A SENHORA||_VISCONDESSA VISCONDESSA|_VISCONDESSA ROMANCE ORIGINAL POR S. De MAGALHÃES LIMA COIMBRA Imprensa Commercial e Industrial 1875 A TI " A ti , que hoje és ideal , e que um dia serás mãe ; a ti , que foste filha e que has de ser esposa ; a ti , mulher , a ti , " Consagro este livro . " Magalhães Lima " Um baile Temos baile em casa da sr. ^ a viscondessa de B . Á porta do palacete param trens sem conta . Descem os convivas , profusamente almiscarados . No salão se os pares : " elles " , fragrantes , como uma rosa de Bengalla ; " ellas " , voluptuosas e tépidas , como uma brisa do Oriente . A sala é vasta , enorme , quadrangular . A cada canto uma mesa de marmore oleosa e de difficil lavôr . Do tecto dourado e semicircular pende um lustre de sessenta lumes , adornado de flores artificiaes e de vidrilhos verdes . A mobilia , de um estofo azul e assetinado , rivalisa em symetria com os mais encantados jardins de Granada . As janellas abertas atraiçoam os segredos dos namorados . Como relampagos , reflectem-se na praça as vertigens da walsa . Por sobre a sombra do arvoredo ondeia a luz phantasticamente . A cada um d' estes banhos despertam as aves nos seus ninhos . E a lua , a doce companheira da tristeza , vae illuminando o espaço , o mar e as solidões . As flores derramam uns aromas acres e inebriantes . N ' um esplendido vaso de porcellana de " Sévres " , abre uma mimosa camelia as suas longas e avelludadas petalas . Umas plantas exoticas , orientaes , adornam o espaço ladrilhado das janellas de sacada . Entra a viscondessa na sala . Os grupos cessam de falar . Em redor d' ella tudo se apinha , tudo se confunde , tudo se baralha . A valsa recomeça . Nos espelhos de crystal reflectem-se as estranhas imagens , que , n ' esta noite , povoam o salão . Sobre as piscinas de marmore debruçam-se as avesinhas artificiaes -- pobres avesinhas implumes feitas de pedra e de calcareo . Estremecem docemente os cortinados da janella . Os peitos arfam de cançados ; e na parede o papel , como que exhala uns mysteriosos e prolongados calores . -- Quer v. ex. ^ a conceder-me esta valsa ? -- diz um cavalheiro , offerecendo o braço a uma gentil dama de vinte annos . E entrou no turbilhão . -- Mas perdão , senhora viscondessa ... bem vê que na minha posição ... -- Acompanhe-me , Alfredo . E os dois seguiram para uma saleta proxima , situada á direita do salão . Os creados serviram o chá . Na varanda fumavam e conversavam os cavalheiros . Algumas senhoras refaziam a sua " toilette " , em parte desfeita pelos ardores da dança . -- E acredita a senhora viscondessa , que eu realmente lhe podesse ser affeiçoado nas condições em que me acho ? -- E por que não , Alfredo , se eu o amo loucamente . Um leve ruido interrompeu o dialogo . A saleta era assaz confortavel . Uns moveis escuros a guarneciam tristemente . Ao longo da parede destacavam uns quadros sombrios , meigos , phantasticos . Em cima do fogão agitava-se o pendulo do relogio , como se effectivamente nos quizesse recordar uma pulsação dolorosa . A viscondessa , airosamente sentada n ' um fofo sophá , volvia os olhos nervosos na direcção da porta do baile . -- Ninguem nos ouvirá -- exclamava ella de si para si . E continuou a fallar para Alfredo , que , a longos passos , percorria a sala de um a outro extremo . Entretanto a orchestra convidava a uma quadrilha . Um elegante moço entrou na saleta . -- Venho lembrar a v. ex. ^ a , minha senhora , que esta quadrilha me pertence . A viscondessa acompanhou-o . Alfredo só , roia um charuto furiosamente , quando novo ruido o despertou . Defronte d' elle , e ameaçando-o com um punhal , estava um rapaz , cheio de febre , de odio e de vingança . -- Ouvi tudo -- exclamou o intruso . Ou tu me promettes nunca amar a viscondessa , ou eu te assassino aqui , como um miseravel que és . -- Nunca ! ... -- vociferou Alfredo , arrancando-lhe o punhal da mão . Primeiro cahirás tu , desgraçado . Já , já fora d' esta casa ... Este incidente , como é natural , perturbou a quadrilha , que então se dançava . Acorreram todos . Os dois contendores haviam desapparecido da saleta . O baile continuou . A Senhora||_Viscondessa Viscondessa|_Viscondessa É uma mulher da moda -- chlorotica , anemica , febril . Olhar vivo , e transparente , como um chrystal . Na sua doce pallidez o que quer que seja das visões de Schiller . No andar , porte altivo , donairoso , esbelto . As longas insomnias , apaixonadas , tornaram-n* ' a triste e contemplativa , como uma virgem de Murillo . É viscondessa ; faz muitas esmolas e possue trens faustuosos . Acabam de soar duas horas nos relogios da cidade . Um calor intenso abrasa as calçadas . Corria o mez de Maio de 1859 . No Largo de Camões , o sol , batendo de chapa , sobre um telhado visinho , reflectira-se estranhamente nos aposentos da viscondessa . No corredor presentira-se o ranger de um leito . O cortinado de cambraia foi delicadamente afastado por uma mão de marfim , pequena e esculptural . -- Virginia , Virginia -- gritou uma voz sonora , de timbre metalico e adocicado . A porta do quarto , abrindo-se , deixou entre vêr o rosto de uma formosa creança , loura como um cherubim e tentadora como Eva . -- V._ex._^ V._ex._^ V._ex._^ a chamou , minha senhora ? -- Sim , chamei . -- Traze-me o meu roupão branco e vem ajudar-me a vestir . E a viscondessa , bocejando infantilmente tornou a cahir no travesseiro , doida de somno e ébria de amor . Adormeceu de novo . Uma hora volvida veio Virginia encontral- a sentada n ' uma poltrona , defronte do espelho . Fingia que lia . Do regaço pendia-lhe um romance francez . Com a mão direita desviava as tranças fartas , que , por vezes caprichavam em cahir-lhe sobre o peito . O braço esquerdo , abraçando o espaldar da cadeira , servia-lhe de encosto . De subito ergueu-se como uma estatua . Procurou um pente e largou-o com desfastio . Olhou para o relogio , tocou a campainha , e tornou a sentar-se . -- Estou aqui , minha senhora . Deseja alguma cousa ? -- Ah ! Estavas aqui . Ora vejam que cabeça a minha que nem sequer havia dado por tal . -- Manda-me arranjar o almoço , anda . -- Por mais que me digam a senhora não anda bôa -- murmurava a ladina da creada , correndo espevitadamente . A viscondessa , sempre inquieta , ergueu-se novamente . Percorreu o corredor e entrou na sala de jantar . Dirigiu se a um periquito , que ali tinha , tirou-o da gaiola e começou de afagal- o meigamente . -- Coitadinho do meu " bijou " -- exclamava ella com doçura . Foi-se depois ao canario , trouxe-o para a mesa , e destribuindo com elle a comida , que mal provava , introduziu-o no seio . Um cão pequeno , felpudo , ensaboado e luzente , como verniz , fazia " pendant " com os dois personagens , acima descriptos . " Joli " lhe chamava a viscondessa . Nunca sahia da sala de jantar . Era o seu theatro d' elle . Ali aprendêra a ser guloso e concupiscente . Quando a senhora chegava , elle , de um pulo , saltando lhe ao regaço , para logo principiava de lamber-lhe as faces e os cabellos . A dona da casa aceitára , sem repugnancia , este tributo quotidiano . Alêm do cão havia um gato maltez , elastico , como uma serpente e indolente como um chin . Entre o cão e o gato existia uma mediadora : era a viscondessa . Por fim os dois rivaes fizeram tréguas . Chegaram até a comer no mesmo prato , brincando como dois amigos . Nos seus dias de melancholia , a viscondessa , orphã de pae e mãe , sem parentes , só no mundo e senhora de ricos haveres , reunindo em redor de si tão variada e interessante familia , sentia-se mais feliz , e porventura mais esquecida do que nunca . O gato aquecia , o cão lambia , e as aves entretinham , cantando . Emfim bateram quatro horas . A Viscondessa bocejou mais uma vez . -- Se elle , ao menos , me amasse ... -- dizia ella , erguendo-se . E , continuando pelo corredor , entrou no " boudoir " , onde a esperava a cabelleireira . Vestiu um chambrão de cachemira azul ; e , sentando-se na cadeira que lhe offereceram divagou , ao acaso , durante uma hora . Quando acordou estava realmente encantadora . O cabello , frisado a capricho , imprimia-lhe um aspecto senhoril e grave . O rosto desanuviara-se-lhe . Foi ao espelho , e , como flôr que ao sol desabrocha , sorriu-se maliciosamente . -- Achas-me bonita , assim ? -- perguntou ella a Virginia . -- Deslumbrante -- minha rica senhora . E a viscondessa , toda vaidade e tentação , foi-se até á cosinha , pretextando umas ordens para o jantar . Voltou depois ao quarto . A um ligeiro impulso cahira-lhe o roupão . Sorrindo-se , envergou umas saias pesadas e cheias de gomma . Remirou-se novamente ao espelho . Com um pincel , mergulhado em carmim , deu côr ao rosto , naturalmente desmaiado . Apertado o espartilho e collocada a " tournure " enfiou um rico vestido de setim . Chamou Virginia e