SÁ D' ALBERGARIA OS FILHOS DE+O PADRE||_ANSELMO ANSELMO|_ANSELMO ROMANCE PORTO LIVRARIA CHARDRON DE Lello & Irmão , Editores 1904 Os irmãos da mão negra O relogio dos Clerigos tinha acabado de fazer soar pausadamente as doze badaladas da meia noite . O tempo estava brusco e o vento , soprando da barra em frias e cortantes rajadas , punha arrepios nos transeuntes que , levantadas as golas dos casacos e as mãos mettidas nos bolsos , seguiam a passo apressado , recolhendo a casa , sob a ameaça de um temporal desfeito . Era em fins do outono . As arvores do jardim da Cordoaria , varejadas pela ventania asperrima , despiam-se das suas ultimas folhas amarellecidas , n ' um agitado e sussurrante protesto de espoliadas . Quem a essa hora passasse pelo Campo dos Martyres da Patria , veria , encostado a uma das arvores que orlam o jardim , defrontando com a praça do Peixe , um vulto immovel e indifferente ao tempestuoso rugir d' aquella noite agreste e frigidissima . Parecia esperar alguem , porque , ao ouvir bater a meia noite no relogio da torre , levou a mão ao bolso e , aproximando-se de um dos candieiros da illuminação publica , consultou o seu relogio . -- Aquelle anda adiantado cinco minutos -- murmurou . E deu alguns passos distrahidamente como para illudir a sua impaciencia . Agora , que o podemos vêr ao reverbero do lampeão , notaremos que é um rapaz de 18 annos , decentemente vestido e de gentil presença , não obstante as feições finas e delicadas quasi- lhe desapparecerem encobertas pela aba larga do seu chapéo á Mazzantini . Tinha apenas dado um curto passeio no prolongamento do jardim , quando do lado da rua do Calvario avançou a trote rasgado um trem , que parou em frente d' elle . -- És tu , Paulo ? -- disse de dentro uma voz . -- Sou . -- Entra depressa , que a noite está agreste ! E a pessoa que fallava de dentro abriu a portinhola , facilitando-lhe a entrada . O mancebo saltou de um pulo para dentro do carro , a portinhola fechou-se , e os cavallos seguiram no seu trote largo , dobrando a rua da Restauração e subindo a da Liberdade até ganharem a rua do Rosario . Sigamos aquelle trem e ouçamos o dialogo que se trava dentro d' elle . Apenas o mancebo entrou , a pessoa que o chamara e que era um homem de 28 a 30 annos , desceu rapidamente as cortinas do carro e disse para o seu joven companheiro : -- Meu amigo , como já te expliquei , isto são negocios em que se requer a maior circumspecção e escrupulo na observancia das praxes . Has-de consentir que te vende os olhos . -- Acaso desconfias da minha lealdade , Jorge ? -- De modo algum . Mas é uma obrigação que o regulamento me impõe , e eu não posso faltar a ella sem trahir o meu dever . -- Pois bem , seja ! O sujeito que ouvimos chamar Jorge tirou então do bolso um lenço e vendou com elle os olhos do companheiro . -- Has-de dar-me a tua palavra de honra que não tentarás arrancar a venda sem que para isso recebas ordem ... -- Dou . Mas se o fizesse ? -- Poderia isso custar-te a vida , meu caro . -- Apre ! -- fez o outro , sorrindo -- vocês são intransigentes ! -- Está n ' isso a nossa força . Não violentamos ninguem a seguir-nos , damos ampla liberdade a cada um de rejeitar a nossa associação , mas defendemos a nossa existencia e mantemos o nosso segredo . -- É justo . -- Assim , tu podes , até á hora de prestares o teu juramento , reconsiderar e exigir que te restituam a liberdade . Nenhum mal te acontecerá por isso , a tua vontade será respeitada , a tua independencia mantida . Mas não saberás dizer onde estiveste nem as pessoas com quem fallaste . -- Poderei dizer que fallei comtigo ... -- gracejou o outro . -- Que importa ? Eu não sou uma associação . Comigo póde fallar toda a gente ... -- Fallemos sério ! -- tornou o moço que dava pelo nome de Paulo . -- Asseveras-me que os intuitos d' essa associação em que vou entrar são em tudo dignos das justas aspirações de um homem de bem ? -- Assevero-te que os irmãos da " Mão-negra comprehendem e cumprem á risca o nobre dever de se auxiliarem e defenderem mutuamente contra as prepotencias sociaes da nossa epoca . No nosso gremio desapparecem as differenças de gerarchia e de dinheiro . Não ha pobres , porque todos somos ricos da riqueza e da importancia dos nossos irmãos . -- Poderei então contar com o auxilio da Associação na conquista da mulher que amo ? -- Decerto -- volveu o outro . -- Tanto como amanhã qualquer de nossos irmãos poderá contar com o teu auxilio para a realisação dos seus desejos . Isto é apenas uma associação de soccorros mutuos , meu caro Paulo . A mulher que amas será tua desde que te filies no nosso gremio . Comprehendes que toda a acção da " Mão-negra se resume em tornar felizes e ricos os seus irmãos , porque d' essa riqueza e d' essa felicidade lhe advem a ella a força , o poderio , a importancia . O trem ia correndo veloz pela estrada do Carvalhido , sem que Paulo , entretido na conversa , parecesse ter notado o tempo gasto na corrida . -- No emtanto -- accrescentou ainda Jorge -- os fins e intuitos da Associação vão sêr- te ainda expostos e confirmados por pessoa idonea e mais competente de que eu . Se te restar alguma duvida , o minimo escrupulo , poderás renunciar ao teu intento , com a unica condição de não tirares a venda nem tentares deslealmente devassar os segredos do nosso gremio ... -- Conheces-me , e sabes que isso são processos indignos do meu caracter ! -- protestou o mancebo . O trem parou em frente de um portão largo , que dava accesso a uma vasta quinta murada . Jorge apeou-se e deu a mão ao seu companheiro . -- Chegámos ! -- disse elle . Paulo apeou-se e , guiado sempre pelo seu amigo , transpoz o portão , que se abriu mysteriosamente , tornando a fechar-se sem ruido . -- E o cocheiro ? -- perguntou o mancebo . -- Não receias a sua indiscreção ? -- É um dos nossos irmãos -- respondeu simplesmente o outro . -- Apre ! -- tornou o mancebo alegremente . -- Eis aqui o que se chama um serviço bem montado ! Jorge não lhe respondeu . Conduziu-o por uma extensa e sombria vereda de ramadas até o fazer entrar n ' um corredor ao rez do chão , pelo qual foram seguindo em silencio . -- Já estamos em casa ! -- disse Paulo . -- Porque ? -- perguntou o outro . -- Sinto-o pela differença de temperatura . -- Ainda não ... Vamos entrar agora ... E levando aos labios um pequeno apito , tirou d' elle um silvo agudo e prolongado . Ouviu-se uma porta girando sobre os gonzos , e os dois entraram n ' um pequeno recinto em que os passos se amorteciam , abafados no tapete . -- Pódes tirar a venda -- disse Jorge . O mancebo levou a mão aos olhos , e com grande assombro seu , achou-se sósinho n ' uma sala forrada de crepes , tendo ao centro uma mesa coberta de velludo preto e em que pousava uma caveira , allumiada por duas velas . Um momento impressionado pelo sinistro aspecto da sala e pelo funebre quadro que se lhe offerecia á vista , o mancebo empallideceu e recuou um passo , aterrado . Porém , reflectindo e com uma coragem superior á que seria de esperar na sua edade , breve retomou o sangue frio e lançou um olhar de glacial indifferença para a caveira . -- É singular ! -- pensou comsigo . -- Entro na vida pela visão da morte ! Como respondendo a este pensamento , ouviu-se uma voz soturna e cavernosa resoar na sala : -- Medita ! -- disse aquella voz . O mancebo estremeceu e voltou-se rapidamente , a vêr quem lhe fallava . Não viu pessoa alguma . Passeou então os olhos curiosos pelas paredes forradas de crepes e não descobriu a porta por onde tinha entrado . Se quizesse abandonar aquelle mysterioso e lugubre recinto , não o poderia fazer , por não encontrar sahida . Embora surprehendido , nem por isso se apavorou . -- Medita ! -- tornou a voz a repetir . Como resposta muda áquella intimativa , o mancebo cruzou os braços sobre o peito e ficou encarando fito a caveira . N ' aquella attitude altiva e firme , esteve assim por muito tempo . Dissera-lhe o seu amigo que , para ser admittido na associação secreta da " Mão negra " , era preciso dar provas de energia , coragem e inquebrantavel força de vontade . Accrescentara que as provas a que os neophytos tinham de sujeitar-se eram rudes e de molde a fazerem tremer o mais ousado . Elle , não obstante , insistira . Sentia-se capaz de affrontar os maiores perigos com animo sereno e tranquillo . -- Principiou a prova ! -- pensou -- julgam-me uma creança assustadiça , capaz de me apavorar com este apparato funebre . lhes-hei que a creança é um homem , que póde disputar primasias de coragem aos mais fortes . E n ' esta resolução avançou para mesa , estendeu o braço e ia a tocar no funebre despojo , quando a voz mysteriosa recuou de novo , gritando : -- Detem-te ! o que ias fazer ? -- Tocar n ' esta caveira -- respondeu o mancebo com voz tranquilla . -- Com que fim ? -- Com o fim de provar que a ideia da morte me não apavora . -- Que pensamento te suggere a vista d' esse triste despojo humano ? -- Primeiramente , a ideia de que todos caminhamos para a mesma miseria ... -- E depois ? -- Depois , que a Morte é a niveladora implacavel do genero humano . -- Assim , crês que na Morte se confundem bons e maus , virtuosos e impuros ? -- Creio que , materialmente , tudo se confunde na mesma podridão . -- Materialmente , disseste ? -- Disse . -- Crês então que vicio e virtude são coisas indifferentes , visto que tudo se apaga ao mesmo gelido sopro e tudo resvala com o homem ao abysmo do Nada ? -- Não . -- Explica-te . -- Do homem subsistem as ideias , os pensamentos , os actos bons ou maus de toda a sua vida . Esses não tem a Morte o poder de os anniquillar . -- Pois bem ; visto que assim é , dize-me : De quem é esse craneo ? -- De um meu irmão . -- É vaga a resposta . Dize-me : Será d' um sabio ? Será de um ignorante ? Será de um homem honesto ? Será d' um criminoso ? Será d' um nobre ? Será d' um plebeu ? -- Ignoro . -- Confessas , pois , que na Morte tudo se confunde ? -- Não ! Confesso apenas que na Morte todos teem egual direito ao respeito dos vivos . -- Porém , essa theoria é contradictoria . Se todos devem confundir-se no mesmo respeito , como queres que se distingam os bons dos maus ? -- Pelo que d' elles fica no mundo e não morre . Dize-me o nome d' aquelle a quem pertenceu este craneo , e se elle foi um sabio , um artista , um litterato , um poeta , um d' esses homens que deixam a sua passagem assignalada no mundo por obras de grandeza e de virtude , eu te recordarei as suas conquistas scientificas , os seus quadros , os seus livros , os seus versos , as nobres acções e exemplos com que se perpetuou na humanidade emfim . -- Tens religião ? -- Tenho . -- Qual ? -- A do Bem . -- A que vieste ? -- Dar e receber auxilio na lucta do Bem contra o Mal . -- Sabes o sacrificio a que isso obriga ? -- A todos os sacrificios me sujeito . -- Repara bem . A abnegação , o desinteresse , a obediencia cega e passiva ás ordens dos que dirigem o nosso gremio constituem a principal condição para seres admittido entre nós . -- Acceito-a . -- Terás que resistir ás tuas proprias paixões , terás que dominar os mais irresistiveis impulsos do teu coração , para só obedeceres á lei da nossa Sociedade ; terás , emfim , que sacrificar vida , fortuna , mulher , filhos , familia -- tudo , ao bem de teus irmãos , quando isso te fôr reclamado . -- Obedecerei . -- É preciso que o braço execute o que a cabeça ordena . Tu serás o braço . O chefe invisivel da nossa Associação é a cabeça . Se fôr preciso derramar sangue , ainda o d' aquelle que no mundo te fôr mais caro , uma vez que a cabeça t ' o ordena , obedecerás ? -- Sem a menor hesitação . -- Attende que vaes ligar-te a nós por um juramento que não póde ser quebrado nem illudido . Em toda a parte onde te encontres , seja qual fôr a posição social a que ascendas , na rua , em casa , no povoado ou n ' um logar deserto , o olhar invisivel da nossa Associação te-ha por toda a parte . A " Mão-negra , cujo auxilio buscas , mysterisa e potente , vingadora e terrivel , como a propria mão da Providencia , impedirá teus passos e guiará o teu destino . Não mais te pertencerás a ti ; pertencerás aos teus irmãos . Senhor liberrimo das tuas acções até agora , vaes reduzir-te por um juramento ás condições d' um escravo , mais que d' um escravo -- d' um simples automato . O teu cerebro não mais pensará para ti ; o teu coração não mais sentirá por ti . Cerebro e coração teem de emmudecer perante as exigencias fataes , crueis e terriveis muitas vezes , da nossa Associação . Terás força para tanto ? -- Terei -- respondeu firmemente o mancebo . -- Pareces corajoso -- observou a voz mysteriosa -- pareces ter em pequena conta a propria vida . -- Estou prompto a sacrificál- a para um fim justo . -- A ideia da justiça é relativa . O que para uns é justiça para outros é iniquidade . Os irmãos da " Mão-negra não teem o direito de discutir e apreciar as ordens que dimanam do seu chefe invisivel : teem só o dever de as cumprir . Assim , se te exigirem que craves um punhal no teu coração , não terás o direito de discutir a justiça do sacrificio ; apenas terás que obedecer . -- Experimentem . -- Lembra-te , porém , que , se o sacrificio da propria vida te é fácil , outros sacrificios te pódem ser mais penosos . Estás em tempo : se não te sentes com animo e coragem para te prenderes a nós por toda a vida , -- vae , estás livre , te-hemos conduzir ao sitio d' onde vieste . -- Não ! -- respondeu o mancebo com energia -- Eu não sou dos que recuam . Quero ser dos vossos . -- Estende a mão sobre essa caveira e jura que queres ser submettido á " prova " ! -- ordenou a voz . Paulo estendeu a mão sobre a caveira : -- Juro -- disse elle -- que desejo ser um dos irmãos da " Mão-negra e estou prompto a submetter-me á prova que me for imposta ! Quando acabou de proferir este juramento , sentiu que lhe tocavam no hombro . Voltou-se e viu diante de si um vulto athletico , sinistramente vestido de preto e com o rosto coberto por um capuz como o dos antigos aguazis do Santo Officio . Sem dar palavra , o mysterioso vulto vendou-lhe de novo os olhos . Em seguida disse : -- " Á prova ! " Pegou-lhe na mão e conduziu-o por um extenso corredor até parar em frente de uma porta , a que bateu de maneira mysteriosa e symbolica . -- Quem sois ? -- perguntou de dentro uma voz , sem abrir . -- Irmão -- respondeu o mysterioso guia de Paulo . -- D ' onde vindes ? -- Da Ala negra . -- Que trazeis ? -- Um novo braço . -- Que busca elle ? -- A mão . -- Quem vos guia ? -- S. Miguel . A porta abriu-se . -- Passae ! -- disse um homem , igualmente envolto n ' um habito preto e o rosto coberto pelo capuz . Os dois seguiram ávante e entraram n ' uma sala ampla , abobadada , de paredes escuras e illuminada apenas por um globo enorme de vidro , seguro por uma phantastica " mão negra " , que pendia do tecto . Á roda d' esta sala , viam-se de pé , hirtos e impassiveis , n ' uma immobilidade de estatuas , muitos vultos negros , com o rosto inteiramente occulto sob o capuz do habito . Em cada uma das paredes avultava uma grande mão negra , sustentando punhaes e espadas , em panoplia . Ao centro , justamente debaixo do globo , erguia-se uma especie de throno , assente sobre quatro formidaveis dragões e todo coberto de crepes . Occupando esse logar , sem duvida destinado ao chefe da seita , estava uma figura mysteriosa como as suas companheiras e como ellas silenciosa e immovel . O " irmão " introductor de Paulo avançou , silenciosamente , com o mancebo pela mão , até curta distancia do throno , parou , levou a dextra ao peito , movendo o pollegar rapidamente , de modo a descrever com elle uma cruz , e ficou de cabeça curvada , em attitude respeitosa . -- Que quereis , irmão ? -- interrogou o vulto que se sentava no throno e que era sem duvida o chefe da seita . -- Que escuteis e recebaes sob vossa protecção este meu companheiro , que pretende entrar na " ala " como combatente . -- Fiaes d' elle ? -- D ' elle fio , senhor ! -- S. Miguel vos proteja ! -- O apresentante de Paulo afastou-se e foi tomar o seu logar junto á parede , em fila com os seus companheiros . Paulo ficou só , junto ao throno , com os olhos vendados . -- Que pretendeis , mancebo ? -- interrogou o chefe . -- Combater . -- Que armas trazeis ? -- A submissão , a energia e a lealdade -- disse Paulo . -- Boas armas são essas quando temperadas ao fogo vivo do sentimento do Bem e da Justiça . Que vos falta ? -- A força da " Mão-negra . -- A " Mão-negra só dispensa a sua força e o seu amparo aos que tudo lhe sacrificam com coragem , valor , e brio . N ' este gremio não se admittem nem os timidos nem os cobardes . -- Não o sou . -- Dizer é facil ; provar é difficil . Quereis sujeitar-vos á prova ? -- Estou prompto ! -- Reparae que podeis perder a vida na jornada aspera que ides emprehender . -- A vida de nada me serve , se não posso dar-lhe applicação util . -- É facto . No emtanto , é meu dever prevenir-vos de que , sem perderdes a vida , podeis perder a esperança da felicidade , que é a vida do coração , o objectivo da existencia . -- Tudo sacrificarei aos meus irmãos . -- É melhor recuar , mancebo . Na longa estrada que tendes a percorrer antes de chegardes á " Mão-negra , encontrareis mil perigos e mil precipicios terriveis , que sereis obrigado a transpôr ou a morrer . Avançado o primeiro passo n ' esse caminho mysterioso e fatal , recuar é impossivel ; a menor hesitação é a morte . Só uma coragem admiravel e uma força de vontade rara pódem conduzir-vos a salvo ao ponto desejado . -- Irei e hei-de chegar . -- Pois bem , vinde ! Levantou-se , desceu do throno , deu-lhe a mão , abriu uma porta ao lado da parede e , empurrando-o para dentro d' ella , disse : -- Podeis tirar a venda . Segui esse longo e escuro subterraneo até ao fim . Tereis que luctar com o fogo , com a agua , com os homens e com as feras , antes que chegueis á porta santa do asylo que buscaes . Ide e que S. Miguel -- que venceu o dragão -- vos dê força e coragem . O mancebo levou as mãos aos olhos , arrancou a venda e embrenhou-se n ' uma escura e estreita galeria subterranea , que foi seguindo com estranha ousadia . A treva cercava-o sem lhe deixar perceber onde punha os pés . Algumas duzias de passos andados , um subito clarão illuminou o subterraneo . Paulo , deslumbrado , levou as mãos aos olhos . Na sua frente , erguiam-se as chammas pavorosas de um incendio , que avançava para elle em linguas de fogo , ameaçando devoral- o . Dir-se-hia que uma enorme represa de alcool ou de petroleo se havia aberto e que , incendiado , ia inundar o subterraneo , transformando-o n ' um immenso forno crematorio . O mancebo , n ' um momento surpreso , sentindo na face o calôr das chammas , nem por isso se deteve . Caminhou audaz e resoluto para o perigo , disposto a deixar-se queimar vivo antes que retroceder . Ao aproximar-se das chammas , porém , estas apagaram-se subitamente , tornando mais densa a treva do corredor . Seguiu ávante , e pouco depois sentiu o ruido clamoroso e sinistro de uma enorme queda d' agua , que se despenhava em catadupas de uma rocha que obstruia a passagem e que parecia o remate d' aquelle medonho e tenebroso subterraneo transformado n ' um lago . A agua despenhava-se de tal altura e com tal fragor que , batendo nas pedras , resaltava , esparrinhando com tanta violencia , que algumas gottas vinham açoitar o rosto de Paulo . Á primeira vista , parecia impossivel transpôr aquelle enorme pégo sem perecer afogado . Uma dubia luz , coada por uma pequena abertura na abobada do subterraneo , esclarecia o medonho passo . Paulo , tomado da raiva febril de transpôr todas as barreiras ou morrer , avançou corajoso , fechou os olhos e atirou-se á agua . Com grande assombro seu , achou-se em terreno enxuto . A agua tinha desapparecido e com ella o ruido pavoroso da corrente . A treva tornara-se mais densa . Não obstante , elle caminhava afoito , quando , de repente , se sentiu agarrado e preso por duas fortes e vigorosas mãos que o levantaram ao ar deixando-o cahir . Procurava firmar-se nas pernas , quando notou que o terreno lhe faltava debaixo dos pés e se precipitava n ' um abysmo . Não soltou um grito . Esperava morrer como um homem , e assim chegou a um segundo subterraneo , onde se encontrou de pé , illeso e sem que soffresse a menor contusão . Continuou o seu caminho corajosamente , embora sob o peso das commoções soffridas . Foi andando na treva por alguns minutos , quando um rugido terrivel lhe despertou a attenção . Olhou e viu na sua frente uma porta de ferro , defendida , por dois enormes leões , que punham n ' elle os olhos de fogo , escancarando n ' uma ameaça a guella hiante . Fixou a vista aterrado nos monstros , que soltaram novo rugido atroador . Pallido , os cabellos eriçados , as faces contrahidas de susto , o mancebo pensou em retroceder , mas envergonhado d' esta cobardia , exclamou , avançando para as féras : -- Antes morrer que recuar ! Rapidamente , os leões sumiram-se na parede e Paulo pôde bater á porta , levantando e deixando cair o pesado batente em forma de mão negra . A porta abriu-se . -- Entrae ! -- disse o mesmo chefe que o havia introduzido no subterraneo , recebendo-o de novo na sala d' onde havia partido . Paulo entrou . -- Ides dar-nos a ultima prova -- propoz o chefe . -- Aqui tendes este punhal . N ' aquelle gabinete está , sob a acção de um narcotico , uma mulher , que é preciso " eliminar " ... Ide ! Cravae- lhe este punhal no coração . Paulo pegou no punhal , abriu a porta e ia avançar , quando recuou espantado , soltando um grito terrivel : -- Ella ! -- bradou o pobre rapaz afflictivamente . É que diante dos seus olhos admirados apparecera uma bella e gentil figura de mulher , estendida sobre um pôtro de torturas , os pés e as mãos amarradas , a face pallida , os olhos cerrados , como que esvaecida ou morta , e essa mulher , essa visão inesperada , era nem mais nem menos do que a sua amada , a aspiração querida da sua alma , a mulher por quem o pobre moço ia filiar-se na