Collecçao ANTONIO MARIA PEREIRA A DIVORCIADA POR José AUGUSTO VIEIRA 2.ª EDIÇÃO 1906 Parceria Antonio Maria Pereira LIVRARIA EDITORA E Officinas TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO Movidas a electricidade Rua Augusta -- 44 a 54 LISBOA Ao Ex.mo Sr.||_Elyseu_Xavier_de_Souza_e_Serpa_Offerece Elyseu|_Elyseu_Xavier_de_Souza_e_Serpa_Offerece Xavier|_Elyseu_Xavier_de_Souza_e_Serpa_Offerece de|_Elyseu_Xavier_de_Souza_e_Serpa_Offerece Souza|_Elyseu_Xavier_de_Souza_e_Serpa_Offerece e|_Elyseu_Xavier_de_Souza_e_Serpa_Offerece Serpa|_Elyseu_Xavier_de_Souza_e_Serpa_Offerece Offerece|_Elyseu_Xavier_de_Souza_e_Serpa_Offerece e dedica O Auctor . Festejavam-se á noite em casa do brasileiro Mendes os dezenove annos da menina Adelaide . Toda ella se affogueava nos contentamentos intimos de " rainha " da festa , as faces carminando-se das exhuberancias humidas e quentes d' uma mocidade recatada e honesta , muito vaidosa do seu vestido novo , praguejando em frente do espelho , como um collegial estroina , contra aquella " moda " de penteado , que lhe não deixava pôr em relevo as longas tranças castanhas , tão espessas , que a natureza lhe doara . Tinham-se convidado apenas as filhas do Gomes , as Bastinhos , a Ermelinda Silva , filha do Jorge director d' um banco , e umas poucas mais , ex-companheiras de collegio , muito intimas , com quem se não fazia ceremonia . Rapazes viriam tambem . O Juca , sobrinho do Mendes , tinha-se encarregado de apresentar alguns amigos , e o brazileiro , muito popular nos estabelecimentos da Praça de D. Pedro , convidara alguns caixeiros -- para irem beber um calice do fino , fazer uma saude á pequena . -- Era cedo ainda . A grande meza de jantar , como um cetaceo brunido , estendia toda a elasticidade das suas articulações para sustentar no dorso viandas appeteciveis , carnes frias , podins gelados , os largos taboleiros de doce , as garrafas de crystal com opalinos vinhos do Porto e da Madeira . Ao centro um jarrão de porcellana , cheio de camelias encarnadas e brancas , dominava todo aquelle acampamento de coisas appetitosas , orgulhoso de si , como o general Boum no meio das amazonas da Grã-Duqueza . Na sala de visitas a menina Adelaide collocava por suas proprias mãos heras e flores em volta das serpentinas . O Mendes , em mangas de camisa , suando como outr'ora nas labutações dos seus armazens , dava ao piano uma collocação apropriada de modo a occupar o menor espaço possivel ; depois vinha para o meio da sala , olhava-o na bruta admiração da sua grossa esthetica e via que ainda se podia chegar mais á parede . -- Ficava melhor , dizia . Mas a filha , interrompendo o seu trabalho : -- que assim não estava bem , nem se ouviam os sons , -- credo ! -- e , de mais , pouco espaço ficava para uma senhora poder tocar ! -- O Mendes reconsiderou , cedendo um pouco da sua opinião , e em seguida foi auxiliar a filha a dispor as flores sobre as serpentinas . Dentro , n ' outra parte da habitação , a D. Carola , accomodava uma saleta para " toilette " das senhoras , e o Juca , no seu quarto que serviria de sala de fumo , dispunha charutos deliciosos n ' uma estatueta bronzeada , que fingia um escravo carregador . Das oito para as nove horas os convidados principiaram a chegar . Vieram primeiro as Bastinhos ; traziam uns " bouquets " muito elegantes , feitos no Loureiro ; foram recebidas com beijos cantadinhos e com um : -- Oram vivam , do brazileiro . Acompanhava-as o pae , ex-socio do Mendes , -- homem de peso , dizia-se na praça , e compadre do dono da casa . -- Como ia de saude , ein ? -- perguntou , n ' um " shake hands " expressivo , espalmando a larga mão , com uma grande cordealidade alegre . -- Uma faina , compadre , lhe não digo nada ! me parece este dia aquelles em que estavamos nos trapiches do Rio , se lembra você ? E n ' uma phonetica abrazilada , machucando a lingua patria , como se premissem canna d' assucar , os dous recordavam as suas amargas horas de trabalho , fatigantes mas productivas , que lhes davam agora uma tranquillidade modesta e sã , no meio da qual as suas carnes espapavam nas blandicias oleosas d' uma nutrição sadia . -- Se gosa tambem agora , deixe lá . -- Ah ! se não fôra isso ! As meninas entretanto , tinham ido , abraçando a cintura de Adelaide , até ao quarto da toilette , conversando muito , umas interrogativas agglomeradas , de quem se não vê desde tempo . -- E de rapazes quem viria ? -- perguntava a mais nova das Bastos . -- Ah , olha que não sei verdadeiramente ; quem os convidou foi o Juca e o papá . -- Virá o Alberto ? -- Maliciosa ! bem sabes que elle não faltaria . -- Como ouvi dizer que andava indifferente com teu primo . -- Ora , deixa lá ! Ainda hontem o Juca me disse que tinha estado com elle no Suisso ! Tiraram os agasalhos , ageitaram as flores do penteado , viam-se ao espelho , muitas vezes , com uma grande vaidade de si proprias . -- Este penteado , tambem , -- dizia a Amelia Bastos , -- não me fica hoje direito . -- Oh , filha , pois a mim ! -- confirmava a Adelaide , parece que é praga . -- Isto de cabelleireiras , não vos digo nada ! são todas a mesma cousa , não tem geito nenhum , -- umas imbecis . -- E ambas acotovellando-se para apanhar a maior porção da lamina reflectora , pregavam ganchos