QUARTO CENTENARIO DE+O DESCOBRIMENTO DE+O CAMINHO MARITIMO DE+A INDIA pero DE+A COVILHAN ( EPISODIO ROMANTICO DE+O SECULO XV ) POR ZEPHYRINO BRANDÃO DE+A ACADEMIA REAL DE+AS SCIENCIAS -- LISBOA DE+A REAL ACADEMIA HESPANHOLA DE MADRID , DE+O Instituto DE COIMBRA E DE+A S. G. L. ANTIGA Casa BERTRAND-Y JOSÉ BASTOS LIVREIRO-EDITOR LISBOA -- 73 , " Rua Garrett, 75 1897 " " ADVERTENCIA " O episodio , que vae ler-se , é , como todos os episodios romanticos , um pequeno espelho . Procurei dispô-lo em termos de reflectir uma luz calma e pura , como o céo transparente e sereno , e não reprezentar a vasa de lodaçaes , d' essas miserias , que são a mais viva chaga social de todos os tempos , o terrivel problema a resolver , o alpha e o omega das civilisações . Sem sacrificar nem a sombra da verdade historica , não tive de roçar por impudencias , nem de envolver-me em meandros asquerosos , salvo no incidente da successão á corôa de Castella . Não accuso de immoraes os que revolvem o lôdo . A quem deixa estagnar a agua , pertence mórmente a responsabilidade na formação dos atoleiros . Mas alguns escriptores teem olhos de lynce para descobrir o mal , e de toupeira para enxergar o bem : uma cegueira lamentavel em ambos os casos . No reinado de D. João II , em que se passa quasi totalmente o episodio , houve , como em todas as épocas , grandes virtudes e grandes vicios . D ' estes não cuidei , porque não podia ir buscar a um meio , onde nunca estiveram , os meus dois protagonistas , que são verdadeiros no sentido eterno da palavra , antes de o serem no sentido historico . -- E como fazê-los reprezentar tambem papeis violentos em dramas ou tragedias , que despertassem interesse , reconhecendo eu que a historia , á qual subordinei a sua acção , cortaria implacavelmente as azas da minha phantasia ? Era porventura mais impressivo , ou ao menos mais accommodado ao gosto hodierno , um enredo cheio de peripecias fabulosas . No colorido , porém , d' esses quadros phantasticos deveria empregar as tintas modernas , e nem eu sabia pinta-los , nem elles eram authenticos . Commemóro emfim , conforme sei e pósso , o quarto centenario do descobrimento do caminho maritimo da India . " Zephyrino Brandão " " DESPEDIDA " O leitor já visitou Sevilha ? Pois se nunca a enxergou sequér , affirmam por lá os nossos visinhos , que " não vio maravilha " . Os attractivos da vida sevilhana seduzem-nos tanto , que nos offerecem crêr no velho proverbio andaluz , e compensam certamente a princeza do Guadalquivir do muito que lhe falta em monumentos para ser admirada , e em melhoramentos materiaes para rivalisar vantajosamente com as cidades modernas . O leitor e eu vamos percorre-la no terceiro quartel do seculo XV , em um dia calmoso do estio . Abrasa tanto calor ! ... Em breve zombaremos d' elle . Os arabes , que faziam de seus palacios pequenos paraizos , rodeavam-n* ' os de jardins e fontes , no intuito de refrescar as regiões ardentes , que povoavam , e até no interior dos proprios edificios possuiam esses mesmos refrigerios . Ora as casas de Sevilha traduzem fielmente os costumes de seus antigos senhores ; e , como temos de entrar em uma d' ellas , poupar-nos hemos a insolações . Cingem Sevilha fortes muralhas , do alto das quaes se contempla a extensa planicie do vastissimo contorno , povoado de vistosas e alegres alquerias . Pela porta de Triana sae- se ao importante arrabalde d' este nome , e com elle se communica por uma ponte de madeira fundada sobre grandes barcas , que com grossas cadeias de ferro a sustentam , amarradas no castello . Sob esta corre caudaloso o Guadalquivir , que parece envaidecido da sua justa nomeada , não só por dar ancoradouro seguro ás maiores naves , que sulcam os mares , senão por facilitar assim as relações commerciaes , e animar a florescente industria fabril dos sevilhanos ; -- o que torna riquissima de população e haveres a formosa metropole andaluza . Cêrca do rio ergue-se a torre , que , pelo primor da fabrica , se denomina do Ouro . Á cathedral , cuja edificação começou quasi ao entrar do seculo , em que a estamos vendo , sobre os alicerces da antiga mesquita , chama-se vulgarmente a " grande " , como á de Toledo a " rica " , á de Salamanca a " forte " e á de Leão a " bella " . Ao lado d' essa immensa móle altea- se suberba a torre de tijolo côr de rosa , que coroava a mesquita , e é rematada por outra de menores dimensões com variedade de pinturas mui singulares em todo seu circuito . Este minarete , o mais notavel monumento arabe , da sua classe , na peninsula , foi construido pelo celebre alchimista e architecto Géber , a quem se attribuio , sem fundamento , a invenção da algebra . -- Não olvide o leitor , que estamos no decimoquinto seculo , em que não existe ainda o " Giraldillo " , e por isso a torre não é conhecida pelo nome de " Giralda " . Numerosa a casaria da praça ; alguns edificios podem comparar-se em tudo com palacios realengos . As mulheres prezam-se de caminhar com garbo e passo curto ; de fallar com graça e vivacidade ; de vestir com louçania e riqueza ; de dançar e cantar ao som das castanholas e das guitarras com elegancia e desenvoltura ; de encobrir com a mantilha um dos seus formosissimos olhos por tal arte , que parece terem cravado na face um diamante negro , a reflectir a luz fulgorosissima do bello sol da Andaluzia . O sevilhano passa por nós muito ancho da sua pessoa , e da sua Sevilha , que não só possue os titulos de mui leal , mui nobre e mui heroica , senão que é patria de notabilissimos santos ; por isso até um poeta exclama patrioticamente : Sem embargo de tamanha gloria , a cidade -- Maria Padilla tem sido tambem algo peccadora ... A nobreza opulenta de rendas de seus vastos dominios ruraes , em que abundam frutos e gados , sustenta luzidas tropas de escudeiros fidalgos , que põe ao seu serviço e ao dos reis , alentando os impulsos das proprias ambições e prosapias . Nas suas casas tem grandes depositos de armas , e nas suas cavallariças centenares de cavallos . Empara em vida os de sua hoste , e deixa-lhes fartos legados em seus testamentos . Um d' esses grandes senhores é o duque de Medina Sidonia ; ou de Sevilha , como tambem o tratam . Entremos no seu palacio . Este grandioso edificio , exteriormente austero e nú , ostenta no interior uma riqueza enorme , um luxo deslumbrante e voluptuoso , que determina a influencia exercida em Hespanha pela civilisação arabe . Póde considerar-se uma vivenda semi-oriental , como todas as do estylo " mudejar " , a que pertence , para a construcção das quaes as duas artes , christã e mahometana , se dão as mãos com tal engenho , que se harmonisam perfeitamente os dois elementos de manifestações tão diversas . -- Como sabido anda , os arabes que ficaram com os christãos , depois de certos tratados , em virtude dos quaes se lhes permittia conservar suas leis , religião e costumes , chamavam-se " mudejares " , e nas edificações , em que eram empregados , imitavam o luxo e magnificencia dos povos , que os da sua raça haviam conquistado , especialmente da Persia . Tornando , porém , ao ponto : na disposição geral do palacio adoptou-se o estylo arabe , estabelecendo-se amplos pateos , e galerias , em volta das quaes demoram as habitações . A sala principal pertence ao terceiro periodo arabe puro . As paredes d' ella recordam os ricos tecidos orientaes da Persia , assim por seus desenhos primorosos , como pelo brilhantismo do colorido . O pavimento acha-se coberto com uma alcatifa persa de um avelludado suavissimo . No tecto , o elemento decorativo predominante são estalactites e laçarias , tudo realçado com applicação de côres e douraduras . Os peregrinos ornatos d' esta sala bastam , para confirmar a frondosa imaginação dos artistas mahometanos , e o respeito por elles tributado ás suas tradições gloriosas . Móvel não se vê , a não ser uma larga cadeira de espaldar , com sobrecéo e estôfo de brocado . No centro da espalda , o brazão dos Medina Sidonia . Uma riquissima almofada de setim bordada a ouro está collocada aos pés d' esta cadeira , em que sómente costuma sentar-se o duque , ou algum extrangeiro de distincção , que o visita , e a quem elle offerece esse lugar de honra . Em outras salas , paredes forradas de pannos de Arraz e de Flandres , representando episodios da vida de Christo , assumptos mysticos , batalhas , torneios e scenas de caça ; ou cobertas de tapetes turcos , imitando persas , guadamecins e azulejos , tendo os sóccos revestidos de mosaicos esmaltados . Os tectos , estucados e pintados , com imitações mais ou menos exactas da flora . Alguns pavimentos , alcatifados . Nos aposentos dos duques pendem das paredes quadros de Giotto e da sua escola , de João Van-Eyck , Roger van der Weyden , e do patriarcha da pintura sevilhana , Juan Sanchez de Castro , que poucos annos antes fundára a sua escola . As paredes e tectos da ante-camara , armados e toldados de riquissimos lambeis . Os móveis , de páu-santo , primorosamente entalhados e forrados de brocado e ouro . Na sala da duqueza vê-se um magnifico relicario , d' estes que o clero manda executar sobre desenhos proprios para maravilhar os fieis , tal é a perfeita intelligencia , que elle tem do seu tempo . Em cima de uma credencia com tres compartimentos em fórma de degráus , cobertos de setim e rendas de Flandres , repousam varios objectos de uso senhoril , uns de ouro , outros de prata e crystal de Veneza . Sobre um bufete de abano , coberto com um bancal de velludo , tendo ao meio bordadas as armas da duqueza , acham-se livros de horas luxuosamente encadernados e brochados de prata , uma escrevaninha de ouro , flores em vasos de crystal e castiçaes de ouro . Nos angulos da sala , açucenas em amphoras preciosas proclamam a sua candura triumphal , e roseiras enroladas em columnas de onyx exhalam a sua fragancia suavissima . As paredes da sala de armas do duque exhibem trophéos de armas arabes , despojo rico das batalhas das Navas e do Salado , como : rodellas , adargas , onde se lêem lemmas bordados a fio de ouro e a matiz , lanças em fórma de meia lua , espadas , gomias , tridentes e alfanges de dois fios . Amplas colgaduras , tendo bordadas as armas da casa , encobrem completamente as estreitas portas de alerse . O mobiliario do palacio , em geral , consiste : em cadeiras de espaldar coroado por dentilhões , tendo entalhado o brazão das armas de Niebla , titulo da familia Medina Sidonia , ou simplesmente a corôa ducal ; algumas cadeiras ainda , lavradas com atauxias de ouro , marfim , prata ou cobre , e umas e outras com escabellos fixos ou moveis ; almofadas de seda , sobrepostas duas a duas , e servindo de assento na sala de recepção da duqueza ; faldistorios , tamboretes de espaldar , bancos longos e de espaldas , almofadados de tela de ouro e velludo ; bancos de thezoura , bufetes de ebano artisticamente entalhados de prata , candelabros dourados , arcas para assentos , armario , cofre e até mesa de escrever , todas de madeiras preciosas e guarnecidas de prata , ferro ou bronze ; relogios de parede em luxuosas caixas , umas de madeira , outras de ferro . Muito d' este mobiliario é coberto de ricas tapeçarias orientaes , que lhe dão um aspecto delicado e alegre com as côres vivas de seus bordados caprichosos . Emfim , mesas de prata , de ouro e de bronze , quadradas , de um pé só , além de outras de madeira , iguaes áquellas no formato , e sobre que se vêem magnificos vasos de flores , cravejados de pedras preciosas , outros vasos de prata lavrada , salvas e floreiras . Não entremos na ante-camara do duque , onde elle conversa agora com D. Juan de Guzman , que tem sido o seu irmão predilecto . Conforme o costume , a duqueza saiu logo de manhã para o jardim com as dez donzellas , suas familiares , levando , como cada uma d' estas , na mão um rosario e um livro de missa . Á sombra do copado arvoredo alli rezam no mais edificante recolhimento . Terminada a oração as donzellas correm alegremente a colher flores , com que na volta ao palacio enfeitam o altar da virgem . Na capella é esperada a duqueza com o seu sequito gentilissimo pelas moças da camara , e pelo sacerdote , que celebra a missa , ouvida por aquella pequena côrte . Em seguida serve-se o almoço , depois do qual a duqueza , acompanhada de suas donzellas e de alguns fidalgos , dos mais apontados em garbos de cavallarias , em esmeros de atavios , e em chistes de conversadores , passeia a cavallo no seu suberbo palafrem . Hoje , todavia , recolheu-se aos seus aposentos , e não deu o seu passeio habitual . Deixemos , pois , entregue ás suas meditações a virtuosa senhora . Naturalmente algum novo acto de caridade projecta , para juntar aos muitos , que tão justamente lhe tem grangeado o santo e doce nome de " mãe dos pobres " . E , emquanto o duque falla com o irmão , acompanhe-me o leitor ao pateo principal do palacio . É um quadrilongo regular , cercado de galerias , superior e inferiormente , decoradas com arabescos do mais fino gosto , sendo seus arcos em fórma de ferradura , graciosamente entalhados e sustentados por dezenas de columnas de ordem composita e de marmore alvissimo . O pateo é ajardinado , tendo no centro uma fonte , cuja agua crystalina cáe dentro de um tanque largo que a circumda ; e os canteiros são separados uns dos outros por lousas de marmore branco . Na galeria superior sente-se rir e folgar . São as donzellas da duqueza . O sol não as incommoda , porque todo o vão do pateo está coberto com um grande toldo . Uma d' ellas , desviando-se das companheiras , vê no jardim , perto do tanque , um pagem , e pergunta-lhe com ineffavel meiguice : -- Estais a despedir-vos das flores , Perico ? ... -- Quem sabe , se tornarei a vê-las ! ... -- respondeo o pagem com pronunciado acento de tristeza . -- Pois porque não haveis de voltar ? ... -- Deus o sabe ; mas diz-me o coração , que nunca mais verei Sevilha ! ... -- Tem cousas o vosso coração ! ... Deixai-o cá , para não vos ir atormentando com presagios pelo caminho ... As outras donzellas , que tiveram curiosidade de saber , com quem a sua companheira conversava , accorreram no momento em que Pero fazia esta pergunta á sua interlocutora : -- Se eu podésse arrancar o coração do peito , de quem poderia confia-lo , na certeza de que ficaria bem guardado ? -- De mim ! -- exclamam todas a um tempo . -- Como elle não póde repartir-se , -- ponderou o pagem -- entrega-lo hia a Beatriz . -- Sois mui gentil , Perico ! -- tornou esta . Graças pela preferencia ... -- Não fostes vós , quem me propôz não o levar comigo ? ... -- Sem duvida ! ... É , porém , essa a unica razão da vossa escolha ? ... -- Não m ' o pergunteis ... Se tivesse aqui um alaúde , vos-agora ao som d' elle : -- Bellissimo , Perico ! ... -- bradaram as donzellas com viva demonstração de alegria . -- Que gracioso sois ! -- accrescentou Beatriz e perguntou : mas porque esquecestes a guitarra , que é mais maneira , e vos lembrastes do corpulento alaúde , como lhe chamava o arcipreste -- Hita ? -- Vejo , que conheceis os versos de Juan Ruiz ... -- observou o pagem . -- Quem haverá ahi , que os não tenha ouvido recitar aos trovadores e aos jograes ? ! ... A proposito vinha agora recordar aquelles , em que o arcipreste descreve a recepção de D.