mysteriosa e terrivel seita da " Mão negra " ! -- Hesitas ? -- perguntou o chefe com um accento de desprezo e sarcasmo na voz . -- Não prestaste ainda juramento , mancebo ; não estás preso a nós por nenhuns laços . Se o teu coração se entibia , se o teu braço treme e se recusa a obedecer , vae , deixa-nos ! Profere apenas uma palavra e serás restituido á liberdade . No rosto do mancebo desenhava-se uma angustia profunda . Os cabellos em desalinho , a face pallida , a fronte banhada de um suor frio , não desfitava os olhos d' aquelle meigo e adorado vulto de mulher , a que tinha presa toda a sua existencia , todas as esperanças da sua juventude , todas as nobres aspirações da sua alma e que alli via , sem saber como nem porque , semi-morta , amarrada áquelle pôtro fatal , e prestes a cahir aos golpes de uma justiça occulta , que a mandava apunhalar ! E havia de ser elle o algoz , havia de ser elle o executor da fatal sentença , elle , que por ella sacrificaria a vida , a honra , a familia , tudo o que um homem póde sacrificar á mulher amada ! Era horrivel ! -- Decide-te , mancebo ! -- tornou o chefe -- Ou cumpres corajosamente os mysteriosos designios da " Mão-negra , ou recusas e vaes em paz com a tua cobardia ! como se lhe tivessem vergastado o rosto , á palavra " cobardia " , o mancebo apertou na mão o punhal e , voltando-se para o seu mysterioso interlocutor , disse , rangendo os dentes : -- Cobarde não o sou , não o serei jámais ! Que posso eu fazer para resgatar a vida d' aquella mulher ? -- Nada ! -- Offereço- vos a minha vida , senhores ! Pegae em mim , amarrae-me áquelle pôtro onde a tendes manietada , sujeitae-me á tortura mais cruel , mais horrenda , -- não soltarei uma queixa , não me ouvireis um gemido ! Mas libertae-a a ella , restitui-lhe a liberdade , concedei-lhe a vida , e eu bem direi a vossa generosidade , a vossa grandeza d' alma , e o meu ultimo alento será ainda um protesto , de gratidão para comvosco ! -- Nada podemos fazer-te . Essa mulher está condemnada , e nada poderá libertal- a da nossa justiça . Queres executar a sentença ou preferes retirar-te em paz com a tua fraqueza ... com a tua cobardia , repito ? -- Cobarde nunca ! -- bradou o moço , luzindo-lhe nos olhos uma colera terrivel -- Bem vêdes que não é o meu braço que treme -- é o meu coração que lucta ! -- Vence-o ! -- Vencel o-hei . Mas antes , dizei-me : não tem preço aquella vida ? Quantas vidas quereis que vos entregue em resgate d' aquella ? Apontae-m ' as , e eu vos juro que vol-as entregarei todas , sem faltar uma , ainda que para isso eu tenha de descer tão baixo , que me confunda com os mais infimos sicarios , ou haja de subir tão alto , que chegue a transpôr os degraus de um throno ! Reparae que esta é a mulher que amo ! É o mundo que vós me mandaes anniquilar com aquella existencia ! -- Está condemnada . Decide-te ! -- tornou a voz -- Partes ou ficas ? -- Pois bem , fico ! ... para partir com ella ! Avançou desvairadamente para a sua amada , que , immovel , amarrada ao pôtro , parecia cahida em profundo lethargo . -- Beatriz , perdoa-me ! -- murmurou elle . -- Não é a ti que eu apunhál- o , é a mim proprio ... te-hei no teu resgaste ! Dizendo isto , cravou-lhe fundo o punhal no coração . O sangue espadanou do peito da victima , que não soltou um gemido . O mancebo , com as mãos tintas de sangue , veio á sala e disse serenamente , encarando os seus lugubres e mysteriosos companheiros que se conservavam mudos e immoveis : -- Pedistes-me uma vida . vos-hei duas , ensinando-vos ao mesmo tempo como se mata e como se morre ! E n ' um movimento rapido , sem dar tempo a que o detivessem , alçou o braço e cravou o punhal no coração . A lamina , porém , não penetrou a carne e o mancebo , admirado de que o ferro lhe não tivesse produzido a menor dôr , examinou espantado a arma homicida . Era um d' estes punhaes simulados , cuja lamina de latão , se embebe e desapparece no cabo quando se descarrega a punhalada , voltando a apparecer impellida por occulta mola desde que deixa de ser premida de encontro ao corpo . -- Mas o que é isto ? -- disse elle indignado , quasi sem comprehender . -- Estamos nós representando uma farça ? -- Não , meu amigo ! -- respondeu amavelmente o chefe -- estiveste dando-nos a prova da tua rara coragem , do valor e lealdade do teu caracter , e nós todos , bemdizendo a hora que traz ao nosso gremio um " irmão " de tanto valor ! Depois , voltando-se para o gabinete onde ainda jazia inanime a " amada " de Paulo , continuou : -- Como já deves ter comprehendido , alli não está a tua amada , porém a sua imagem tão perfeita e semelhante , que a tomaste por ella propria . O mancebo , aturdido , punha no manequim os olhos , recusando-se a acreditar o que ouvia . -- Foi , pois , uma simulação de morte -- proseguiu o chefe -- O valor moral da acção fica em pé , visto que a tua intenção era obedecer aos preceitos da " Mão-negra ... -- E matar-me em seguida ! -- accrescentou o mancebo . -- É a unica porta que resta aberta aos nossos " irmãos " para se separarem de nós . A sahida por esse lado , posto seja uma fraqueza , não é nunca um crime . De resto , é tambem por ella que fazemos sahir os que se tornam indignos de pertencerem á nossa Associação . -- Espero que não tereis o incommodo de me ensinar o caminho , se algum dia me arrepender de haver buscado a vossa camaradagem -- disse Paulo . -- Felicito-te , mancebo , pela tua rara energia , lealdade e valor do teu caracter , de que déste prova . Serás um bom " irmão da Mão-negra e auguro-te uma brilhante carreira dentro do nosso gremio , se perseverares em conservar puras e immaculadas as apreciaveis qualidades a que deves a tua admissão . Queres prestar juramento ? -- Sim ! -- Irmão Golias ! -- ordenou o chefe -- vendae os olhos ao neophyto ! Destacou-se da parede o " irmão " que já havia sido o apresentante do mancebo , e cumpriu as ordens do chefe . -- Vendam-se-vos ainda os olhos -- disse este -- não porque esteja no nosso animo guardar para comvosco novos mysterios ou admittir-vos com fins reservados , mas tão sómente porque a venda que se vos põe agora representa a confiança cega , illimitada , que deveis ter nos vossos irmãos e nos nobres e justos fins para que todos trabalhamos , unidos como um só homem , guiados pela mesma potente e mysteriosa " Mão-negra . Findo este pequeno discurso , o chefe fez um signal . Os vultos que , de pé e immoveis rodeavam a sala , encostados á parede , avançaram silenciosamente e formaram um circulo á roda de Paulo . -- Irmão Golias ! -- disse o chefe . -- Eis-me , senhor ! -- Fiastes o neophyto . Persistes fiando-o ? -- Do fundo da minha alma . -- Sois o seu padrinho . Tomae o vosso logar . O vulto que dava pelo nome de Golias postou-se ao lado do mancebo , tendo na mão uma salva de prata coberta por um crepe . O chefe subiu então ao throno e passou-se n ' aquelle recinto uma scena deveras surprehendente . De pé sobre o throno , o chefe pegou em um escrinio de pau santo com embutidos de prata e marfim representando uma caveira com dois fémures em cruz , carregou em um pequeno botão , e o escrinio abriu-se , transformado-se rapidamente em uma almofada de veludo carmezim em que assentava um craneo alvissimo , seguro por dois punhaes em tropheu . Estendeu para a assembleia o braço sustentando esta estranha " reliquia " , e immediatamente os vultos , levando as mãos á cinta , desembainharam luzentes floretes que traziam occultos debaixo dos habitos e que apontaram ao neophito , formando-lhe com elles um circulo de ferro . Ao mesmo tempo uma voz resoou : -- Está aberto o templo ! Tres portas abriram-se e por ellas começou entrando uma verdadeira multidão de capuzes negros , trazendo na mão esquerda uma tocha accesa e na dextra um punhal . Os das tochas formaram em cruz , ao comprido e ao través do " templo " , abrindo em alas , voltados todos para o centro , onde se agrupavam , como já dissemos , os primeiros vultos , rodeando Paulo , com os floretes desembainhados . Tudo isto se fez no meio do maior silencio e quasi sem deixar perceber o ruido dos passos . Então o chefe , erguendo a voz , disse : -- Mancebo , juras obediencia , lealdade e amor a todos os irmãos da " Mão negra " ? Juras não revelar a alguem os segredos da nossa agremiação ? Juras sacrificar por ella todos os dias da tua vida , todas as horas da tua existencia , o vigor do teu braço , os pensamentos do teu cerebro , os sentimentos do teu coração ? Paulo estendeu a mão e disse solemnemente : -- Juro ! Immediatamente , o irmão Golias , entregando a outro a salva que tinha na mão , voltou-se para o neophyto , dizendo : -- Irmão " David " , pois que sou teu padrinho , vou impor-te o habito de " Mão-negra ! Enfiou-lhe então pelos hombros um habito igual ao que os outros vestiam , deixando-lhe apenas a cabeça a descoberto , sem lhe deitar o capuz . -- Tirae a venda , irmão -- ordenou o chefe -- para que toda a luz se faça aos vossos olhos ! O mancebo arrancou a venda e ficou maravilhado e surprehendido ante o estranho quadro que se apresentava á sua vista . Os irmãos haviam atirado os capuzes para as costas e descoberto os rostos , conservando-se , porém , na mesma attitude severa e hostil , com os florêtes apontados ao novo irmão . Passando uma vista curiosa por todos elles , o mancebo ficou surprehendido de vêr muitos rôstos conhecidos á volta de si . O irmão Golias , pegou-lhe na mão e fêl- o subir os degraus do throno . O chefe veio recebel- o a meio , apertou-o nos braços e osculou-o na testa . -- Bem vindo sejas , irmão , a augmentar a nossa ala ! -- disse elle . A estas palavras , todos os florêtes se abaixaram , entrando na bainha . Em seguida tomou-lhe a mão e acompanhou-o até ao degrau inferior do throno , dizendo : -- Recebe o abraço de teus irmãos e faze por te conservares sempre digno d' elles . Os irmãos que o haviam rodeado com os florêtes vieram todos um a um abraçál- o e beijál- o na testa . -- Irmãos ! -- disse o chefe do alto do throno -- vae reunir o sublime capitulo . Está encerrado o " templo " . As luzes apagaram-se , e os vultos começaram a sahir pelas differentes portas do recinto , sumindo-se mysteriosamente sem que alguem pudesse dizer que caminho levavam . Amôr e esperança Deixemos os mysteriosos irmãos da " Mão-negra seguir o caminho que os havia de reconduzir ao mundo do qual por algum tempo semelhavam ter-se apartado , e sigamos o arrojado e corajoso adolescente que acaba de iniciar-se nos mysterios da terrivel seita . Paulo , tendo sahido da quinta do Carvalhido em companhia do seu amigo Jorge , agora convertido em seu " irmão " , regressou á cidade no mesmo trem que o conduzira , apeando-se e despedindo-se do companheiro em uma rua proxima da de Cedofeita . Eram tres horas da manhã e o vento continuava soprando rijo da barra , pondo negrumes de tempestade n ' aquella noite desabrida . O mancebo seguiu pela rua deserta até parar junto de uma casa de luxuosa apparencia , e que denunciava pelo exterior severo e