no penteado , com um estalido secco , de tic nervoso , e quando o espelho não reflectia a perfeição do typo imaginado , irritavam-se procurando outros ganchos na pequena concha de madreperola , com adornos de filigrana , que pousava sobre o marmore do toucador . Entretanto a campainha tocando successivamente , annunciava a entrada de novos convidados . -- Quem será ? perguntou a Bastinhos . -- Esperai que eu volto já , disse-lhes a Adelaide . -- Não , não , vamos comtigo . -- Empoaram-se ainda uma vez com a pluma " de poudre de riz " e depois desceram todas ; tinham entrado o Jorge , director do banco , e Ermelinda , a filha . Adelaide encarregou-se d' esta ; deixou as Bastinhos na sala , com a mamã ; quando voltaram , ellas vieram cumprimentar Ermelinda , depondo-lhe beijos miudinhos nas faces d' um moreno pallido . Ás dez horas não faltava ninguem . O Mendes com grandes sorrisos d' alegria satisfeita , movia-se em todas as direcções , muito cumprimentador e prasenteiro , dizendo graças affectuosas a cada conviva . As senhoras , sentadas em volta da sala , nostalgicas , como larvas em metamorphose , conversavam baixo , timidamente , sobre motivos da " ultima moda " . Algumas fallavam dos ultimos passeios á Cordoaria e Palacio , das scenas de namoro , colhidas aqui e ali , nas maliciosas besbilhotices d' amizade ; soltavam pequenas risadinhas , abafadas nos brancos lenços de cambraia , amarfanhando-os muito entre as mãos . Os rapazes encostavam-se envergonhadamente ás hombreiras das portas , ou fallavam dentro na sala do fumo , com uma vozearia de praça . Os seus olhos , acesos d' uma curiosidade concupiscente , tomavam a direcção dos elegantes collos brancos , que sahiam das toilettes mais decotadas . Só um d' entre elles , mais ousado , com uns ares de " lion ganté " , abanando com o seu chapeu de pasta o peitilho , onde o collete branco muito aberto deixava vêr uma camisa folheada , com botões de coral , passeava na sala , sorrindo-se com amabilidade olympica para as damas conhecidas e fitando o monoculo d' uma sobranceria atrevida , sobre as carnações frescas e sensuaes das elegancias femenis . Os rapazes invejavam surdamente aquella naturalidade e garbo simples de porte . -- Aquillo é que é um " menino " ! -- exprimiam dous caixeiros , n ' uma metaphora admirativa e ciosa . -- E então ? fazia elle muito bem ... que andasse d' ahi , iriam dar um gyro ... egualmente ! -- convidava um d' elles todo almiscarado , com a risca do idiotismo ao meio da cabeça e o cabello frisado , n ' umas ondeações luzentes de bandolina . E os dous fingindo-se interessados n ' uma conversa importante que lhes disfarçasse o acanhamento tosco , aventuraram-se a um passeio pela sala , sentindo-se logo invadir d' um rubor de face ao perceberem os olhares das senhoras , que se riam baixinho das suas grossas mãos entaladas n ' umas gritadoras luvas amarellas . As meninas tinham o mesmo syncretismo dos caixeiros ; admiravam a elegancia do Alberto , achando esbelta a figura , o penteado , a maneira de trazer a camelia , a curva artistica do bigode . As mais curiosas examinavam furtivamente os berloques do relogio , procurando surprehender alguma " bijouterie " symbolica de coisas de namoro . A Ermelinda primava entre todas n ' essa muda contemplação extactica . As Bastinhos leram no seu olhar e cochicharam logo : -- Queres tu ver que a temos " tramada " ! repara na Ermelinda como se derrete a admirar o Alberto . -- Forte tola ! Deixa que a não hei-de perder de vista , Amelinha ! O Mendes entrou porém na sala ; um sorriso de bonhomia , despido de etiquetas lhe pairava nos labios . -- Vamos , minhas senhoras , vae-se dançar alguma cousa para matar o tempo , ein ! Que ha-de ser , ó Adelaide ? -- Uma quadrilha , papá ! -- Seja , eu chamo o tocador ! tirem pares , tirem pares -- disse passando entre o grupo dos homens . D ' ali a instantes um d' estes artistas obscuros , na gala festiva do seu casaco preto roçado pelo uso , sentava-se ao piano e preludiava uma quadrilha . Os homens vinham entrando de vagar , tomavam pares , animavam a sala de grupos . Começava a levantar-se um pó fino , que excitava as tosses . O Alberto dançou com Ermelinda . -- Olha , não te dizia eu ! -- murmurou a Bastos para uma visinha . A musica de Angot elevava-se sonoramente do teclado ; a quadrilha começou . As senhoras velhas deslocavam-se para conversar , agrupando-se em volta da dona da casa ; algumas meninas que não tinham dançado , levantavam-se com grande despeito e tomavam o caminho da " toilette " , onde iam empoar-se ; outras porém reuniam-se , vingando-se da descortezia da sorte , em aguçar as linguas rosadas e viperinas n ' uma analysesinha burlesca dos pares que dançavam ; tinham um vivo prazer sobretudo em " pôr nomes " , em chamar a um " pé de cabra " , a outro o " alho vivo " , áquelle que dançava mais pesadamente o " pataco gordo " , rindo muito , umas gargalhadinhas abafadas , que chamavam a attenção dos pares . Entretanto o Alberto tinha phrases d' um effeito romanesco , com que melodisava os ouvidos da filha do director do banco ; inclinava-se com profundas reverencias nas diversas evoluções da quadrilha e depois , quando erguia a cabeça , os seus olhos envolviam largamente , com magestade , os olhos