||_Amor Amor|_Amor ... Se quereis ter uma igual , quando regressardes , recitai-os , Perico ! ... -- Careceis dos nossos rogos ? ... -- atalharam as outras donzellas . Convem notar , que os duques -- Medina Sidonia , á similhança dos reis -- Castella , mantêem uma côrte poetica . Fazer versos está na moda , por isso são poetas os grandes senhores : almirantes , condestaveis , duques , marquezes , condes e reis . A verdadeira e legitima poesia conservava-se no estado latente , desde o reinado de D. Pedro , o Cruel . Passou depois á côrte , e fez-se cortezã . Com tudo não havia perdido completamente o favor popular o romance brioso e sentido . Os melhores poetas , que frequentam a casa Medina Sidonia , são versados na lingua arabe , e sabem numerosas lendas d' este povo de poetas . Conhecem a escola provençal , e é-lhes familiar a litteratura . Os romances castelhanos , e as mais bellas composições poeticas de Hespanha , anteriores ao presente seculo XV , todos os cavalleiros d' aquella côrte sevilhana recitam com applauso de damas e donzellas . O marquez de Santilhana , que por lá surge de quando em quando , ao passo que por todos é escutado com affectuoso enthusiasmo , estimula os moços , repetindo-lhes esta maxima : " a sciencia não embóta o ferro da lança , nem afrouxa a espada na mão do cavalleiro . " N ' este meio social tão distincto , É que tem sido educado o pagem , e a familia Medina Sidonia dispensa-lhe os maiores carinhos . Tirado , pois , a terreiro pelas donzellas , assume um certo ar de gravidade , parecendo ao mesmo tempo , que do seu olhar vivissimo saltam chispas de luz e de graça , e exclama : -- Attenção ! ... Vae fallar Juan Ruiz ! ... Quando , porém , se propunha recitar o engraçado episodio , pôz termo ao animado colloquio o apparecimento do irmão do duque a uma porta da galeria inferior . O pagem dirigiu-se logo a D. Juan , de quem recebeu uma ordem , e em virtude d' ella saiu apressadamente do pateo . As donzellas retiraram tambem logo da galeria . Junto das cavallariças um velho mendigo , de compridas barbas brancas , de olhar scintillante e modos altaneiros , em que se traduz o seu orgulho de raça , inflexivel sempre , até sob o jugo do infortunio , tem feito as delicias de eguariços e lacaios , ora tocando sanfona , ora narrando historias de bandidos e de feitiços dos mouros de Granada . A famulagem tinha tempo para tudo . Não se tratava então de apparelhar ginetes , para ir no encalço dos Ponces , inimigos irreconciliaveis dos Guzman , apesar do seu proximo parentesco ; unicamente cincoenta cavallos estavam arreados , e promptos a enfrear á primeira voz . São quasi cinco horas da tarde . D. Juan de Guzman despede-se do irmão , que lhe mostra uma carta de D. Diogo Lopes Pacheco , marquez de Vilhena , recebida momentos antes , e abraçando-o diz-lhe : " D. Affonso que conte com dois mil cavallos " . Passados poucos minutos as donzellas da duqueza sóbem a um torreão do palacio , para vêr sair a garrida cavalgada , em que vae caminho de Portugal D. Juan de Guzman . Para maior luzimento do numeroso prestito de escudeiros e lacaios , com o qual D. Juan pompeava , o duque não só pôz ao seu serviço o discreto pagem , que o leitor conhece , mas deu-lhe tambem por companheiro um dos mais disértos trovadores da sua côrte . Ao lado dos azemeis , que conduzem possantes mulas pittorescamente ajaezadas e carregadas de bahús com a bagagem , caminham uns romeiros , encostados ao seu bordão , e com a murça da esclavinha ornada de conchas e vieiras . Por intervenção da duqueza , haviam alcançado licença de jornadear com D. Juan até Portugal , devendo d' aqui passar a Santiago de Compostella , onde se dirigem , e d' este modo evitar os caminhos de Hespanha ora tão infestados de bandidos e salteadores . As donzellas demoraram-se no torreão até se desfazer , lá ao largo , a ultima nuvem da poeira , que envolvia cavalleiros e peões ; mas já não logravam distinguir um só d' elles . -- Quem sabe , se Beatriz desejaria descortinar unicamente o pagem ? ... Talvez . Nada , porém , communicou ás companheiras , que podésse denunciar esse desejo . -- E Perico ? ... Levaria porventura gravada no coração a imagem de Beatriz ? ... Começaria a feri-lo deliciosamente o espinho da saudade ? ... Ou a lembrança de entrar no seu paiz , que , desde muito creança não tornára a vêr , e em cuja côrte teria ensejo de exhibir as singulares prendas , de que era dotado , lhe-da memoria os venturosos dias de Sevilha ? ... Ao leitor cordato afiguram-se decerto inopportunas taes perguntas , feitas com o fundamento unico da scena , que presenceámos no pateo . Tem razão . Esse galanteio innocente , proprio da mocidade dos participes , dos costumes da época , e até da indole das encantadoras filhas da Andaluzia , não auctoriza a procurar mysterios no que tão natural se apresenta . -- Sabe o leitor o que logo ao começar da jornada está provocando os gabos de experimentados escudeiros ? -- É a destreza , com que Pero , o gentil pagem , manda o rinchão fouveiro que monta . A cada galão do corcel sorri-se desdenhosamente , e com seus ditos joviaes e maliciosos é o enlevo da comitiva . Ditosa mocidade ! ... Se voltassemos ao palacio dos duques , encontrariamos talvez Beatriz a exercer o galante ministerio de " juiza " em alguma " côrte de amor " . E cá fóra veriamos o velho mendigo no mesmo lugar ainda , cantando ao som da sanfona : " CONSPIRAÇÃO " Se o leitor tem folheado a historia de Henrique IV , de Castella , póde poupar-se á leitura d' este enfadonho capitulo , no qual vamos condensa-la , para melhor intelligencia do que mais ao deante se dirá . Esteve Henrique IV casado sete annos com D. Joanna , irmã do rei -- Portugal D. Affonso V , sem ter successão ; até que , em 1462 , a rainha deu á luz uma menina . Foi baptisada esta com muita pompa , e geraes demonstrações de regosijo , pelo arcebispo de Toledo , D. Affonso Carrillo , sendo madrinha a infanta D. Isabel , irmã do rei , e padrinho , por procuração , Luiz XI de França . Pouco depois , reunidas côrtes em Madrid , n ' estas foi jurada herdeira do throno a recem-nascida , a que se havia dado o nome de Joanna , e ninguem protestou contra o juramento . Era a esse tempo mordomo-mór do palacio D. Beltran de la Cueva , que de pagem da lança passou logo a exercer essa alta dignidade , havendo sido igualmente agraciado com o titulo de conde de Ledesma . Mostrava-se este mui solicito no serviço da rainha , mas não fazia mais do que cumprir as ordens do monarcha , de cujo favor e privança gozava com inveja e despeito de muitos , que não queriam reconhecer-lhe meritos para tanto . Os negocios do Estado eram dirigidos pelo arcebispo de Sevilha ; -- o verdadeiro soberano , pois que D. Henrique passava seus dias caçando e divertindo-se . D. João II , rei -- Aragão , andava em guerra com seu filho D. Carlos de Viana , a quem não queria entregar o senhorio de Navarra , que pertencia a este , por morte de sua mãe ; e com Luiz XI , para retomar o Roussillon , que lhe havia empenhado por avultada somma de dinheiro . Aos parciaes da justa causa de D. Carlos pertencia Henrique IV , e aos do rei usurpador , o arcebispo de Toledo e alguns grandes de Castella . O marquez de Vilhena , D. João Pacheco , dizia-se amigo de Henrique IV ; e , como era mui artificioso e dado a soltar só meias palavras , foi a Saragoça tratar da paz e boas relações de Aragão com Castella . No seu regresso a este reino convidou , sem detenças , o arcebispo de Toledo e seus sequazes , para uma reunião secreta , que se realizou em um valle proximo de Alcalá de Henares . Ahi o marquez rompeu , sem mais preambulos : -- É forçoso guerrear sem treguas Beltran de la Cueva . -- Não se me afigura empresa difficil ... -- acudio em tom pausado e sisudo o arcebispo de Toledo . -- Convenho ; -- replicou Vilhena -- mas ainda é numerosa a parcialidade do rei , e tem á sua frente o arcebispo de Sevilha ... -- E a nós , -- atalhou , recachando-se , o prelado toledano -- embóra inferiores na quantidade , ninguem sobrelevará na coragem e na perseverança com que luctaremos . Demais ... o rei é fraco , e o arcebispo de Sevilha ... -- Sim , esse ... -- condescendeo o marquez , engulindo um pensamento , cuja execução de ninguem confiava . -- Lembrai , pois , um plano , e contai com o rei -- Aragão . -- Quereis um , que fira mortalmente o rei e o valido ? ... Ahi váe em poucas palavras : invistamos contra a honra da rainha ! Advirta-se , que o arcebispo de Toledo era um d' aquelles prelados da edade media , nascidos antes para brandir a espada acerada do guerreiro , do que para menear o cajado pacifico do apostolo . O marquez de Vilhena comprehendeo logo toda a perfidia do seu interlocutor , e , occultando cautelosamente o assombro , que lhe produziram as suas palavras , perguntou sem hesitação : -- Como ? ... -- Divulgando , que a infanta D. Joanna é filha de Beltran de la Cueva -- respondeo serenamente o arcebispo . -- E acredita-lo hão ? ... Talvez muitos o ponham em duvida ... Como sabeis , o facto de ter o rei estado sem successão , durante sete annos , póde explicar-se com o similhante de seu avô||_Henrique Henrique|_Henrique III , que esteve oito . Álem d' isso a todos é bem prezente ainda a scena de ciume da rainha , que , batendo com um chapim na sua dama||_D._Guiomar_de_Castro D.|_D._Guiomar_de_Castro Guiomar|_D._Guiomar_de_Castro de|_D._Guiomar_de_Castro Castro|_D._Guiomar_de_Castro , expulsou-a ao mesmo tempo do alcaçar de Madrid , sem evitar , que a sua rival esteja vivendo hoje tão entonada , por ser amante do rei , e dispensadora de mercês , aos que preferem ganha-las com humilhações perante tal mulher , a conquista-las ás lançadas aos mouros ... -- E d' esses factos o que se conclue ? ... O primeiro á lembrança de ninguem acóde . O segundo tem uma explicação natural no orgulho offendido . Álem de que o vulgo não deixa de crêr ás cegas em todas as accusações feitas aos potentados , e até as avulta enormemente ... Accresce , que para o genero d' esta não ha defensa possivel , e , dado o escandalo , já o monarcha se não attreve a mostrar-se em publico , sem correr o risco de ser apupado ... -- N ' essas circumstancias deixará a infanta de ser a herdeira presumptiva da corôa ... -- contestou pausadamente o marquez . -- Sem duvida ! -- atalhou de prompto o arcebispo , a quem pareceo divisar no marquez de Vilhena certo ar de indecisão . -- Melhor é , pois , desthronar já D. Henrique ! ... -- Óra até que chegámos ao ponto , por onde deviamos ter começado ! -- exclamou o arcebispo com mal contido júbilo , e , compondo o aspecto , de seu natural severo , accrescentou : e quem hade impedir-nos de o realizar ? ... -- Pois bem ! ... Mas antes de tudo o monarcha assignará as pazes com o rei -- Aragão , afim de evitar , que continue a suspeita de qualquer accordo nosso com a côrte aragoneza ... -- É habil esse lance ! ... -- ponderou o arcebispo -- Comtudo não vos esqueçais do arcebispo de Sevilha ... -- Seguramente ... -- Vejo , que nos comprehendemos ... -- Resta saber , quem nos convirá no throno , cuja dignidade tratamos de restaurar ... -- O infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso ; por isso mesmo que é uma creança tão debil e apoucada , como seu irmão . Agrada-vos ? ... -- concluio o arcebispo , sorrindo ironicamente . -- É uma creança que substitue outra ... -- observou Vilhena . -- É ; mas D. Henrique retirou-nos a sua confiança , e D. Affonso hade obedecer ás nossas inspirações ... Das reticencias d' este dialogo é licito inferir , que os interlocutores não confiavam demasiadamente um no outro . O arcebispo de Toledo era insolente e audacioso . O marquez de Vilhena , mui solérte em intrigas palacianas , fazia consistir a sua força na brandura da sua linguagem , e sabia-lhe melhor ganhar a victoria por meio de traças ardilosas , e palavras melicas . Não pretendia álem d' isso desaggravos tão cruentos , como o arcebispo ; mas teve de concordar com elle , e com os outros conjurados , em espalhar pela lama as jóias mais bellas de uma corôa , para a tornar ludibrio do mundo ! O que mais resolveram tão inclitos varões , em seu conluio , i- lo hão mostrando elles para gloria sua . Henrique IV , apesar dos reparos , que pôz na concordia com o rei -- Aragão , assignou as pazes propostas pelo marquez de Vilhena . Parece , porém , ter-lhe servido de aculeo a sua condescendencia , para manifestar , mais do que nunca a sua intimidade com o conde de Ledesma . Foi novo aggravo aos conspiradores ; por isso correo logo de bocca em bocca o nome de " Beltraneja " , posto por elles á innocente infanta , e perfida injuria disparada ao pundonor de sua mãe . Os amigos do monarcha , cobertos de pejo , indignaram-se de ver caidos na baixeza , de propalar em tamanha infamia aquelles , que se diziam " grandes de Castella " ! Procurou o rei attrahir de novo ao seu partido o marquez de Vilhena , por saber quão perigosa era a sua inimisade , e este aproveitou o ensejo , para lhe propôr a demissão do metropolitano de Sevilha . Não só conveio n ' isto o timido monarcha , mas ordenou tambem a prisão do prelado . O marquez avisou do rescripto a sua victima , que passou logo para o bando dos descontentes ! Seguidamente intentavam os conjurados surprehender o rei em Madrid e apoderar-se d' elle . A vigilancia do conde de Ledesma frustrou a tentativa . Acudiram de outra vez a Segovia , quando o monarcha alli foi ; compraram a camareira Maria Padilla , que velava junto do dormitorio , e pareceu-lhes ageitado o lance ; mas baldou-se ainda o attrevido designio . De Burgos dirigiram ao desditoso rei uma reprezentação , em que lhe diziam , com inqualificavel despejo , have-lo induzido o conde de Ledesma a fazer jurar por herdeira do throno D. Joanna , chamando-a princeza sem o ser ; pois que não era sua filha bem o sabiam elle e o conde ! O rei tremeo ao lêr estas palavras . Afigurou-se-lhe conjurar todos os perigos , concertando o enlace de sua filha com o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso , e accedendo , a que Beltran de la Cueva renunciasse o mestrado de Samtiago , por que tanto suspirava o marquez de Vilhena . Consentio , pois , em que fosse jurado herdeiro da corôa seu irmão , uma vez que casasse com a princeza D. Joanna ; e o conde de Ledesma , por seu turno , entregou nas mãos do rei a sua demissão de mestre de Samtiago , não por se considerar indigno de exercer esse alto cargo , mas para em tudo servir D. Henrique . Em compensação foi elevado a duque de Albuquerque . Tão alta mercê exasperou mais a protervia dos colligados , que logo ergueram em uma planicie , cerca dos muros da cidade -- Avila , um cadafalso , sobre o qual collocaram uma cadeira , em que assentaram um manequim , figurando D. Henrique de sceptro na mão e corôa na cabeça . Leram muitas queixas contra o rei , e em seguida o arcebispo de Toledo tirou a corôa do boneco ; o marquez de Vilhena , o sceptro ; o conde de Plasencia , a espada ; o mestre de Alcantara , o conde de Benavente e o de Paredes , os restantes ornatos da realeza ; e todos arrojaram , a pontapés , do cadafalso abaixo o vulto desataviado ! O infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso foi posto por elles no mesmo lugar , todos lhe beijaram a mão , e aclamaram rei -- Castella e Leão . Pobre creança , que não tinha a consciencia de ser n ' aquelle acto um mero instrumento da villania dos turbulentos vassallos de seu irmão ! Em outros paizes menos familiarisados com as rebelliões , esta teria abalado profundamente a opinião publica ; e , se não fôra a inepcia e covardia de Henrique IV , que era o desespero dos bravos , a parte sensata do reino teria feito estalar a sua indignação contra os conjurados . Esse apparato theatral de Avila produziu um grande escandalo , sem dar um grande golpe , e logo depois mallogrou-o completamente a recepção enthusiastica , feita á princeza D. Joanna em Saragoça . Começou o marquez de Vilhena por esta razão a nadar entre duas aguas , mostrando-se desejoso de dar conselhos ao rei ; e , como o arcebispo de Toledo lhe lançasse em rosto esse procedimento , fingio-se doente , a ponto de receber o sagrado viatico , nomear aquelle prelado seu testamenteiro , e pedir-lhe , que fosse patrono de seus filhos . Deixou assim de arrogar-se , em seu entender , a responsabilidade de certos actos , e preparou novas alicantinas . O irrequieto arcebispo foi pôr cerco a Simancas ; mas do alto das muralhas da velha cidade os sitiados escarneceram-n* ' o , chamando-lhe D. Opas ; -- o que significava compara-lo com o typo mais repugnante dos homens conhecidos por traidores . Outros grandes de Castella , embora pouco satisfeitos com a marcha dos negocios do Estado , acudiram ao serviço do rei , por comprehenderem que se ventilava um processo de honra publica ; todavia não pudéram evitar , que Henrique IV caisse na fraqueza de tratar com os sublevados uma suspensão de armas por cinco mezes , dando azo a despedir-se das duas parcialidades gente , que foi infestar as povoações , a ponto de provocar a fundação das " Hermandades " , para perseguir os malfeitores . Os povos passavam de um partido ao outro , com uma volubilidade sómente comparavel á dos magnates . Tudo era confusão no meio da cafila de potentados , cobiçosos de dar leis , e pouco amigos de sujeitar-se a ellas . O arcebispo de Sevilha e o marquez de Vilhena offereceram ao rei os seus serviços , se elle consentisse , em que a infanta D. Isabel , sua irmã , casasse com D. Pedro Giron , irmão do marquez . Com a filha de Vilhena , D. Beatriz Pacheco , estava ajustado o casamento do principe D. Fernando , filho do rei -- Aragão , que estimava esse enlace , o qual se não realizou por se oppôr tenazmente