre_Francisco Francisco|_Padre_Francisco estimava muito meus pais , e a casa da escola era bastante distante destes sítios , admitira-me também como sua discípula , e assim fomos educados ao mesmo tempo . Depois a família da Sra.||_baronesa baronesa|_baronesa , que habitou aqui muito tempo , acabou de nos aperfeiçoar , graças à amizade que nos tinha a ambos . A Sra. baronesa tratava do pequeno António , cultivando-lhe o espírito com largas conversas e leituras , e a sua filha , a Sra.||_D._Deolinda D.|_D._Deolinda Deolinda|_D._Deolinda , encarregou-se de mim , ensinando-me a pronunciar bem as palavras e a fazer alguns bordados , que eu nunca saberia , se não fosse ela . Pobre menina ! Depois que daqui saiu nunca mais tive notícias dela nem da sua mãe . Era tão minha amiga ! ... Não queria morrer sem a tornar a ver . O Sr.||_Fernandinho Fernandinho|_Fernandinho , como tem estado sempre no Porto , há de tê-la visto muitas vezes ; deve estar uma senhora ... -- Tenho-a visto , tenho -- atalhou Fernando , tentando desviar a conversa para outro assunto . -- Mas vamos ao que me interessa : tu não tornarás a lembrar-te do que há pouco disse esse tresloucado rapaz , não é verdade ? Decerto que não esfriou com isso o amor que me tinhas . -- Oh , não , não ! Amo-o muito , muito , muitíssimo ; o que eu temo é pelo Sr. Fernandinho . -- Por mim , como ? ! -- Receio que a alucinação desse rapaz o leve a cometer algum atentado contra o senhor . -- Nada receies , minha boa Rosa ; eu me prevenirei contra qualquer ataque . É verdade : tua avó está em casa ? -- Está no quintal a trabalhar ; foi uma providência o ela não ter ouvido o que há pouco se passou ; é muito amiga de António , e , se soubesse que eu lhe tinha causado algum desgosto ... -- E ao meu respeito ainda não te disse coisa alguma ? -- Nada absolutamente : persuade-me que estas nossas relações não são mais do que mero passatempo . -- Ainda bem . Agora , minha Rosa , retiro-me e espero encontrar-te à noite quando voltar . -- Satisfarei-lo em tudo , porque o amo . -- És um anjo ! E , acercando-se da pequena mão que Rosa lhe estendia da janela , apertou-a entre as suas , osculou-lhe&lhes+a ardentemente e retirou-se . São decorridos perto de quinze dias , depois das cenas que deixamos descritas . Durante esse tempo nada se passou de notável , a não ser os progressos que fazia de dia para dia o amor dos dois jovens . Dir-se-ia-que já não havia forças humanas capazes de separar aqueles dois corações tão cheios de douradas esperanças . Fernando não deixara um só dia de ir visitar a linda aldeã ; além disso , já não era só à porta da habitação e debaixo da janela que faziam as suas mútuas promessas . Rosa , pretextando ir a casa desta ou daquela amiga , avisava antecipadamente Fernando , e por isso não era raro encontrá-los ou no meio de um atalho mais escuso , atrás de uma sebe , ou ainda sentados junto ao tronco de uma árvore , confiando um ao outro o segredo íntimo dos seus anelos , dos seus receios e das suas dúvidas , objetos que fazem sempre o assunto principal das conversas de dois amantes . Estes amiudados encontros e misteriosas conversas não tinham , porém , passado despercebidos a meia dúzia de vistas curiosas e de espíritos chocarreiros , nascendo daí umas certas conversas em voz baixa , que principalmente as mulheres trocavam quando à noite se juntavam Ãs portas umas das outras ou se encontravam casualmente . O que sem dúvida já de há muito se dizia , em voz alta e sem rebuço , era que a Rosa namoriscava o filho do Capitão , como chamavam a Fernando . As relações dos dois jovens eram , pois , já sabidas por toda a aldeia e isso dava motivo a ditos e comentários