de Ermelinda , que recebia esse fluido penetrante , fazendo purpurear o rosto por um phenomeno reflexo , que a physiologia não sabe ainda bem explicar , quando se trata de mulheres que namoram . Quando os outros pares dançavam , Alberto um pouco mais alto de estatura , abaixava-se para ella , murmurando phrases d' um sentimentalismo de Antony , que ouvira muitas vezes no theatro . -- Creia vossencia , dizia , que só um coração de gelo poderia deixar de impressionar-se ante a fulguração d' um olhar d' esses . -- Lisongeiro ! -- Lisongeiro , eu , minha senhora ? Como a infelicidade me bafeja todas as vezes que pronuncio uma verdade ! A sua voz arrastava-se n ' uma tonalidade sentida ; dir-se-hia que as lagrimas iam a rebentar d' aquelles olhos baços das orgias , em face d' uma grande concentração d' affecto . Ermelinda olhava-o distrahidamente e gostava de se adormecer ao som d' aquellas palavras , docemente proferidas , que poucos homens lhe tinham dito com tanto " sentimento " ! A quadrilha terminou ; os rapazes mais cheios de familiaridade , conversavam com as senhoras ; mas dentro o Juca esperava-os com deliciosos charutos -- que não podiam perder-se . -- E d' ahi um calice de Madeira , offerecia o Mendes , nós cá não temos ceremonias , ein ! são boas ellas para a missa , entendeu você , sôr||_Alberto Alberto|_Alberto ? Agrupavam-se em volta da mesa ; os liquidos , como n ' um apparelho hydrostatico , desciam de nivel nas garrafas para subirem nos estomagos . Os caixeiros esvasiavam calices com uma soffreguidão mal educada -- de quem apanhava d' aquelle poucas vezes . A senhora do Mendes examinava com cuidado , curvando-se , as bandejas do chá e dos dôces que iam servir-se ás senhoras ; dispunha as garrafas de crystal em salvas de prata e distribuia aos creados as ramificações d' aquelle serviço . Depois voltando-se para o sobrinho : -- Juca , vae servir as senhoras , avia-te ! O Alberto n ' este momento enchugava os labios do sexto calice que havia esvasiado ; offereceu-se para acompanhar o seu amigo -- n ' aquella agradavel incumbencia -- dizia . -- Pois não , era até um obsequio -- e agradeceu-lhe com um sorriso a sua amabilidade . Na sala tinha uns modos finamente elegantes de offerecer um calice de vinho , que não havia recusar-lhe . -- Este Alberto , diziam as senhoras , sempre tem uma apresentação tão distincta ! ... Junto d'Ermelinda deteve-se alguns minutos mais . -- Ah ! ella não queria beber ; e vinho perturbava-a um pouco , mas visto que elle insistia , ia fazer-lhe a vontade -- e levou o calice aos seus vermelhos labios , que apenas se embeberam no liquido doirado pousando-o logo . No quarto do Juca os rapazes , tomando posições commodas , estirados uns sobre o sophá , cavalgados outros sobre as cadeiras , discutiam n ' uma nuvem de fumo e de grosserias os " bons bocados " , que estavam na sala e faziam commentarios , indecentemente libidinosos , que provocavam cheias gargalhadas . Nos seus olhos faiscava um pouco a scintillação do Porto e do Madeira . Depois a conversação recahiu sobre o Alberto , o heroe da noite ; os menos favorecidos plastica e estheticamente proromperam logo com muito azedume : -- Afinal quem era elle , de que vivia , de que se sustentava ? -- Ninguem o sabia -- era um vadio , não havia que duvidar . Mas o Jeronymo , com um sorriso significativo de finura , aprumando-se para os outros , como quem tinha o segredo do enigma : -- Sabem vocês onde mora a mulher do commendador Bernardo ? -- De qual ? perguntaram logo muitas vozes . -- D ' aquelle ... d' oculos , que está sempre á porta do Guimarães . -- Ah ! logo se via ... só assim ! ... ou então calotes em cada esquina . Entraram logo em minuciosidades da sua vida ; as informações foram apparecendo ; disia-se que tinha dividas no alfaiate , no sapateiro e até no Central , onde já nem de jantar lhe queriam dar . Mas a presença de Alberto veio pôr termo a estas murmurações ; a conversação mudou de rumo , até que o piano preludiou uma walsa . -- Era irresistivel , não podia perder-se -- e tomaram a direcção da sala , onde as meninas os esperavam , com os bellos olhos humidos dos ardores choreographicos , anehelando os braços d' elles , a que sonhavam encostar-se , como sylphides vaporosas , arrastadas na vertigem . Incontestavelmente as honras da walsa pertenceram a Alberto e a Ermelinda . -- Se não fosse o par que ella tinha , veriamos -- protestavam muitas , n ' um tom mordente d' inveja , que as irritava como picadas d' alfinetes . -- Boa , pois olha , das outras vezes ! -- Logo eu então , sempre tive um par ! -- Ai ! menina , nem me falles , o meu , esse parecia de chumbo ! . . e sempre a parar , crédo ! ... Lamentavam-se muito da sorte , que as destinara a enlaçar os seus braços nos d' um par sem elegancia e pessimo walsista -- mas para outra vez , já os conheciam -- affirmavam . -- Depois , sem animação , mesmo uns tumbas , não sei que gente escolhe este Mendes . Proximo d'Ermelinda o Alberto tinha já grandes intimidades , que se estavam tornando a pedra d' escandalo das meninas , que não possuiam essa mesma pedra . A filha do director acolhia por detraz do seu leque as phrases incendiarias do seu par , e sorria ao sentir em volta dos ouvidos a musica monotonamente harmoniosa