o almirante de Castella , avô materno do principe . A infanta D. Isabel começou a seguir os rebeldes por toda a parte , sem fazer esforço algum de voltar para onde estava seu legitimo rei . O legado pontificio fulminou sentença de excommunhão contra os nobres e senhores , que não prestassem desde logo obediencia á auctoridade real , deixando de impedir , seu livre e expedito exercicio ; mas o arcebispo de Toledo , principal caudilho dos sediciosos , rio-se com elles do interdicto , dizendo , que appellariam para um concilio . E mandaram logo a Paulo II uma embaixada , participando-lhe , que tinham acclamado o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso rei -- Castella e de Leão . O papa respondeo , que em vez de attrairem as bençãos do Céo sobre o infante , chamavam sobre elle os castigos eternos e a morte ; e que com o seu exemplo a liga provocava todas as classes á desobediencia . D. Affonso falleceo de repente , na tenra edade de quinze annos , e os conjurados offereceram a coroa á infanta D. Isabel , que a não aceitou , por não poder intitular-se rainha , em quanto seu irmão D. Henrique vivesse ... Entretanto , porém , desejava ser jurada herdeira do throno , em competencia com D. Joanna , a quem chamou " supposta " filha do monarcha . Annuio D. Henrique a effectuar-se esse juramento , com a condição de sua irmã não casar sem elle o consentir . Sacrificou d' este modo a propria honra e a da rainha , sua mulher , sendo injustamente postergados os interesses da innocente infanta , sua filha . Do juramento anteriormente feito a D. Joanna , foi absolvido o reino pelo legado pontificio , o qual não attendeo os protestos da rainha contra tudo quanto se accordou em opposição aos direitos de sua filha , porque havia recebido o encargo de apaziguar dois litigantes , e , sendo-lhe impossivel desatar um nó , julgou mais prudente corta-lo . Agora todo o ardor dos turbulentos se concentrou na escolha de marido para D. Isabel . O almirante de Castella queria , que a infanta se desposasse com o seu neto D. Fernando , para ter em Aragão um auxiliar poderoso ; o marquez de Vilhena oppunha-se , não para obstar á união das duas corôas , senão para olhar pelo engrandecimento da propria casa , pois lhe haviam proposto antes o enlace d' aquelle principe com uma filha sua . De sorte que , ainda mal apagadas umas discordias , surgiam logo outras . Era esta a politica dos magnates rebeldes . Convinha-lhes ter sempre a corôa sob a sua influencia , por isso eternisavam as parcialidades , buscavam em tudo elementos de perturbação , e a auctoridade real era incessantemente um joguete em suas mãos . Podésse muito embóra a pusilanimidade de Henrique IV , ou a sua falta de previsão e dignidade no poder , fomentar o germen das sedições ; nada d' isso , porém , as justificava : serviram unicamente de deixar na historia de um povo illustre uma pagina indecorosa . O casamento de Fernando com Isabel foi para o pae d' esse principe uma nova campanha , que tratava de vencer , comprando a pêso de ouro os grandes de Castella . Entretanto Henrique IV partia com o marquez de Vilhena para Andaluzia , afim de receber umas cidades , que se administravam por seu proprio arbitrio ; e depois de ter feito jurar solemnemente a sua irmã , que não casaria , fosse com quem fosse , antes de elle regressar . A infanta , porém , aconselhada pelo arcebispo de Toledo , protestou secreta e intimamente , que faria o que bem lhe parecesse ; e logo escreveo ao rei -- Aragão , dizendo-lhe , que consentia em unir-se a seu filho , mediante certas condições , que seriam propostas pelos emissarios , de quem ella encarregára a negociação . Mui vexatorias para o decoro do reino e do principe as consideravam os conselheiros do soberano aragonez ; com tudo o matrimonio realisou-se . Correo logo que não estava valido , por se ter celebrado sem a dispensa pontificia , tão reclamada pelo proximo parentesco dos conjuges ; mas como não havia escrupulos , nem difficuldades para o arcebispo de Toledo , este não hesitou em faltar á verdade , affirmando , que a curia romana lhe enviára muito a tempo o breve indispensavel . Quando Henrique IV recolheo a Madrid , recebeu dos sublevados uma exposição , na qual lhe participavam o consorcio da infanta , e as condições , em que se effectuára ; sem deixarem , para maior ludibrio , de solicitar o perdão do seu rei , por haverem , sem seu beneplacito , preparado e conseguido tão auspiciosa união . Ao mesmo tempo Isabel dirigio a seu irmão uma carta affectuosissima , em que lhe communicava a sua mudança de estado . Era o cumulo da insubordinação e da impudencia ! O desforço de Henrique IV consistio em reunir um simulacro de côrtes no valle de Lozoya , onde , perante a rainha e sua filha , fez declarar solemnemente , que era irrito e nullo o acto de se haver jurado em Toros de Guisando , a infanta D. Isabel por herdeira do throno , em virtude de concessão feita por elle monarcha , pois lhe fôra esta arrancada á força , e offendia os direitos de sua legitima filha . Assistiram a essa assembleia alguns delegados -- Luiz XI , que celebraram por procuração o casamento de D. Joanna com o irmão d' aquelle soberano . As cidades , que se prezavam de leaes , sendo Sevilha uma das primeiras , deram a tudo seu assentimento ; mas o noivo da princeza não chegou a cumprir a palavra , que por meio de poderes especiaes havia empenhado . Por conselho do marquez de Vilhena , Henrique IV voltou-se para D. Affonso V , a quem propôz o casamento com D. Joanna , a qual levaria em dote os reinos -- Leão e Castella ; porém , o monarcha portuguez , mais receoso dos artificios de Vilhena do que das difficuldades do assumpto , deo largas ao negocio , e Henrique IV entretanto tentou ainda procurar para genro o infante||_D._Henrique_de_Aragão D.|_D._Henrique_de_Aragão Henrique|_D._Henrique_de_Aragão de|_D._Henrique_de_Aragão Aragão|_D._Henrique_de_Aragão , filho de outro , que , cincoenta annos antes , havia sido o primeiro perturbador de Castella . Começou o anno de 1474 . Henrique IV estava em Segovia , e o alcaide d' esta cidade , Andrés de Cabrera , teve artes de fazer , com que o soberano se avistasse no alcaçar com a infanta D. Isabel . O rei , por sua natural bonhomia , recebeo a irmã , que não solicitou , nem esperou permissão para apresentar-lhe o marido . Era D. Isabel , na phrase de um legado de Sixto IV , sobradamente animosa e discreta , para deixar de conseguir o que desejasse , por isso não tratou de desculpar-se , senão de commover o irmão a ponto de lograr induzi-lo , a que no dia de Reis lhe désse e ao marido uma prova publica de affecto , indo á missa com elles , e voltando com grande comitiva ao alcaçar . Aqui tinha o alcaide farto e delicado almoço . O rei comeo com sua irmã e cunhado , e ao cair da tarde sentio-se tão mal , que foi mister leva-lo em braços para o palacio . Em quanto esteve de cama não cessaram as deligencias , para que declarasse sua irmã por herdeira do throno . Negou-se a isso constantemente . O marquez de Vilhena advogava a causa de D. Joanna , o arcebispo de Toledo a de D. Isabel ; e ao passo que esta infanta se mostrava tranquilla e disposta a sustentar a todo o transe suas pretensões á successão , D. Fernando pelo contrario , não parava em parte alguma , como quem sentia na consciencia um pêso , de que não podia alliviar-se . Depois do almoço de Segovia , Henrique IV nunca mais gozou saude , até que falleceo em 12 de dezembro do anno a que nos estamos referindo . Dois mezes antes tinha morrido o marquez de Vilhena , a quem succedeo seu filho D. Diogo , que assistio com o cardeal Mendoza , o conde de Benavente e o prior de S.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo , fr. João de Macuelo , aos ultimos momentos do rei em Madrid . Apenas o prior confessou e ministrou a Sagrada Eucharistia ao monarcha moribundo , perguntou a este o cardeal : -- V. A. deixa testamento ? -- Deixo -- respondeo Henrique IV . -- O meu secretario Juan de Oviedo o apresentará . -- E quem são os vossos testamenteiros ? -- continuou o cardeal . -- Á excepção do prior de S.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo , ficam nomeados os presentes e o conde de Plasencia . -- E a quem deixa V. A. por herdeira do throno ? -- insistio ainda Mendoza . -- A minha filha D. Joanna -- replicou o monarcha serena e firmemente . Seria grave offensa á memoria de Henrique IV suppôr , que na hora tremenda , em que elle se preparava , conforme a sua fé , para dar conta das suas fraquezas ao Omnipotente , saisse de seus labios uma mentira ! Ainda quentes os restos do mallogrado monarcha , D. Isabel fez-se acclamar , em Segovia , rainha -- Castella e Leão , mandando celebrar um solemne " Te-Deum " , como se acabasse de alcançar o maior triumpho . Seguidamente foi áquelle mesmo alcaçar , onde havia entrado mezes antes em companhia de seu esposo e do rei defunto , sentou-se junto d' aquella mesa , em volta da qual os tres almoçaram , e prezenteou o alcaide Andrés de Cabrera com o mesmo copo de ouro , de que se servira D. Henrique . Parece um sarcasmo ! Em geral os historiadores e chronistas hespanhoes defendem e exalçam a successão de Isabel a Catholica , servindo-se , para combater a legitimidade e o direito da princeza Joanna , dos mesmos pretextos , de que lançaram mão os rebeldes . Não é d' este modo , que deve comprehender-se a missão da historia . Póde o historiador alardear a sua erudição e os seus talentos ; se o seu criterio , porém , não fôr imparcial e desapaixonado , sacrificará a verdade , que é a alma , a belleza da historia , e a honra suprema , de quem a escreve . O facto de ter D. Fernando o Catholico , depois de viuvo , pretendido desposar-se com a princeza D. Joanna , por si só bastaria , para lavar a nodoa , com que macularam a reputação da mulher de D. Henrique . Mas a tumida onda sediciosa não envolveu unicamente os povos de Castella ; saltou a fronteira portugueza , e arrastou na resaca o nosso D. Affonso V , que no conceito de Camões , " NOVO ESCUDEIRO " Após o passamento de Henrique IV , todas as esperanças dos partidarios de D. Joanna firmavam-se no heróe de Arzilla ; e as de D. Isabel no apoio de Aragão principalmente . Estava préstes a travar-se a lucta , em que devia afinal decidir-se da sorte das duas contendoras , collocadas em circumstancias mui diversas . Isabel , ainda em vida de seu irmão , soube preparar-se a tempo ; Joanna era uma creança inexperiente , filha de uma senhora sem prestigio , e sem a necessaria energia para collocar-se á frente do movimento , que se operava a favor da justa causa da princeza de Castella . Tambem a morte veiu surprehender a infeliz viuva no inicio das hostilidades , de sorte que sua filha , orphã prematura de páe e mãe , ficou inteiramente á mercê da versatilidade caracteristica de seus parciaes . Estes , mais por acudir á vingança de seus odios particulares , e ao accrescentamento de seus patrimonios , do que por zelo do bem publico , ou amor de justiça , trataram de comprometter D. Affonso V , para lhes saciar a cobiça . Estava o rei -- Portugal em Extremoz , quando lhe chegou ás mãos o testamento , em que seu cunhado Henrique IV declarava ser a princeza D. Joanna sua filha , e a nomeava herdeira dos reinos -- Castella e Leão , pedindo outrosim a D. Affonso V , que acceitasse a governança d' elles e casasse com a sobrinha . Ouviu D. Affonso sobre o assumpto o parecer de seu filho , bem como o dos grandes e principaes do reino , a quem consultou mais talvez pelo respeito ás praxes estabelecidas , do que resolvido a seguir qualquer conselho , que contrariasse o seu reservado intento . A fim de saber não só quantos e quaes eram os magnates castelhanos legitimistas , como de certificar-se da valia d' elles , enviou a Castella Lopo de Albuquerque , seu camareiro-mór , depois conde de Penamacor . A esse tempo chegava D. Juan de Guzman a Extremoz , onde foi recebido pelo monarcha . Não podia ser mais a proposito esta visita , e D. Affonso folgou muito com ella , dando ao seu hospede cordialissimo agasalho , como naturalmente pediam a lhaneza e affabilidade do rei , que captivava com o seu trato grandes e pequenos . Entregou-lhe o recem-vindo uma carta , em que o duque de Medina Sidonia o apresentava a D. Affonso , garantindo a approvação antecipada a quanto entre ambos ficasse assentado . Terminada a leitura do escripto , começou Guzman por dizer : -- Não ignora voss ' alteza , quanto é lastimoso o estado -- Castella . O reino sem direcção , nem governo , combatido por todos os principios de dissolução , caminha rapidamente para uma ruina tremenda , e nas mãos de voss ' alteza está o poder evita-la . -- São esses os meus desejos ; -- replicou D. Affonso -- mas , como sabeis , a empresa não é facil , por isso careço de inteirar-me da lealdade dos que se propõem pugnar pela justiça e direitos da princeza , minha sobrinha . -- Da parte de meu irmão -- tornou Guzman -- venho eu prestar homenagem a voss ' alteza , a quem elle jura servir em tudo , obrigando-se a auxiliar , tomar e reconhecer por seu legitimo rei e Senhor , se voss ' alteza se desposar com a senhora||_D._Joanna D.|_D._Joanna Joanna|_D._Joanna , e fôr sem demora tomar posse do governo de Castella . -- O duque é digno dos meus louvores , e mais ainda pela fórma , como procede , offerecendo-me occasião de conhecer-vos , para muito vos estimar . -- Mercê a voss ' alteza , meu Senhor . Em breve poderei talvez provar-vos a gratidão do meu animo , onde tambem o seu esforço mais se manifeste . -- Praz-me ouvir-vos , e ver-vos tão deliberado ! D. Juan de Guzman cortejou D. Affonso , e disse-lhe com aprimorados ademanes de cavalleiro : -- Espéro , que meu irmão me confie o comando de dois mil cavallos , que desde já põe ao serviço de voss ' alteza . -- É contingente valioso esse -- observou D. Affonso . A respeito das forças , com que poderemos contar devo em breve ser definitivamente informado pelo marquez de Vilhena . -- Assim o creio . Talvez a demora dos seus esclarecimentos dependesse da resposta de meu irmão . -- Porquê ? -- Á hora da minha partida para Portugal recebeu o duque uma carta de D. Diogo , na qual lhe perguntava com quantos cavallos concorria , pois desejava enviar a voss ' alteza uma nota das tropas castelhanas , com que poderiamos entrar em campanha , e a Luiz XI a da totalidade do exercito . -- E o marquez communicava tambem ao duque o computo dos já inscriptos ? -- Sim , meu Senhor . Anda por dezoito mil cavallos ; devendo , porém , este numero elevar-se , quando constar a entrada de voss ' alteza em Castella , pois muitos dos cavalleiros , que até agora não adheriram , o farão immediatamente . D. Affonso V não poude occultar o jubilo , que lhe causou esta nova de ter já por si em Castella tão importantes forças ; e com a sua habitual familiaridade affirmou a D. Juan de Guzman : -- Eu tenho muita confiança nos cavalleiros castelhanos . Não os ha mais briosos certamente . -- Mercê por elles , meu Senhor . -- Agora aqui vos deixo para serdes recebido pelo principe , que muito gostará de conversar comvosco . É fácil de presumir , sobre que versaria principalmente a palestra , sabendo-se do interesse , que mostrava o principe D. João em seu páe acceitar o papel , que Henrique IV lhe distribuira no testamento . D. Juan de Guzman poucos dias se demorou em Portugal ; foi , porém , o tempo sufficiente para D. Affonso e seu filho conhecerem e apreciarem o pagem , que viera na comitiva . D ' elle fizeram grandes gabos ao fidalgo sevilhano , o qual , mais talvez por alardear philaucias de familia , do que por enaltecer as qualidades do môço , ou por ambas as razões , referiu em resumo : que da Covilhan costumava ir a Sevilha o páe do pagem commerciar e conquistára grandes creditos . Tendo afinal estabelecido a sua residencia n ' aquella cidade , onde era geralmente estimado , accedeu ao pedido , que lhe fez o duque de Medina Sidonia , de deixar-lhe educar o filho , então muito creança ainda , mas dotado já de singular viveza . Como fallecesse o mercador , pouco depois , e já viuvo , ficára o pagem inteiramente confiado ao amparo do duque . Possuia prendas muito estimaveis , poderia em breve ser um excellente cavalleiro , e chamava-se Pero da Covilhan , por causa da sua procedencia . Esta narrativa ainda mais aguçou a D. Affonso e ao principe o appetite de terem o pagem ao seu serviço ; e D. Juan de Guzman já havia reconhecido isso na maneira como lhe fallavam d' elle . Na vespera do seu regresso a Sevilha , perguntou Guzman a Pero da Covilhan : -- Quereis ser pagem do rei -- Portugal ? -- Tudo quanto sou -- respondeu Pero -- devo ao senhor duque , por isso não tenho animo de separar-me d' elle . -- Esperava essa resposta ; -- volveu Guzman -- mas se eu vos pedir , que fiqueis ? -- Obedeço , porque de vossa mercê sómente recebo ordens e não pedidos . -- Meu bom Perico ! -- exclamou affectuosamente Guzman . -- Muito me custa deixar-vos cá ; mas o senhor||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso , que , dentro em pouco será rei -- Castella , mostra desejos de ser vosso amo , e eu tenho-os de o bem servir ; por isso vos-a elle , certo de que meu irmão assentirá ao meu proposito . No dia seguinte saiu D. Juan de Guzman para Sevilha . D. Affonso V dirigiu-se a Evora , levando no seu sequito a Pero da Covilhan , já escudeiro , servido de armas e cavallo , sem embargo de não ter completado ainda vinte annos . O rei antes da partida despachou o seu Arauto Lisboa com cartas para Luiz XI , a quem communicava a resolução que tomára , de receber por esposa a princesa||_D._Joanna D.