pelo amplo jardim gradeado que lhe ficava contiguo , a opulencia dos seus habitantes . Inflou as bochechas e , batendo-lhe com as mãos , imitou o canto da perdiz . Era evidentemente um signal , porque algum tempo depois , uma das janellas do rez do chão , vedada por grades de ferro , abriu-se manso , e uma voz feminina disse , tremula e quasi sumida : -- Como vens tarde , meu amigo ! -- Beatriz , perdôa , mas um assumpto do mais alto interesse e de que depende a nossa felicidade futura impediu-me de vir á hora costumada . Hesitei em vir despertar-te a esta hora ; mas a ideia de que havia de estar sem te fallar e talvez sem te ver até amanhã á noute , obrigou-me a procurar-te , Beatriz . -- Eu esperava-te ... Esperava-te , porque tinha tambem que te dizer ... Oh ! se soubesses como estou afflicta ! -- Tu ! Mas o que te succedeu , anjo da minh ' alma ? ... -- Paulo ... -- gemeu a meiga voz que fallava do lado de dentro da grade -- não sei como t ' o hei de dizer ... meu Deus ! -- Falla , Beatriz , falla , pelo nosso amor t ' o peço ! -- supplicou o moço -- Não me tenhas por mais tempo n ' esta cruel espectativa ... Tu choras , tu pareces afflicta ... Meu Deus ! o que é que motiva a tua dôr ? Beatriz , cujo vulto mal podemos distinguir na penumbra do aposento , occultava o rosto entre as mãos buscando afogar os soluços . -- Paulo , -- disse ella -- meu pae ... quer casar-me ! O mancebo recuou um passo como se lhe tivessem descarregado uma violenta pancada no peito . -- Quer casar-te ! -- exclamou . -- E com quem ? -- Com um rapaz que eu mal conheço ... um rapaz que tem vindo duas ou tres vezes de visita a nossa casa , onde foi apresentado por um dos mais intimos amigos de meu pae ... -- Dize-me o nome d' esse rapaz ! -- intimou desvairadamente o moço . -- Eugenio de Mello -- soluçou Beatriz . -- Eugenio de Mello ! -- repetiu o mancebo . -- Esse nome é completamente estranho para mim . Nunca t ' o ouvi pronunciar . -- Se te digo que apenas veio duas ou tres vezes de visita a nossa casa , apresentado por um amigo de meu pae ... -- Mas , emfim , como é que surge agora essa ideia de te casarem com elle ? Acaso esse rapaz alguma vez te manifestou sentimentos de sympathia ou de amor ? Falla-me com franqueza , Beatriz . Comprehendo que por uma bem entendida delicadeza da tua parte para comigo , julgasses dever occultar-me os galanteios d' esse rapaz , se porventura elles te eram indifferentes ... Mas não comprehendo como teu pae pudesse ter a ideia subita de te casar com elle , sem mesmo tentar indagar se o teu coração não repelliria um semelhante enlace . -- Não ! juro-te que nunca dos labios d' esse rapaz ouvi uma palavra que pudesse dar-me a perceber o mais tenue sentimento de amor por mim . Fóra dos cumprimentos e ceremoniosas attenções que as pessoas de boa sociedade usam ter para com uma senhora , não se trocaram entre nós quaesquer amabilidades que justificassem o pensamento d' este enlace que me surprehende ! -- É extraordinario ! E como é que teu pae pretende impor-te um casamento em que tu nem sequer tinhas pensado ? -- Sabes que meu pae -- volveu Beatriz -- habituou-se a contar com a minha obediencia cega e passiva em todos os seus desejos , que para mim são ordens . Muito austero , educou-me sob um regimen de ferro em que a sua vontade é a unica que predomina ... -- Isso , porém , não é rasão para que elle se julgue no direito de sacrificar o teu futuro de mulher aos seus caprichos de ... pae . -- Meu pae ignora que eu te amo , Paulo ! Julga o meu coração desprendido de qualquer affecto e crê que não me repugna a ideia de unir o meu destino ao de um homem que elle julga digno de mim . -- E se de facto te não repugna ... obedece-lhe ! -- bradou o mancebo n ' uma voz estridente em que ia todo o fel do seu desespero . -- Paulo ! És injusto para comigo ! Sabes que te amo , que não posso amar outro homem que não sejas tu ; e quando me vês afflicta , atormentada ao peso da cruel exigencia de meu pae , em vez de suavisares a minha dôr , de me animares com o teu conselho a resistir á fatal imposição que me é feita , ainda me torturas mais com esse tom acrimonioso e hostil das tuas palavras ! Não te mereço isso ... As lagrimas da joven interlocutora de Paulo que , se realmente possue um rosto tão meigo como as suas palavras , de linhas tão suaves e puras como é doce o accento da sua voz , deve de ser uma creatura encantadora , pareceu abrandar um pouco o irritado animo do mancebo . -- Mas o que queres tu que te diga , minha querida , se eu noto que era vez de pensares em repellir a despotica imposição de teu pae , ainda tentas desculpal- o ? -- Não o desculpo ... digo apenas o que elle pensa . -- Mas que tenho eu que saber o que pensa teu pae ? O que desejo saber é o que pensas tu , minha querida ! o que é que tencionas fazer ? Que respondeste a teu pae ? Qual é a tua intenção ? Beatriz pareceu hesitar na resposta . -- Desejava ouvir-te , primeiro , Paulo ... desejava que me dissesses o que devo fazer ... -- Eu ? ! Pois é a mim que compete dirigir os teus actos ? É a mim que compete dictar a tua resposta ? Consulta o teu coração , Beatriz ... Elle que te responda e te diga a resolução que deves tomar ... -- Paulo ! O meu coração diz-me que só a ti pertenço , que só a ti eu desejo ter por marido ... Mas , bem vês , quando eu disser a meu pae que te amo , e que por ti estou decidida a recusar outro qualquer enlace , por mais vantajoso que se apresente , meu pae ha de perguntar-me quem és ... -- E tu dize-lhe que sou aquelle que julgas que eu seja . Ou vae tão longe a tua piedade por mim e o teu despreso por ti que , tendo-me na conta de indigno do teu amor , assim mesmo m ' o concedes ? -- Oh ! não , não , Paulo ! -- N ' esse caso , o que receias ? -- É que eu julgo-te com o coração ; meu pae , porém , ha-de julgar-te com a cabeça ; e entre o coração da filha e o cerebro do pae existe uma distancia tão grande , que eu receio bem que não possamos transpôl-a ... -- Se essa é a tua convicção e te faltam forças para resistir e luctar , submette-te e ... adeus ! Adeus para sempre , Beatriz ! ... Paulo ia a retirar-se . O animo orgulhoso e altivo d' este adolescente de 18 annos , que tinha já a energia e a vontade de ferro de um homem feito , não podia supportar sem protesto os timidos receios e as hesitações offensivas da mulher que adorava . -- Paulo ! -- tornou a chamar a joven . -- Escuta-me ! Que singular prazer tens em me atormentar , quando eu tanto preciso da tua compaixão e da tua piedade ! -- Fallas-me em tormentos , Beatriz , quando desde que aqui cheguei outra coisa não tens feito senão revolver-me n ' um perfeito inferno de torturas ! Acabemos com isto , e vamos direitos ao fim sem tergiversações nem rodeios . Teu pae impôz-te o casamento com esse ... rapaz , que deve ser por força rico , distincto ... amavel , emfim . E tu acceitaste ? -- Eu ... -- Hesitas na resposta e a tua propria hesitação me responde : acceitaste e vens dizer-me que está tudo terminado entre nós ... -- Oh , não ! -- accudiu a joven , com impeto . -- Eu não acceitei nem respondi como desejava . Pedi que me deixassem reflectir , porque o meu primeiro pensamento foi ganhar tempo , para poder combinar comtigo o que devo fazer ... -- O que deves fazer não seja eu quem t ' o diga . Teu pae é rico , Beatriz ; tu mesma és já herdeira de uma avultada fortuna , e eu sou pobre . Separa-nos , portanto , actualmente um abysmo ... Cuidei que poderia contar comtigo solteira e livre até ao dia , que não viria longe , em que eu pudesse apresentar-me a teu pae , a solicitar a tua mão , sem que o pedido revestisse o caracter humilhante para mim de uma tentativa de penetrar no sanctuario da riqueza pela porta do coração de uma mulher . Vejo , porém , que o destino quer o contrário ; que outro pretendente se apresenta com menos escrupulos ou mais dinheiro do que eu , e que da firmeza e constancia do teu amor nada tenho a esperar , se eu não me resolver a prestar-te o amparo incompativel com a minha dignidade de homem e com o programma que me tracei de só a mim dever o meu triumpho . Paciencia ! -- Paulo , tu não me conheces ! ou , se me conheces , estás sendo para mim de uma injustiça que mais tarde te ha-de fazer remorsos ... Escuta-me , meu amigo , escuta-me com serenidade e repara bem nas minhas palavras . E Beatriz , com voz tremula de commoção , principiou dizendo : -- Não conheces o caracter de meu pae e não admira por isso que julgues sêr- me coisa facil o contrariar-lhe os propositos ... Eu , porém , que o conheço , que por elle fui educada e com elle tenho vivido sob o jugo do seu genio rispido e severo , avalio bem que crueis amarguras e horriveis tormentos a sua colera me prepara na lucta que vou ser obrigada a sustentar , recusando-me a acceitar por esposo o homem que elle me escolheu . Não me intimida , porém , a perspectiva do soffrimento . Morrerei de bom grado na defesa dos sagrados affectos do meu coração e me-hei fiel ao juramento tantas vezes repetido do meu amôr . O que quero é ter a certeza de que a tua confiança me não abandona , Paulo ; que quaesquer que sejam as mudanças que se operem no nosso modo de viver e de nos relacionarmos -- mudanças que eu não posso prevêr por emquanto quaes sejam , mas que certamente hão de sêr as mais dolorosas para o nosso coração -- eu terei no teu espirito e na tua lembrança o logar a que o meu amôr me dá direito ... -- Beatriz ! -- exclamou o mancebo -- quando se ama como eu te amo ; quando se sente no peito a chamma ardentissima de um vivo e intenso amor que de todo nos senhoreia o espirito e nos absorve a existencia , lucta-se , soffre-se , morre-se , mas não se esquece jámais o nome d' aquella que nos inspirou tão fervoroso culto ! -- Pois bem , meu Paulo ! É possivel que o destino nos reserve dias bem sombrios de uma ausencia crudelissima , que ha-de retalhar-nos o coração e quasi volver-nos** loucos de desespero . Sejam quaes forem as circumstancias em que nos encontremos , sejam quaes forem as apparencias que me condemnem , não duvidarás nunca da lealdade do meu affecto como eu não duvidarei , jámais da sinceridade da tua alma , não é verdade ? -- Fazes-me estremecer de receio , Beatriz ! Decerto exaggeras o pavoroso quadro dos nossos infortunios ... -- disse o mancebo , pallido de commoção . -- É que tu não conheces meu pae ! -- Que poderá elle fazer , se tu recusares tenazmente esse enlace como uma violencia imposta ao teu coração ? Antes de tudo , tu és sua filha ; e um pae , por muito severo e rispido que pareça , não se transforma por simples capricho no algoz d' aquella a quem deu o sêr . -- Não sei ... não posso dizer-te nada por emquanto , senão que tudo espero d' este funesto designio manifestado por meu pae ... Mas seja como fôr , jura-me que não duvidarás nunca da mim , que has-de sempre confiar na tua Beatriz como n ' aquella que mais te ama no mundo . -- Juro-te , meu amor , que serás minha e que não te has-de encontrar só na lucta e no soffrimento . Tenho