da borboleta vadia da paixão . No seu intimo duas sensações subjectivas confluiam a dar-lhe um goso inestimavel de felicidade -- esmagar a vaidade das outras e elevar a propria , sentindo-se preferida . E emquanto o Alberto cinzelava n ' uma linguagem fluente as phrases da sua " declaração " , ella muito feliz por ter arranjado " namoro " , pensava já na inveja que as outras lhe teriam quando elle passasse debaixo da sua janella , nas cartas que lhe escreveria , no portador d' ellas , se seria de tarde ou á noute que elle viria , como illudiria a vigilancia do papá , e em mil outras futilidades , que fluctuavam indecisas na sua imaginação , como o pollen das flôres no céo azul de maio . As Bastos e a Adelaide Mendes murmuravam : -- Parece que o namoro sempre " péga " ! -- Aquillo é pau para toda a obra . -- Só queria saber quantos namoros ella já terá tido . -- Quatro lhe conheci eu . -- N ' esse caso não admiro que arranje mais um ! Uma solteirona que veio para o grupo , a D. Clementina do Rosario , disse sarcasticamente : -- Aquillo são inclinações , meninas ! Tambem ha homens , que sempre gostam de cada delambida ! nem que não houvesse mais mulheres no mundo ! Ora reparem que collo aquelle , uma esganiçada ! ... -- e protestava n ' umas excursões thoracicas , expansivas e rijas , em que os seios fartos se elevavam n ' uma curva ampla e rasgada . Entretanto o pae de Ermelinda jogava pacificamente o " solo " com o Bastos e o commendador Faria ; o Mendes acercou-se da mesa . -- Então no " rico " , ein , commendador ? -- Verá como este se vai tambem ; pois olhe que é dos firmes ; mas um " caiporismo " assim , nunca eu vi ! O Jorge interrompeu depois de examinar as suas cartas : -- Bólo . -- Não lhe dizia eu , sôr||_Mendes Mendes|_Mendes ! ... O Bastos que era o " pé " , disse para o commendador : -- Jogue bem , parceiro , que elle o tem " furado " , essa lhe affianço eu ! Jogaram com muito silencio ; mas o commendador estava realmente infeliz ; logo á terceira cartada os olhos de Jorge , que era o " feito " , encheram-se da cubiçosa alegria das " remissas " ; á quinta cartada mostrou o jogo . O Bastos teve vontade de chamar burro ao commendador . -- Esta se não fazia , ein ! -- disse exaltado . -- Mas que lhe digo eu , estou caipora , não ha que vêr . O Jorge , fatigado , pediu substituto -- era preciso tambem cavaquear um pouco -- e affagando a sua honesta suissa burgueza , veio até á porta da sala observar o aspecto que offerecia . O commendador , á meza do jogo , dizia entretanto : -- Tem uma filha bem sympathica este Jorge ! -- Nem por isso , acudiram logo os dous que viam n ' elle um candidato ás suas Adelaide ou Amelia . -- Peza pouco , continuou o Bastos . -- Me dizem que ainda tem os seus cinco contos ! defendeu o commendador . -- E que é isso ! fez n ' um gesto despresivel o Bastos . Avistando a Ermelinda e vendo a seu lado aquelle rapaz , o Jorge pensou logo n ' um casamento , n ' um bom partido . Foi colher informações . -- Um peralvilho , ein , só d' isto é que lhe apparecia -- e irritado chamou a filha , dizendo-lhe -- que iam sendo horas . -- Já , papai ! -- E não era cedo ! -- accrescentou com uma tonalidade brusca na voz , que a Ermelinda percebeu logo . N ' este momento o piano tocava uns lanceiros . O commendador Faria approximou-se . -- Então por aqui , commendador ! -- perguntou o Jorge . -- É verdade , estava um caipora ! Eram dias ... vinha então um pouco desentorpecer as pernas . -- Quer dizer que dança ? -- É verdade , e se a senhora sua filha me concede essa honra . -- Pois não ! oh ! Ermelinda -- disse o Jorge lisongeado -- dansa estes lanceiros aqui com o snr. commendador Faria . A joven olhou o Alberto , mordeu os beiços com o azedume de quem desejaria despedir um massador que se tem de supportar , e collocou-se no grupo respectivo . As outras meninas viram que até o commendador dançara com Ermelinda , facto de provocar as attenções , porque o Faria quasi nunca dançava . A D. Clementina do Rosario , abafando um ciume outomniço , disse para Adelaide : -- Só faltava mais esta ! -- Não , a minha casa não torna ella n ' uma occasião assim . -- É o que devias já ter feito , menina . Entretanto o commendador sentia-se barbaramente atrapalhado nas evoluções dos lanceiros ; a Ermelinda quasi tinha vergonha . Mas em compensação o commendador fallava de muitas riquezas , de muitas acções , e ella era filha d' um director de banco ! Na grossa mão do brazileiro um brilhante coruscava scintillações luminosas , quando os raios de luz vinham ferir a sua face . Ermelinda sentia uma especie de fascinação . -- -- O que lhe faltava senão a riqueza -- pensava -- e olhando menos asperamente o commendador , animava-o com um olhar , como se anima um molosso fiel e intelligente . De repente porém os seus olhos batiam nos olhos de Alberto ; esquecia o seu par e sorria-lhe . Comparava-os muito ligeiramente , muito frivolamente . O Alberto era d' uma estatura elevada , elegante , sympathica ; o commendador era grosso e baixo , como um tronco de oliveira , os seus pés assentavam no chão como as pesadas plantas d' um pachyderme , a sua mão tinha os relevos pesados d' uma massa de gymnastica . -- Ora , sempre tenho cada ideia -- pensava -- isto tem lá comparação ! Os