|_D._Joanna Joanna|_D._Joanna , e de entrar em Castella com um grande exercito , pois a isso o estava convidando a maior parte da grandeza castelhana . E sob o pretexto de recear , que na jornada sobreviesse ao seu Arauto algum accidente ou enfermidade , que o retardasse , escreveu de novo ao rei -- França , insistindo agora principalmente em demonstrar os legitimos e inauferiveis direitos da rainha||_D._Joanna D.|_D._Joanna Joanna|_D._Joanna . Ponderava habilmente , que o não ser d' elles esbulhada , era conveniencia de ambos os monarchas , por quanto , se Fernando se apoderasse de Castella , viria a ser um vizinho formidavel e perigoso , tanto para Portugal , como para França . Procurava assim conciliar com acertada politica as boas graças de Luiz XI , que mui interessado era , em que no throno de Castella estivesse um principe capaz de manter e conservar as antigas confederações e allianças d' esse reino com a França ; mas contra todos em geral e sem excepção . N ' este ponto offerecia-se a difficuldade de ser Portugal alliado da Inglaterra , antiga inimiga da França , e querer Luiz XI , que Portugal ficasse comprehendido no tractado a celebrar com Castella . De certo modo veiu o nosso monarcha a prestar-se ás vistas politicas de Luiz XI ; o que determinou este a promulgar uma carta patente sobre o soccorro , que dava a D. Affonso V , nomeando sire d' Albret commandante de um exercito destinado a invadir Guipuzcoa e Biscaia . Com quanto o duque de Bragança tivesse já dado lealmente por escripto o seu parecer -- que foi archivado a seu pedido , para constar no futuro -- ácerca da entrada do exercito portuguez em Castella , D. Affonso , antes d' este se pôr em marcha , conversou ainda particularmente com o duque a respeito do assumpto . -- Insistis na vossa opinião ? -- perguntou o monarcha ao duque de Bragança . -- Certamente , meu Senhor -- respondeu o duque . -- Ora dizei-me : não deverei eu confiar nas declarações categoricas , que por Lopo de Albuquerque me enviaram os grandes de Castella ? -- Mais acertado fôra , Senhor , desconfiar d' ellas . Reparai bem , que esses mesmos , que vos chamam agora para sustentar os direitos de vossa sobrinha , são os que atraiçoaram a D. Henrique , seu rei natural , depondo-o do governo do reino . -- Assim é . Mas não acreditais , que elles reconhecendo a justiça que assiste a minha sobrinha , queiram resgatar com uma nobre acção seus anteriores desatinos , sem embargo de esperarem tambem receber de mim grandes mercês ? -- O que me parece é , que a obediencia por elles jurada depende unicamente da sua ambição , e vem acompanhada de mais interesse , do que de fidelidade e constancia ; por isso , se a sorte das armas começar a ser desfavoravel a voss ' alteza , depressa abandonarão a vossa bandeira . -- Sei , que como amigo me fallais ; mas a vossa prudencia é agora descabida . Pois os nobres de Castella arriscar-se-iam-por ventura a grandes perigos , offerecendo-me espontaneamente seus serviços , se duvidassem do seu e meu triumpho ? ! -- De tudo são elles capazes , meu Senhor , que os não ha mais voluveis . Mas superiores em poder e em numero são-lhes os mais avisados e prudentes , tendo ao seu lado o povo , que unanimemente acclamou D. Isabel por sua rainha . E uma acclamação , como esta , é vantagem muito grande no começo dos reinados , servindo até de justificar as pretensões mais duvidosas . -- Não ignoro quanto o poder de Castella excede o de Portugal ; mas conto não só com os homens do meu reino , que são muito valentes , senão com outros tantos castelhanos , como de mais nações , que de boa vontade engrossarão o meu exercito . -- E a D. Isabel não virão soccorros da Secilia , tanto em dinheiro , como em armas , navios de guerra , cavallos e provisões ? Aragão dar-lhe&lhes+os ha decerto ; e até a Italia , pois são senhores d' ella , e primos dos reis da Secilia , o rei -- Napoles D. Fernando , e o duque da Calabria , seu filho . -- Sim , estão os meus adversarios bem aparentados ; mas não os temo apesar d' isso , e eu tambem " não nasci das pedras " . Conto igualmente com amigos e parentes ; tambem me não falta dinheiro , " que é mais fiel que todos os parentes e amigos " , e tenho sobretudo a Deus em meu auxilio . -- Não pretendo demover voss ' alteza do proposito , em que está ; permitti , porem , que vos lembre ainda a reciproca aversão de Castella e Portugal , filha de um odio inveterado entre os dois povos ; e o perigo de expôr a felicidade e a paz do vosso reino á inconstancia e capricho dos grandes de Castella . Não olvide tambem voss ' alteza , que , durante a vida de seu cunhado , não queria ouvir fallar do casamento de voss ' alteza com sua sobrinha , e que , acceitando-o agora , obriga o mundo , sempre prompto a desacreditar as acções dos principes , a murmurar e attribuir esta guerra a algum odio reservado ... -- Sem embargo d' isso , estou resolvido a entrar em Castella . -- Acato a deliberação de voss ' alteza , e peço-lhe me conceda licença , para ter em alguns lugares d' esse reino póstas prestes a salvar a real pessoa de voss ' alteza e a minha , se necessario for . A vigorosa argumentação do duque de Bragança , para combater o designio de Affonso V , fez suspeitar o principe D. João , de que fôra inspirada por D. Isabel , proxima parenta do duque ; suspeita essa , que dominou sempre o animo do principe , e foi mais tarde tão fatal á casa de Bragança . D. João oppôz- se apaixonadamente áquelle parecer , por estar convencido de que o senhor -- Villa Viçosa pretendia atalhar , a que D. Affonso V aproveitasse o ensejo propicio , que se lhe offerecia , de dilatar os dominios da corôa , e unificar os reinos da peninsula . Era vivamente applaudido por alguns fidalgos portuguezes , que observavam o invariavel preceito , de não soffrerem os principes contrariedade a seus gostos . Preferiam por isso ser aduladores , especie de péste endemica das côrtes , para a qual se não descobriu ainda remedio . O duque de Bragança havia previsto , quanto ia passar-se em Castella ; e os successos , como veremos , bem mostraram ser mais difficil illudir a prudencia , do que lisonjear um principe . Falleceu o duque , antes de se pôr em marcha o nosso exercito , e seu filho primogenito D. Fernando , duque de Guimarães , que lhe succedeu em suas grandezas , tomou parte na expedição com seus irmãos , vassallos e dinheiro , sem que lhe entibiasse o zelo e a generosidade , com que servia o seu legitimo rei , consideração alguma pelo parentesco , que tão estreitamente o ligava aos principes do partido contrario . Até aqui havia D. Affonso V reinado com muita gloria e auctoridade , sendo alvo da estima e veneração dos principes seus contemporaneos , alguns dos quaes consumiam seus patrimonios e forças em guerras civis e domesticas , em quanto elle as expendia em activar o influxo civilisador da religião catholica , e ampliar a soberania de Portugal , havendo passado tres vezes a Africa , onde seus cavalleiros mais acendraram a fama luzitana , e elle mostrou sempre a alteza de animo , de que era singularmente dotado . A inclinação e gosto , com que se occupava na conquista da Africa pela Barberia , faziam-n* ' o olvidar a grandeza dos descobrimentos do Oceano , iniciados pelo infante||_D._Henrique D.|_D._Henrique Henrique|_D._Henrique seu tio . Quem sabe , porém , se elle continuaria a obra do solitario de Sagres , uma vez que não fosse impellido pela generosa idéa de reparar uma affronta , feita a sua irmã , e de soccorrer uma orphã innocente e desamparada ? E seria sómente esse o pensamento , que o levou a Castella ? Se o leitor , em alguma hora de seu desenfadamento , compulsasse os codices da preciosa collecção pombalina , que possue a Bibliotheca Nacional de Lisboa , em um d' elles encontraria a seguinte lembrança muito instructiva : " Sendo antes destas tres escreturas atras contheudas trautado casamento delRei Dom Affonso o quinto , padre delRei nosso Senhor e sobre elle com a Rainha||_Dona_Isabel Dona|_Dona_Isabel Isabel|_Dona_Isabel , que na era presente reinava , foi com embaixada a Castella o Arcebispo de Lisboa Dom Jorge grandemente , que hoje he Cardeal de titolo de Sam Pedro Marceleni , e está em corte de Roma privado e amado do Papa||_Innocencio Innocencio|_Innocencio , que foi Cardeal malfetano , e asi outros embaixadores , e vindos outros de Castella ao dito Rei sobre o mesmo caso , esta senhora||_Rainha_Dona_Isabel Rainha|_Rainha_Dona_Isabel Dona|_Rainha_Dona_Isabel Isabel|_Rainha_Dona_Isabel se casou com elRei de Cecilia e Principe d'Araguam , filho delRei Dom João d'Araguam , que primeiro foi Rei de Navarra , o qual casamento fez por mão do Arcebispo de Tolledo dom||_Affonso_Carillo Affonso|_Affonso_Carillo Carillo|_Affonso_Carillo , e do Almirante avoo do dito Rei da parte de sua mãi , e fique em memoria que o fez porque o dito " Senhor||_Rei_Dom_Affonso Rei|_Rei_Dom_Affonso Dom|_Rei_Dom_Affonso Affonso|_Rei_Dom_Affonso " a não quiz , querendo ella muito " , e depois elle a quisera e ella como as molheres naturalmente sam vingativas o não quiz quando elle quisera , e folgou de lhe dar competidor e de o anojar , como na verdade foi , " ca desta mesma causa naceo sua entrada em Castella com o titolo de sua sobrinha " , filha delRei Dom Amrique per dar trabalho á Rainha||_Dona_Isabel Dona|_Dona_Isabel Isabel|_Dona_Isabel , e se vingar dela , e como as cousas de sua entrada sobcederão fique do Coronista ao carguo . " Com effeito Henrique IV , annos antes do seu passamento , offerecera , como vimos , a mão de D. Isabel a D. Affonso V ; e desejou igualmente , que o principe D. João casasse com a princeza de Castella , D. Joanna . D. Affonso dilatou a sua resolução , e sómente quando muito instado por seu cunhado , pelo principe seu filho , e pelas diligencias do marquez de Vilhena , mandou uma embaixada pedir a infanta . Os embaixadores esperavam pela resposta na aldeia -- Cientpozuelos , e afinal foram despedidos , dizendo-se-lhes , que se trataria por meios brandos de reduzir a infanta a obedecer a seu irmão . O arcebispo de Toledo cuidou immediatamente de dissuadir D. Isabel d' este enlace , pondo em relêvo a dilação descortêz de D. Affonso , aconselhou-a , a que preferisse Fernando de Aragão , e entendeu , que , para frustrar as idéas dos adversarios , devia fazer secretamente os preparativos , precipitar os tramites do negocio , e de um modo ou outro verificar o matrimonio , para que , realizado e consumado , não désse+esse lugar ao " arrependimento da princeza " . E maior préssa se deu ainda , quando soube , que de Roma havia sido enviada a Bulla de Paulo II , com data de 23 de junho de 1469 , concedendo a dispensa a D. Affonso e D. Isabel . Fabricou então um breve apostolico , datado de 28 de maio de 1464 e com assignatura falsa de Pio II , pois se oppunha á execução do desposorio com Fernando o impedimento da consanguinidade dos nubentes , e não havia outro meio de velar o sigillo e realizar o negocio com promptidão . O atribiliario prelado toledano comprazia-se em forjar caballas e commetter torpezas . " JORNADA INFELIZ " Resolveu D. Affonso V entrar em Castella pela villa -- Arronches , onde mandou reunir o exercito . Antes da marcha , e conforme prescrevia o " Regimento de Guerra " , não só o rei , mas todos os fidalgos , que tinham de acompanha-lo , receberam a Sagrada Eucharistia , indo depois toda a hoste assistir a uma missa solemne , e sendo pelo celebrante benzida a bandeira real mettida na funda . Terminados estes actos , ao alvorecer de um formoso dia de maio -- 1475 , " D. Affonso V Lá foram ajuntar-se com elle o duque de Guimarães , o conde de Marialva , Ruy Pereira e outros fidalgos , os quaes , atalhando pela Beira , chegaram a Piedra Buena , onde acampou todo o exercito , composto de cinco mil e seiscentos cavallos , e quatorze mil infantes . Alli mandou D. Affonso V , que tomou então o supremo commando , chamar á sua tenda o condestavel , o marechal , o ouvidor da hoste e o meirinho , bem como todos os fidalgos , cavalleiros e capitães , a quem recommendou obediencia em tudo aos quatro primeiros ; verificou o numero da gente que havia , e deu as necessarias providencias no tocante á ordenança , que as tropas deviam conservar durante a marcha . Na frente saíu o " adail-mór " com um troço de ginetes , formando a guarda avançada ; após elle o marechal , que era o aposentador e assentador do arraial ; immediatamente o capitão de ginetes , seguido pelo capitão da vanguarda real , e logo a carriagem ; na rectaguarda o rei , e , cobrindo-a , o condestavel , cujo cargo exercia em parte o duque de Guimarães . Formava as alas a fina flor da cavallaria portugueza , e entre a vanguarda e a rectaguarda não mediava mais de um tiro de bésta , a fim de poderem mutuamente soccorrer-se . Ao condestavel , que era o general da milicia , pertencia marchar na vanguarda . Na presente formatura as attribuições e preeminencias d' essa dignidade estavam repartidas por D. João , marquez de Montemór , filho do duque de Bragança D. Fernando I , e por seu irmão o duque de Guimarães . A cavallaria compunha-se de " cavalleiros " e " escudeiros " de geração nobre ; de " lanças " , que os senhores de terras tinham obrigação de dar , acompanhando cada uma dois arqueiros , um pagem e um escudeiro ; e de " cavalleiros " da ordenança dos povos do reino , sendo apurados conforme a contia , que devia possuir cada morador para ter cavallo e armas . Estes sómente eram reputados tropa regular e effectiva , e entravam na conta ou rezenha das praças , que constituiam os corpos chamados bésteria , denominando-se " bésteiros do conto " tanto os de cavallo , como os de pé . Dividia-se a cavallaria em pesada e ligeira ou " á gineta " . Na primeira , o homem era arnezado , e o cavallo bardado e encapacetado . Na segunda , os cavalleiros pelejavam armados de lança e adarga , usando de estribos curtos no apparelho do cavallo . A infanteria constava de " bésteiros " , " espingardeiros " e " piqueiros de pé " . Na bésteria differençavam-se os chamados de " polé " , por trazerem bésta , que se armava com uma roldana d' aquelle nome ; os " bésteiros da camara " , que eram acontiados e fornecidos pelas camaras do reino ; " bésteiros de garrucha " , mais abastados e considerados , que os de polé , armados com bacinete de camal ou de baveira , e tendo bésta com garrucha e solhas para arremessar virotões ; " bésteiros " " de fraldilha " , por levarem uma fralda de couro , que lhes servia como de escudo contra as settas do inimigo ; e " bésteiros do monte " ou caçadores . Notaremos que o numero das armas de arremesso se reduzia cada vez mais , á medida que as de fogo triumphavam da repugnancia , com que foi acolhida , durante muito tempo , a sua invenção , mórmente pela cavallaria , que considerava cobardes similhantes armas , com especialidade as portateis . No reinado de D. João II apparece já o cargo de " anadél-mór dos espingardeiros , concedido a Payo de Freitas , cavalleiro da casa real , cabendo mais tarde ao rei||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel a sua vez de extinguir em 1498 os acontiados e bésteiros , tanto de conto , como da camara , todos os cargos de officiaes móres e pequenos da bésteria , deixando unicamente os bésteiros do monte em alguns lugares da Beira Alta , Alemtejo e Algarve , com um anadél-mór , que era Pedr ' alves , cavalleiro da sua casa , como consta da carta de 29 de maio de 1499 . A segunda dignidade do exercito de D. Affonso V era a de marechal , a quem pertencia , além de outras obrigações e prerogativas : repartir os alojamentos ; executar e fazer cumprir as ordens , que recebia do condestavel ; e julgar as causas civeis e crimes das gentes de guerra , levando um ouvidor comsigo para esse fim . O " alféres-mór levava a " signa " ou " bandeira " , a qual não estendia ou desenrolava sem especial determinação do rei , quando estivessem á vista do inimigo , e costumava ter um " alferes pequeno " , que o substituia . As bandeiras dos fidalgos não podiam tirar-se das fundas e estender-se , sem que o fosse a bandeira real ; podiam , porém , ir sempre estendidos os balsões ou insignias . No guião do rei via-se a divisa que Affonso V tomára por sua mulher D. Isabel , e consistia em um rodizio de moinho com gottas de agua esparzida ao redor , e na legenda " Jámais " . Com oito ou dez pendões pequenos era balizado e divisado o lugar escolhido para acampar . Havia um " aposentador-mór , que de ante-mão preparava os quarteis das tropas , quando estas se mobilisavam . O " capitão de ginetes " era o general de cavallaria ; o " adail-mór " , o capitão dos bésteiros ; e o " coudel-mór commandava escudeiros e homens de armas , que não pertenciam a capitania alguma , e eram repartidos em tróços de vinte por " coudeis " . Desempenhavam o serviço e a guarda do rei vinte cavalleiros ou escudeiros , commandados por um " guarda-mór . Eram escolhidos , e andavam armados de cotas , barretas , braçaes , lanças e espadas ; e no tempo de paz assistiam no paço junto da real camara . Algumas vezes o soberano encarregava tambem da sua guarda o capitão de ginetes , sendo então de duzentos o numero de cavalleiros , que ficavam em tudo considerados como os da camara real . Segundo prescrevia o " Regimento " , os soldados ou gente de guerra deviam trazer em batalha uma divisa , ou sinal d' armas de S.