amigos -- continuou Paulo -- amigos poderosos , contra os quaes não é facil nem prudente luctar ... Com elles conto como " irmãos " e n ' elles espero encontrar o auxilio de que ambos carecemos . Não te assustes nem te deixes dominar pelo terror . Hontem , ainda desprotegido , poderia talvez apavorar-me a ideia da minha fraqueza contra inimigos tão poderosos como é teu pae ; hoje , conscio de que os brados intimos do meu coração ameaçado de morte encontrarão ecco n ' outros corações que me são dedicados , levanto-me orgulhoso e altivo do teu amor , e digo-te : " Não succumbas , anjo da minha alma ! Tem confiança em mim , que havemos de vencer " . O tom de absoluta segurança com que Paulo proferiu estas palavras pareceu transmittir novo alento á joven . -- Luctarei -- disse ella -- e agora com mais energia , desde que nas tuas palavras tenho o penhor de que não será perdido o meu sacrificio . Nada mais te pedia e nada mais te peço do que essa confiança inabalavel na constancia do meu amor . Ama-me como eu te amo , Paulo ! e d' este sentimento , que é a vida , hauriremos forças para resistir aos embates de uma sorte cruel e adversa ! Trocaram-se ainda novas juras e protestos de constancia e amor sem fim , despedindo-se , e promettendo tornar a ver-se na noite seguinte . O leitor , eivado do realismo da epoca , certamente está sorrindo do córte romanticamente amoroso e piegas d' este dialogo dos dois namorados . Effectivamente , a menina tem a phrase um tanto brunida e lustrosa das heroinas dos romances d' outras eras , o que dá um tom de inverosimilhança ao lance ingenuamente sentimental . Mas o romancista , se copía do natural como nós o estamos fazendo , não tem remedio senão acingir-se á verdade e reproduzir os seus personagens com os aleijões que a natureza , as condições do meio ou os acasos do nascimento e da educação lhes imprimiram no corpo ou no caracter . Esta menina , assim romanticamente apaixonada , exprimindo-se em termos de um antiquado sabor litterario , não nos está revelando uma assidua e ingenua leitora das novellas de Camillo ? Claro está que ella reproduz incorrectamente o que de peor podia haurir na leitura do genial escriptor -- a emphase , o arredondado do periodo , a declamação cantante , sem os esmêros da dicção , sem a impeccavel belleza e elegancia de fórma do grande Mestre . Mas o facto É que ella , em assumptos de coração , não podia exprimir-se de outra maneira , visto que , como mais tarde teremos occasião de averiguar , foi nas paginas soluçantes do " Amor de Perdição " que aprendeu a traduzir as primeiras balbuciações do seu amoroso coração de creança . Paulo tambem , pela sua parte , influenciado pelas mesmas leituras , correspondia-lhe no tom e no gosto do seu arrasoado . Se , porém , esta linguagem póde ser capitulada de falsa , o mais espantoso é que ella exprimia um sentimento profundamente verdadeiro . Os dois amavam-se com entranhado ardôr , e isso é o que mais importa saber ao leitor inimigo de divagações . Ponhamos , pois , de parte a preoccupação de responder a reparos que a grande maioria certamente não fará e digamos em poucas palavras o que foi feito de Paulo , desde que , cerrada a janella da sua amada , teve que retirar-se a passos apressados para que a chuva , que começava a cair em grossas gôtas , o não surprehendesse na rua tristemente deserta . O mancebo era estudante . Tinha completado o curso do Lyceu e matriculara-se no primeiro anno da Academia . O padre||_Filippe Filippe|_Filippe , seu protector e amigo , era quem se dizia encarregado de lhe fornecer os meios de subsistencia e de estudo . Não o tinha , porém , na sua companhia . Incumbira-o aos cuidados de uma familia honesta , onde era tratado como filho , e limitara-se apenas a exigir que o " seu estudante " o fosse visitar duas vezes por semana , nas quintas e nos domingos , á casa que elle habitava , na rua Chã . Paulo não conhecera outra familia , além d' aquella em casa de quem o hospedaram aos doze annos . Até ahi , que se lembrasse , fôra alumno interno d' um instituto religioso , onde umas irmãs piedosas o trataram com o carinho de mães , ficando-lhe d' esse internato uma recordação tão saudosa que , ainda agora , ia a meudo visitar a abbadessa , madre||_Paula Paula|_Paula , que tinha no seu coração o primeiro logar . Recolhendo a casa na manhã d' aquella noite accidentadissima , o mancebo não pôde dormir . Agitadissimo , recordando o seu passado , em que parecia haver um ponto escuro que o mortificava , Paulo resolveu erguer uma ponta do veu mysterioso que encobria o seu nascimento . No dia seguinte , pelas 10 horas , dirigiu-se a casa do seu protector , e sem mais preambulos , disparou-lhe esta pergunta á queima roupa : -- Diga-me , padre : quem é meu pae ? O padre||_Filippe Filippe|_Filippe , surprehendido pelo imprevisto da pergunta , pôz no mancebo os olhos espantados e ficou-se a consideral- o em silencio por alguns momentos . -- Porque me fazes essa pergunta , Paulo ? -- disse por fim . -- Porque sou um homem , porque tenho já dezoito annos , e desejo saber d' onde venho , para poder destinar para onde vou , ou para onde devo ir ... respondeu o mancebo com firmeza . O padre||_Filippe Filippe|_Filippe sorriu bondoso a esta replica do moço e continuou a olhal- o fixamente . -- Paulo -- disse elle afinal -- se dizes que és um homem , como póde influir no teu destino o saberes ou deixares de saber o nome d' aquelles a quem deves a existencia ? És um homem ; e todos os homens devem ser guiados pelo mesmo sentimento do bem , todos devem caminhar para o mesmo fim : serem uteis a si e á humanidade . Creio que o facto de cada um saber ou ignorar o nome de seus paes nada influe ou nada deve influir no destino que lhe está traçado . -- Perdão , meu bom amigo ! -- objectou Paulo -- Todo o homem tem o direito , creio eu , de conhecer a sua origem , de saber o nome dos seus progenitores , não só para os respeitar e bemdizer pelo beneficio da vida que lhe concederam , mas ainda para nortear os seus actos pelas tradições da sua familia . Por isso insisto na pergunta : quem é ou quem foi meu pae ? -- Teu pae -- tornou o padre placidamente e agora de todo reposto do sobresalto que lhe causára a pergunta -- teu pae é ou foi um homem . D ' isso não te deve restar duvida , pois que homem te dizes já e como homem te apresentas . -- Mas não tinha nome esse homem ? -- Se o tinha , não chegou nunca ao meu conhecimento . -- Nem o nome de minha mãe ? -- Nem o nome de tua mãe . -- Como é , pois , que eu me chamo Paulo de Noronha ? -- Naturalmente porque aquelles que te deram o sêr assim quizeram que te chamasses . -- Assim quizeram ! A quem manifestaram elles essa vontade ? São ainda vivos ? Se o são , porque se occultam e me não apparecem ? Se morreram , porque motivo deixaram envolto no mysterio o meu nascimento ? -- A nenhum filho é licito discutir e muito menos censurar os actos de seus paes . -- Mas eu não censuro , nem sequer discuto ! -- obtemperou Paulo -- eu apenas pergunto . -- Ha perguntas que envolvem censura , se não para aquelles a quem se fazem , pelo menos para aquelles de quem se fazem ... Mas dize-me , Paulo , que estranha curiosidade é essa que assim te move a querer saber o que por emquanto deves ignorar ? O mancebo hesitou por alguns instantes e por fim disse : -- Padre Filippe , permitta-me que lhe falle com franqueza e lhe exponha as duvidas que ha tempo a esta parte me obcecam o espirito e me fazem reflectir na minha estranha situação ... -- Falla , meu amigo , falla ! -- animou o padre bondosamente -- e crê que , a não sêr madre||_Paula Paula|_Paula , ninguem no mundo merece tanto como eu a tua confiança . -- Pois bem ! -- tornou Paulo -- ha muito tempo que eu dirijo a mim mesmo estas perguntas : Quem sou eu ? De que familia descendo ? Como se chamam ou se chamavam meus paes ? Todos os meus condiscipulos dizem de quem são filhos , todos repetem com orgulho o nome dos paes ou relembram com saudosa ternura o nome das mães . Todos dizem : " a minha casa , a minha familia " , só eu não posso dizer -- " meu pae " , " minha mãe " , porque são entes que não conheço , de que nunca ouvi fallar , de quem não tenho a menor noticia . Dar-se-ha caso que eu não tivesse pae , que não tivesse mãe ? Mas então a quem devo eu a minha existencia , o amparo e protecção que até agora tenho recebido ? Sou um orphão ? Sou um engeitado ? Vivo e alimento-me do que por direito de nascimento me pertence , ou recebo a esmola de nobres almas compassivas ? No primeiro caso , se tenho direitos , reclamo-os , porque esses direitos impõem-me deveres que eu quero respeitar e cumprir . No segundo , como sou já um homem e tenho o braço bastante robusto para ganhar o pão da existencia , não devo por mais tempo acceitar criminosamente a caridade que me trouxe até aqui e que póde fazer falta a outro desgraçado como eu ! -- Paulo ! -- disse o padre||_Filippe Filippe|_Filippe , fundamente commovido -- és ainda muito novo para te preoccupares com assumptos que , por emquanto , devem permanecer envoltos no véo do mysterio que os encobre aos teus e aos meus olhos . Eu nada te posso dizer , filho . -- É então á caridade de vossa reverendissima e de madre||_Paula Paula|_Paula que eu devo o pão que até agora me tem alimentado , não é assim ? -- perguntou o mancebo , extraordinariamente commovido e pallido . -- Não ! Não ! -- atalhou padre||_Filippe Filippe|_Filippe . -- Eu recebi de um meu superior , a quem assisti nos ultimos instantes , o encargo de velar por ti e de applicar ás despezas da tua sustentação e educação a quantia que mensalmente me é enviada por pessoa que desconheço e que já antes a enviava ao santo sacerdote que me legou este encargo . A mim nada me deves , meu filho , senão a grande estima que tenho por ti e o grande desejo que sinto de te vêr conquistar uma posição digna e honrosa na sociedade . Paulo calou-se . As palavras do padre||_Filippe Filippe|_Filippe , repassadas de suavidade e doçura , impressionaram-n* ' o profundamente . -- Estou então condemnado -- disse elle , passados instantes -- a ignorar toda a vida o nome de meus paes ? -- E de que te valeria o sabel- o ? -- De que me valeria ! me-hia de não ter que córar diante de quem me interrogar a esse respeito ! me-hia de não ter que recuar envergonhado e confundido diante de uma familia honesta que , antes de me admittir como filho em seu seio , terá que perguntar-me o nome de meus paes ! me-hia , emfim , de não me encontrar n ' esta horrorosa situação de não saber quem sou , se o portador legal de um nome honrado , se o vil e abjecto fructo de uma acção indigna , de um amor bestial e criminoso ! Ouvindo esta retumbante tirada do moço , o padre||_Filippe Filippe|_Filippe sorriu ainda amoravel e observou-lhe : -- Os tempos mudaram e com elles a orientação da sociedade moderna , meu Paulo . Já nenhum homem se impõe hoje pela familia , pelas tradições dos seus antepassados , pelas chimericas e phantasticas illusões de uma arvore