lanceiros terminaram , com grande magoa do commendador -- que tinha achado muito agradaveis aquelles momentos -- dizia -- . Ermelinda sorriu-se . Fez-se então um grande silencio na sala ; correu a voz de que o Alberto a pedido de varias senhoras ia recitar uma poesia . Os homens amontoaram-se logo uns sobre os outros , nas entradas da sala , ávidos de sensações lyricas . As senhoras , tomando um ar admirativo e profundo , mal agitavam os seus labios , ciciando phrases curtas , cheias de enternecimentos . O teclado principiou a gemer uma melopeia vaga , muito triste , como a voz funerea de cyprestes nas aleas d' um cemiterio . O Alberto , tomando uma " pose " impertigada , ao lado do piano , começou a recitar , n ' uma cadencia monotona , o " Noivado do sepulchro " de Soares de Passos . A formosa balada , estafada como uma cortezã viciosa , que apesar de tudo conserva a sua belleza ossianica , soava lugubremente , aos ouvidos d' um publico recolhido , que admirava o recitador mais ainda que a producção do poeta . O Alberto tinha gestos tetricos , adequados ás condições do verso ; as senhoras , ao vel- o , quasi pensavam vêr o phantasma da balada , arrastando o branco sudario por entre as lousas do cemiterio . Ermelinda estava commovida , extactica , absorta , e quando o Alberto terminou , -- " Dous esqueletos um ao outro unidos " " foram achados n ' um sepulchro só ! ... " ella sentiu o olhar d' elle acaricial-a , como n ' um beijo gelido de morte , promettendo-lhe um amor assim , immenso , eterno , até mesmo além da campa . Uma salva de palmas acolheu a ultima estrophe da poesia . Alberto agradeceu , com cortesias reverentes , de modestia affectada . Então o Jorge veio dizer á filha que se preparasse . -- Não importa -- pensou -- assim como assim já marcamos a hora . -- E foi despedir-se da Adelaide , das Bastinhos , da D. Clementina . Ao passar por Alberto disse-lhe tambem -- Adeus . -- Já ! -- O papá assim o determinava . -- Que tyrannia ! Subiu á toilette para cobrir a capa de noite , e quando desceu , o Alberto estava proximo da escada ; sorriu-se ainda , trocaram um ultimo olhar . Ele dansou uma vez mais ; foi com a Adelaide , uma walsa , que os fatigou muito . A filha do Mendes fez allusões aos seus novos amores , deu-lhe os parabens -- elle , que não , que nada havia ! -- era uma menina muito sympathica de certo , mas o seu coração estava morto desde muito . -- E quer que lh'o ressuscitem , talvez ? -- Respondeu que das cinzas não podia nascer a vida , que a paixão já não podia incendiar o gelo , -- mil banalidades cheias de sentimentalismo , muito estafadas pelo uso , que elle conservava todavia no seu cerebro , como se conservam as coisas pathologicas nos frascos d' alcool . A Adelaide escutava-o e sorria-se ; lá bem no seu intimo achava-o tolo , mas a educação impunha-lhe o dever da admiração , e a sua voz , se algum dia se levantasse para dar uma opinião ácerca de Alberto , diria que era um rapaz elegante , fallando muito bem , com muito " sentimento " . Pouco a pouco os convidados foram-se retirando . As senhoras sahiam muito embuçadas nas suas mantas de lã , aconchegando as capas sobre o pescoço , que o ar frio da rua espreitava com uma anciedade de bronchites . Na atmosphera da sala um espesso ar condensado de gazes embaciava . As velas de stearina desciam ao nivel das aparadeiras e as heras tinham um verde pallido , que entristecia . O piano , como um grande monstro adormecido , mostrava os seus dentes de marfim , cançados de mastigar notas desafinadas . O Mendes examinava todas as salas com um cuidado minucioso ; sobretudo o quarto do Juca merecia-lhe dobrada attenção . -- Ás vezes , alguma ponta de charuto , um descuido qualquer , podia originar um incendio -- dizia cheio de cautelosas prudencias . A Adelaide no seu quarto despia os atavios da festa ; o seu corpo alquebrado deixava-se lentamente cahir n ' uma molleza do esgotamento . Estava morta por tirar aquelle maldito penteado , -- dizia -- nunca mais se serviria d' uma tal cabelleireira ; e o collete como a apertava ! Em baixo o Juca mettia-se na cama com um -- Ah ! -- de satisfação , de quem termina uma tarefa ; uma pontinha de alcool fazia-lhe pesar a cabeça ; o somno veio logo n ' uma caricia despotica , de obediencia cega , fazendo-lhe cahir das mãos um romance de Ponson , que elle tinha o habito de lêr , todas as noites , antes de adormecer . O Mendes estava muito loquaz , desabotoava-se com uma sem-ceremonia deshonestamente familiar , passeando no quarto , olhando a Carola que se desfazia perante o toucador , mostrando os hombros nús , roliços , humedecidos por um suorsinho quente . -- Até que emfim ! ... respirava ruidoso , n ' uma expiração forte , prolongada , dilatando as bochechas . -- Uma " soirée " de truz , ein , Carola ! -- Que sim -- e atirava para o dorso a cabelleira farta , matisada de fios brancos , ennovelando-a na touca de noite , com uma elevação de braços esculpturaes , de axilas humidas , que punham desejos no cerebro um poucochinho quente do seu velho marido , do seu Mendes . Entrava uma luz alvacenta pelos " stores " da janella , e fóra ouvia-se o movimento murmurioso d' uma população que desperta . O canario começava a pipilar na gaiola , sentindo as livres aves