pediu alfinetes . Pregou o vestido , pregou o cabello , pregou as saias , pregou-se a si e sahiu do " boudoir " . -- Ora esta ! e não me ia agora esquecendo o " crême imperatrice " -- monologava ella , voltando á saleta . Defronte do espelho , recuando dois passos e fazendo tregeitos para um o outro lado , empoeirou-se gravemente . Extrahiu do gavetão um lenço de cambraia ; destapou um vidrito de " jockey-club " , perfumou-se e entrou na sala do baile . O piano estava aberto . A viscondessa sentou-se . Dedilhou , ao acaso , uma escala e aborreceu-se . Olhou para um espelho , mudou um dos ganchos do cabello e abriu a janella . Uma brisa tépida soprava apenas . O sol ia declinando no horisonte . Nas ruas mexiam-se as multidões apressadamente . Alguns cavalheiros de chapéu na mão limpavam o suor da testa . As damas , mesmo á janella , agitavam os leques phreneticamente . Os freguezes entravam nos botequins , e pediam sorvetes . Estava proxima a hora do passeio , a hora de luar , a hora de amor . Seriam oito horas , quando a viscondessa cerrou a janella . Chegára-lhe finalmente a vontade de jantar . Caminhou lentamente , deixando após de si um rumor surdo , e mui semelhante ao remexer de folhas , agitadas pelo vento . Insaciavel , hysterica , nervosa , sentou-se á mesa pela segunda vez n ' aquelle dia . Provou de tudo sem comer de nada . Bebeu um gólo de " malvasia " e fez-lhe uma careta insupportavel . Limpou os labios de coral e mandou arranjar o trem . Prompta a carruagem e calçadas as luvas dirigiu-se para o theatro de D. Maria . Representava-se a " Vida de um rapaz " pobre n ' essa noite . A Viscondessa admiravel de bellesa e encanto , provocava de continuo os binoculos das plateias . No fim do 3. ^ o acto a porta da frisa abriu-se . Era Alfredo que entrava . A Viscondessa sorriu-se . -- Sabe , Alfredo , que o esperei hoje todo o dia ? -- E não o ter eu adivinhado , senhora viscondessa ? -- Se imaginasse o aborrecimento em que vivo decerto não seria tão cruel para commigo . -- Mas , minha senhora , a minha posição ... emfim ... eu não sei ... V._ex._^ V._ex._^ V._ex._^ a ... E a orchestra , tocando uma symphonia , deu o signal de despedida . -- Alfredo , enleiado e timido , sahiu da frisa . A Viscondessa cumprimentou-o , e , como sempre sorriu-se tristemente . O espectaculo continuou . Á sahida do theatro , quando a Viscondessa , acompanhada por um creado , punha o pé direito no estribo da carruagem um desconhecido , abeirando-se d' ella entregára- lhe um pequeno bilhete , ligeiramente perfumado . Os cavallos partiram a galope . Apenas chegada a casa , a senhora , toda receio e anciedade , abriu o bilhete . Desengano , desengano cruel ! Não era de Alfredo a letra ... Mas de quem poderia ser ? A quem attribuir aquellas palavras ardentes ? " Amo-te -- escrevêra o anonymo . -- Doidamente te amo . Tu decidirás da minha sorte . Sou pobre , sou operario . Embora ! Hei de conquistar-te ainda mesmo atravez do sangue do meu rival . -- Sempre é muito atrevido ! ... -- exclamava a viscondessa , despindo-se já . Acendeu depois um charuto , um excellente charuto havano . A pouco e pouco foram-se-lhe os olhos estreitando . Para um lado pendeu a cabeça abrasada , e para outro o braço , cuja mão deixava cahir o charuto , quasi apagado . Languida , abatida , sensual a senhora adormeceu finalmente . Virginia chegára pé ante pé e retirára a luz . O palacete , envolto em trévas , acompanhára o somno da sua rainha . E assim se passava a vida da Viscondessa . Alfredo Alfredo da Silveira nascêra embalado pelos sorrisos da fortuna . Teve uma casa que vendeu . E que bonita casa ! Situada na orla da praia extendia- se deante d' ella o oceano como um vasto lençol , cujas dobras phantasticas se encolhiam e desencolhiam , consoante as horas e as marés . N ' essa casa viu a luz Alfredo . Ahi , envolto com o maternal carinho , aprendera elle a entoar as primeiras trovas da infancia ; ahi tambem suspiroso , como um lago , e candido , como o céu , aprendêra a ser um filho honrado e um cidadão benemerito . Mas a infancia , esvaecida n ' uma manhã de rosas , deixára após de si o lucto de um coração e a orphandade de uma familia . A solitaria vivenda , circundada de festões e madre-silvas , sentira-se isolada e triste . Na viração da tarde já as flores silvestres não derramavam , como outr'ora , uns aromas tão vivos e tão profundamente salutares e amenos . Ausentara-se dali a mulher angelica , boa , virtuosa , cujo espirito , evolado nas azas da saudade , fôra perante Deus rogar pela felicidade de seu unico filho . E Alfredo chorou e chorou deveras ... Estava , porêm , na primavera da vida . Auspiciado pelas brisas da mocidade demandou a capital , cujo ruido o captava em extremo . Dirigiu-se para Lisbôa e ahi fixou residencia . Para qualquer que o visse seria o seu rosto gentil e levemente effeminado o mais seguro passa-porte de uma fina e aprimorada educação . Usava de ordinario fato preto a que dava realçe uma esplendida camelia , artisticamente collocada na " boutonniére " . Elegiaco por condição nada havia que o satisfizesse . Um vacúo immenso lhe torturava a existencia . Filho do tédio e vivendo para o tédio o seu espirito , agrilhoado por uma nostalgia sem limites , experimentava de continúo um mal-estar insupportavel , atroz , corrosivo , e porventura uma doença impossivel de definir-se . A sua compleição delicada , e consumida pelos vinhos , agitava-se alternadamente entre dois mundos infinitos e contradictorios . Amava e não amava , queria e não queria , pensava e não pensava . Alto , magro , nervoso tudo o impressionava com uma fatalidade irresistivel . O mundo era-lhe um phantasma sombrio , chimerico , cuja sombra elle amaldiaçoava , a todas as horas , no café , na rua , no bordel , na sociedade emfim . Mulheres havia que sonhavam com o seu bigode louro , a sua cabelleira phantastica , e os seus sorrisos provocadores , ingenuos e ligeiramente ironicos . Elle , porêm , detestava as mulheres em espirito , aproveitando-lhes o corpo e a carne , como um mero passa-tempo social . Só uma vez amou , e , como Christo , doidamente , loucamente , profundamente . Então foi ditoso muito ditoso . A felicidade mirara-se n ' elle , como uma donzella no seu espelho . Não lhe faltaram nem as crenças do berço nem as extravagancias da juventude . Tudo lhe sorrira , desde o leito que primeiro o amamentou até ao vinho , ao terrivel vinho que ultimamente o prostituiu . Fôra ditoso ... Viajando viu muita coisa ! Viu mulheres novas que se abandonavam aos velhos ; creanças loucas que se entregavam ás orgias , cuspindo na face das mães ; politicos mercenarios , que , á maneira das mulheres de Babylonia , alugavam ao primeiro , que na estrada passava , a honra e a consciencia ; exploradores sem conta , eternas Shylocks da publica miseria ; paes que despresavam os filhos , irmãos que matavam os irmãos , mães que vendiam as filhas . Viu muita coisa ... Passeando , admirou muito ! No Oriente encontrou mulheres formosas , pallidas , sansuaes . Depois passou á Grecia , a sábia , a divina mãe , onde Corina mais tarde teve o seu berço de flores . E ainda percorreu Roma , aquella Roma dos Cesares e da " rocha tarpeia " e Verona a patria de Julietta , e a Escocia o theatro de Macbeth . Admirou muito ... Bebeu sempre ! Provou o incomparavel tokai , esplendido " falerno " dos tempos modernos , encheu-se de absyntho e saboreou o alcool com delicia . Bebeu sempre ... Fumou com ardôr ! O chibuca , o opio , o havano tudo lhe embriagou os sentidos , fazendo d' elle uma alma pagã e um corpo lascivo , môrno , cheio de tédio e de languidez . Fumou com ardor ... Amou delirantemente ! Lembro-me tão bem ... A onda brincava travêssa sobre a praia longinqua . Uma brisa tépida , apenas , semelhando um leque de plumas , agitava docemente as vagas do Oceano . Como o arfar de uma mulher aos vinte annos , assim a natureza suspirava languida , nervosa , etherea . E ao longe , atravez das brumas phantasticas , scintillaram seus vestidos brancos , suas faces pallidas e seu olhar azul . Sorrira-lhe pela primeira vez o ideal no horisonte da vida . Aproveitou a serenidade do crepusculo para lhe fallar . Disse-lhe o que sentia . A creança encarou-o duas , tres , quatro , cinco vezes , sorrindo-se amavelmente . Volvidos dias tornou-se a encontrar com ella n ' um immenso , escuro pinhal . Ali confidenciaram largamente . Juraram amar-se . E elle na sua louca estulta ingenuidade ousou acredital-a . Desgraçado do moço , que tinha um coração , impossivel de esmagar . Quando , passados annos , lhe disseram que ella se havia tornado uma grande mulher do mundo , a eterna " bas-bleu " dos salões , sentiu-se inanimado quasi , imbelle , exangue . Tentou afastar de si o gélido phantasma que o perseguia sem cessar , e que mesmo em vida