geneologica , bracejando vergonteas e rebentões inuteis pelos seculos fóra . Nenhum homem vale hoje pelo que valeram seus paes e seus avós ... Hoje , cada um vale por si , pelos seus merecimentos proprios , pelas nobres qualidades do seu caracter , pelas brilhantes manifestações da sua intelligencia . A tendencia democratica dos nossos tempos de ha muito que pôz de parte as falsas convenções de uma sociedade que se desmoronou ... -- Mas não pôz de parte , creio eu , os dictames da honra ! -- retorquiu o mancebo . -- Decerto . E alguem te impede de te affirmares sempre um homem honrado , Paulo ? A honra está nos nossos actos , está no uso que fazemos das faculdades com que a natureza nos dotou , está na firmeza e altivez com que , através de todas as vicissitudes , cumprimos intemeratamente o nosso dever ; não está nos acasos do nascimento , nos brios de passados avoengos , nos appellidos pomposos dos que nos deram o sêr . Faze , pois , por merecer a estima e o respeito dos teus concidadãos , Paulo , e não te preoccupe a ideia de não saberes de quem vens . Basta que apenas conheças para onde vaes e sigas sem tergiversar a linha do dever . O mancebo guardou silencio por alguns instantes . -- É , pois , um mysterio impenetravel o meu nascimento ? Mas com que direito se me occulta o nome de meus paes ? Com que direito me condemnam a esta lucta permanente comigo mesmo , sem saber se o que me dão o devo receber como meu , se o devo considerar como uma esmola ? -- Paulo ! Por duas vezes já , desde que aqui entraste , proferiste a palavra " esmola " . As esmolas dão-se aos desgraçados , aos invalidos , aos que se encontram impossibilitados de , por esforço proprio , provêrem aos meios de subsistencia . Tu não estás n ' esse caso . Quando muito , o que recebes de mão ignota que não precisas conhecer , é um adiantamento , uma divida que contrahes e que te será facil solvêr , correspondendo dignamente ás esperanças que em ti depositaram os que quizeram fazer-te um bom cidadão , um homem util a ti e aos teus semelhantes . E sobre isto , meu amigo , creio que temos fallado bastante . Dize-me -- continuou o padre||_Filippe Filippe|_Filippe -- tens ido visitar madre||_Paula Paula|_Paula ? -- Ha mais de quinze dias que a não vejo . -- És ingrato , Paulo ! A pobre senhora deve ter estranhado a falta da tua visita ... Como é que pódes esquecer assim por tanto tempo quem tantas provas de carinhoso affecto te tem dado ? -- Padre -- disse Paulo , ruborisado -- eu não esqueço , nem poderei esquecer nunca quanto devo a essa bondosa e santa senhora , que tem tido para mim desvelos e ternuras de ... de mãe . Na minha vida , porém , começam a surgir tão imprevistas luctas , incidentes de tal modo inquietadores , que não sei se deva perturbar com a minha presença o suave remanso d' aquella existencia para mim tão cara ! -- Luctas imprevistas , incidentes inquietadores ... -- o que é isso , Paulo ? Falla-me com franqueza , dize-me tudo , rapaz ! o que é que te acontece de estranho e de ameaçador ? Não te esqueças de que deves considerar-me o teu primeiro e mais sincero amigo , meu filho ! Creio que tenho direito á tua confiança ... Ou não ? -- Respeito-o muito , meu padre , para vir importunal- o com assumptos que lhe parecerão talvez pueris ... -- Bem sei ! ... Negocios do coração ... Temos amores no caso ... São os primeiros rebates da virilidade no coração de um adolescente . Vamos ! quem é a tua Virginia , meu Paulo ? -- perguntou jovialmente o sacerdote . -- A minha Virginia -- disse o mancebo , com enthusiasmo -- chama-se Beatriz , e não é menos formosa nem menos adoravel do que a immortal inspiradora do Dante . -- Bravo ! -- exclamou rindo o padre||_Filippe Filippe|_Filippe . -- Temos , pois , em perspectiva uma " comedia divina " , para fazer confronto com a " Divina Comedia " ... -- Se não tivermos antes um drama extraordinario , até agora inédito na historia dos soffrimentos humanos ... O padre encarou-o gravemente . -- Fallas serio , Paulo ? -- Tão serio que me atrevi a vir interrogal- o , padre||_Filippe Filippe|_Filippe , sobre a historia do meu nascimento . -- Ah ! era por isso que vinhas assim n ' essa ancia , pedir-me a chave do enygma da tua existencia ? Eu devia tel- o adivinhado ... Só as mulheres são curiosas por indole ... -- Não , não ! -- atalhou Paulo . -- A mulher que eu amo ainda não me fez a menor pergunta que me difficultasse a resposta . Eu , porém , é que desejo saber quem sou para saber o que posso offerecer-lhe . -- Pois não é sufficiente o coração do homem que ama para a mulher amada ? -- Padre , a mulher que eu amo não é livre ; tem pae , que se julga com direito a intervir no seu destino e a impedir que sua filha busque a alliança de um homem de origem ... desconhecida . -- Foi essa menina quem t ' o disse ? -- disse-m ' o a minha propria razão . -- Queres um conselho , Paulo ? -- perguntou inopinadamente o padre||_Filippe Filippe|_Filippe . -- Os conselhos de vossa reverendissima são para mim leis sabias e justas , que eu não posso deixar de acatar com o respeito e gratidão que lhe devo . -- Pois bem ; refreia os impetos da tua paixão por essa menina e busca antes de tudo fazer-te digno do seu amor . -- Já o sou . -- Pelos dotes do coração , concordo , mas não pela posição social alcançada . O primeiro que o pae d' essa menina ha-de perguntar-te , quando souber que lhe pretendes a mão da filha , é com que recursos contas para proporcionares a tua mulher a felicidade e o bem estar a que ella tem direito . Quererá saber que posição é a tua , que profissão exerces ou de que meios de fortuna dispões para poderes dignamente apresental- a na sociedade ao respeito e á consideração das pessoas de bem . E comprehendes , meu Paulo , que a taes perguntas não se responde com uma certidão de baptismo que nos dá avós illustres de quem não herdámos um palmo de terra onde cahir mortos , nem com a reedição apaixonada dos mil juramentos de amor constante que enviamos á filha em perfumadas cartinhas que lá estão , em maço , amarradas com fita de seda ... O mancebo não pôde deixar de sorrir a estas palavras do padre||_Filippe Filippe|_Filippe , que denunciavam um profundo conhecedor da arte do galanteio . -- Os paes não se contentam com tão pouco , exigem mais alguma coisa -- continuou o sacerdote -- Ora esse " mais alguma coisa " é que está na tua mão offerecer-lh ' o , Paulo . Conquista pelo estudo e pelo trabalho honesto uma posição que te nobilite aos olhos do mundo ; engrandece-te a ti proprio , torna-te homem ; e quando a tua consciencia te disser que não és inferior á mulher que amas , vae pedil-a e não receies que o pae te não encontre bastante nobilitado para entrares na sua familia . -- Mas o pae de Beatriz quer casal- a com outro ! -- exclamou o mancebo , dando largas ao desespero que lhe ia na alma . -- O pae d' essa menina sabe que ella te ama ? -- Não sabe . -- É , pois , natural que , julgando o coração da filha desligado de qualquer affeição , pense em lhe proporcionar um enlace que lhe parece vantajoso . Todos os paes pensam no futuro de suas filhas e esse não o seria , se desdissesse da regra geral . Mas d' ahi a violentar-lhe o coração e a impor-lhe á força um casamento que ella rejeita , vae uma distancia enorme . Se essa menina te ama sinceramente , como dizes , recusará o consorcio que o pae lhe proporciona , allegando motivo que para todos os paes deve ser sagrado -- a ausencia absoluta de sympathia pelo noivo proposto . Se , pelo contrario , o sentimento que diz nutrir por ti não é tão vivo e intenso que lhe permitta a recusa , casar-se-ha , e com o facto só tu tens a lucrar , pois que assim te livras do escolho de vires a possuir por companheira uma creatura incapaz de corresponder ás nobres aspirações da tua alma . Não creio , pois , que isso seja contrariedade de maior , que te dê motivos para os sobresaltos e inquietações que revelas . Vae visitar madre||_Paula Paula|_Paula , meu rapaz ... Conta-lhe os segredos da tua alma , nada lhe occultes , e verás como nas suas palavras e conselhos has-de encontrar o socego e quietação que precisas ... Isto não é desviar de mim o encargo de te guiar e dirigir no accidentado caminho a que o coração te propelle -- accrescentou o padre -- Mas é que as mulheres , em questões do coração , teem mais auctoridade , são mais profundamente conhecedoras da mysteriosa sciencia do sentimento alheio , e teem sobretudo um poder de persuasão que a nós outros os homens nos fallece . Procura madre||_Paula Paula|_Paula , conta-lhe tudo , escuta as suas palavras e verás que has-de sentir-te bem , meu filho . -- Procural-a-hei -- disse Paulo -- mas creio bem que não poderá aconselhar-me melhor do que vossa reverendissima acaba de o fazer ; nem as palavras da santa e virtuosa senhora poderão trazer mais funda ao meu espirito a convicção que vossa reverendissima me deu de que preciso engrandecer-me , fazer-me " homem " para conquistar a posse da mulher que amo ! -- Folgo de ver que comprehendeste bem o intuito das minhas palavras , Paulo . Crê que ninguem mais do que eu deseja a tua felicidade e o teu bem estar . Se fosses meu filho , não te aconselharia de modo differente nem desejaria com mais ardor ver-te ascender a uma posição culminante . D ' isso pódes estar certo . -- Trabalharei e empregarei todos os esforços para realisar os desejos de vossa reverendissima -- que são tambem os meus . -- E conseguil- o-has , porque és intelligente , és energico , e revelas nobreza de caracter . Com taes predicados , só não alcança uma posição distincta na sociedade quem não quer . Agora , reanimado pela esperança que as palavras do padre||_Filippe Filippe|_Filippe lhe incutiram , o mancebo despediu-se do seu protector , mais que nunca resolvido a encetar a lucta pela vida e pelo triumpho completo das nobres aspirações do seu amoroso coração de rapaz . Pae e filha Emquanto o pupillo do padre||_Filippe Filippe|_Filippe e de madre||_Paula Paula|_Paula busca a maneira de realisar os dourados sonhos da sua imaginação juvenil , queira o leitor acompanhar-nos a casa do pae de Beatriz e travar conhecimento com o sombrio progenitor da encantadora menina . Não tendo nós os mesmos motivos de Paulo para occultar do pae as relações com a filha , justo é que busquemos o conhecimento de ambos e entremos na intimidade dos dois para melhor podermos avaliar o caracter de cada um e apreciar os acontecimentos que vão desenrolar-se aos nossos olhos . Á hora a que entramos , está o sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus sentado á secretária do seu gabinete , fazendo contas e archivando documentos que parece lhe são muito uteis , pela attenção e minuciosidade com que os examina e pelo cuidado com que em seguida os guarda emmaçados e rodeados de uma larga cinta de papel branco , em que se lê n ' uma excellente letra garrafal , a palavra -- Hypothecas . -- Estas bem estão -- murmura elle coçando distrahidamente com a mão direita a vasta suissa grisalha , talhada