gorgearem na frescura dos quintaes , e , na rua , os vendilhões ambulantes povoavam de sons estridentes o ar nebuloso da manhã primaveral . Tinham decorrido quinze dias . O namoro havia " pegado " , consolidara-se . Com uma certeza chronometrica o Alberto passava invariavelmente , todas as tardes , em frente da casa de Ermelinda . Uma vidraça corria no primeiro andar e logo depois a filha de Jorge apparecia , com um sorriso engatilhado nos labios e um alto penteado na cabeça , emmoldurando-se no fundo escuro do desvão da janella . A visinhança reparara a principio . -- Havia " mouro " na costa -- diziam -- mas pouco a pouco a tolerancia estabelecera-se , uma indifferença ordinaria , de coisa vulgar . A sua " badine " que tanto prendera as attenções , pelas curvas hyperbolicas que traçava no ar , fazendo signaes , já não despertava interesse ; o lenço branco , rendilhado , simultaneamente absorvente dos defluxos e das impressões amorosas , ia creando o bolor dos esquecimentos , como teria creado o bafio das secreções . O namoro tornara-se um facto consumado , ordinario , sem a irritabilidade dos excitantes . A casa do Jorge tinha uma frontaria só ; era como uma cellula engastada no favo immenso da rua ; apenas existia , formado por um angulo reintrante da casa proxima , um pequeno recanto , d' onde se exhalavam fortes vaporisações ammoniacaes . O Alberto , que não podia remediar esta inconveniente disposição , utilisava-a . Era d' ali , que elle , occulto pela sombra do predio , procurava fallar com Ermelinda . A noite adiantava-se . O transito ia gradualmente diminuindo ; a patrulha , n ' uma locomoção arrastada e ordeira , tinha a apparencia vaga dos ruminantes na solidão dos campos . Clareações de gaz punham sombras indecisas , formando na rua projecções phantasticas . Uma faxa de ceu , limitada pela vertical dos edificios , mostrava estrellas descoradas e pallidas , como lantejoulas sujas d' um vestido de comediante . Adejavam surdos murmurios d' um movimento longinquo ; e proximo , n ' uma tanoaria , um martellejar compassado e monotono affirmava vigilias prolongadas d' um trabalhador obscuro . Ao fundo da rua um leque de luz sahia da porta meio aberta d' um armazem de vinhos ; sentiam-se vozes disputar , e na esteira luminosa atravessava de quando em quando um ebrio , que forcejava por conservar um equilibrio digno . Abria-se alguma janella com estrondo e um choque d' aguas , chapeando na rua , indicava uma contravenção do codigo municipal . O Alberto vinha sempre muito aconchegado no seu " pardessus " , a garganta agasalhada nas dobras quentes de um cache-nez ; mansamente , como uma cobra que deslisa , elle introduzia-se no recanto proximo e accendia um charuto . Era o signal . Uma vidraça rangia no primeiro andar da casa de Jorge , e a Ermelinda , muito intrigada , cheia de pequenos sustos deitava a cabeça de fóra da janella , investigando no espaço os raros vultos que passavam , como se receiasse compromissos . Cumprimentavam-se com trivialidades , ligeiramente . Depois o Alberto , no desempenho romantico do seu papel de namorado , arremeçava para o alto umas phrases sonoras , d' um gongorismo empolado , crepitantes , como foguetes de lagrimas n ' um ceu luarento , em noute de arraial . -- Que não acreditava , que era uma impostura . -- E porque não ? -- Os homens ! quem podia fiar-se n ' elles ! havia por ventura nada mais falso ? -- dizia muito queixosa das amarguras da sua experiencia malograda , em coisas de namoro . -- Ah ! que elle não era assim ! -- protestava -- que sentia por ella um immenso amor , infinito , como só uma vez se conhece na vida . -- E mais quem ! -- sorria , n ' uma duvida amavel que lhe lisongeava a vaidadesinha de conquistador . -- Podia jurar-lh ' o -- affirmava -- por tudo o que houvesse de mais sagrado aos seus olhos , pelo seu coração , pela sua sorte , pelo proprio Deus ! Ermelinda calava-se . N ' estes momentos parecia-lhe que , se fallasse , profanaria a musica apaixonada e sublime d' aquellas juras d' amor ; concentrava-se sobre as suas phrases cheias d' uma secreta adoração mystica e sentia-se invadir d' umas sensações deliciosas , que a enterneciam . -- Não ! elle não podia mentir -- pensava -- como era feliz em ser assim amada ! Um extasi ineffavel a envolvia docemente , suavemente , como um banho tépido d' essencias perfumadas . Se interrogasse então a voz occulta do seu espirito , não poderia dar uma definição de si propria . -- Ah ! se podesse voar com elle para um ceu distante , para o desconhecido ! ... que felizes que seriam ! ... Deixava-se fluctuar na atmosphera quente da " rêverie " , como as grandes aves serenas e mansas , que dilatam as azas , pairando , sobre as alturas do azul . Mas elle em baixo , quebrando a cinza branca do charuto , interrompia : -- Em que pensava ? -- Ah ! nem ella poderia dizer-lh ' o . -- Que era talvez em outro ; notava n ' ella certa distracção , bem se via , uns modos ... tão poucas palavras ! ... -- Que era só n ' elle -- protestava convencida . -- Ah ! era então muito feliz . -- Muito , muito ? -- perguntava sorrindo com uma certeza de que havia melhor . -- Muito , muito , não ! para isso só uma união eterna , indissoluvel , que os tivesse sempre juntos , unidinhos , como um casal