mais ou menos maliciosos , mas quase sempre malévolos . Os invejosos e maldizentes , falando dos amores de Rosa , concluíam sempre as suas conversas com sentenças como esta : -- Chegou ao que queria . Os rapazes da lavoura já lhe não serviam : agora porém , deve estar satisfeita : um morgado rico , e além disso cirurgião , não era coisa para desprezar . Coitada ! Está bem servida ! Persuade-se talvez que o filho do Capitão a quer para alguma coisa , nem que ele não tivesse melhores caras , nem raparigas ricas ... E o que é certo , é que a delambida anda já tão emproada , que não dá palavra a ninguém ; parece até fugir da gente Está servida ! O filho do Capitão há de casar com ela , quando o mundo se acabar . Nem que o Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando fosse algum tolo . Os supersticiosos diziam : -- A rapariga , segundo asseveram , anda doida pelo rapaz ; não digo nada para não errar , mas aquela amizade não pode ter bom fim . O filho do Capitão é rico e dentro em pouco terá uma linda posição , além disso é estudante , e isto de estudantes , nem pintados ... Enfim , pode ser que a rapariga lhe calhasse e que venha a casar com ela , mas duvido muito . Deus ampare aquela boa rapariga e a livre de alguma desgraça ... O mundo está de uma forma que devemos sempre julgar o pior . Têm-se por aí visto tantos exemplos ... Finalmente , os bondosos desinteressados exclamavam com convicção : -- Aquilo é mocidade , e por isso deixem-nos divertir . O morgado , enquanto por ali anda , quer passar o tempo , e faz muito bem ; ela é nova e solteira , e por isso está no seu direito de dar trela a quem quiser . Daqui a dois dias aborrecem-se ou zangam-se por dá cá aquela palha , e cada um trata de procurar outro norte . Aquilo não vale nada ; deixem-nos divertir ... Eram estas as três opiniões em que se dividia a população da aldeia , advertindo que o número dos supersticiosos era maior , porque as suas ideias tendiam mais para o mal . Relativamente aos pais dos dois amantes , a avó de Rosa , conquanto todos os dias lhe soprassem aos ouvidos algumas chufas e ditozinhos maliciosos , não lhes dava a mínima importância , e , como os bons e desinteressados , não se opusera Ãs relações da sua neta , porque não via nelas mais que um passatempo próprio da sua idade . O pai de Fernando , esse , ria-se quando em tal lhe falavam , e exclamava com o melhor bom humor : -- Deixem-no divertir-se ; está no seu tempo , e nós , quando tínhamos a mesma idade , fazíamos outro tanto . Ao menos o demo do rapaz não teve mau gosto ; ela não é rica , não , mas também é a melhoria destes arredores . Que converse , pois , com quem quiser , enquanto por aqui anda , porque eu não me importo com isso ; estou até em dizer que dentro em pouco deixa-a e agarra-se por aí a outra . Os ditos e as chicanas continuavam , porém ; e tal vulto tomou a maledicência , que a avó de Rosa vira-se obrigada a tomar o caso a sério e a dirigir a semelhante respeito algumas palavras a sua neta . Um dia , à hora de jantar , logo que terminou a refeição , a avó de Rosa , com aspeto grave , interrogou sua neta por estas palavras : -- Minha filha , será verdade o que por aí se diz ao teu respeito , isto é , que tu namoras o filho do Capitão ? A esta pergunta inesperada , e a primeira que a sua avó lhe dirigia sobre tal assunto , Rosa sentiu-se enleada , mas não pôde mentir ; com os olhos baixos e as faces avermelhadas , respondeu com firmeza : -- É verdade , minha avó ; persuadi-me que já o sabia . Sabia-o , é verdade , mas queria ter a certeza ... -- Diz-me : é certo também que o amas muito ? Esta nova pergunta acabou de perturbar a jovem a ponto de não