||_Jorge Jorge|_Jorge , larga , e tanto no peito como nas costas , para se distinguirem do inimigo . As trombetas eram os instrumentos empregados nos diversos toques ou chamadas ; mas affirma Ruy de Pina , que n ' esta marcha a Castella já o nosso exercito usou tambem dos atabales . O trem de artilheria com suas bombardas e colubrinas era morósamente conduzido . Estava a cargo de um " védor-mór , apromptas- lo e pô-lo em marcha . Para este fim tinha atribuições amplas , estabelecidas em um " regimento " proprio , de que se lhe passou carta em 20 de abril de 1450 . Requisitava ás auctoridades locaes as bestas , bois , carros e barcos , que julgassse indispensaveis á conducção do trem , sendo depois pago o aluguer ; bem como os bombardeiros , ferreiros , carpinteiros e pedreiros , de que houvesse necessidade o serviço de artilheria , e aos quaes pagava conforme os seus merecimentos . Annexa ao trem ia uma brigada de gastadores , para abrir caminho . O principe D. João acompanhou seu páe até Piedra Buena , e d' aqui regressou a Portugal na mesma occasião , em que o exercito marchou para o norte , indo fazer alto em Plasencia . D ' esta cidade mandou D. Affonso V a Luiz XI uma embaixada , composta de D. Alvaro de Ataide e do licenciado||_João_d'Elvas João|_João_d'Elvas d'Elvas|_João_d'Elvas , a fim de negociar o seu reconhecimento como rei -- Castella , e , conforme os desejos do rei -- França , renovar os antigos tractados , que existiam entre as duas monarchias . Ao mesmo tempo escreveu á cidade -- Salamanca uma carta sobre os direitos de sua sobrinha aos reinos -- Castella e Leão , e mandou publicar um manifesto , no qual se demonstrava a justiça bem fundada , com que eram combatidas as pretensões de Isabel e Fernando de Aragão . Celebrou esponsaes com a princeza D. Joanna , que já o esperava acompanhada dos duques -- Arévalo , marquez de Vilhena e outros magnates , e foi publica e solemnemente proclamado rei , pelo que logo começou de intitular-se rei -- Castella , Leão e Portugal . Isabel e Fernando accrescentaram igualmente aos seus titulos os de reis -- Portugal ; de modo que não parecia luctarem uns pela união iberica e outros contra , senão méramente para dar a presidencia d' essa união áquelle que mais afortunado fosse . D. Affonso V ia passando os dias em ruidosas festas , como se com ellas se formasse o prestigio dos noivos , e nem por sombras suspeitava das diligencias de D. Isabel , em comprar com o ouro e prata das egrejas o favor de muitas povoações , visto serem mui versateis e caros os magnates . Em quanto o seu antagonista se divertia , conquistava ella as sympathias da classe burgueza . Percorria os seus estados . Procurava e enviava soccorros ao exercito , que seu marido commandava , para conter o progresso da invasão . Assegurava a fidelidade vacillante de Leão . Entabolava as intelligencias , que lhe fizeram recobrar a importante cidade da Zamora . Reduzia o numero de inimigos , que tinha na depravada e cupida aristocracia . Lançava finalmente mão do thezouro de Castella , confiado á guarda do célebre Andrés de Contrera , a quem mais tarde brindou com o Marquezado de Moya . Na marcha pela provincia da Extremadura , por contemplação com o duque de Arévalo , senhor -- Plasencia , commetteu D. Affonso V um erro estrategico ; pois , segundo Zurita , " foi de grande remedio para a conservação do estado do rei da Secilia , e seria de grande prejuizo , se a entrada se effectuasse pela Andaluzia , direito a Sevilha " . Seguindo este caminho , penetrava logo no interior do reino , e fazia-se fórte em Madrid , como lhe aconselhou o marquez de Vilhena , que se mostrou descontente por não ser attendido , e tomou este pretexto para se retirar do serviço do rei . Era de esperar , todavia , que esse magnate assim procedesse mais cedo ou mais tarde , por quanto , havendo-se declarado a maior parte de seus vassallos contra elle , e a favor de Isabel , que os corrompeu a peso de ouro , intimidou-o essa arteira tactica , e determinou-o a propalar , que já estava de accordo com D. Fernando e sua mulher . Por grande parte da fronteira portugueza succediam-se a miude as incursões de nossos visinhos . Até o primogenito do duque de Medina Sidonia , o duque||_D._Henrique D.|_D._Henrique Henrique|_D._Henrique , môço mais audacioso do que prudente , fez uma entrada em Portugal , como se fosse em terras de mouros . Este rebentão dos Medina Sidonia era um isabelista sedicioso . Pouco depois da jornada de seu tio a Portugal , rendeu-se ás astucias de D. Isabel , que lhe prometteu intervir pacificamente na eterna contenda com o marquez de Cadiz . E sabe o leitor , quem levou á rainha da Secilia a noticia d' aquella jornada de D. Juan de Guzman ? -- O velho mendigo , que nós vimos em Sevilha a tocar samphona . Era um espião . Para desaffrontar-nos dos repetidos insultos , que soffriamos , mandou o principe D. João descobrir a campanha por homens praticos no paiz , escoltados de alguma cavallaria ; collocar sentinellas occultas nos lugares suspeitos , para avisarem das partidas do inimigo ; cortar as estradas das serras com patrulhas , a fim de embaraçarem os castelhanos , que de ordinario se emboscavam por entre os arvoredos e quebradas do terreno ; e proveu finalmente de remedio a tantos males , cuidando ao mesmo tempo da conservação e defesa do reino . Terminados os festejos em Plasencia , onde Lopo de Albuquerque , para premio de seus serviços , foi agraciado com o titulo de conde de Penamacor , saiu emfim D. Affonso V d' aquella cidade com a rainha , a quem o nosso exercito agora principalmente resguardava . Marchou por Arévalo em direcção a Toro , não sem o inimigo estar bem informado ácerca do movimento do exercito ; o que certamente não convinha , a quem era chamado e levado para soccorrer . O nosso monarcha portou-se sempre com mais bondade , do que prudencia , n ' esta empresa de Castella . E dizemos simplesmente empresa , porque não podemos denominar campanha , ao que não passou de correrias mais ou menos afortunadas , de uma e outra parte , sem que se ferisse uma batalha campal , digna d' esse nome , e em que ficasse lavrada a sentença do pleito . Quasi todos os grandes abandonaram D. Affonso V , deixando-o só no perigo , em que o metteram . Quando elle , porém , foi estabelecer os seus quarteis de inverno em Zamora , apresentou-se-lhe n ' esta cidade o arcebispo de Toledo , o qual sempre inconsequente e inconstante , sendo convidado por Isabel a auxilia-la com os seus homens de armas , respondeu com a soberba peculiar do seu estado e do seu paiz : " que a tinha livrado de fiar , mas havia de manda-la outra vez pegar na roca " . De Zamora escreveu D. Affonso V a seu filho dizendo-lhe que viesse vê-lo , pois muito carecia de conferenciar com elle . Já o principe se tinha posto a caminho , quando o monarcha soube , que os alcaides das duas torres , que defendiam a ponte sobre o Douro , á entrada de Zamora , se tinham vendido ao inimigo , concertando-se em prender ou matar D. João na sua passagem por ella . Immediatamente communicou D. Affonso V a seu filho , então já em Miranda do Douro , o traiçoeiro plano , em virtude do qual não devia avançar . Foi portador do recado o capitão de ginetes da guarda real , Vasco Martins de Sousa Chichorro , que teve de passar o rio a nado , para se furtar á vigilancia do inimigo . Entretanto resolveu Affonso V tomar a ponte á viva força , mas não o poude conseguir . Fazendo-lhe ver os nossos o perigo , que corria , se permanecesse com a rainha em Zamora , pois deviam inspirar-lhe mais temor , que confiança , os habitantes da cidade , recolheu de novo a Toro , onde tanto elle como a rainha foram affectuosamente recebidos pelo alcaide . Fernando de Aragão , que não tinha ousado mostrar-se ao seu adversario , em quanto elle esteve em Zamora , correu logo a occupa-la ; e , como o seu empenho principal era apoderar-se da rainha||_D._Joanna D.|_D._Joanna Joanna|_D._Joanna , acudiu a Toro , tendo tomado á força uma torre nas cercanias , e feito enforcar trinta dos defensores d' ella , para dominar pelo terror a seus inimigos . De cima dos muros de Toro riram-se d' essa façanha , e cobriram de motejos o auctor , o qual aceso em ira , mandou por um rei de armas desafiar D. Affonso V , que não tornou á requesta . Então Fernando foi sitiar o castello de Zamora , tendo inesperadamente encontrado forte resistencia , onde não havia esperança de soccorro ; e D. Affonso V , ao sabe-lo , saiu de Toro em som de guerra , para ir apresentar batalha ao seu competidor . Fez alto em frente da fortaleza , e alli o esperou . Passadas algumas horas , retirava já para Toro , por lhe parecer que Fernando saía a pelejar com elle ; mal , porém o viu fóra da cidade , aguardou-o no campo outra vez em vão . Fernando escreveu em seguida varias cartas , em que blasonava de não ter querido D. Affonso espera-lo e até fugira . Tendo o nosso monarcha immediato conhecimento d' essa falsidade por uma carta de Fernando para Isabel , e que foi apprehendida , mandou por um trombeta denunciar em Zamora o escripto , e fazer publicamente o repto na fórma costumada , sem lograr que lhe dessem resposta . Tinha havido uma comedia de desafios a combate singular entre D. Affonso V e D. Fernando . Para segurança do feito , D. Affonso poria em refens a rainha||_Joanna Joanna|_Joanna , e D. Fernando a rainha||_Isabel Isabel|_Isabel . Fernando não concordou , allegando haver grande desigualdade no penhor . D. Affonso V respondeu , que , se ficasse livre Isabel com sua filha , que já tinha , a contenda não se acabaria , pois de futuro novamente se levantava ; sendo certo que , escusar-se o seu adversario a convir em taes condições , fazendo questão de igualdade das pessoas , era confessar que não queria o combate , como á honra de ambos convinha . Interpôz a sua mediação o cardeal de Castella , D. Pedro de Mendoza ; mas não poude conseguir-se o accôrdo sobre as condições da paz . Nos fins de janeiro do anno seguinte , que era o de 1476 , chegou o principe D. João a Toro , trazendo a seu páe dois mil cavallos , oito mil infantes e dinheiro . Não era demasiado soccorro , para quem tanto carecia de engrossar o seu exercito , pois D. Affonso V fôra abandonado pelos magnates , á medida que a sua causa se tornara cada vez mais duvidosa , permanecendo-lhe fiel apenas o arcebispo de Toledo . Os povos mostravam quasi geralmente grande repugnancia pelo dominio portuguez , como se elle viesse avivar o resentimento das feridas , que no coração do seu orgulhoso exercito abrira o montante do Mestre de Aviz . A perda de Zamora foi um grandissimo desastre , e a sua reconquista , depois da traição da ponte , sómente poderia realizar-se , tomando as torres e conseguindo o descêrco do castello . Mas de que forças numerosas não seria necessario dispôr , para effectuar duas operações , iguaes ambas na difficuldade ! D. Affonso V optou pela primeira e marchou com o principe a sitiar a ponte . -- Para que ? Tomando essa posição de nenhum modo podia soccorrer o castello , onde tremulava ainda a bandeira portugueza , pois tinha de permeio o rio , invadiavel para a cavallaria . Se tentava provocar o inimigo a uma batalha , devia suppôr , que este o não buscaria senão com uma superioridade conhecida , estando , como estava , bem entrincheirado , e tendo cobertas todas as communicações importantes . Seguiu emfim D. Affonso a margem meridional do Douro , saindo pela ponte de Toro ; e , tendo deixado n ' esta cidade o duque de Guimarães e o conde de Villa Real ao serviço da rainha , com a guarnição militar , que pareceu bastante , approximou-se da ponte de Zamora em batalha ordenada , fez alto e assentou o arraial . Ficar pérto do lugar cercado , era não só condição imposta pelo pequeno alcance das bôcas de fogo , mas preceito do " Regimento de guerra " , para fazer maior coração aos combatentes e enfraquecer os sitiados . A ponte estava enfiada pela nossa artilheria . Cruzáram- se os fogos , que romperam logo de sitiantes e sitiados , sendo o damno , que soffriamos superior ao que causavamos . Houve uma pequena trégoa para concertos de paz ; inutilmente , porém , visto não se suggerir meio conciliador , de que não desdenhassem as prosapias dos negociadores d' ella . A sêde de sangue causada pela febre guerreira , em que uns e outros ardiam , tornava-se cada vez mais insaciavel . E comtudo nenhum dos exercitos podia invejar ao outro a sua situação . O nosso , além de luctar com as dificuldades inherentes a uma guerra feita em paiz extranho , tinha mais um inimigo a combater : o rigoroso inverno . Ao passo que as chuvas e neves o iam já desimando , começava a falta de viveres a fazer-se sentir . Consumia-se emfim inutilmente . Decorreram quinze dias . Uma noite chegou ao nosso campo a noticia , de que Fernando de Aragão fizera uma sortida sobre Toro na margem direita do Douro . D. Affonso V levantou apressádamente o cêrco , para atalhar o passo ao inimigo , e foi o primeiro a chegar diante d' aquella cidade , onde mandou recolher o parque e a peonagem . Soube o principe durante a marcha , que Fernando não havia saido de Zamora , mas tinha para o bater , em um lugar chamado Fonte Sabugo , mais de seiscentas lanças , commandadas pelo duque de Villa Formosa , irmão bastardo de Fernando . D. João obliquou á direita , desviando-se assim da direcção , que tomára seu páe , e preparou-se para ir dar de salto n ' aquellas lanças . Havia o nosso exercito acabado de transpôr um monte , e o inimigo , que começava então a subi-lo , mal coroou o alto , descobriu o movimento dos nossos , a ordem com que marchavam , e , para nos deter , mandou picar a nossa rectaguarda com algumas cargas ligeiras de cavallaria . Avisado o principe , e prevenido D. Affonso V , volveu este á rectaguarda ; mas D. João , por lhe parecer mal disposto para a peleja o lugar , onde lhe deram a nova , pois tão apertado era , marchou para a planicie , e ficou esperando , que o inimigo ali descesse mais despejadamente . D. Affonso V , com quanto fosse um tactico habil , não teve tempo de formar as suas reduzidas tropas , de modo que pela boa distribuição d' ellas fosse , quanto possivel , supprida a falta de numero . Repartiu-as em duas grandes fracções . Tomou o commando de uma d' estas , e confiou ao principe o da outra , em que ficou a flor da cavallaria portugueza . Os castelhanos avançaram , tambem divididos em dois corpos : o da direita capitaneado por " D. Alvaro de Mendoza , " vindo na reserva " Fernando de Aragão ; e o da esquerda pelo duque de Alva , formando na rectaguarda o cardeal Mendoza . Desceram a encosta ; mas ainda hesitantes , apesar da vantagem de terem a rectaguarda coberta pelo monte ; de contarem mais umas oitocentas lanças , pois que parte das nossas haviam escoltado a bagagem para Toro ; e de dispôrem finalmente de infanteria mais numerosa . Note-se , que na edade média não se conhecia toda a importancia da arma de infanteria , nem a grande força , que lhe provém da ordem e uniformidade de seus movimentos . Dava-se quasi exclusivo apreço á cavallaria , olvidando-se a maxima dos antigos , prudentemente restaurada pela illustração militar dos nossos tempos , de que a infanteria é o agente principal do combate , ou , como poeticamente dizem alguns , a rainha das batalhas . A própria qualidade dos exercitos , compostos de nobreza valente e déstra , mas pouco subordinada , bem como dos contingentes tumultuarios das cidades , era incompativel com a disciplina e outros requisitos essenciaes da sua organisação . N ' este encontro de Toro , comtudo , os castelhanos empregaram com proveito a sua infanteria ao encetar do prelio ; mas o seu exercito , embora aguerrido , não soube mostrar-se disciplinado . Amanhecera triste e sombrio o dia dois de março de 1476 . Quando os dois exercitos occupavam as suas posições para travar a lucta , devia o sol têr- se posto , e a claridade crepuscular era embaciada por uma chuva miuda e persistente . Duas vezes as hostes affonsinas fizeram rosto ao inimigo , como quem o convidava a pelejar , até que , vendo D. Affonso V a perplexibilidade do adversario , mandou dizer ao principe , que ao signal do combate , dado pelas trombetas , fosse o primeiro a romper . Fez-se o toque . Aos gritos de guerra , " por S.