lhe seria triste mortalha . Em cata d' ella correu , voou . Precipitou-se , finalmente n ' um theatro , onde , pela quarta vez , a contemplou mais scintillante que uma esmeralda e mais loura ainda que um archanjo . Á sahida do espectaculo experimentou um estranho choque no seu hombro direito . Olhou e viu-a a ella que lhe acenava com uma das mãos . Aproximou-se então . No lagedo da sala existia um pequeno bilhete que elle apanhou cuidadosamente . " Espero-o amanhã , á uma hora da tarde " -- escrevêra ella a lapis . E , cheio de anciedade , tambem elle esperou pela aprazada hora . Ao penetrar no seu quarto , d' ella , tremeu involuntariamente . Um singular ruido lhe captou os sentidos . Emilia jogava , e , na febre do jogo , ria descompostamente . Sentou-se ao lado de um desconhecido . Terminado o jogo seguira-se o " Cognac " . Beberam todos . Emilia levantou-se depois , e cerrou hermeticamente todas as janellas do quarto . Derramaram-se perfumes em larga escala . No centro foi collocado um braseiro . D ' entro em duas horas estavam todos adormecidos . Só Alfredo , sentindo-se abafado , morto , enraivecido e não podendo conter mais a asphyxia que lentamente o devorava , começou de gritar terrivelmente , terminando por desfechar dois tiros de revolver na direcção da porta de entrada . Acorreu muita gente . A porta foi arrombada . Entraram todos . O feio silencio do tumulo envolvia a casa d' aquella mulher . Para um lado seis cadaveres de homens com os olhos arregalados , a bocca semi-aberta e o corpo ensanguentado ; para outro lado uma mulher com os vestidos rotos , o cabello arrancado e as faces horrivelmente maceradas . " Emilia , Emilia ... -- exclamava elle repetidas vezes . E só os echos repeliam : " Emilia , Emilia ... Desde então para cá Alfredo , endurecido no cynismo e na indifferença , tem arrastado uma vida monotona , semsabor , aborrecida . Levanta-se ordinariamente á uma hora da tarde doente , triste , sonhando uns males terriveis , imaginarios . Não almoça nunca . O appetite fugiu-lhe com as extravagancias do estomago . Nem mesmo tem já paladar . Percorre as ruas authomaticamente olhando as " vitrines " das lojas , a cujas esquinas estaciona . Frequenta os bailes , mais por uma necessidade de espirito do que por um enthusiasmo juvenil . Como Falstaff ceia muito : espantosamente , loucamente . Pela madrugada recolhe-se a um quarto solitario , que alugou e onde vive só , sem creado nem creada . Lê e escreve no restaurante , sua habitual residencia . Na noite em que o encontrámos no salão da viscondessa , recolhia-se elle a casa mais melancholico do que o costume . -- Mas quem será o maldito rival ? -- monologava elle de si para comsigo . Acham pouco ainda ? pois bem . Tambem tu cahirás , minha querida viscondessa . Tentou-te o demonio estupido : serás uma das suas victimas . E entrou no café . Contrastes O amor é o laço que une duas almas . Quando as tempestades rugem , e os ventos bramem , e os mares se encapellam , a mãe , candido alento , apertando o filho contra o peito , diz amor ; e o amor que é medo , afujenta o medo , e o amor , que é aprehensão , combate a aprehensão , e o amor , que é timidez , destróe a timidez . Felizes , mil vezes , aquelles , que sabem amar e que tambem são amados ! A vida , sombria em si desabrocha por um beijo de mãe ; e n ' esse beijo , sêllo de Deus sobre a terra , que immensa effusão de affectos e que nobilissimo trasbordar de enthusiasmo . Ó minha mãe , ó meu abrigo , tu , com o teu coração , foste o anjo providencial , que em mim encarnaste o sentimento do bem . No esplendido poema da creação , em que tomam parte as aves com os seus cantos maviosos e os homens com o seu trabalho , quasi se poderia dizer que um suave perfume , ethereo e subtil , põe a terra em communicação com o céu . Perguntae ao rio , porque geme , e ao oceano , porque brame , e ás arvores , porque crescem , e á terra , porque produz , e á nuvem , porque corre , e á flor , porque perfúma ? Perguntae ... Amar , ser amado ... -- que sublime virtude , minhas senhoras . Ás horas da tristesa , á tardinha , n ' aquelles raros momentos , em que as arvores , estatuas da melancholia , nos deixam ouvir um funebre soluço ; á hora em que o gentil pegureiro desfere na frauta umas sentidas notas ; n ' essa hora em que os crentes , saudando o creador , ajoelham aos pés da cruz : -- como não é esplendida a visão do nosso espirito , iriada pelas mil côres da ventura e do amor . Apparecei , sonhos da mocidade ! Surgi de novo , ó santas crenças da minha vida ! Porque é que , com os primeiros raios do amor , desapparecem as alegrias primeiras , os indiscretos descuidos da infancia , os mimosos cantares da meninice ? Porque é que a mulher , amando , deixa de se pertencer a si , perdendo a individualidade e a iniciativa , a fim de se consagrar exclusivamente a um homem , ideal de perfeição e de virtude ? Porque é que o amor nos faz tristes , abatidos e concentrados ? Quem não sentiria , uma vez , ao menos , na sua vida , a dôr , que nos arrebata o coração e as lagrimas que nos inundam os olhos , ao despedir-mos nos da pessoa que amamos ? Mulheres , que tendes amado o que na austeridade do sacrificio , tendes aprendido a virtude e o desinteresse -- fallae por mim . Homens , que em meio de vossos trabalhos e avergados ao peso das paixões vos sentis , muitas vezes , desfallecer -- abri o coração , mostrae a dôr que vos opprime . É doce o amor -- pensa o mundo . Mas para amar , quantas inquietações , quantos supplicios ! É verdade que todos invejam uma mulher amada ; é verdade que todos anceiam esse ineffavel momento , de poder dizer a um ser bom , generoso , sincero , sympathico , um ser , que nos delicia pelo seu olhar e que nos apraz pela sua bellesa -- amo-te , sou teu ; sim , sou teu , porque tu és o bom amigo sonhado em noites de intimos affectos ; adoro-te , porque tu és a minha inspiração , a minha alma , a minha vida , o meu eterno pensamento : mas para tudo isto que lucta , que enorme lucta , meu Deus ! Amar é comprehender : comprehender a verdade , elevar-se ao bem pela contemplação do que é perfeito , subir até ao bello , guindar-se até ás luminosas regiões da arte e da consciencia . O mundo fica-nos para traz ; esquecem-nos as ambições ; perdem-se os enthusiasmos ; fojem-nos as lucidas chimeras da juventude : tudo se desvanece pelo amor . Amar , ter um filho ... que superior ventura se póde comparar a esta ? Um filho é uma parte de nós mesmo , uma continuação do nosso nome , da nossa existencia , do nosso viver . Um filho ? ! ... Quem se não terá enternecido ao contemplar essas louras creanças , vestidas de branco , e que , durante o dia , brincam nos jardins ? Um filho ? ! Como é bella esta palavra e como ella sôa bem aos nossos ouvidos . Ó santo amor paternal , ó paes , ó mães -- vós que tendes chorado com as dores de vossos filhos e rido com as suas alegrias -- dizei-nos -- haverá , porventura , n ' este mundo felicidade que se vos compare ? O amor de mãe é muito , mas não é tudo . Aos quinze annos , todos nós sentimos um vago ideal , que nos illumina o espirito , umas seductoras imagens que nos transportam a um ser longinqúo , mas realmente existente , um ser que é nosso , porque o sonhamos e que nos pertence , porque desde a infancia o anteviramos , claro , limpido , transparente , á semelhança de um horisonte que um dia contemplamos e que não mais nos esquece . Esse ser é um marido ; esse ser é uma esposa : um vinculo os prende -- o amor ; um ideal os incita -- os filhos ; uma virtude os reune -- a conveniencia . Á viscondessa tambem lhe chegára a sua vez . Sonhára e fora feliz . Alfredo era o doce amante , que lhe alimentava a phantasia ardente ; Alfredo , o louro rapaz , era a formosa visão , que aos quinze annos , ella tivera por companheira inseparavel da sua vida . Sejamos como a viscondessa . Amemos e seremos felizes . No restaurante Um mez volvido , após os acontecimentos , acima descriptos , -- em Junho de 59 -- entrava eu casualmente n ' um café do " Caes do Sodré " , situado por baixo do " Grand Hotel Central " -- quando ouvi a voz de Alfredo , que de longe me chamava . Ebrio e tumultuoso extendeu- me a mão direita , offerecendo-me um banco de palhinha em um dos extremos da mesa . Com elle estavam quatro amigos , por egual risonhos e embriagados . Sobre a pedra de marmore , pegajosa e cheia de cinsa de charuto , viam-se entre outras cousas cinco chavenas de café , quasi esgotadas , duas garrafas de cognac e uma de absyntho . -- Não podias vir em melhor occasião -- exclamava Alfredo com o cotovello direito apoiado sobre a mesa e a cabeça inclinada sobre a mão . -- Antes de mais , vae-me bebendo esse cognac e ouve-me depois . Alfredo tirou em seguida um masso de cartas do bolso interior da sobrecasaca , e desatando uma