de pombos enamorados . Ermelinda sentia um rubor honesto , de felicidades nubentes , invadir-lhe a face . -- Ah ! que a Amelinha Bastos essa é que fôra feliz ! Um bello casamento ! E então só o vestido do noivado , que dinheirão ! ... Mas nem por isso estava bonita , não lhe parecia ? -- Que sim -- respondia desdenhoso . -- E sempre teve um dia mais desagradavel : chuva , sempre chuva ! era insopportavel ; apesar do trem , tinha-se toda salpicado de lama ! O seu casamento havia de ser n ' um dia alegre de sol , muito sol ; não achava melhor ? -- -- De certo ! elle todavia julgava indifferentes essas cousas ! qualquer dia era bom ! Calavam-se ; um novo silencio cahia , como as pausas lentas d' um trecho de musica . A patrulha voltava do seu gyro ; e ao ver ainda os namorados , observações baixas , eivadas de um philosophismo de caserna se suscitavam . Que o " gajo " ainda estava de sentinella , não tardava em apanhar uma queixa de peito . -- Deixasse lá -- respondia o camarada -- comiam-lhe bem e bebiam-lhe ! não eram como a gente , uns desgraçados ! um rancho sem " sustancia " , e mortos de serviço . Ermelinda fallava ; mas um carreiro , em articulações gutturaes , d' uma linguagem primitiva e grosseira , praguejando contra os bois , não deixava ouvir . O carro affastava-se produzindo sons estridentes nos parallelipipedos . -- Para isto não olhava a policia -- murmurava o Alberto , indignado , agitando a " badine . " -- Que o tempo parecia querer mudar -- dizia ella -- estava-se a pôr frio , nuvens caminhavam escurecendo o céo ; uma estação tão inconstante ! -- Exactamente , como as mulheres ! -- arguciava . -- Não , isso , não ! Elles sim ! não havia hoje quem encontrasse um coração leal , todo occupado na imagem d' uma só mulher ! -- Nem o meu ? -- Eu sei ! Os homens são tão voluveis ! -- Ah , que ella o não amava ! do contrario não fallaria assim ! -- dizia todo offendido , n ' uma voz rapida , d' um tremulo nervoso . -- Se o não amava ! nem dissesse tal ! era uma blasphemia , daria por elle a sua felicidade , a sua vida . E quasi se sentia arrependida de lhe ter chamado voluvel ; uma grande tristesa subia ao seu espirito , fazendo-lhe experimentar alguma coisa de commovente , que lhe marejava d' agua os olhos limpidos e bellos . N ' aquelle instante desejaria cortar por todas as conveniencias , saltar d' aquella janella , aproximar dos seus labios a fronte pallida do seu amante e dizer-lhe n ' um impeto d' amor : -- Amo-te , Alberto , amo-te muito . Depois ajoelhar-se n ' uma supplica muda , para que elle a levantasse , doido d' amor , muito carinhoso e meigo , como já tinha visto fazer no theatro ao actor Santos , quando se representava o Antony . Mas quando ella se arroubava n ' estes pensamentos languidos , enternecida e melancolica , um vulto apparecia ao fundo da rua , fazendo estalar uns passinhos miudos , rapidos , de quem tem pressa de chegar . -- O pae , o pae , adeus ! -- despedia-se atrapalhadamente , fechando a janella com o menor barulho possivel . -- Que raio ! -- regougava o Alberto n ' um plebeismo grosseiro de indignação irada , como se desejasse fulminar com a vehemencia da sua apostrophe o cidadão honesto , que recolhia tranquillamente do seu whist , do Club . E desalojando-se da posição , seguia rapido na direcção opposta , embuçando-se mais , com as mãos nos bolsos , repuchando o casaco sobre os rins , com arrepios de frio . Voltava-se obliquamente para ver entrar o Jorge e depois retrocedia , lentamente , devagar , como um vadio incorrigivel . Olhava ; vultos perpassavam no fundo luminoso da vidraça descida . -- Devem ir tomar o chá -- pensava -- emquanto elle , exposto ao relento da noite , á neblina , á intemperie , tinha de atravessar quasi meia cidade , um " estirão " , para se metter n ' uma pocilga nojenta , miseravel , que o revoltava . Caminhava lentamente , com mau humor ; as linhas do seu rosto vincavam-se n ' uma irritabilidade surda , espelhando o lodo da sua alma . Atravessou ruas desertas , praças onde apenas as grandes arvores se levantavam , como espectros collossaes ; às vezes uma guitarrada apparecia , cantando trovas fadistas , acanalhadas ; mulheres que estendiam a mão e a honra á philantropia que voltava das ceias , occultavam-se na sombra , como vermes que se arrastam . Alberto desceu os Clerigos , atravessou a praça de D. Pedro , subiu a rua de Santo Antonio . Morava em S.||_Victor Victor|_Victor . Ao chegar á Batalha parou para accender um charuto . Dous vultos que vinham na sua direcção gesticulavam , fallando alto . -- Com que então " depennado " ! -- De todo ! ... se me emprestasses uma libra mais , uma " coroa " que fosse ! ... estou com palpite ! Era no rei de espadas , acredita-me . -- Deixa-te d' asneiras ; não basta o que lá te ficou ! outra vez tirarás a tua desforra ! Affastavam-se ; palavras indistinctas , confusas , fluctuavam no espaço sonoro . O Alberto pareceu meditar ; as suas mãos revolviam com avidez os bolsos . -- Cinco tostões , que miseria , posso lá fazer figura ! -- disse com desalento . -- Deu alguns passos mais , parou de novo , indeciso . A ideia do jogo , symbolisada n ' aquelle " rei de espadas " , aferroava-lhe o cerebro , como uma vespa opportuna que se enxota debalde . -- Tambem pouco