||_Jorge Jorge|_Jorge e S.||_Christovão Christovão|_Christovão " , invéste D. João com a sua hoste . Oppõe- se-lhe D. Alvaro de Mendoza , clamando com os seus por " S.||_Thiago Thiago|_Thiago e S.||_Lazaro Lazaro|_Lazaro " . Os castelhanos avançaram com denodo sobre a hoste do principe , mas obrigou-os a recuar uma descarga dada pelos espingardeiros do arcebispo d' Evora D. Garcia de Menezes . Aproveitando a hesitação , em que ficou o inimigo , a nossa cavallaria , como se fôra uma forte muralha de lanças , animada de extrema velocidade , carregou impetuosa , irresistivel , sobre as fileiras dos castelhanos , esmagando quantos tentaram quebrar-lhe o rompante . Aos primeiros golpes , esse punhado de bravos , com o principe real á sua frente , paralysou , desorganisou , pôz na mais completa debandada os melhores alfarazes de Castella . Ainda superior á carnificina , que em breve lapso juncou de cadaveres o terreno , foi o effeito moral d' esse choque violentissimo , que percutiu até a reserva do inimigo . E por isso Fernando de Aragão -- um moço de vinte e seis annos ! -- que , para não expor a vida á contingencia de um golpe do seu adversario , se collocára a respeitosa distancia , mal viu approximar-se a hoste victoriosa do principe , fugiu a unhas de cavallo para Zamora , sem tempo de reparar , se com effeito lhe seguiam a pista , e salvando-o a sua boa fortuna de ser apanhado por alguns dos nossos cavalleiros , que correram sobre elle . Na ala direita D. Affonso V não póde cruzar tambem a sua espada com a do rei da Secilia , porque a não vê na sua frente ; mas não lhe soffre o animo tê-la embainhada , e lança-se no combate . Ribombam as descargas das espingardas , contendo os impetos da cavallaria ; rechinam as settas , atravessando os ares ; estoiram as lanças arremessadas com furia ; retingem-se de sangue as espadas nos crébros golpes ; relincham os ginetes , discorrendo pela campanha , alliviados do peso dos cavalleiros , que cairam ou mortos ou agonisantes ; resoam , similhando rugidos de feras , as vozes dos combatentes ; soltam gritos de dôr cruciantissima os feridos , sem que possa acudir-lhes a caridade , e servindo antes de estimulos para a vingança ; é emfim renhida , desesperada , horrivel a refréga . Não cessa do ardor , com que começou de accender-se , e a victoria duvida , se ha de inclinar-se á parte da multidão , ou á do esforço . Corre o Cardeal Mendoza a reforçar o duque de Alva , e o arcebispo de Toledo em auxilio de D. Affonso V. Oitenta espingardeiros castelhanos a cavallo -- o que para a nossa hoste era uma novidade -- dão uma descarga , que fez hesitar um momento a cavallaria portugueza ; mas , apesar de ter o adversario empregado aquelle ultimo recurso , sem duvida reservado para o momento decisivo , logo recrudesceu mais viva e encarniçada a peleja . Partem-se as lanças , e as espadas são agora as armas dos combatentes no ultimo choque . D. Affonso V , sereno , indifferente ao perigo , parecia ter assentado expôr ás contingencias d' este dia a decisão da causa , que se impugnava . Era pois a morte ou a gloria o escopo unico d' aquelle Quiz arremessar-se ao meio das fileiras contrarias , mas os cavalleiros portuguezes e castelhanos , que junto d' elle estavam , percebendo-lhe a intenção ao vê-lo preparar o corcel , detiveram-n* ' o ; e , fazendo-lhe vêr a superioridade numerica do inimigo a par do denodo , com que nos pleiteava o campo , apertaram-n* ' o com o seu conselho mais fortemente , do que as espadas castelhanas , obrigando-o a metter a sua na bainha . Como entre D. Affonso e Toro muita gente contraria envolvia já parte dos nossos , não sem grande risco saíu o monarcha do campo , e foi acolher-se a Castro Nunho , fortaleza , que lhe era fiel , e não ficava mui distante : acertada resolução esta , pois facilmente d' alli voltaria a Toro , que não era provavel o inimigo sitiasse n ' aquella noite ; e poderia entretanto planear com Pedro de Mendanha , alcaide de Castro Nunho , a desforra do ultimo conflicto . Mendanha era poderoso . Pagava soldo a trezentos cavalleiros ; recebia das cidades de Burgos , Avila , Salamanca , Segovia , Valladolid e Medina certa quantia , para que lhes não fizesse guerra , e todos os grandes da sua visinhança tinham o cuidado de manter e conservar as mais amigaveis relações com elle . Por isso D. Affonso V , na conjunctura difficil , em que se encontrava , praticou um acto de boa politica , indo ter com um homem de tanto valor , e que lhe era dedicado . É claro , que nem pela cabeça lhe passou a idéa , de que o principe real fosse derrotado , tal era a confiança que depositava no valor de seu filho e no dos companheiros , que lhe deu . Ambos os reis , cuja lite se debatia , haviam pois abandonado o campo , um porque fugiu , o outro porque o não deixaram empenhar-se na refrega . Ficou victorioso d' elle o principe D. João , que mandou recolher os feridos e os prisioneiros , sendo d' este numero o conde de Alva de Liste , tio de Fernando de Aragão . Da hoste de D. Affonso V tinham fugido muitos para Toro ; mas , porque estava fechada a porta da ponte , e sómente se abriu mais tarde para entrar o principe , vadearam o rio , pagando quasi todos com a vida a sua temeridade , pois que elle ia de monte a monte . Os golpes do ferro inimigo não victimáram tantos , como a corrente impetuosa do Douro . Foram outros , mais prudentes , unir-se ao principe , e entre esses o escudeiro Gonçalo Pires , levando a bandeira real , que por instantes tremulára na mão de um castelhano . Era o estandarte das quinas , o symbolo glorioso da nossa nacionalidade , que tinha sido confiado ao alferes-pequeno Duarte de Almeida , e lhe arrebataram depois de uma lucta titanica . Singulares contrastes ! Encontrámos a victoria , onde fomos em menor numero . Padecemos a injuria , onde dois dos nossos praticaram façanhas , que por si só bastariam para immortalisar o valor portuguez . Uma d' ellas deu a Gonçalo Pires o appellido de " Bandeira " ; a outra , o cognome de " Decepado " a " Duarte de Almeida . Assim descreve Ignacio Pizarro os dois gloriosos feitos . O de Duarte de Almeida é sublime de heroismo ! Com feridas tão rasgadas , que cada uma era larga porta para sair a vida , e sobrada para entrar a morte , o honrado cavalleiro resiste sempre ! Cáe emfim ; mas não quer a Providencia , que por aquellas feridas se esgote sangue tão generoso , e sirvam antes de bôcas , para affirmar esforço tão desusado . A bravura de Gonçalo Pires foi igualmente inexcedivel , pois " per força e como homem de bom coraçam a tomou a hun Souto-Mayor Castelhano que a levava " ( a bandeira ) , " e o prendeo sobre sua menagem " , abrindo a golpes de espada caminho por entre os cavalleiros , que já iam correndo na companhia d' aquelle em direcção a Zamora . Tinha o principe resolvido não levantar o arraial , senão passados tres dias , ou aguardar a manhã para de novo accommetter o inimigo , por isso mandou accender fogueiras , e tocar trombetas e atabales . O duque de Alva estava indeciso , e todavia era mister tomar uma deliberação . Entretanto um pequeno grupo de biscainhos , pertencentes á peonagem mercenaria do exercito de Fernando de Aragão , conversava sentado sobre umas pedras , descançando ao mesmo tempo das fadigas do dia . -- Cães -- portuguezes ! -- grunhia um . -- Por causa d' elles fizeram de nós morcêgos ! ... -- Eu estou com uma sêde , que de um trago enxugava agora a maior adéga de Malaga ! -- tornou no mesmo dialecto um cavalleiro , que se approximava , levando o cavallo á mão . -- Se os mouros consentissem ... sempre é bom accrescentar -- observou o outro , sem nenhuma curiosidade de saber , quem era o seu interlocutor , pois lhe fallava no seu dialecto . -- Pêrros de Mafoma , que nos não vemos livres d' aquelles malditos ! -- exclamou o cavalleiro . -- Mas , Virgem||_Santissima Santissima|_Santissima ! o que estaremos nós aqui a fazer ? -- perguntou o primeiro , como se uma idéa fixa estivesse a verrumar-lhe o entendimento . -- Á espera naturalmente , que nos mandem recolher a Zamora ... -- Já não é sem tempo . Para lá fugiu o rei , logo no principio da escaramuça . -- Fugiu , não direi ... Retirou ... -- Pois seja assim ; mas a rainha é mais homem do que elle . Não saia do campo sem dar meia duzia de cutiladas . Ella sim ! ... Ahi está o da " Beltraneja " , que não desmaiou tão depréssa . É verdade , que depois tambem se foi safando . Vi-o eu por aqui fóra a mata cavallo . Na direcção , que levava , ia talvez para Castro Nunho , que tem voz por elle . -- Sim , é o mais certo ; -- replicou em tom indifferente o cavalleiro . Um signal de trombetas no campo castelhano pôz termo a este dialogo . Os biscainhos partiram a incorporar-se na sua hoste ; o cavalleiro montou a cavallo , e saíu a galópe para os lados de Castro Nunho . Acabaram as hesitações do duque de Alva . Ao ver , que os nossos se concentravam no acampamento sem apparencia de receosos , valeu-se do silencio e sombras da noite , e retirou com o exercito para Zamora . D. João permaneceu ainda mais tres horas no campo , tomando-as pelos tres dias destinados a celebrar a victoria , conforme o conselho do arcebispo de Toledo ; dividiu depois a sua hoste em duas fracções , uma com a bandeira de D. Affonso V , outra com a sua , ambas desfraldadas ; e , sem mostrar préssa na marcha , como quem ia triumphante , recolheu a Toro . Foi recebido com affectadas manifestações de jubilo , pois maior era o interesse de todos pela vida de D. Affonso V , cuja sorte se ignorava , do que pelo rezultado do encontro dos exercitos belligerantes no campo de Pelayo Gonçalo . E tal ponto attingiu a consternação , abafada pelo receio de melindrar o principe envaescido do seu triumpho , que o duque de Guimarães , com a sua liberdade e franqueza habituaes , rompeu o silencio . -- Não merece -- exclamou alto e bom som -- o nome de cavalleiro , quem abandona o seu rei , e o não segue na vida ou na morte ! E , dirigindo-se unicamente ao principe , perguntou-lhe : -- o que fizestes d' el-rei , vosso Senhor e páe ? Proferidas estas palavras , que nunca mais esqueceram a D. João , appareceu Pero da Covilhan , e disse ao principe : -- El-rei , vosso Páe , e meu Senhor , manda-vos participar , que vivo e são está , por isso sejais tranquillo . -- E onde está el-rei , nosso senhor ? ! ... -- perguntou com alvoroço o principe real . -- Em Castro Nunho . -- Quem nos trouxe tão bom recado ? -- El-rei , meu Senhor , a mim proprio o deu . A nova espalhou-se logo por toda a cidade . Foi celebrada com toques de trombetas e atabales , repiques de sinos , e outras demonstrações de alegria , feitas pela classe popular . E sem demóra igualmente mandou o principe sair para Castro Nunho uma guarda de honra composta de numerosos cavalleiros , a fim de acompanharem D. Affonso V a Toro . Entretanto carecia Pero|_Covilhan da||_Covilhan Covilhan|_Covilhan de explicar a sua presença junto do rei , pois , desde o cêrco da ponte de Zamora , militava na hoste do principe , havendo-se distinguido pela sua destreza e bravura na gloriosa refrega , em que conquistou novo brilho a intrepida cavallaria portugueza . Preveniu o principe a explicação , perguntando ao moço escudeiro : -- Como soubéstes , que el-rei , meu páe , estava em Castro Nunho ? -- Facilmente , meu senhor -- respondeu Pero da Covilhan com a maior naturalidade . -- Quando caíu a noite , comecei de inquietar-me , por vêr , que em nosso campo não havia de el-rei novas , nem mandados . Ancioso de buscar sua alteza , era dominado por um triste presentimento . As trévas da noite , e a confusão que reinava no campo contrario , poderiam talvez favorecer quaesquer pesquizas , que eu tentasse . Lembrei-me , de que me auxiliaria a facilidade , com que fallo os dialectos de Hespanha , e fui á ventura . -- Esquecestes , porém , que vos arriscaveis a perder a liberdade ou a vida -- atalhou o principe . -- Não me occorreu , com effeito , a idéa d' esse perigo , pois a que imperava unicamente no meu animo era a de servir bem a el-rei e a voss ' alteza . -- A poucos passos do nosso acampamento apeei-me , e , quando caminhava na direcção da margem do rio , ouvi fallar uns biscainhos . Abeirei-me d' elles . Eram bésteiros do inimigo , que estavam em descanço . Quasi não repararam em mim . Tomaram-me naturalmente por seu convisinho , e , trocando comigo algumas palavras , um d' elles affirmou ter el-rei retirado do campo para os lados de Castro Nunho . Corri logo a verificar isto , e lá entrei hoje ao romper d' alva . O resto sabe já voss ' alteza . Agora , meu Senhor , peço-vos perdão de me ter afastado do acampamento sem licença de voss ' alteza . -- Perdoado estais , que digno de louvor é o acto por vós praticado ; e , se alguma culpa houvesseis , resgatada fôra já pelo valor e brio , com que pelejastes a meu lado . -- Beijo as mãos de voss ' alteza por mais esta mercê ... Não olvidaram D. Affonso V e seu filho a lealdade e dedicação de Pero da Covilhan , como veremos . O principe , depois de conferenciar com seu páe em Toro ácerca da desgraçada guerra , para que tanto contribuira com o seu conselho , regressou a Portugal ; e o rei cavalleiro proseguiu na sua aventura , sem pensar que o revéz de Toro fôra o occaso de sua gloria guerreira . Fernando em Cantalapiedra , e Isabel no caminho de Medina , lhe-caido nas mãos , se a fortuna , para elles tão prodiga , não fosse para o seu competidor tão adversa . Desanimou um pouco , emfim , aquelle que nos sertões da Africa nunca temera a morte . Uma vez unicamente havia desembainhado a sua espada na peninsula , para ser instrumento de uma tragedia ominosa . Era chegado o momento da expiação . Appareceu-lhe talvez a sombra do infante||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro , a jurar vingança eterna do sangue derramado em Alfarrobeira . " Justiça da Providencia ! " ADVENTO DE+A UNIDADE HESPANHOLA " Estava D. Affonso V com desalento igual á falta de confiança , que tinha nos meios , de que dispunha , para accelerar o suspirado exito da sua temeraria empreza , quando chegaram a Toro D. Alvaro de Ataide e o Licenciado||_João_d'Elvas João|_João_d'Elvas d'Elvas|_João_d'Elvas , que vinham communicar-lhe o resultado da sua missão junto de Luiz XI . Era grande o contentamento dos embaixadores , por terem a convicção , de que não fôra illudida por vãs promessas a sua boa fé ao tratarem com o rei da França . Não lhes occorria , que os principes não contráem , nem conservam amisades com sacrificio de seus interesses ; e talvez ignorassem , que Luiz XI tinha por maxima : " quem não sabe dissimular , não sabe reinar " ; e que , por elle ser assás astucioso e perfido , lhe chamavam " a raposa " . Lograram effectivamente celebrar , aos 8 de setembro de 1475 , o tratado de liga offensiva , no qual a França se comprometteu a coadjuvar Portugal na conquista dos reinos -- Castella e Leão ; e obtiveram a confirmação e renovação dos antigos tratados de paz e amisade entre estes dois ultimos reinos e o da França , por Luiz XI de uma parte , e da outra por D. Affonso V , rei -- Castella . O nosso monarcha , porém , receoso , de que o seu alliado não cumprisse as estipulações dos tratados , por haverem augmentado para os reis da Secilia as probabilidades do triumpho , resolveu passar a França , e negociar pessoalmente com Luiz XI , a quem se offereceria por medianeiro da paz com o duque de Borgonha . Regressou , pois , a Portugal , com sua sobrinha . O principe , seu filho , pôz o maior cuidado em dissuadi-lo do proposito que trazia ; mas a ambição cegava-lhe o entendimento , e a esperança de realizar os seus desejos , de vingar-se da affronta de Toro , não dava lugar ao receio de arriscar mais uma vez a sua reputação . Querendo passar mais além , do que lhe permittia a fortuna , saíu para França o allucinado rei , depois de ter embarcado no porto -- Lisboa , em uma urca , na conserva da qual iam quinze navios com dois mil e duzentos homens . A esquadra fez-se á vela com destino a Marselha ; mas por causa do tempo foi arribar a Collioure , onde D. Affonso , depois de receber os cumprimentos , que Luiz XI lhe enviára por um official de sua casa , com ordem de dispôr tudo para a jornada do regio hospede , despediu os navios . Ao seu serviço ficou unicamente o pessoal indispensavel , de que fazia parte Pero da Covilhan , seu escudeiro predilecto depois do conflicto de Toro . Do porto -- Collioure pôz-se o rei -- Portugal a caminho de Perpignan , e teve aqui a mais pomposa recepção official , levando-se a homenagem ao requinte de abrirem todos os carceres e soltarem os presos lá retidos . De Perpignan expediu a Luiz XI um fidalgo da sua côrte , encarregado de notificar-lhe a sua chegada , e de pedir-lhe a designação do sitio , onde deviam conferenciar . Como a escolha d' este recahisse em Tours , D. Affonso V , seguiu por Narbonne , Montpellier e Nimes . Aqui deixou a estrada ordinaria , a fim de tomar para Lyon por Pont-Saint-Esprit , onde lhe veiu ao encontro o duque de Bourbon , acompanhado de numeroso cortejo , e antecipando-se a uma deputação , que por parte de Luiz XI déra , passados dias , as boas vindas em Roanne ao augusto viajante . Dirigiu-se depois a Bruges . N ' esta cidade demorou-se algum tempo , fazendo-lhe companhia novos enviados do rei -- França , que o entretiveram a mostrar-lhe fortalezas , apraziveis estancias , e , entre outras cousas , um rico e antigo livro na bibliotheca de uma abbadia de benidictinos . Era o " Lancelote do Lago " , romance de cavallaria escripto em latim , na leitura do qual os paladinos dos seculos XII e XIII aprendiam com enthusiasmo a imitar algum dos fabulosos cavalleiros da " Tavola Redonda " . Poderia inflammar tambem o espirito aventureiro de D. Affonso V , a quem o velhaco de Luiz XI por si , ou por intermedio de seus agentes , procurava divertir do proposito , que o levava a França , e por isso lhe prodigalisava todo o genero de distracções . Chegou o monarcha portuguez a Tours . Á entrada foram-lhe entregues as chaves da cidade pelos regedores d' ella , os quaes incorporados aos dignitarios da côrte franceza , lhe fizeram uma recepção solemne , e o seguiram até os aposentos , que lhe estavam destinados . Unicamente cinco dias depois saiu Luiz XI do castello de Plessis-lez-Tours , onde residia , e foi encontrar-se com o seu hospede . Sabendo D. Affonso V , que elle o buscava , quiz descer á rua , ou ao menos ir até á escada do palacio recebe-lo , o que lhe foi impedido por dois principes , que Luiz XI havia mandado adeante para regularem o ceremonial da entrevista . A meio de uma sala avistaram-se os dois soberanos . O rei -- França " vinha com um só barrete na cabeça , tendo já d' ella tirado um chapéo e duas grandes carapuças , e trazia solto um saio curto de mau panno , e á cinta uma espada d' armas muito comprida , e umas botas calçadas , e nos pés as esporas do mesmo jaez da espada , e ao pescoço uma béca de chamalóte amarello , forrada de cordeiras brancas muito grosseiras , e suas calças brancas entretalhadas de muitas côres . " E ambos os reis com barretes nas mãos se abraçaram , inclinados os joelhos muito baixos . " E tendo o rei -- França assim abraçado o monarcha portuguez , com os olhos no Céo disse , que dava muitas graças a Nossa Senhora e a S.||_Martinho Martinho|_Martinho , porque a um tão pobre homem , como elle era , fizeram tanta mercê , que a seu reino e casa o viesse vêr e visitar um tamanho rei , que elle sempre desejava tanto vêr , e ter por irmão e amigo , e que porém elle não crêsse , que era vindo em reino estranho , mas como proprio seu , porque assim se faria n ' elle todo seu prazer e serviço , como nos de Portugal . " E com isto acabado se recolheram á camara , á entrada da qual , sobre quem se cobriria primeiro , houve entre ambos grandes e louvados debates . " Que farçante este senhor||_Luiz Luiz|_Luiz XI ! Fez-se esperado , para afinal apresentar-se humilde até á repugnancia ! Depois de conferenciar com esse frascario , D. Affonso V partiu de Tours para Paris , tendo sido antes enviados a Roma embaixadores de ambos os monarchas , com o fim de solicitarem dispensas para o de Portugal poder casar com sua sobrinha , a princeza D. Joanna . Pouco se demorou em Paris . Aconselhado por Luiz XI , dirigiu-se , no coração do inverno , á baixa Allemanha , a fim de se avistar com o duque de Borgonha , então empenhado na tomada de Nancy ao duque de Lorena , com quem estava em guerra . Sobre um rio coberto de gêlo abraçaram-se os dois soberanos , e alli mesmo disse D. Affonso a Carlos o Temerario , que o seu proposito era congraça-lo com o duque de Lorena , pois da paz entre ambos resultaria , que Luiz XI , por se vêr desobrigado de mandar vigiar a fronteira franceza , mais facilmente apoiaria a justa causa de D. Joanna , e poderia uma boa parte das tropas borgonhezas concorrer tambem para o bom exito da empreza de Castella . O filho de Philippe o Bom , ao vêr a ingenuidade com que seu primo lhe apresentava os seus projectos , respondeu-lhe indignado , que Luiz XI era homem sem virtude e sem fé , e o andava illudindo , pois ao passo que o aconselhára a vir a Nancy , nas suas costas mandava tropas numerosas a soccorrer o duque de Lorena . E terminou Carlos de Borgonha por convidar o primo a tomar parte na defesa de Pont-à-Mousson contra o duque de Lorena , a quem esperaria deante de Nancy para lhe dar batalha . Ante esta pratica , excitando á guerra , quem levava o animo inclinado á concordia , houve D. Affonso V por mais acertado voltar para Paris , e assim fez . Carlos de Borgonha foi morto em combate . Estava Luiz XI livre do seu inimigo mais implacavel , e , como o abutre , que paira no alto a vigiar a presa , até o momento de se despenhar e lançar-lhe as garras , caíu logo sobre o ducado , e apoderou-se das cidades -- Somme e de Borgonha propriamente dita . O sagaz , mas perverso filho de Carlos VII , tinha agora mais facilidade de resolver o problema , que sobre todos o preoccupava : a unificação da França . Lançando mão de todos os meios , mórmente dos diplomaticos , no intuito de annexar a Borgonha ao territorio francez , foi residir em Arras , a fim de seguir de perto os passos de seus agentes . Entretanto regressavam de Roma a Paris os embaixadores com a resposta de Sixto IV . Na côrte pontificia havia-se aberto uma grande campanha diplomatica , adversa ao casamento de D. Joanna . Ao passo que o rei -- Napoles , e outros principes , conspiravam a favor dos reis da Secilia , a curia duvidava das promessas feitas pelo rei -- França ao de Portugal ; mas , parecendo-lhe , que a morte do duque de Borgonha deixava Luiz XI em melhores circumstancias de honrar a sua palavra , resolveu sagazmente a questão , concedendo a dispensa no caso de Luiz XI se decidir formalmente a prestar auxilio ao rei -- Portugal , e fazendo assim o soberano francez supremo juiz da demanda . Attendeu os delegados -- Luiz XI , deixando implicitamente insinuado aos reis da Secilia , que tratassem com essa potencia ; e não os delegados -- Affonso V , por quanto a estes pôz uma condição , cujo cumprimento confiava ás diligencias do seu soberano , que era o mais interessado no negocio . Sempre habil e cautelosa a curia romana . A Luiz XI mandou logo D. Affonso V dizer , que desejava conferenciar com elle a respeito da resposta mandada pelo papa ; e concordou-se por isso no encontro dos dois monarchas em Arras . Realisou-se a entrevista , ficando Luiz XI de participar ao rei -- Portugal a sua resolução definitiva . Esperou este alguns dias em uma abbadia de conegos regrantes , que fôra designada para seu alojamento , e recebeu emfim uma resposta , que o esclareceu ácerca da doblez e politica tortuosa de Luiz XI . Voltou o desilludido monarcha seus olhos para Portugal , e seus passos para Rouen . Aqui se deteve grande parte do verão na esperança de embarcar-se , até que desceu a Honfleur , onde se apparelhavam os navios para o transportar e á sua comitiva . N ' este porto permaneceu ainda quasi todo o mez de setembro . Sempre merencorio e sombrio , entregava-se de preferencia a exercicios religiosos dispendendo tambem parte do tempo em escrever , e com o maior cuidado logo guardava o escripto dentro de um cofre , cuja chave trazia comsigo . Um dia chamou Pero da Covilhan , e disse-lhe : -- Vou fazer uma longa viagem , e muito me prazia levar-vos commigo ; mas tenho por melhor deixar-vos ao serviço do principe , que muito vos quér tambem . Ao que Pero da Covilhan respondeu : -- Que magua immensa o meu coração sente ao ouvir voss ' alteza ! É dever meu cumprir as ordens , que me dais ; mas , se no vosso real desagrado ainda não cahi , concedei-me a grande mercê de não regressar a Portugal , sem que vá com o meu rei e Senhor . -- Não . E vos-hei um segredo , que vos explicará a minha recusa , dando-me algum allivio o desabafo . -- Quando enviuvei , prometti deixar o mundo , e metter-me em religião , logo que o principe , meu filho , estivesse em edade de reger o reino . Entretanto surprehendeu-me a empreza de Castella , e , presumindo eu , que era servir a Deus e da Sua vontade , defender a justa causa da princeza , minha sobrinha , procedi , como todos sabem . Fiado nas promessas d' el-rei -- França ... vim a esta nação , onde tenho esperado , que os successos das guerras , movidas por sua alteza , lhe permittissem dar-me afinal o soccorro promettido ... Vejo infelizmente , que taes guerras cada vez mais se accendem , e os meus negocios cada vez mais se enredam , por isso entendi , que Deus me avisava de haver chegado o tempo de cumprir o meu voto . E , como creio que os principes , que vivem e morrem na regencia de seus estados , com difficuldade se salvam , unicamente me pésa , não ter tomado a resolução de deixar o mundo e as suas pompas , quando Portugal estava em paz , pois de mim dava melhor exemplo , e excusava as censuras de muitos , que não deixarão de attribuir á falta de valor , e talvez a outras causas pouco honrosas , desistir eu da empreza começada . Sirvam esses mal fundados juizos de desconto a meus peccados . Estou deliberado a resignar a corôa , e a partir para a Terra Santa , onde purificarei as minhas crenças , e passarei o resto de meus dias em uma clausura . pero da Covilhan caíu de joelhos aos pés de D. Affonso , e exclamou ! -- Que fazeis , Senhor ! ... Pois tendes animo de deixar na orphandade tantos filhos vossos , que mais não são todos os portuguezes ? ! ... Se não quizerdes proseguir na empreza de Castella , não podereis ainda , uma e muitas vezes , mostrar ao mundo quanto valeis , combatendo novamente os infieis , e alargando os dominios de além-mar ? ! ... E não será isto porventura entregar-vos ao serviço de Deus , com proveito e gloria de voss ' alteza e da nossa patria querida ? ! ... D. Affonso V obrigou o môço escudeiro a levantar-se , e tornou-lhe muito impressionado : -- Cumpro a vontade de Deus ! ... Ao principe ficam bem entregues os destinos da nação , e de certo elle voltará ás terras da Africa , onde o barbaro mouro experimentou já a rija tempera da sua espada . Vós lá sereis tambem a confirmar a destreza e bravura , com que pelejastes nos plainos de Toro . Crêde , que o vosso novo rei vos terá sempre em grande estima , porque lh'o mereceis , e continuareis a merecer , e nem eu , nem elle , nos esquecemos do perigo , a que vos exposéstes , para ir a buscar-me a Castro Nunho . Ao pronunciar as ultimas palavras , o monarcha abraçou Pero da Covilhan , que seguidamente lhe beijou a mão , e saíu da sua presença muito commovido . Com effeito , Pero da Covilhan podia ser util ao desfallecido rei na sua peregrinação e exilio , já porque era mui intelligente , já porque fallava com facilidade o arabe e outras linguas ; mas D. Affonso V , despojado de grandezas , não tinha com que galardoar os merecimentos do moço escudeiro , por isso preferiu deixa-lo ao serviço do principe . Antes do alvorecer do dia seguinte , que era o 24 de setembro de 1477 , o rei saíu a cavallo , como costumava , acompanhado por dois moços da camara e dois de estribeira , depois de ter ordenado ao seu capellão , que o fosse esperar a meia legoa de distancia , em um sitio , onde effectivamente se encontraram . D ' aqui fez voltar para Honfleur um dos moços de estribeira com a chave do cofre , que continha os seus escriptos , e com ordem de serem lidos , por quem da sua comitiva estivesse presente . Entretanto já os portuguezes , e M. de Lebrét , que por ordem de Luiz XI acompanhava D. Affonso V para o servir , haviam notado , que elle tardava em regressar do seu passeio . pero da Covilhan , que conhecia os designios do rei , presumia unicamente , que elle os tivesse posto em pratica ; mas a ninguem revelava esse pensamento . Conservava-se triste , como quem compartilhava da geral inquietação , sem gesto ou palavra , que o trahissem . Chegou emfim o moço de estribeira . Abriu-se o cofre , e n ' elle foram encontradas cartas escriptas por D. Affonso V. Era uma para Luiz XI , na qual pedia desculpa do incommodo , que lhe causara ; recommendava-lhe os portuguezes , que deixava em França ; e expunha-lhe os fundamentos , que o determinavam ao ingresso na vida monastica . Outra para o principe D. João , dando-lhe conta da sua malfadada viagem , e ordenando-lhe com paternal affecto e justificada instancia , que se fizesse acclamar immediatamente rei . Outra , participando ao reino a sua abdicação , e determinando-lhe obediencia ao principe real , como o proprio e verdadeiro monarcha . E finalmente outra aos da sua comitiva , da qual nomeava chefe , para todos os effeitos , o conde de Faro . Finda a leitura de todas , foram as destinadas a Portugal remettidas logo ao principe por via do seu camarista Antão de Faria , que tão celebre se tornou mais tarde no seu reinado , e que tinha vindo a França tratar de negocios do Estado com D. Affonso V. Em virtude d' estas cartas , foi D. João acclamado rei -- Portugal , no alpendre da egreja de S. Francisco em Santarem , aos 10 de novembro de 1477 . Tendo-se limitado o moço de estribeira a cumprir as ordens , que trouxera , e não sabendo prestar informação alguma ácerca do destino , que levaria o regio fugitivo , atrigáram- se os portuguezes em busca-lo por toda a parte . M. de Lebrét , por seu turno , empregou emissarios com igual fim , depois de communicar a Luiz XI , quanto se passava , e de dirigir graves accusações aos portuguezes , pela negligencia com que serviam , e acompanhavam o seu soberano . Decorridos poucos dias , foi descoberto o paradoiro do monarcha por um cavalleiro normando , chamado Roberto Le Boeuf . Era em uma pequena aldeia da Normandia . D. Affonso V estava a dormir , e Le Boeuf acordou-o , para melhor o reconhecer . Não dissimulou o rei a sua identidade . O cavalleiro fez logo reunir a gente do lugar , para que vigiassem a regia habitação , e não consentissem a pessoa alguma o sair d' ella . Expediu mensageiros a Luiz XI , aos portuguezes , que estavam em Honfleur , e a M. de Lebrét , participando a todos aquella nova . E , finalmente , não só tratou com acatamento , mas serviu com zelo igual o seu prisioneiro . O conde de Penamacor , que era o primeiro camarista de D. Affonso V , e tinha declarado não voltar sem seu amo a Portugal , appareceu logo junto do rei . Encontrando-o mui pertinaz , em levar ávante o seu proposito , de se dirigir á Palestina , esperou pelo conde de Faro , e pelos restantes fidalgos da comitiva , para o demoverem . Deixou-se emfim D. Affonso V vencer das instancias dos seus , e de uma carta muito consoladora , que Luiz XI lhe escrevera . Teve , porém , pejo de entrar em Honfleur , e demorando perto do lugar , em que elle estava , a bahia de Hougue , para aqui se dirigiu com o seu sequito , a fim de sair da França , onde se sentia sobre brasas . Embarcou seguidamente em uma carraca , mandada fretar por elle , e de Honfleur desceram os navios francezes , que Luiz XI fez por aprestar a tempo de a comboiar , confiando o commando da frota a Jorge de Bicipat , cognominado " o Grego " . O rei -- França continuava a encobrir com vãs honrarias , e ostentações de respeito pelo monarcha portuguez , a perfidia com que politicamente o trahia . E D. Affonso V fazia-se á véla para Portugal , sem levar no coração magnanimo resentimento algum , contra quem o havia constantemente logrado , antes até alimentando a esperança , de que Luiz XI sempre viria a prestar-lhe soccorro para concluir a empreza de Castella ! Voltara-lhe esta preoccupação , depois que recebeu a ultima carta do seu amigo e alliado ... D. Affonso V era muito instruido , e tinha grande predilecção pelos que cultivavam as lettras ; por isso , durante a viagem , algumas vezes ordenava a Pero da Covilhan , que lhe recitasse romances e outras composições poeticas de Castella ; com o que o rei-cavalleiro muito folgava . Para todos tinha sempre o gentil soberano uma palavra amavel ; e , no tom de familiaridade que lhe era peculiar , aos portuguezes descrevia com rara exactidão e lucidez , quanto vira de notavel nos lugares , que percorrera , e ao capitão da frota exalçava as qualidades de Luiz XI , pondo ao mesmo tempo em relêvo a hospitalidade da nação franceza . Sobreveiu um temporal , que deu causa a não poderem alguns navios aguardar a conserva . Perderam-se dos restantes , e abicaram primeiro do que elles á bahia de Cascaes . Não lhes tomaram , porém , grande deanteira , pois mal tinha corrido em Lisboa , onde estava D. João , a nova , de que seu páe chegaria préstes , logo este aportou á mesma bahia . Certificado D. Affonso V , de que o principe tinha sido acclamado , foi surgir a Oeiras . No dia seguinte desembarcou , sendo recebido em terra por seu filho , que mesmo alli depôz em suas mãos as redeas do governo e o sceptro , que por obediencia havia empunhado . A este tempo era já muito reduzido o numero de partidarios de D. Joanna . O arcebispo de Toledo obteve perdão dos reis catholicos , e recuperou a sua graça . O proprio Beltran de La Cueva recebia mercês d' estes principes e servia-os . A cidade -- Toro estava em poder de Isabel ; e Castro Nunho , depois de apertado cêrco , em que a defensa heroica de Pedro de Mendanha teve profundamente abalado o poder castelhano , rendeu-se afinal aos adversarios de D. Affonso V com permissão d' este , enviada ainda de França ao alcaide lealissimo , e precedendo taes condições , que foi quasi affrontosa a victoria para o exercito sitiante . Mezes depois celebrou-se o tratado de paz e alliança , de 9 de outubro de 1478 , entre os reis -- Castella e Luiz XI , ficando annulladas quaesquer confederações , ligas e amisades existentes ou futuras da França com Portugal , assim como de D. Luiz XI com D. Joanna , asserta rainha -- Castella . Apesar de tão categoricos desenganos , D. Affonso V , incitado por alguns magnates de Castella , que publicamente se diziam seus inimigos , mas estavam com elle na melhor intelligencia , persistia na idéa de atear a guerra , e concluir o casamento com sua sobrinha . A especulação dos castelhanos não passava despercebida a Isabel , inspirando-lhe cuidado e receio ; por isso não cessavam as hostilidades tanto por parte de Castella como de Portugal , com grande e manifesta ruina das duas nações . A paz era de absoluta necessidade para ambas , e n ' isto convieram emfim as partes interessadas . Para entabolar as negociações , avistaram-se na villa -- Alcantara , em Castella , a rainha||_D._Isabel D.|_D._Isabel Isabel|_D._Isabel e sua tia a infanta D. Beatriz , viuva do infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando duque de Vizeu , as quaes combinaram , que fossem ajustadas as pazes em Portugal . Com effeito , a 4 de setembro de 1479 , celebrou-se em Alcaçovas o tratado de paz perpetua entre D. Affonso V e os reis catholicos . Estipulou-se além de outras clausulas , que o principe D. João , filho dos reis -- Castella , casasse aos sete annos por palavras de futuro , e aos quatorze por palavras de prezente , com D. Joanna , a qual receberia de arras vinte mil florins de Aragão , fóra os rendimentos necessarios para manter o seu estado ; e , recusando-se o principe a concordar n ' este casamento , a princeza não só seria indemnizada , mas ficaria livre para poder dispôr de si . Era um meio honesto de esbulhar de seus direitos a desditosa filha de Henrique IV , pois tal consorcio nunca se realisaria . Para segurança d' esta clausula , D. Joanna , tinha de ser posta em terçaria na villa -- Moura , em poder da infanta D. Beatriz , e , não querendo , devia entrar em um dos cinco mosteiros portuguezes da ordem de Santa Clara , conservar-se ahi o tempo do noviciado , findo o qual era obrigada a optar pela profissão ou pela terçaria . No mesmo tratado estatuiu-se , que o infante||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso , filho do principe D. João , logo que fosse em edade de sete annos , se desposasse com a infanta D. Isabel , filha primogenita dos reis catholicos , devendo esses infantes ser tambem postos em terçaria nas mãos da infanta D. Beatriz . Este enlace era a principal garantia da paz tão desejada pelos reis de ambos os paizes para pôrem termo á desconfiança , com que se tratavam , originada de conveniencias e paixões particulares , mas filiando-a especiosamente na reciproca offensa dos interesses nacionaes . Agora repare o leitor no que diz Ruy de Pina , chronista coevo d' estes successos , e profundo conhecedor das intrigas e ambições , de que foi victima a innocente princeza " D. Joanna : " Estando ( a princeza ) em Santarem , e cumprindo-se os seis mezes de sua liberdade , ella não com menos força alheia que tristeza sua propria , e com dolorosas lamentações suas e de todos os seus deixou o titulo de rainha e tomou o de D. Joanna , e despiu seu corpo dos brocados e sedas que trazia e vestiram-na em habitos pardos de Santa Clara , tirando-lhe da cabeça a corôa real de Castella e Portugal de que era intitulada , e cortando-lhe d' ella seus cabellos como a uma pobre donzella , e por maior seu aggravo e magua não lhe deixando os servidores de seu gosto e vontade , nem menos cousa que tivesse imagem d' estado . E o primeiro mosteiro em que assim entrou , foi Santa Clara da dita villa -- Santarem . E na execução d' estas cousas porque a necessidade de outras muitas assim o requeria , o só e principal ministro era o principe ; porque el-rei||_D._Affonso D.|_D._Affonso Affonso|_D._Affonso seu páe de muito anojado e envergonhado d' ellas , de todas se escusou , e as deixa inteiramente á disposição e ordenança do filho , a cuja vontade el-rei n ' aquelle tempo mostrou ser muito inclinado e sujeito . Mas se o principe no cumprimento d' estas cousas excedeu o modo contra a senhora||_D._Joanna D.|_D._Joanna Joanna|_D._Joanna , por ventura mais do que per razão , piedade e temperança se lhe devia , e isto pela gloria e contentamento que tinha do casamento do infante seu filho se não desfazer , que não era sem alguma esperança da successão de Castella , a desventurada fortuna como crú algoz do rigoroso e severo juizo divino , pela culpa do principe , se a tinha , lhe deu logo a pena com o triste e mortal apartamento dos innocentes principe e princeza , depois de novamente casados , sobre que tanto fundamento de honra e segurança fazia . Porque o mesmo lugar de Santarem , que contra a senhora||_D._Joanna D.|_D._Joanna Joanna|_D._Joanna foi o talho d' esta primeira crueza , se tornou a ser o principio d' esta sua vingança ; porque o principe D. João depois de ser rei á vista da mesma excellente senhora , viu a subita e desastrosa morte do principe D. Affonso , seu filho , e a quem á primeira pareceu , que , sendo vivo , os reinos -- Portugal sem os de Castella não bastariam , elle o viu logo morto , e de uma pouca de terra para sempre sujeito e contente , e a triste e innocente princeza sua mulher antes de bem casada se viu logo ser viuva , privada do verdadeiro titulo que tinha , e trocados os brocados ricos e hollandas delgadas que trazia , com pobre burel e grossa estopa em que foi logo vestida , nem ficaram por cortar seus cabellos dourados com accidental proposito de religião , sendo apartada das pessoas mais de sua conversação e servida por servidores alheios , comendo no chão e em vasos de barro , privada em todo de todo estado , entrando n ' estes reinos esposada , coberta d' ouro e de preciosa pedraria , em cima de ricas facas e trotões á vista de todos . Mas vós lagrimas que na lembrança d' esta dôr aqui apontaes soffrei-vos um pouco , cá pera outro mais proprio lugar estais reservadas . Nem a culpa do solemne mas simulado e cauteloso juramento , que el-rei e a rainha -- Castella fizeram sobre o casamento d' esta senhora com o principe seu filho , não ficou sem triste pena e mortal perda e sentimento seu , porque Deus em cujo desprezo pareceu que se fez , não padece engano por castigo , do qual vimos que tambem elles viram a não madura morte do principe innocente moço seu filho , vivendo pouco mais tempo d' aquelle , em que com esta senhora prometteram e juraram de casar ; porque elle já então era casado com madama||_Margarida Margarida|_Margarida , filha do rei dos romanos , e a tinha já em seu poder , sem de nenhum d' estes principes de que os reis -- Castella e de Portugal tanta esperança e fundamento faziam , ficar algum legitimo herdeiro descendente que os succedesse e herdasse , e foram seus herdeiros os transversaes mais chegados " . Depois da profissão da " Excellente Senhora " -- tratamento dado a D. Joanna tanto que vestiu o habito de clarista -- D. Affonso V quiz abdicar e recolher para sempre ao mosteiro do Varatojo por elle fundado ; mas a morte antecipou-se a frustar-lhe esse ultimo designio . A28 de agosto -- 1481 exhalou o derradeiro alento na mesma sala do paço de Cintra , onde se ouvira o seu primeiro vagido . A Excellente Senhora sobreviveu-lhe muitos annos , cumprindo resignada a sentença fatal do seu destino , que foi servir sempre de joguete nas mãos de ambiciosos , e de temeroza arma politica a seu primo D. João II . Em 1482 interessou-se Luiz XI pelo casamento da desditosa princesa com Francisco Phebo , rei -- Navarra . Mais tarde Fernando V , apenas enviuvou , rojou-se a seus pés , e solicitou-lhe a mão de esposa , como em outro lugar deixámos referido . Não podendo , porém , ella olvidar , nem um momento , que era a legitima successora da coroa de Castella , recusou com nobre altivez as propostas d' este seu algoz e diffamador de sua mãe , preferindo conservar-se solteira , até que deixou de existir em 1530 , com sessenta annos de edade . Foi sepultada na egreja de Santa Clara , de Lisboa , e tão esquecida a quizeram , que nem um epitaphio lavraram sobre a lousa que a cobriu . E , como o terremoto de 1755 arrasou essa egreja e o convento annexo , lá desappareceram misturadas com os destroços dos dois edificios as cinzas da pobre princeza . Malfadada condição a sua ! Não logrou D. Affonso V ser o unificador da grande nação hespanhola , e ao filho de D. João II foi tambem vedado herdar as duas corôas da peninsula , para realizar , conforme as aspirações de seu páe , a reconstituição da velha monarchia wisigothica , terminada no primeiro quartel do seculo VIII pela batalha de Guadalete . Por lei , e pela propria dignidade da monarchia , o throno de Castella era patrimonio da filha de Henrique IV ; e , se fossem justos os pretextos , de que se serviram , para lh'o arrebatarem das mãos , a segurança e a estabilidade de todas as dynastias podiam considerar-se problematicas . O que mórmente achanou o caminho do throno a Isabel , foram as leviandades e torpezas de um rei inepto e devasso ; mas nada póde lavar a macula de rebelde , com que ella conspurcou o seu nome para sempre . Foi uma ruim causa que produziu bom effeito . O consorcio de Fernando de Aragão com Isabel preparou o successo transcendente da unidade hespanhola , realisada mais tarde por Carlos V , e os reis catholicos elevaram a Hespanha ao mais alto grau de prosperidade . Acabaram-se as turbulencias dos magnates , e restabeleceu-se emfim o poder da realeza . " PESQUIZAS " Por morte de D. Affonso V todos os creádos da sua casa tomou D. João II para si com muito amor e agasalho , conforme testemunha Garcia de Rezende . pero da Covilhan pertencia áquelle pessoal , e , como pelos serviços prestados em Castella e França havia conquistado a estima do novo monarcha , para logo ascendeu esta á quasi intimidade de valido . Convem notar , que D. João II ao seu serviço preferia ter cavalleiros particulares a grandes e senhores ; ou fosse por manifesta má vontade contra estes , ou porque , fazendo creaturas suas os que possuissem iguaes qualidades e menos poder , esperava que o servissem com maior fidelidade e menos ambição , por carecerem mais do seu rei , e serem mais faceis de contentar . Sobretudo tinha na melhor conta os seus companheiros de armas em Toro , aos quaes louvava por vezes a dedicação e valor , cujo testemunho lhe deram , e por isso a todos elevou e distinguiu sempre , entrando a maxima parte d' elles em o numero dos quatro mil " vassallos d' el-rei " , que creou , como lhe requereram as côrtes reunidas em Evora a 12 de setembro de 1481 . pero da Covilhan vivia , pois , na côrte de D. João II e fazia parte da sua guarda . Nem antes , nem depois , ainda houve outra côrte mais brilhante em Portugal . O rei , para descançar das fadigas da administração , mostrava grande prazer de achar-se rodeado de cortezãos dotados de boas prendas , e com elles folgava , estimulando-os a exhibi-las na presença das formosuras insignes , que compunham o apparatoso e galante sequito da rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor . Assistia jubiloso aos saráus do paço , nos quaes até às vezes , depois de vêr dançar com primor a " retorta mourisca " pelas damas trajando ao uso arabe , deixava-se adormecer no regaço de alguma d' ellas . Era o primeiro emfim a lembrar os desafios poeticos , as " côrtes de amôr " , o " jogo dos naipes " , e tantas outras diversões proprias de uma sociedade elegante , de cujas aventuras amorosas se não fazia mysterio . Maria Thereza era uma das mais gentis entre as donzellas , que a rainha educava para suas damas , e que podemos denominar os botões de rosa do real " jardim de formosura " , como depois Gil Vicente chamou ao estrado das damas de D. Leonor . Bella e muito viva , mais de um dos seus admiradores a requestava em verso . Ella , porém , sempre desdenhosa , sorria d' esses requebros , torturando assim os apaixonados moços . Alguns alcunhavam-n* ' a de desvanecida , outros de suberba , despeitados todos por se verem repellidos . Não logravam comprehender muitos d' elles , herdeiros de boas casas , que uma menina pobre se mostrasse tão esquiva , tão reservada , quasi fria , n ' aquelle meio tão aquecido pelo calor da mocidade ; em aquelle bulicio , que a intimidade no trato , e o desprendimento na linguagem tornavam tão jovial e affectuoso , como fielmente no ' -- lo reprezenta o " Cancioneiro Geral " , de Garcia de Rezende . Um dia Pero da Covilhan , ao passar por ella , disse-lhe quasi a medo : -- Amo-vos ! ... Maria Thereza córou , e tamanha perturbação sentiu , que não poude articular uma palavra . pero da Covilhan desappareceu , e ella , recobrando a serenidade , disse comsigo mesma : -- Deve-me ter talvez achado bem ridicula ! ... Não só ridicula ; mas traduziria o meu enleio por baixeza d' alma , pensando que não agradeci a sua galanteria por elle não ser fidalgo , e eu filha e neta de fidalgos ! ... Esta idéa foi um desespero para Maria Thereza , que não encontrava desculpa alguma para o seu silencio .