fita verde que as envolvia , começou de abrir uma por uma . -- Mal sabem vocês que temos por aqui uma paixão fidalga . Nem mais nem menos do que de uma viscondessa . Esgotou um calix de absyntho , accendeu o charuto e encetou a leitura . " Meu bom Alfredo . -- Sabes que te amo e que te amo devéras . Não se passa uma hora , um minuto , um instante em que a tua doce imagem , pura como Eva ... -- Devem notar que este pura como Eva tem sua graça e é original -- reflexionava Alfredo . -- Ah ! Evas ! ah , puras ! ah , vestaes do lodo e da chocarrice ... " ... pura como Eva , não venha irradiar-se sobre mim como luz redemptora e supremo consolo . Nem eu sei dizer-te o que sinto , meu amigo . Tenho ciumes dos que te acompanham . E não ser eu tambem homem para te seguir sempre e por toda a parte ! -- Variante á mulher-homem de Girardin ... Adeante . " Que triste condição a da mulher , impellida a viver isolada do mundo e da sociedade ... -- Sim , sim , bem te entendo , meu anjo . " Vem , Alfredo , vem ; vem ver-me muitas vezes , se queres que eu viva feliz e alegre . " " A Viscondessa de B . " -- Ora aqui teem Vocês o primeiro specimen da feminil intelligencia . Vamos ás outras e sem commentarios . E n ' isto Alfredo esvasiou de novo um calix de absyntho . " Meu unico amigo . -- Uma immensa , uma profunda saudade me agita o espirito . Sinto que me és e serás sempre um alento magnanimo . " Á meia noite , quando a lua campeia no seu eterno throno de magestade e de bellesa , apraz-me pensar em ti , nos teus caprichosos desejos , e nas tuas phantasticas promessas . " Eu amo o silencio , porque é vago , ethereo e cheio de sombras . Ha dias , entrando n ' um pinheiral , cuja verde ramagem se agitava doce e harmoniosamente , como uma harpa do céu , -- lembrei-me de ti . " Ao acaso procurei um outeiro , onde me sentasse . Ao longe o oceano , como um leão esfaimado , enchia a terra com a sua musica rouquenha e sepulchral . Aproximava-se o crepusculo . Umas nuvens ainda , retintas pelos raios afogueados do sol , percorriam o espaço de norte a sul . " Sentindo-me isolada e só , tremi involuntariamente . Soltei um grito e vi uma creança que para mim corria de braços abertos . Foi uma apparição de Deus . " Que linda , que formosissima creança ! " Pensei , então , em ti , meu amigo , mais do que nunca ; e , Deus me perdôe , pensei na creança , que , um dia , fructo das minhas entranhas , uniria para sempre as nossas duas existencias , n ' um unico beijo , n ' um unico abraço , n ' uma unica ideia . " Adeus , meu filho . Crê em mim , crê no futuro . " A Viscondessa de B . " Alfredo , não podendo mais suster o riso , soltou uma furiosa gargalhada , deixando , ao mesmo tempo , cahir a carta que mal sustinha entre os dedos frouxos e nervosos . -- Ah ! Ah ! Ah ! ... Parecia-me mesmo um lyrio esta viscondessa , um lyrio a desabrochar . Se não fosse eu , ainda hoje estaria romantica . Ora oiçam esta , que é a ultima . " Meu Alfredo . -- A tua convivencia modificou-me fortemente . Comtigo murcharam as doces illusões que outr'ora me sorriam como estrellas do céu . " Como a flor tristemente pisada pelo pé do viandante , assim o meu espirito succumbiu , sob a influencia do teu halito febril . " Sem embargo , eu adoro-te , Alfredo . " Tu polluiste-me as faces com os teus beijos escaldados , profanaste-me o corpo com as tuas paixões impuras , fizeste de mim uma mulher material , viciosa , corrupta . " Eu pedia-te um amor puro , nobre , immaculado , e tu só me deste um desejo vil , trivial , insensato . " Que fizeste da minha honra , Alfredo ? " Porque me não amaste d' outro modo ? " E queres-me ainda assim ? pois bem : serei tua , tua para sempre . " A Viscondessa de B . -- Absyntho , rapaz -- gritou o amante da viscondessa , batendo com a bengala no marmore da mesa . E o creado , desarrolhando uma garrafa , offereceu-a ao freguez . No relogio do restaurante soaram , então , 2 horas da madrugada . Alfredo , bebendo sempre , resmungava imperceptivelmente . Ao lado d' elle os amigos proseguiam na mesma tarefa . O dono do restaurante , vendo que o caso se demorava , mandou vir um trem . Sobraçou Alfredo , a este tempo , já quasi debaixo da mesa , e introduziu-o na carruagem , cuja almofada era simultaneamente occupada por um cocheiro e um policia . Fez o mesmo aos restantes e fechou as portas do estabelecimento . Eu sahi tambem ; mas , ao contrario dos outros , aterrado e confuso , com o que ali havia presenciado e ouvido . Pensei em Luiz Veuillot e segui para casa . Sem sahir do mundo Alfredo era um rapaz do seu tempo , e , como tal , um filho dedicado dos cafés , um amador do fumo e um apreciador exaggerado du vieux cognac " . No proprio desalinho ostentava elle uma generosidade fidalga , que o tornava sympathico e bem quisto por todos os que com elle mais de perto privavam . Era exaltado em extremo , inconstante e leviano . Quando lhe fallavam em amor sorria-se meigamente . -- Amor ? ... -- respondia elle , como que acordando de um longo somno -- Sim ! já gostei d' elle . Hoje troquei as boas amigas pelos bons manjares . E virava costas de aborrecido , E , no entanto , as mulheres gostavam d' elle -- talvez por essa rasão . -- Não gostam as flores das borboletas ? A vida exterior , activa , intelligente é que , por via de regra , gera a inconstancia . De modo que aquillo que n ' uma mulher constitue um crime de lesa-dignidade , é para o homem uma quasi urgencia , filha , sem duvida , das circumstancias especiaes que o rodeiam . O homem obedece , em geral , mais ao seu organismo do que á sua vontade . A leviandade provêm , muitas vezes , de um impulso de temperamento . A imaginação nem sempre póde ser domada . Á uniformidade oppõe-se a variedade . A phantasia aprecia melhor esta do que aquella . Ora semelhantes rasões não se dão já na mulher . A mulher tem uma vida limitada , restricta , puramente interior e domestica . Deve ter na sua existencia um unico amor , um unico interesse , um unico pensamento . E desde o momento que isto se despresar -- podeis acreditar-me -- em vez de uma mãe , em vez de uma esposa , em vez de uma irmã , apenas tereis deante de vós uma amante , isto é , uma companheira para alguns meses de praser e de sensualidade . Creio porêm que tal vicio é puramente peninsular . Em Portugal é costume fazer a côrte da rua para as janellas . O namoro , se existe , é simplesmente no olhar . Tudo falla , menos o coração . E só depois de casados , reconhecem , então os noivos , que realmente os não fadára Deus um para o outro . Triste inconsequencia , na verdade , que muitas vezes traz comsigo o divorcio e emquanto a nós o peior de todos os desgostos , o desgosto do lar domestico . Entre nós é a educação da mulher um fado quasi secundario . Que aprendem ellas nos collegios ? que sabem ellas quando se casam ? Por ventura saberão talhar os seus vestidos ? porventura saberão manter o aceio e a limpesa , tão necessarios á cosinha como ao resto da sociedade conjugal ? Tudo , menos isso . Diz-se mulher do " high-life " , aquella que melhor valsa n ' uma sala , a que mais prende pelos arrebiques do " coquettismo " , emfim , a que fôr mais imaginosa , a que tiver lido alguns romances francezes e a que mais amada souber fazer-se , n ' um salão . Pouco monta que seja dedicada a seus filhos , e amiga do seu marido . A questão é ter côrte . O resto de nada vale , porque está abaixo dos sentidos ; e os sentidos , são , n ' este assumpto , uns mui respeitados directores . Não quero eu com isto dizer que a educação do homem seja superior á educação da mulher . Os rapases nascem egoistas . Não amam o desinteresse , porque são naturalmente utilitarios e desconfiados . Desejam uma esposa , mais pelo dinheiro que ella lhes traz do que pela estima que os póde tornar felizes . D ' esta maneira o casamento entre nós é um acto de commercio uma garantia de futuros interesses , muito de preferencia a uma garantia de amor . Alfredo , porêm , desviára- se d' esta norma . De creança aprendêra elle a sondar a sociedade com todas as suas corrupções e inconsequencias . De sobejo sabia que a dança , toda exterior e ficticia , era a perversão do ideal conjugal . Por instincto aborrecêra o salão , soalheiro de intriga e de pequeninas miserias . Conhecedor dos homens , e das cousas cahira , finalmente , n ' um indifferentismo , até certo ponto , deploravel , para um rapaz , mas , de certo , necessario e fatal para todo o organismo , digno de outra aspiração que não fosse a do animal , por naturesa inerte e estupido . Alfredo resumia , portanto , uma energica reacção contra o estabelecido , e um vago aspirar para um futuro , ainda não bem definido . Saudemos esse futuro . Entre amigos Tudo disposto e preparado . Somos quarenta convivas á mesa . A viscondessa está bella , verdadeiramente bella , sem os artificios que deslumbram , nem as vaidades que enojam . Completa agora vinte e seis annos , volvidos entre o regaço da mãe que se finou e os beijos do pae cuja existencia , por duvidosa , se ignora . Alfredo está tambem , mas triste , acabrunhado , pesaroso , olhando indifferentemente as pessoas que o rodêam , comendo pouco , bocejando muito e bebendo mais . Dois creados serviam a sôpa . Pelo lado direito da mesa , parallelo-grammo , offerecia-se a sôpa " Julienne " alternada pela esquerda com a sôpa " allemã " . Um mysterioso silencio envolvia quasi todos os hospedes . Umas leves palavras apenas se trocavam de par para par . Nos calices transparecia o " xerez " -- o louro e ingenuo xerez dos estomagos delicados . Esgotados os primeiros copos e retirada a primeira coberta de peixe com molho á ingleza , appareceu o " Chateau-Lafitte " . Alfredo , reclinando-se na cadeira , sorriu-se meigamente . Um cavalheiro importuno , levantando-se , de cópo erguido , disse : " Minhas senhoras e meus senhores : n ' este vinho , eu saúdo a França , mãe desvelada do pensamento moderno . " E todos beberam . Entretanto o silencio recomeçara novamente . Os creados , em nervoso phrenesi , retiravam os pratos sujos para logo os substituir por outros lavados . Telintavam os talheres de prata . Quatro bicos de gaz alumiavam a mesa , matisada de flôres , cuja côr deliciava todos os olhos e cujo perfume embriagava todas as pituitarias . Na parede , pintada a azul-dourado , destacavam uns quadros comicos , alegres , folgasões , uns quadros de caçador logrado , perfeitamente pittorescos , perfeitamente escolhidos . Estava-se n ' um " vol-au-vent " de frangos . O vinho correspondente era , se bem me lembro , Madeira sêcco . Conversava-se já de extremo para extremo . Algumas damas , agitando os leques , abriam os olhos , afogueadas em calor . Por ordem da viscondessa abriram-se as janellas . Uns cégos , que , então , passavam na rua , começaram de tocar uns velhos landúns , perfeitamente detestaveis e anachronicos . " O fado ! o fado ! -- gritou Alfredo . E os homens principiaram a tocar o fadinho das salas . Servida uma " mayonnaise " de linguados , servida ainda uma " galantina " de gallinha com aspic , passou-se a um " ponche à la romaine " . As rolhas do champague saltavam ferventes e impetuosas , como uma catadupa de topasios . Os creados corriam como possessos . As senhoras apoiavam as faces rubras , sobre o hombro direito dos namorados . No espaço campeava a lua , na sua doce pallidez , espreitando meigamente o festim da viscondessa . Seriam dez horas da noite , quando , depois de concluidos os assados -- patos com azeitonas , perús com truffas e espargos -- se começou a tirar o doce . Comiam uns podim " saboyon au rhum " e outros " bavaroise " de fruta . O licôr escolhido era o " Chartreusse " . Alfredo , erguendo-se , propôz um brinde . " Bebo á saude da senhora viscondessa -- exclamou elle -- á saude da sua felicidade , e á saude de seu futuro filho . " E , sem mais poder suster-se de pé , cahiu sentado na cadeira . Todos o olharam com um olhar interrogativo . A viscondessa , encarou-o , com uma santa e terna delicadesa . Os outros , por prudencia , calaram-se . Cá fóra numerosas tropas atravessavam as ruas . Portugal , constitucional , saùdava o seu nunca -- esquecido vinte e quatro de Julho . Terminados os brindes , que foram immensos e ruidosos , continuaram todos para o salão . Só Alfredo , por confiança na casa , ousou ficar á mesa , a cujo extremo adormeceu . E , suspeitando que fumava , dormiu um longo e pesado somno . Quando realmente deu por si soavam tres horas nos relogios da casa . Meio adormecido e meio acordado , olhou e viu duas sombras , que , a um recanto do aparador , se agitavam docemente . Aproximando-se mais reconheceu então uma das creadas da casa , conversando airosamente com um garboso gentil homem . -- Ora pois ! -- regougou elle . -- Nem mais nem menos . Tudo corre bem e todos teem rasão ... E sahiu , assobiando a carta adorada da Grã-Duquesa . Na carta que eu tive , Amelia formosa , Me disseste amor ... De passagem Entre um bom jantar e um bom espirito existe , ao que parece , uma profunda analogia . " Tous les gens d' esprit sont gastronomes " -- dizia Balzac . De todos os animaes , o unico , que sabe comer , é o homem -- escrevia um outro auctor francez . D ' este modo o jantar entre amigos é uma quasi necessidade da nossa existencia e um salutar incentivo a duas ou tres horas de boa e franca jovialidade . Em Portugal dão-se jantares , mais como ostentação vã , do que verdadeiramente como meio de melhor expandirmos os nossos affectos , as nossas ideias , os nossos desejos , as nossas ambições . A nossa mesa distingue-se das mesas estrangeiras , não só pela má escolha das comidas , senão tambem pela exaggerada seriedade com que costumamos assistir a taes solemnidades . Dir-se-hia que , em taes momentos , estamos presenciando o enterro de nossos paes . Ora o jantar , o bom jantar , sadio e leve , deve sobretudo correr alegre , isento de malquerenças , semeado de phrases espirituosas e de anecdotas interessantes . O jantar é , por via de regra , um pretexto para solidificar velhas relações de amisade ; um pretexto para nos rirmos á vontade , um pretexto para conversarmos intimamente . Os estrangeiros , comprehendem de ordinario estas festas , tirando os casacos , bebendo bem e comendo melhor . Nós outros , os portuguezes que , não obstante sermos uma caricatura viva de tudo quanto vem de fóra , tanto queremos primar pela gravidade que comprehendemos perfeitamente o contrario . Mal nos rimos , porque nem mesmo rir sabemos . O espirito nem sempre se amolda com todas as modulações de linguagem . Parece que á lingua portugueza foi vedado o dizer ligeiro , amavel , faceto , que tanto distingue a França moderna . Nós somos um povo , naturalmente indolente , um povo de " apaixonados " , como tão bem nos definiu M. ^ me de Sevigné . Voltemos , porém , á cosinha . Tem um grande defeito : falta-lhe como em geral ao nosso viver , a boa elegancia , o sabor , a pimenta , que torna as comidas mais gostosas e mais facilmente digestivas . Não temos originalidade , e por isso imitamos . O unico prato que a meu vêr existe classicamente portuguez , mas soberanamente enjoativo , é o leitão . Na provincia , sobretudo , assa-se um leitão a proposito de qualquer festa . São nossos , exclusivamente nossos , o leitão e os foguetes . Depois note-se -- na nossa mesa não ha aquelle aceio que tanto seria para desejar , e que tão proverbial é entre os ingleses . Uma toalha , perfeitamente branca , aromatica , transparente , é já de si um notavel passo para um bom jantar . As indigestões nascem quasi sempre do mau tempero das comidas : parece que se odeia a agua e lavam-se os mantimentos como em baptismo de mouros . Entre as classes mais altas da sociedade são despresadas as comidas vegetaes . Só o povo as aprecia ; e porisso tambem é elle em geral mais robusto , mais fortemente organisado , e mais naturalmente atreito á espontaneidade e ás alegrias da vida . O temperamento depende das condições alimenticias em que nos encontramos . O bom e o mau humor tambem d' ellas provêm . No modo , porque nos alimentamos reside , pois , uma grande parte da nossa felicidade . As comidas , demasiadamente gordas , geram a obesidade tão peculiar aos nossos provincianos ; ao passo que o alimento vegetal torna o homem ligeiro , amavel e espirituoso . Á mesa da viscondessa respirava-se um invejavel aceio e uma limpesa pouco vulgar entre nós . A propria toalha attrahia , não só pela sua extrema brancura , senão tambem por uma deliciosa fresquidão , que de ordinario exhalava . Grave era a viscondessa , mas espirituosa . Ninguem sabia tratar melhor os seus hospedes , nem com mais liberdade . Como aphorismo passava já em julgado que eram bons , substanciosos e alegres os jantares da viscondessa . É que , á parte os seus caprichos , a viscondessa comprehendeu a vida moderna , tal qual ella deve ser : commoda , aceiada e elegante . Nem porisso lhe queiramos mal , mas antes façamos por imital- a . Pobresa e miseria É singelo o quadro ; tocante até . Uma pobre velha , habitando uma alcova humida e sombria , treme de frio , gemendo por vezes . Serve-lhe de leito uma pouca de palha enxarcada e nauseabunda . Ao lado uma panella velha , tosca e ligeira , cuja grande utilidade é aparar a agua , que a miudo se despenha do telhado . Por uma fresta , lavrada no alto da parede , côam-se tristemente uns tenues raios de luz . Dir-se-hia que á desgraça até o sol é vedado . Pelo soalho esburacado e carcomido occultam-se uns bichos infernaes , molles , gellalinosos . O tecto , artisticamente cinzelado pelo longo e imperioso trabalho da aranha , quasi se não distingue d' entre a escuridão que