em fórma de foucinha e franzindo o labio superior completamente rapado á navalha , talvez para facilitar a passagem do meio grosso destillado e liquifeito em repetidas pitadas nas profundezas insondaveis de um nariz que exteriormente apresenta a configuração e o aspecto de um capacete de alambique -- Estas bem estão ... O peor são as outras ... Passou a examinar segundo maço , mostrando no rosto evidentes signaes de mau humor . -- Aqui está ! -- disse elle , batendo com a mão espalmada sobre os papeis -- Mais de cincoenta contos em hypothecas que não pagam ha um anno um real de juro ! Ladrões ! E agora são capazes de ainda vir fazer questão para juizo e arranjar-me a tramoia de modo que eu não fique com as propriedades pelo preço da louvação ... Como correspondendo a estas reflexões , que accusavam no sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus um agiota costumado a perseguir as suas victimas até as espoliar em leilão , nos tribunaes , abriu-se a porta do escriptorio e entrou por ella um homem alto , espadaudo , porém excessivamente magro , usando uma comprida barba que quasi- lhe chegava á cintura e que lhe dava á physionomia um aspecto carregado , ameaçador , capaz de apavorar o mais remisso devedor , o mais teimoso dos litigantes . Este homem entrou como pessoa intima na casa , cerrou a porta sobre si , dirigiu-se a uma cadeira que estava devoluta junto da secretária , e sentou-se sem mesmo se dar ao incommodo de tirar o chapéo que lhe ensombrava o barbudo rosto . Ao vêl- o , o sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus teve um sorriso de intimo contentamento e exclamou : -- Estava agora mesmo a pensar em você , amigo Belchior ! -- Aqui me tem . Os amigos lembram sempre na occasião ... Não vim mais cedo porque tive de ir ao tribunal requerer um arresto ... E amanhã tenho outro ... Isto é um nunca acabar de caloteiros , que só gostam de comer e não pagar ! Mas aquelle que me cahe nas unhas e tem por onde pagar , amola-se ! Deixo-o expremido que nem um limão . -- É o que eu preciso que se faça a estes tratantes que aqui estão com o juro por pagar ! -- exclamou o sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus , apontando para as escripturas que tinha diante de si . -- Não se afflija , que isso é negocio de pouca demora ... Qualquer dia tratamos d' isso . Sabe ao que eu cá venho ? -- Você o dirá , amigo Belchior . -- O rapaz , pelas informações que tenho d' elle , e um partidão ! -- Sim ? -- Não imagina ! É mesmo mais rico do que eu supunha ... O melhor que temos a fazer é não perder tempo e tratarmos de aferventar isto quanto antes . -- Você bem sabe que o caso não é para pressas , amigo Belchior ... Eu mesmo tenho receio do rapaz ... Diz você que elle tem uma grande fortuna , e eu mesmo não duvido que assim seja , mas quem é que me assegura que elle não tem a maior parte dos haveres compromettidos , ou que não possa vir a compromettel-os ? -- Quanto á primeira hypothese , posso affirmar-lhe que o rapaz tem sido estroina , tem gasto em passeios , em ceias com as actrizes , tem finalmente pago o seu tributo á mocidade ... Mas todas essas rapaziadas não teem desfalcado o rendimento , que é grande ... Quanto á segunda hypothese , é provavel que elle , depois de casar com sua filha , mude de feitio e comece a portar-se como homem sério ... Mas se o não fôr , tanto melhor ... -- Tanto melhor , como ? -- interrogou o sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus , indignado . -- Então é melhor que minha filha case com um valdevinos , um dissipador , um extravagante ? Bonita moral a sua , seu Belchior ! Pois eu , meu amigo , desde já lhe declaro que o que tenho me custou muito a ganhar , e não é para o vêr dissipado em patuscadas e ceias ás actrizes ! -- O meu amigo Custodio de Jesus saberá muito bem como é que se ganha dinheiro , como se descontam letras e se empresta a juro sobre hypotheca ; mas o que não sabe é nada de jurisprudencia -- disse o Belchior com emphase . -- É preciso que o meu amigo se lembre de que sou solicitador ha mais de vinte e cinco annos , e que , durante todo este tempo , tenho adquirido conhecimentos que me habilitam a segurar o que é meu e o que é dos meus constituintes ... -- Não digo que não , mas essa theoria , com franqueza , não me agrada ... Lá que o rapaz tenha tido estroinices , emfim , não é bom precedente , mas desde que elle ainda possue uma casa grande , de vasto rendimento , tudo se lhe póde perdoar e esquecer com a condição de mudar de vida e de costumes dissipadores , logo que ligue o seu destino ao de minha filha . Mas agora achar melhor que elle continue nas suas dissipações e loucuras , do que se emende e seja um bom marido , isso é que me não entra cá ! -- É o que eu digo ! -- volveu o procurador com desdem -- não sabem nada da lei e mettem-se a discutir com quem conhece a letra dos codigos ! -- Os codigos , amigo Belchior , pódem dizer o que quizerem , mas o que elles não pódem é metter-me em cabeça que um marido estroina é muito melhor do que um marido economico , morigerado e amante de sua mulher . -- É porque o amigo e sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus -- respondeu o procurador , formalisado -- não sabe que a lei faculta uma acção de interdicção contra o marido prodigo , e confere a administração do casal a uma ou mais pessoas de familia . O Custodio de Jesus arregalou os olhos , espantado . -- O quê ? o que é isso ? Explique lá , homem , que eu não percebi bem . -- Não tem que explicar . Não se fazem escripturas , de modo que a noiva tem a meação nos haveres de seu marido , como o marido a tem nos haveres da mulher . Ora a administração do casal pertence de facto e por lei ao marido ; mas se este , em vez de administrar parcimoniosamente , se entrega a dissipações e patuscadas escandalosas , á mulher assiste o direito de requerer a interdicção do marido e pôr-lhe uma tutela que , n ' este caso , poderia muito bem ser exercida pelo meu amigo o sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus ... Ora percebe agora a razão por que eu digo que mais valerá que elle continue a affirmar-se um estroina , um dissipador de marca ? -- Realmente você , amigo Belchior , é uma cabecinha privilegiada ! exclamou enthusiasmado o pae de Beatriz . -- Porque não estudou você para doutor ? O procurador sorriu com bonhomia e encolheu os hombros com despreso : -- Não me faz falta -- disse . -- Conheço tão bem a lei como aquelles que fôram a Coimbra . Por isso lhe digo , não deixe perder esta bella occasião de apanhar uma fortuna , que decerto lhe não voltará tão cedo a bater á porta outra igual ... Case a pequena quanto antes com o doidivanas que se lhe offerece , e deixe o caso por minha conta . -- Eu já disse á minha Beatriz que fazia muito gosto em que ella acceitasse por marido este rapaz ... -- E ella , o que respondeu ? -- Como o meu amigo póde bem avaliar , minha filha , que até agora não tem pensado em casamento , caiu das nuvens quando lhe fallei em casar . -- Mas manifestou repugnancia em acceitar o marido que se lhe propõe ? -- Ella pediu-me que a deixasse pensar na resposta ... Emfim ... deseja consultar o seu coração , e isso não se lhe póde levar a mal ... -- Bem ! Mas supponha que ella recusa ... ? -- Que motivo terá para recusar quando sabe que a minha vontade é que este casamento se faça e quando o noivo é realmente uma bella figura , capaz de captar as sympathias da menina mais exigente ? -- Mas supponhamos que recusa ! -- Insistiu ainda o procurador . -- Não posso suppôr tal cousa , porque não estou habituado a que , em minha casa , alguem tenha vontade differente da minha . -- Nas pequenas questões da vida domestica , d' accordo ... eu creio que o meu amigo tenha sido e continuará a ser completamente obedecido ... Mas n ' este caso talvez não encontre a mesma cega obediencia que suppõe ... -- Por que ? -- Porque as mulheres , quando encarreiram as suas affeições para um lado , não ha diabo que as faça voltar para outro , amigo e sr.||_Custodio Custodio|_Custodio ... -- o que quer dizer com isso , amigo Belchior ? -- Quero dizer que se a Beatrizita já tem por ahi namoro que lhe faça andar a cabeça á roda , ao meu amigo não lhe será tão facil como julga o fazer que ella obedeça á sua vontade ... -- Namoro ! A minha Beatriz é uma creança de dezeseis annos e não pensa n ' essas tolices ! -- protestou o sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus encrespando o sobr'olho . -- Isso é bom para aquellas raparigas que são educadas á redea solta e que não teem paes que lhes saibam dar educação ... Namoro ! Eu admittia lá que uma filha minha tivesse namoro ! -- As filhas nunca pedem licença aos paes para essas coisas ... -- commentou o outro . -- As filhas que não respeitam os paes ou que não teem paes que se façam respeitar , d' accordo . Mas em minha casa não se dá isso ... -- E se se desse ? -- Se se desse ! Você sabe alguma coisa , Belchior ? -- Se se desse , é o que eu pergunto ? -- retorquiu o procurador com um sorriso mysterioso . -- Se se desse , ia ahi tudo com seiscentos diabos ! Fechava a rapariga n ' um quarto , que não tornava a vêr sol nem lua , emquanto não fosse á egreja casar com quem eu dissesse ! -- bramiu o sr.||_Custodio Custodio|_Custodio de Jesus , assentando furioso murro sobre as escripturas das hypothecas em divida . -- Mas você sabe alguma coisa ? Homem , seja franco ! -- Pois então fique o amigo Custodio sabendo que temos moiro na costa e que a pequena ... mas você não vá agora fazer asneira ... estas coisas levam-se com prudencia ... -- Diga , diga , homem ! -- insistiu o capitalista afflicto . -- Sabe que a minha filha ... -- Tem um namoro . E então ? É a coisa mais natural d' este mundo . -- Você falla serio ? -- Não costumo brincar com coisas d' estas . Quando eu lhe digo que sua filha se corresponde com um rapaz a quem vae fallar da janella para a rua todas as noites , é porque tenho d' isso a certeza . Custodio de Jesus levantou-se de um salto como mordido da tarantula . -- Você não me repita isso nem a brincar ! -- bramiu elle -- porque eu vou-me áquella desavergonhada e racho-a ! -- Mau ! assim não fazemos nada ! -- reprehendeu o procurador -- Aqui o que convem é saber o que se passa e tratar de encaminhar as coisas de modo que o projectado casamento com o nosso rapaz se realise o mais breve possivel ... -- Mas quem é , quem é esse outro que ella namora ? -- É um estudantito ... um rapaselho . -- Rico ? -- interrogou o Custodio arregalando os olhos . O procurador soltou uma gargalhada . -- Você , amigo Custodio , cuida que os rapazes ricos andam por ahi aos pontapés ! Isto hoje é tudo uma pelintrice , você bem o sabe ... Quando apparece um como o Eugenio , é um milagre ! Porisso é que eu digo : vamos a deitar a unha a este , porque se o deixamos escapar não apparece outro tão cedo ... O Custodio de Jesus passeava agitado pelo aposento , quasi sem prestar attenção ás palavras do procurador . -- Mulheres ! Raça maldita ! Nasceram só para enganar ! -- blasphemava elle -- Até esta , de 16 annos , creada com todo o recato , longe das sociedades , retirada das más companhias , até esta , que parecia uma innocente , me sae á ultima hora a corresponder-se com um namoro , sem que eu , que sou pae e ando sempre com mil cuidados e cautelas a vigiar-lhe os menores movimentos , tenha dado por isso ! -- Amigo Custodio -- obtemperou o procurador -- não vale a pena affligir ... Não é caso de morte de homem ou casa queimada ... Que diabo ! eu disse isto porque entendo que a você , como pae , convem saber o que se passa para saber como ha de proceder ... -- Como hei de proceder sei eu ! -- rugiu colerico o pae de Beatriz -- Ponho-a de pé descalço a fazer o serviço da casa , a varrer , a lavar a louça , a cosinhar , para lhe tirar o vicio ! Se tem sentimentos de criada de servir , que seja criada de servir em tudo ! -- Homem , eu desconheço-o ! -- reprehendeu severo o Belchior -- Tinha-o na conta de um homem de juizo , um homem prudente que sabe o que lhe convem e que respeita os seus interesses , e você sae- me a querer fazer tolices e disparates que não lembram a ninguem ! -- É que você não sabe o odio que eu tenho ás mulheres ! -- explicou o Custodio -- Esta filha veio para meu castigo ! -- Não veio para seu castigo nada ! Apparece-lhe um casamento bom para ella , um casamento de primeira ordem ? Aproveite-o , trate de a casar por bem ou por mal ... isso sim , senhor ! Mas agora romper no excesso de a pôr a fazer de servilheta , isso é dar murros em si proprio , amigo Custodio . Ora imagine que você faz isso , e a pequena desesperada lhe foge ... E depois ? Você desherdal-a não póde , porque ella é sua filha . Além d' isso ; já não tem mãe e mais tarde ou mais cedo tem que entrar na posse da herança materna ... Homem , prudencia ! ... levemos as coisas por bem , que é melhor ... -- Tem razão ! -- concordou por fim o Custodio -- Mas olhe que é para um homem arreliar ! Não ha ninguem mais infeliz com as mulheres do que eu ! -- desabafou com o desespero de quem tocou a méta do soffrimento -- Eu fui casado duas vezes ... A primeira mulher , a Carlota , sahiu-me uma bebeda , uma desavergonhada que toda a vida me atraiçoou com um padre em quem eu tinha toda a confiança e que até por ultimo me roubou , levando-me tudo , deixando-me a pedir uma esmola ! ... Veja lá você ! Eu era um bolas que não sabia nada do mundo , via Deus no céo e a mulher na terra , tudo o que ella dizia era o que se fazia , e afinal o pago que me deu foi aquelle ! Tambem a levou o diabo , que lá se envenenou em Lisboa , e tão infame que até á hora da morte deixou um bilhete a dizer que se matava por minha causa ! Isso foi uma coisa muito fallada , até andou nas gazetas ... -- Espere lá ! ... D. Carlota ? Tenho ideia de lêr isso ... -- Foi ha dezoito annos ... -- Sim ... ha de haver esse tempo , ha de ... -- Pois , meu amigo , o ladrão do padre arranjou-me uma tramoia de umas letras que eu acceitei a um outro maroto como elle , um tal João Ignacio ... -- Bem sei ! Conheço perfeitamente . Esse homem tambem parece que deu com tudo á costa . Até esteve doido , e a sua mania é que tinha sido roubado por um padre ... -- Era o mesmo ... o padre||_Anselmo Anselmo|_Anselmo ! Um ladrão , um malandro com capa de santo , que foi a minha desgraça ! Se não fosse elle metter-se-me com a mulher e roubar-me tudo , eu tinha a estas horas mais de quatrocentos contos ! -- Vamos lá ! -- observou sorrindo o procurador -- Parece que ainda lhe não levou tudo , porque você , amigo Custodio , está possuidor de capitaes muito avultados . -- Á custa de muito trabalho e depois do segundo casamento para cá -- explicou o Custodio . -- Não sei como você , depois de ser tão infeliz com a primeira mulher , ainda caiu em casar segunda vez . -- Que remedio tive eu ! Não foi por minha vontade , não ... Mas eu fiquei , como o outro que diz , sem eira nem beira nem ramo do figueira . Appareceu-me uma mulher que tinha ido em nova para o Brazil e que por lá arranjou uns contos de reis e esta filha com que voltou a Braga ... -- Ah ! então Beatriz ... -- Não é minha filha , mas eu perfilhei-a no acto de casar com a mãe , e ahi é que eu quero chegar ... A bebeda , a grande desavergonhada enganou-me ! -- Enganou-o ... quem ? -- A minha segunda mulher . Disse-me que trazia para cima de cincoenta contos , e afinal vae-se a vêr , entre joias , dinheiro e papeis , pouco passava de vinte ! -- Está feito ! -- Está feito , diz você ! Mas eu perfilhei-lhe a filha , tenho trabalhado como um burro , aturei-a a ella até á hora da morte -- que ella vinha arruinada da saude , escangalhada , um caco velho em summa -- tive de sahir de Braga , porque lá toda a gente lhe sabia a vida e era uma vergonha , e agora , depois de tudo isto , ainda não sou senhor de deixar o que é meu a quem eu quizer , porque para todos os effeitos esta rapariga é que é a minha herdeira . -- Por esse lado , tem o meu amigo razão -- concordou o procurador -- mas tambem , se não tem parentes ou outra pessoa que melhor lh'o mereça , pouco desarranjo lhe póde fazer ... O amigo para a cova não o póde levar ... -- Mas podia deixal- o ás Ordens ou a quem eu muito bem quizesse ! -- recalcitrou o Custodio , indignado . -- As Ordens não lh'o agradeciam melhor do que esta pequena ... -- philosophou scepticamente o Belchior , com um sorriso desdenhoso . -- Não havia Ordem nenhuma que fosse capaz de lhe metter em casa uma fortuna como a que ella lhe traz pela porta dentro , se casar com o Eugenio de Mello ... -- Fortuna ... para ella ! -- E você não é pae ? E sendo pae , não fica sendo sogro do rapaz ? E sendo sogro do rapaz , desde o momento em que elle não dê carreira direita não lhe vem a administração do casal parar ás unhas ? -- Isso ainda está em " vêl- o-hemos " ... Se o rapaz ganhar juizo ... -- Se ganhar juizo , faz-se-lhe perder ... A questão é que você queira ... -- Mas faz-se-lhe perder como ? Como é que eu hei-de querer ? -- perguntou o Custodio de Jesus , arregalando os olhos , sem comprehender . -- Homem ! o rapaz é estroina , a doidice está-lhe na massa do sangue ... E os estroinas são como os alcoolicos , a quem os medicos dizem que morrem se continuarem a beber ... Emendam-se , fazem um grande esforço para se habituarem á agua , mas se um dia entram n ' uma patuscada e vêem uma garrafa que lhes desperta o appetite , perdem o mêdo atiram-se a ella , bebem e morrem victimas do vicio que o instincto da conservação não foi sufficiente para debelar . Ora o rapaz está n ' este caso . Ha-de querer portar-se bem , emendar-se , ser um homem exemplar , mas , se lhe apparecer um amigo que o leve a uma ceia e lhe mostre uma actrizita com um palmo de cara regular , não tenha você mêdo que elle ahi irá de vento em pôpa pelo caminho da dissipação e da prodigalidade , e então é que é dar-lhe o golpe de misericordia ... Percebe-me agora ? O Custodio , maravilhado , contemplava aquelle patife que tinha sobre elle a enorme vantagem de conhecer os " escaninhos da lei " , segundo a phrase pittorêsca do procurador . -- Você -- disse elle por fim , encarando sorridente o Belchior -- é dos de estrella e bêta e pé calçado ! -- Meu amigo , um homem tem obrigação de não ser tôlo , de não andar no mundo por vêr andar os mais ... As patifarias da vida é que põem um homem fino ... -- Você havia de me ter apparecido em Braga , aqui ha vinte annos antes ... Não era comsigo que o ladrão do padre||_Anselmo Anselmo|_Anselmo mettia dente ... E você não me tinha deixado roubar ! -- Estava bem arranjado o padreca ! Que viesse para cá ... Comigo nem elle nem o mais pintado fazia farinha ! -- blasonou basofiento o procurador . -- Tenho dado com elles d' aqui ... detrás da orelha ; mas eu atiro-lhes para a caveira com as baldas certas e elles veem buscar lã mas vão tosquiados ! O Custodio suspirou : -- Aquelle ladrão ! -- exclamou n ' um surdo rancôr -- roubou-me por eu o não conhecer a você ! -- Meu amigo , com aguas passadas não móem moinhos ... O que não tem remedio remediado está ... Agora vamos a vêr mas é se se trata de arranjar outro ... Disponha as coisas de modo que o casamento se faça quanto antes , porque a fatia é boa e não se póde perder ... -- A rapariga casa . Por bem ou por mal , que remedio tem ella senão obedecer-me e fazer o que eu disser ! -- Se ella estiver deveras encarriçada com o tal franganote , ha de custar-lhe a resolvêl-a ... -- Por isso não seja a duvida ... A questão é saber se o negocio convem ... O procurador assobiou , acompanhando o assobio com repetidos estalos produzidos pelos dedos maioral e pollegar . -- Se convem ! -- disse elle -- É uma pechincha ! É um negocio de costa acima ! Queira elle noventa contos pela casa , que eu pago-lhe as dividas todas e ainda metto para cima de cincoenta no bolso . É um casão ! -- Bom ! pois então fique descançado , que a rapariga eu cá me encarrego de a domesticar ... -- Mas veja lá ; você não lhe falle no namoro , que é peor ... -- aconselhou o procurador . -- Nem palavra ! Para lhe fallar n ' elle , tinha de lhe partir os ossos ... Nada ! eu resolvi ir cá por outro caminho ... -- E se fôr preciso que o rapaz appareça para lhe fazer o seu pé de alferes ... -- Por ora não ... Deixe estar , deixe vêr como as coisas se preparam ... -- Arranje lá ... E adeus , que devo ter lá em casa os constituintes á espera . Despediu-se , estendendo dois dêdos protectores ao Custodio . -- Mas você apparece por cá ? -- disse o pae de Beatriz , apertando e retendo na mão os dedos do Belchior . -- Sim , amanhã ... E dirigiu-se para a porta . -- Olhe lá : você vá dando esperanças ao rapaz , hein ? -- Não tem duvida ... Disponha você a pequena . Mal que o procurador sahiu , o Custodio subiu ao andar superior e chamou a filha . Beatriz era uma d' estas creaturas franzinas , delicadas , doceis e submissas por indole e por temperamento , na apparencia faceis de dominar , mas que , depois de terem tomado uma resolução , primeiro se deixarão matar do que render-se . Alta , elegante , cabellos e olhos castanhos , tez clara , faces rosadas , o seu gracioso vulto , de uma distincção rara , captivava pela belleza e impunha respeito pelo suave perfume de innocencia e bondade que respirava . Quando o pae a chamou , a pobre menina appareceu tremula , como se o coração lhe presagiasse a tortura que a esperava . -- Aqui estou , meu pae -- disse ella . O sr.||_Custodio Custodio|_Custodio ameigou a voz , contra o seu costume , e , contrafazendo o semblante n ' um risinho agradavel , chamou a filha para o pe de si , fel-a sentar ao seu lado , e perguntou-lhe : -- Então , já pensaste no casamento em que te fallei , minha filha ? -- Já , meu pae ... já pensei ... -- tartamudeou a pobre pequena , commovida . -- E decidiste acceitar o partido que se te offerece , não é assim ? -- Não , meu pae ... -- Não ? ! -- exclamou o sr.||_Custodio Custodio|_Custodio , fingindo-se surprehendido e mudando rapidamente d' aspecto . -- E porque ?