poder responder senão com uma torrente de lágrimas . Foi isso o bastante para sua avó adivinhar o que se passava no seu coração . -- Minha filha -- continuou a boa da velha , não podendo também conter a sua comoção -- , as tuas lágrimas são a mais clara prova do teu amor para com esse rapaz ; foste demasiadamente precipitada , mas o mal ainda se pode remediar . Devias saber que o Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando , além de ser rico , não é nenhum jovem da lavoura , como muitos outros que por ai há , e isso deveria ser motivo para tu repelires , com todas as tuas forças , os seus desejos ou os protestos de amizade que te fizesse . Foste , pois , leviana na escolha : ouviste-o , acreditaste-o e consagraste-lhe o teu amor . De há muito sabia eu dessas relações , mas nunca me tinha oposto a elas , porque não julgava que tomassem tanto vulto nem dessem tanto que falar e criticar na aldeia ; ainda para mais , ignorava que tu em tão pouco tempo pudesses ganhar-lhe uma tal afeição ! ... Mas , como já disse , estamos ainda em tempo de tudo remediar ; bem sabes o que se tem dito por aí , e portanto é necessário que termines tais relações e que nunca mais tornes a falar a esse rapaz . Rosa ouvira impassível os conselhos da sua avó , mas , Ãs últimas palavras , as suas faces de novo se inundaram de lágrimas . A pobre velha , também cada vez mais comovida , afagava-lhe o rosto , e , quando a viu mais sossegada , exclamou em tom quase suplicante : -- Vamos , Rosa , sê forte ; o teu amor está ainda em princípio , e por isso melhor se poderá atalhar ; são dois ou três dias de saudade e de tristezas , mas depois esquecerás-lo . É necessário este sacrifício , minha filha , e , se não me queres dar um grande desgosto , faz-me o que te peço . Crê que o Sr.||_Fernando Fernando|_Fernando nunca casaria contigo , porque ele apenas o que deseja é passar algum tempo e divertir-se ; tu , como mulher que és , não pensas assim , e daqui a pouco lhe-ias uma afeição que poderia trazer consigo graves consequências . Vamos : fazes-me o que te peço ? Nunca mais te importarás com esse rapaz ? Rosa meditou algum tempo e afinal respondeu a custo : -- Farei tudo quanto puder para a não desgostar , minha avó . Estas palavras foram recebidas com a maior alegria pela velha : abençoou sua neta e confortou-a durante alguns momentos , para melhor a dissuadir daquela paixão . Por uma notável coincidência , Fernando , nesse mesmo dia , quando ia a sair de casa , foi chamado pelo seu pai , que , com o seu costumado bom humor , exclamou : -- Vem cá , meu maroto ; diz-me uma coisa : é verdade que tu conversas a Rosita do Adro ? -- Não o nego , meu pai ; mas a que vem essa pergunta ' ? -- É porque se fala muito nisso na aldeia : todos dizem que os teus fins para com ela não são nada bons . -- É uma falsidade , meu pai ; juro-lhe que ... -- Não jures nada . Olha : fazes-me uma coisa ? ... Deixa em paz a pobre rapariga e tapa assim a boca a essas línguas danadas . -- Mas eu é que não tenho nada absolutamente com o que dizem , e , portanto ... -- Vamos , Fernando , eu sei o que são rapazes , e ainda melhor sei o que tu és ; deixa lá a rapariga sossegada e não faças por aí alguma das tuas . -- Perdoe-me , meu pai , mas não acho bonito abandonar uma rapariga sem ter para isso o mais pequeno motivo . São coisas que se não devem fazer . -- Visto isso , não a queres deixar , não é verdade ? Pois bem : faz lá o que quiseres , contanto que não me dês por aí algum desgosto , e o que te aconselho é que tenhas tento na bola ; olha que isto aqui não é o Porto , onde vocês fazem toda a casta de maroteiras . Depois a Rosita é uma pobre rapariga ... Enfim : juízo é que eu te recomendo , e vai com Deus ; tu já não és nenhuma criança , para que não saibas o que fazes ... Vai , vai e diverte-te . -- Sossegue , meu pai , não há de ter de que se queixar -- respondeu Fernando , saindo e dirigindo-se , como de costume , para a habitação de Rosa . Logo que ali chegou , a jovem debruçou-se sobre o peitoril da janela , e com ar misterioso e a voz comovida exclamou em tom quase impercetível , como se temesse que as suas palavras fossem ouvidas no interior da habitação : -- Vá para a bouça do Corado e espere-me lá um pouco , que eu vou já falar-lhe , não me demore aqui sequer um momento . E , antes que o rapaz , boquiaberto , lhe perguntasse o motivo daquela comoção , retirou-se precipitadamente da janela , deixando Fernando ainda mais estupefacto . Sem atinar com o motivo daquele ar misterioso , o jovem obedeceu ao último pedido e encaminhou-se para o lugar indicado . A bouça chamada do Corado ficava algumas centenas de passos distante da igreja , para o lado do sul . Era um extenso terreno atapetado de mato grosso e cerrado , partido apenas em diversas direções por pequenos caminhos ou atalhos , que davam saída para os campos vizinhos e para a estrada que atravessa a aldeia . Por entre o mato elevava-se um sem-número de pinheiros bravos , de larga copa , entremeando-se por meio deles algumas outras árvores de menor porte , que no seu todo formavam à primeira vista uma extensa e impraticável floresta . À direita de um dos atalhos que atravessavam a bouça , e um pouco distante , havia um pedaço de terreno coberto de viçosa relva , disposto quase em círculo e cerrado por um grande número de pequenas árvores , apresentando , pela sua disposição natural , um como pequeno bosque , por detrás do qual se levantava uma espécie de parede formada pela ramagem emaranhada de grande número de espinheiros e outras plantas bravias , que impediam a vista para o resto da bouça . Foi neste aprazível lugar que Fernando entrou , e pela escolha que fizera dele dir-se-ia-não lhe ser desconhecido , nem aquela a primeira vez que ali penetrava . Sentou-se no tronco de uma árvore que ali se achava , encostou a ele a espingarda e esperou , enquanto que os dois cães que sempre o acompanhavam farejavam por entre o mato . Passados poucos momentos , o jovem ouviu latir os cães , sinal evidente de que alguém se aproximava ou atravessava a bouça , e levantou-se para ver quem seria . Efetivamente viu ao longe , caminhando por um atalho , um homem cujas feições não pôde a princípio distinguir , pela distância que o separava dele , mas , afinal , quando se aproximou mais , reconheceu António , o jovem do padre . Era efetivamente o desventurado rapaz , que , com a enxada ao ombro e a cabeça pendida para o peito , caminhava vagarosamente , parecendo estranho a tudo que o cercava . Passou a alguma distância do local em que Fernando estava , e tão abstraído ia , que nem sequer parecera dar pela presença do rapaz , que , meio desconfiado , seguia com curiosidade a direção que ele levava . Apenas , ao sentir o latir dos cães , António relanceara sobre eles um olhar tão rápido , que nem o próprio Fernando o notou . Afinal , Fernando , logo que o viu desaparecer por entre o labirinto de árvores , tomando um caminho oposto Ãquele em que se achava , voltou para o seu lugar , exclamando de si para consigo : -- Pobre rapaz ! ... à fé de quem sou , que tenho dó dele ! ... E há quem diga que o coração do homem não seja capaz de uma grande paixão , incurável até ! ... Engano ! E a prova é esse pobre diabo , para quem parece terem morrido todas as alegrias desta vida , pelo simples facto de Rosa o ter repudiado .