cerca o aposento . E Maria , a desventurada creatura , jaz immersa em intima dôr , abandonada aos vermes que lhe róem as carnes syphiliticas , negras , cobertas de pustullas e de putrefacção . Querem conhecel-a ? Rica e formosa , fôra esta mulher . Cheia de venturas e mimos deslisára a sua vida , sem mais attritos do que aquelles que ordinariamente nos dá o tempo e a natureza . Acariciada pelo anjo do amor e embalada nos sonhos gentis da opulencia , Maria sentiu-se a um tempo admirada e requestada pela mais guapa fidalguia do seu paiz . Seus paes , habituados áquelle unico thesouro , eram inexoraveis no cumprimento das suas profundas e intimas affeições . Nada exigia , que para logo não fosse satisfeito . O mais leve capricho tentavam-no elles realisar com a satisfação de um escravo , que por sua senhora arriscára a vida . Assim cresceu aquelle arbusto . Descuidado e candido , não houve vento que lhe açoutasse as tenras vergontesa . O sol , saúdava-o todas as manhãs , e a primavera encontrou-o viçoso , coberto de flôr e de esperanças . Veiu , porém , a tempestade . O sul rugiu temeroso . No espaço precipitaram-se as nuvens , prenhes de electricidade . A arvore , mal segara , tremeu na sua raiz , e desappareceu da terra . Onde estava Maria ? Porventura iria ella em busca de algum anjo bom , seu irmão ? Fragil , como qualquer mulher , Maria não ousára resistir á fatalidade que a dominava . Fugiu . Fugiu romanticamente , por um lençol , atado á janella de sacada , e á meia-noite . Como quer que fosse o facto , em si escandaloso , excitou naturalmente a indignação publica . A burguesia commentou-o á noite nos clubs e cafés , concluindo por ver n ' elle uns laivos de obscenidade , impossivel de admittir-se no seio de uma familia honesta e séria . Em que pese , porém , aos nossos indigenas sociaes , o caso era mundano , e frequentissimo até em mulheres demasiadamente imaginosas . Ao cabo de dois annos , Maria resuscitou ; não para a vida , mas para a morte . O rosado do rosto transformára- se-lhe subitamente numa pallidez transparente , sepulchral , doentia . Os olhos , encovados , haviam perdido o seu primitivo brilho . Nada existia já que não fosse triste e profundamente doloroso . A mulher virtuosa cahira victima indefesa , ás mãos de um maltrapilho infame . O miseravel seductor , retirára comsigo o seu dinheiro e o seu carinho . Abandonada a si , Maria , refractaria ao trabalho , sem pae , sem mãe , sem irmãos , sem amigos , olhou em redor de si , e viu a sociedade que de longe lhe acenava . Correu a ella com um filho nos braços . Engolphou-se nos seus prazeres , trocou a honra pelo pão quotidiano , pôz em almoeda a consciencia pelo futuro do innocente , que ao lado d' ella soffria e chorava tambem . Era nobre , e pagava pela corrupção commum ... A mocidade ganhou-a , como poude . Viveu-a , e tanto bastava . Depois chegou a velhice e a tristesa ; depois a pobresa e a miseria . Julio , a este tempo já era crescido , e velava pela mãe sollicitamente . De que poderiam comtudo valer os minguados ceitis com que lhe era remunerado o seu trabalho de todos os dias ? Se elle e ella adoecessem , quem mais os trataria ? quem , porventura , se amerciaria d' aquella terrivel indigencia ? -- Ninguem ! ... -- respondia-lhe logo a consciencia . E a consciencia não costuma mentir . Julio viera , pois , da fabrica e encontrára sua pobre mãe moribunda , sem remedio , sem medico e sem dinheiro . Parou no limiar da porta . Encarou a velha de frente e viu-lhe os braços estendidos em signal de compaixão . Extactico , cego , allucinado , entrou-se o desventurado moço em profundo scismar . Ao descerrar as palpebras amortecidas por um somnambulismo infernal -- Julio , emxugando os olhos , com uma ponta da blusa , sorriu-se , como se do céu houvera baixado uma inspiração sagrada . -- Desgraçado de mim ! -- exclamava elle doridamente . -- Trabalhar um dia inteiro e não ter á noite que comer ... É triste ... muito triste ... Esgotar o sangue das minhas veias , em alheio proveito , e receber , no fim da semana , um vil salario , que mal me chega ás primeiras necessidades da vida ... É infame ... muito infame ... Alugar as minhas faculdades e o meu pensamento , sem outro fim que não seja o proprio aviltamento e a propria degradação ... É vil ... muito vil ... Oh ! meu Deus ! ... antes a morte ! mil vezes a morte ... E assim cahiu inanimado o honrado moço sobre o desventurado cadaver de sua santa mãe . A scena era realmente tão obscura , que mal poderia provocar as vistas d' esse mundo , que é louco e grande . -- Passou , como tudo o que é modesto , desapercebida e ignorada . No dia immediato um raio de sol , espreitando muito de soslaio pela fresta do telhado , apenas encontrára a solidão e a ruina , na mesma alcova , onde Julio e sua mãe , por tanto tempo agonisaram . No cemiterio mexia-se uma porção de terra , afim de occultar aos olhos do mundo o desditoso cadaver d' aquella santa e virtuosa velha . Julio nem sequer achára uma mortalha , para envolver o corpo de sua mãe . Rasgou a blusa n ' umas poucas de tiras , e , assim auxiliado , por mais alguns farrapos , que ainda lhe restavam d' outr ' ora , arranjou a cobrir o corpo infectado e pestilente de sua mãe . Porque o principal effectivamente era occultar o crime " d' esta grande peccadora " ... Entretanto a sociedade ria-se nos botequins , e as tabernas continuavam sempre atulhadas de povo . O mesmo Julio teve a coragem de transportar o cadaver para o cemiterio e de ahi lhe prestar as derradeiras homenagens . Como não havia carniça , não appareceu o abutre ! Consciencia de Cain é jóia que só se mercadeja no alto mercado . Foi mais uma lei do mundo . Convêm , comtudo , registral- a para desafogo de todos nós . Cousas dos Homens Permitta- nos a leitora que um pouco nos demoremos sobre este incidente do nosso romance . Mais tarde volveremos a fallar da viscondessa . Por agora historiemos os factos que mais concorreram para o triumpho da nossa heroina . Quem era Julio ? quem era Maria ? e porque motivo foram elles chamados para aqui ? Leitor : conheces a miseria ? porventura já te foi dado contemplar esse estranho espectaculo , que a cada passo se nos representa diante dos olhos ? Á beira da estrada , " ella " , estendendo-te a mão carcomida e triste , pede-te esmola ; na escuridão do templo , cheia de vergonha , " ella " occulta-se ás vistas da gentalha ; no recesso das florestas , arrasta-se como um reptil , de tal maneira que nós não sabemos quem " ella " é , se um animal , se um homem . E , todavia , " ella " , a canalha , é filha de Deus como nós . E , todavia , " elle " , o " Ninguem " errante da sociedade , o " anonymo " sublime do universo , elle , o , " trabalhador " , tambem , como nós , tem intelligencia sentimento e vontade . Quantas vezes , ao passar por uma rua escura e humida não tropeçamos nós com um d' esses desherdados , de faces lividas o aspecto sombrio , que , não tendo um travesseiro , onde repousar a cabeça , nem uma bilha d' agua , onde refrigerar a sede , nem um vestido , onde aquecer as carnes , vive ao acaso , alumiado , apenas , pela luz das estrellas da noite , alentado pelo orvalho do céu e ao abrigo vil das lageas das escadas ? ! E , no entretanto , este ser existe . Existe nas officinas do trabalho , e chama-se proletario ; existe nos campos , e chama-se jornaleiro ; existe nos hospitaes , e chama-se miseravel ; existe nas prisões , e chama-se criminoso ; existe nas rodas e nos hospicios , e chama-se engeitado ; existe nas ruas e nas escadas , e chama-se maltrapilho ; existe no universo , por toda a parte espalhado , e chama-se escravo . Sim ! o escravo é o leproso sem familia , a quem só é dado sentir a dôr das suas chagas . Elle , coitado ! não tem casa , nem tem jardim , nem flores , nem amigos , nem alegrias ; elle , o escravo , tem apenas , como um magro cão vadio , uns ossos que róe durante o dia e umas tristesas que o acompanham durante a noite . E nada mais tem , o escravo ! O vicio é , em geral , uma triste consequencia da falta de meios . Perguntae ao pobre , porque se embriaga , á mulher porque se prostitue , e ao escravo porque se vende . Embriago-me -- vos-ha o pobre -- porque me quero esquecer do sangue que vertem as minhas feridas . Prostituo-me -- vos-ha a mulher -- porque tenho fome . Vendo-me -- exclamará o escravo -- porque a sociedade me repudia . E teem razão . Todos tres procuram o vicio , como alivio , como necessidade do seu espirito . Julio era um d' esses : pertencia á rara pleiade dos independentes , d' aquelles que o Estabelecido odeia e renéga . Muitas vezes , em creança , o pobre moço , sentado na areia da praia , e olhando o mar além , dissera em conversa intima , em que o homem interroga a consciencia , a razão , e tudo quanto o cerca : " Como é grande o mundo , meu Deus ! " E n ' uma esperança eterna , e n ' uma ambição sem limites , Julio ficava-se horas e horas em prodigiosa concentração , que bem lhe denunciava a lucta , a cada passo travada no espirito nervoso e inquieto . Mas n ' este mundo são as ambições como as espumas do mar : um vento as traz e um vento as leva . Que importavam as illusôes , se com as primeiras folhas do outomno , ellas tinham de cahir uma a uma ? As flores d' alma vão-se com o outomno da vida . Nem sempre porém as borboletas adejam sobre as flôres ; nem sempre o mesmo sol illumina as campinas . Ante o cadaver de sua mãe , Julio emmudecera . Quando a sério , e a sós comsigo mesmo pensou na vida que no futuro o esperava , quasi instinctivamente teve vontade de se suicidar . Olhando , porém , para o céu , ajoelhou . Um raio de esperança lhe illuminava a alma , até então em trévas . Felizes os que , como elle , sabem esperar ! A esperança conduz Colombo , e descobre mundos ! Na taberna Entrava-se por um beco immundo , torcia-se á direita , e estava-se lá , no antro do crime , em que a vida e a fortuna se joga , o bem estar , a tranquilidade , o socego , toda a harmonia da existencia humana . Exteriormente , apresentava a taberna um aspecto mesquinho e lugubre . Um distico , apenas , no alto da parede indicava aos transeuntes que ali " " se vendia vinho verde " . " No largo portal da entrada , coroado por um ramo de louro , viam-se uns traços obscenos , riscados a giz , e , ao parecer , escriptos em maré de embriaguez . Portas a d' entro , reinava uma alegria feroz , confusa e tristemente desconsoladora . Uns jogavam , riam outros , e gritavam todos . -- Salto no valete -- dizia um . -- Mico no terno -- interrompia outro . E assim , ébrios de vinho e ambiciosos de fortuna , jogavam elles , sem outro alento que não fosse o vicio e o esquecimento . De subito , uma gargalhada estrugiu pelos ares . Por uma das mesas , esgravatada e cebenta , rolou veloz um enorme cangirão de vinho , por onde á porfia bebiam os convivas alegres . A taberneira , mulher roliça e de cabello na venta , servia com respeito os freguezes , na maioria lavradores e campinos . A um canto , e sobre o junco , que cobria o lagedo da sala , estava um berço , onde uma creança dormia tranquillamente , em companhia de um gato malhado , velho hospede na casa . Ao lado do berço um cão , apoiado sobre as mãos e com a orelha levantada , olhava filamente na direcção da porta de entrada . Para além do balcão , duas pipas de vinho e uma pratelleira , cujas divisões continham pão , queijo e figos ; tudo , já se vê , velho , amarellecido pelo tempo , e modico no preço . -- Viva o nosso Julio ! ... viva ! ... -- exclamaram os jogadores , voz em grita . O saúdado moço , de braços crusados e em mangas de camisa , nem sequer lhes respondeu . Entrou , passeou a vista pela sala , e quedando-se com pesar , vociferou : -- Nem mãe , nem ... dinheiro ... Como por encanto , fez-se um silencio sepulchral na taberna . O jogo parou ; e instinctivamente erguidos , correram todos á presença do Julio . Prestes , porém , se apagou a mudez , a fim de novamente ser interrompida pela mais temerosa de todas as vozerias . -- Não póde ser ; não póde ser . Abaixo a tyrannia . Vamos a acabar com elles . Malhados de uma figa ... Queremos sangue e mais sangue ... que nem um só escape ... Querem-nos roubar o nosso trabalho ... os infames ... Ladrões abaixo ... Não queremos ladrões ... A elles ... todos a elles ... A taberneira exasperada , pedia ordem , levantando os braços . Em cima do balcão latia o rafeiro agudamente . O gato , espreguiçando-se , escoara-se com mysteriosa perfidia , por entre as pipas vasias . Um raio de lua , reflectindo-se phantasticamente sobre a cara da creança , que chorava , produzia um contraste singular , e sobremaneira interessante . Dir-se-hia que pela innocencia velava o céu em toda a sua magestade e grandesa . N ' um momento a porta rangeu nos gonzos . -- Em nome da lei declaro presos os desordeiros -- bradou um vulto . -- Em nome de que lei ? -- retorquiu um dos agitadores . -- Em nome da nossa lei , em nome da lei portugueza -- insistiu o primeiro , descobrindo-se . Á vista do policia , até a taberneira gritou . Vergado ao peso de uma mão de ferro , aspera e cortante , e apanhado a sós , o espião do governo , atravessado por tres fortes navalhadas , rolou immediatamente aos pés de Julio , que para elle olhava desconsoladamente . Momentos depois a taberna estava só , escura , e triste . Quem , dois dias depois , entrasse n ' esta mesma casa , e attentasse nos personagens , ali reunidos , pouca differença de certo havia de notar . Lia um dos operarios em voz alta a " Revolução de Setembro " , quando inopinadamente se lhe deparou a seguinte local : " Ante-hontem , cerca da meia noite , deu-se um grave tumulto n ' uma taberna situada para as bandas de Alfama . A policia anda em cata dos desordeiros , e de crêr é que , em breve , elles soffram o justo castigo das suas loucuras . " Taes palavras foram , como é natural , ouvidas com terror , da parte dos circumstantes . Um silencio profundo envolvera a taberna . Mudos e reflexivos , ninguem ousava proferir uma palavra . De repente apagou-se o gaz . O ruido tornara-se insupportavel , medonho , confuso . -- Traição ... traição ... -- repetiram todos . E o silencio recomeçou de novo . Perigos e consequencias N ' este nosso paiz ficam muitas vezes impunes os crimes mais graves , castigando-se os mais insignificantes . A lei penal muitas vezes dá existencia aos crimes , imaginando penas para delictos imaginaveis . Parece que a justiça social nem sempre cumpre o seu dever . O roubo corre muitas veses authorisado pela lei , n ' um inpudor por tal fórma insólito , que de vergonha faria córar uma bachante . A cada passo , e com a maior facilidade , se sancciona uma injustiça . Quem não tem padrinho , morre mouro -- diz o rifão . E o certo é que o pobre , o eterno Job da orphandade , -- se não morre mouro , morre , pelo menos , de atrophia , indigente , sem pão , sem agua , e o que é mais , sem espirito . Ao percorrer as humidas cavernas -- morada e abrigo dos proletarios -- de dó se nos enlucta o sentimento . Como é que a Providencia tão prodiga e generosa ; como é que o sol , alargando seus raios encantadores , tanto pelas cumiadas das montanhas mais longinquas como pela escuridão dos valles mais reconditos -- como é que todo este mixto de luz e de céu , póde consentir o infortunio no mundo ? A aspiração é sêde que se não extingue . Mas aspirar sem esperança ; anceiar sem uma possibilidade de realisação final , deve ser triste , muito triste , para já não dizer desesperador . Para voar , concede a naturesa azas á aguia . Assim tambem para sermos livres , rigorosamente livres , para executarmos os vastos planos da nossa vontade , carecemos nós de meios , sem os quaes tudo nos seria baldado e inutil . E dizem que a lei é egual para todos ! Entre dois cidadãos -- um casado , outro solteiro , um pobre outro rico -- que soffrem a mesma pena , onde é que está a egualdade ? Divagando , porém , iamos fugindo do nosso caminho . Voltemos ao romance . A policia não afrouxára nos seus esforços . Indagou , correu , perguntou . Ao cabo de uma semana , estavam seis individuos dados por suspeitos . Entre elles indigitára- se Julio como um dos principaes cumplices no crime acima descripto . Se fôra ou não acertada a escolha , isso só os factos posteriores o poderão affirmar . Por agora basta que o leitor nos acompanhe . Dolorosa é a recordação do carcere . Sem luz e sem ventilação , são as nossas cadeias uns verdadeiros antros , cuja atmosphera impregnada de particulas venenosas , quasi sempre gera no seu seio os vicios mais execrandos e as doenças mais incuraveis . Um drama simples e vulgar ao mesmo tempo , poderá , talvez , iniciar-nos nos verdadeiros mysterios d' este inferno . Ouçamol- o . Um homem rico decahira um dia da sua fortuna . Habituado ás commodidades da vida , encontrou-se repentinamente privado do necessario . Acostumado aos falsos amigos , viu-se sem amigos . Olhou . Quatro filhos o encaravam . Uma esposa lhe sorria . Fôra bom o seu coração . Nunca até ali se dera um unico facto que lhe manchasse a consciencia . Examinou os bolsos . Dinheiro não havia já . Recorreu ao trabalho . O trabalho fez-se esperar . Mendigou . Ainda era pouco . Os filhos continuavam a chorar . A esposa continuava a morrer . Que fazer , pois ? Roubar . E roubou . Roubou um pão porque tinha fome . E dois . E tres . E quatro . A lei , inexoravel como a Parca , encontrou-o uma noite . Levou-o para o Limoeiro . Pediu-se , sollicitou-se , em nome da desgraça . Tudo embalde ! Os poderes publicos cumpriam o seu dever . N ' uma casita humida , situada ao Salitre , definhavam , ao cabo de cinco dias , quatro creanças e uma mulher . No Limoeiro creava-se mais um monstro , e inutilisava-se um homem . E tudo isto com uma prodigiosa simplicidade . É a historia de Valjean sem o auxilio do arcebispo ! Ao moço-operario não succedeu , felizmente , outro tanto . A Providencia encarregou-se de velar por elle . E o certo é que a evasão de cinco presos deu-se rigorosamente n ' esta época . Julio foi um dos que , a salvo da prudencia , recuperaram a liberdade . Continuação Seriam 2 horas da madrugada . A lua brilhava em pleno espaço . O Tejo era Sereno . Apenas de longe em longe um rumor surdo , vago , incomprehensivel , acordava a naturesa do seu pacifico somno nocturno . Por sobre as mansas aguas deslisava um bote suavemente . As estrellas , reflectindo-se na bahia , similhavam , pela vivacidade irrequieta do brilho , um cardume de peixes em debandada . A viração era fresca , e deliciosamente salutar . Cantavam os remeiros , umas tristes canções , repassadas de melancholia e de patriotismo . Os remos , batendo na agua , produziam o effeito de um chrystal facetado , em desordem , mas atrahente . Nem uma dissonancia sequer apparecia n ' este immenso panorama , a um tempo eloquente e respeitavel . É que a alma da naturesa , symbolo do infinito sobre a terra , é incomparavelmente superior á alma do homem , expressão do contingente e do relativo . As montanhas , elevavam-se a distancia , na firme immobilidade de phantasmas . Dormia a cidade socegadamente . No convez de um navio mercante ladrava um cão da Terra-Nova . Nas embarcações de guerra ouvia-se distinctamente e com rarissimos intervallos o passo moroso das sentinellas . Os catraeiros cantavam sempre : " Vai alta a lua ! na mansão da morte Já meia noite com vagar soou ; Que paz tranquilla ! dos vaivens da sorte Só tem descanço quem ali baixou . " E ao longe os echos repetiam a ballada do poeta . O escaler abicou , emfim , á praia . A aurora começava a roxear o horisonte . Uma luz delicada , fina , como a porcellana , transparecia por entre nuvens . Um vulto de homem , embuçado n ' um largo capote , saltou á praia . Julio , fugitivo , tomára a prompta resolução de por algum tempo se occultar no bairro -- Alcantara . Duas palavras ainda sobre elle : Julio era um rapaz ambicioso . Amava egualmente a liberdade e o trabalho . De têmpera rija , era o seu caracter . Odiando o jesuitismo , por instincto , não poucas vezes chegára a commetter excessos e desvarios . Frequentava a taberna , do mesmo modo que nós frequentamos o café ; ali discursava com os companheiros , concluindo sempre em favor da liberdade e contra a reacção . Na noite em que o prenderam exclamára elle para os camaradas de trabalho : " Nem sempre a escravidão ha de pesar sobre nós . Quem tiver coragem , acompanhe-me . Uma vez que não querem a paz , acceitaremos a guerra , mas uma guerra sem tréguas , uma guerra eterna e violenta . " D ' este modo Julio era a perfeita personificação do escravo , que , sentindo a grilheta ao pé , deseja emancipar-se e tornar-se homem , como os seus similhantes . Alfredo , não tendo coragem para realisar os seus planos , embora bom e generoso no fundo , tornara-se devasso , e adormecera inconscientemente nos braços da sensualidade estupida . Julio , não ! Julio estava puro ; reagia ainda com heroicidade contra a geral corrupção da sociedade . Entre estes dois homens , ambos moços e sympathicos , existia uma differença apenas : Alfredo pertencia á mocidade dos cafés , incomparavelmente mais inutil que a mocidade da taberna , composta , na generalidade , por operarios honestos , como Julio . Mais tarde , porém , nos encontraremos novamente com Alfredo . Novos mundos Penetremos em Alcantara . É um bairro pobre , habitado por operarios , n ' uma grande parte , e por homens do mar . Na extrema do riacho , para a direita , alveja uma pequena casa , situada na falda de um monte . Para ahi entrou Julio , a fim de se occultar ás pesquisas da policia . Durante o dia conservava-se fechada a casa , como querendo demonstrar ao publico , que ella era realmente deshabitada . Á noite quatro operarios , voltando do trabalho , batiam de mansinho á porta . -- Julio percebendo pelo toque ser os companheiros , levantava-se da enxerga em que de ordinario jazia , e dava volta á chave . No interior da habitação reinava a miseria em toda a sua hediondez . Uma enxerga apenas , abrigava , durante a noite , cinco esqueletos de homens , sem alegria , sem pão e sem futuro . Os mumias da desgraça ! De manhã , ao levantar , reuniam quatro ou seis trapos velhos , e , por vergonha , occultavam á multidão os proprios ossos do corpo . Na cosinha existiam , por acaso , duas côdeas de brôa , arrancadas aos dentes das cadellas leprosas , uma bilha com agua e um pequeno ramo de carqueja . A estes quatro animaes , trabalhadores n ' uma fabrica de lanificios , se incorporara Julio . Pouco tempo , porém , durou similhante situação . Ao cabo de alguns mezes a policia lançára as suas vistas para os lados de Alcantara . Isto soube-se , e chegou aos ouvidos de Julio , a este tempo já viciado por toda a casta de corrupção . Com nova tão para desesperar , quasi endoideceu o moço-operario . Uma noite mesmo , encontrando um policia civil , e tomando-lhe da mão direita , disse : -- Olé -- sabe quem eu sou ? Ah ! não sabe ? pois bem : fique sabendo ... E fugindo , estendeu-o no chão com uma fortissima bofetada . Assim se passaram alguns dias , de louca anciedade . Por tradicção conhecia Julio um velho aldeão , de quem a mãe repetidas vezes lhe fallára . Uma noite , deixando o casebre de Alcantara , demandou a provincia , onde lhe sorriram os primeiros raios de felicidade . Mas Julio já não era o mesmo homem . O desanimo ganhara-o por momentos . É condão da miseria transformar o homem physica e moralmente num monstro de paixões . A barba crescera-lhe . O corpo definhava-se-lhe a olhos vistos . No coração principiavam os espinhos a crescer e a vegetar . Emfim , aos pés do operario um abysmo , um immenso abysmo se abria . E ai do homem , que um momento escorregar no precipicio ; porque para esse não haverá salvação possivel . A mulher , que uma vez peccou , habilita-se a ser uma eterna peccadora . O homem que um dia se prostituiu , fica para sempre prostituido . Nem sempre , porém , nos abandonam os anjos do céu . Á beira do despenhadeiro tivera Julio o seu anjo da guarda . Abençoada a mão , que n ' um raio de amor nos traz a esperança e a consolação ! Primeiros amores Um sol ardente batia de chapa sobre um eirado de pedra , em cujo espaço se abrigava cuidadosamente o fructo de uma boa colheita de milho . Ao lado , e fóra do alpendre , elevavam-se tres medas de palha , unico alimento annual , aos pacientes trabalhadores d' aquelle campo . Por entre as louras e amontoadas espigas brincavam em candida innocencia duas formosas e galantes creanças . A tarde declinava docemente . No pinheiral longinquo gemia a rôla uns tristes e magoados queixumes . Os cantos jubilosos dos lavradores iam perder-se nas solidões distantes . O céu era sem nuvens ; e as aguas de chrystal , mansas e innocentes , como as lagrimas de uma creança , deslisavam com ligeiros attritos , atravez dos terrenos pedregosos . Um cão preto , guardador de gados , saltando alegremente , annunciára em repetidas curvas , a proxima chegada de seu dono . A pouca distancia d' ali assomou logo um velhote de rosto prasenteiro e agradavel . As duas creanças , erguendo-se de um pulo , desappareceram por entre a sombra do arvoredo . Apenas um moço , altivo , de tez morena e bronseada , permanecêra na mesma posição sem dar por cousa alguma do que em de redor d' elle se havia passado . O velho chegou , trazendo os dois pequenos pela mão . Olhou com piedade para a estatua da tristesa , que tão profundamente o impressionava , abeirou-se d' ella , e prorompeu nos seguintes e magoados termos : -- Então que é isso , meu Julio ? tão triste e pesaroso ? já lhe não valem de nada as palavras d' este velhote , que tanto do coração lhe quer ? e esta familia que é a sua ? Ora vamos , mostre-se alegre para com+nós . Aperte-me esta mão que é rude , mas honrada . Seja-me franco , se alguma cousa o afflige . Nada receie . Olhe que todos nós o estimamos devéras . -- Meu Pae ... -- exclamava Julio , debulhado em lagrimas , -- meu bom Pae ... O lavrador , puxando por um lenço encarnado , que habitualmente trazia no bolso direito da jaqueta , muito de soslaio limpou os olhos humedecidos . As duas creanças , acompanhando-o , como que por instincto lhe beijavam as mãos bemfazejas . O sol , atufando-se nas aguas do oceano , reverberava por sobre a terra silenciosa os seus derradeiros raios . A brisa era tépida , como a noite . Algumas folhas sêccas , prenuncio do outomno , alastravam o sólo . Julio entrara-se em doloroso scismar .