perco , vamos lá . Resolveu-se . Retrocedeu e entrou no Gremio . Jogadores infelizes sahiam ; em cima ouvia-se um " brou-ha- ha " ruidoso e tosses convulsas provocadas pelo fumo do tabaco . A atmosphera espessa podia partir-se , asphixiava ; no soalho os escarros collavam-se ás pontas de cigarros . O Alberto entrou , sem se incommodar , como velho conhecimento . O banqueiro apresentava n ' aquella occasião um rei d' espadas . -- Jogo -- disse rapido . A sorte foi-lhe favoravel . Duas horas depois um monte d' ouro estava na sua frente . Os olhos irradiavam-lhe alegrias febris ; nas faces tinha o calor rubro das congestões . Os amigos rodeiavam-o como a um semi-deus olympico . Jogou a ultima parada , levantou-se ; convidou os rapazes para uma ceia . Felicitações choviam e sorrisos felinos , de invejas abafadas , procuravam-o de todos os lados . O sol banhava de luz a cidade , quando o Alberto , com os olhos baços , cambaleando , se mettia n ' um trem e mandava bater para o " Central " . A hora ia passando , Ermelinda começava a manifestar uma impacienciasinha . -- Já se vai demorando -- pensava -- e investigava com o olhar contrahido , os vultos que ao longe apresentavam com Alberto uma semelhança na estatura , no andar . Mudava de posição frequentemente , aconchegava-se para o canto da janella com o fim de apanhar uma porção de horisonte mais extensa . A noite cahia e os empregados do gaz , n ' um passo rapido , de tarefa imposta , accendiam os candieiros , que atiravam projecções luminosas sobre a calçada , e sobre as frontarias dos predios . Começava a ser frequentado o armazem , lá ao fundo da rua ; os transeuntes iam diminuindo , e os vendilhões , n ' um grito rouco , fatigado , apregoavam ainda os ultimos productos do seu commercio . Um rodar surdo d' americanos serpenteava , e as luzes vermelhas , como olhos injectados , passavam rapidas , oscillando . Uma sombra caminhava n ' um movimento circular , desapparecendo , á medida que o vulto se approximava da luz . -- Ah ! d' esta vez era elle , conhecia-o no andar -- e escondia-se , maliciosa , para o surprehender . -- Mas não -- o sugeito continuava a caminhar indifferentemente , não attentando n ' ella sequer . -- E esta ! -- dizia , n ' uma voz tremente , nervosa , de desillusão provada . Mas depois , reflectindo : -- Não ha que ver , não vem ! -- e possuia-se d' uma irritação surda contra tudo e contra todos ; um " ferro " que não podia bem explicar . -- Parecia-lhe que os seus nervos tinham uma sensibilidade electrica ; que era toda outra , inteiramente diversa . -- -- Mas não tem explicação possivel ! -- murmurava . Pensava em acalmar , em socegar ; olhava distrahidamente as estrellas que fulguravam nas alturas , procurando n ' uma " rêverie " indolente e malandra , uma especie de quietação scismadora e contemplativa que a absorvesse . -- Mas não podia , -- irritava-se mais , contrahiam-se-lhe n ' uma crispação nervosa as linhas da physionomia e a sua vontade , o seu desejo , seria n ' aquelle momento converter-se n ' um vendaval violento , que assolasse , que devastasse tudo na sua passagem . Tinha intermittencias de paciencia , acalmava ; o rosto espelhava resignações como a superficie d' um lago , onde não sopram ventos ; mas lá dentro uma agitação surda roía , como um verme das madeiras no silencio dos quartos de dormir das velhas estalagens . Cançada de esperar , fechou a janella , com estrondo rapidamente . -- Canalha -- murmurou enraivecida . E passando pela Joaquina disse-lhe exaltada : -- Diga ao papá que hoje não esperei , doía-me a cabeça . -- Se queria um chá de cidreira . -- Tome-o Você -- respondeu com asperesa , como uma nortada rija . -- Vai com a telha ! -- Entrou no seu quarto , fechou a porta bruscamente . A Joaquina ainda philosophava : -- bem o dizia ella , estava com a telha -- e continuou a correr o ferro de brunir sobre uma camisa de homem . Uma lampada de vidro fosco , suspensa n ' um tripede de metal bronzeado , punha uma meia luz suave sobre o recinto , onde entrara Ermelinda . Deixou-se cahir n ' uma " chaise-longue ; os seus joelhos sobrepondo-se , n ' um habito de quem costura , deixavam sahir da linha desordenada do vestido alvuras de saias e um pé elegante , n ' um sapatinho de bico , enleado , que deixava vêr a fórma nervosa um pouco secca , da perna calçada em meia côr de rosa . Apoiou a face sobre a mão esquerda , e os seus dedos , n ' uma mechanica inconsciente , beliscavam inquietos o rosado lobulo da orelha . Os olhos extacticos e mudos como dois lagos de luz , poisavam , n ' uma absorpção humida e contemplativa , sobre os moveis d' aquelle ninho tão povoado das suas ideias , dos seus sonhos , das emanações perfumadas da sua alma . Tudo porém n ' aquelle momento se lhe affigurava estupido , inerte , sem uma recordação , sem uma saudade . O espelho do toucador reflectia-lhe sombras indecisas e vagas ; os pequenos frascos de crystal , cheios d' essencias que ella tanto amava , pareciam-lhe agora comparsas imbecis que rodeiam o genio d' um grande artista . A sua commoda pequena , com embutidos de madreperola , onde guardava os seus bellos vestidos , tinha as apparencias informes d' uma tartaruga collossal , empalhada , nos ocios de museu . Como nos lagos tranquillos , ao avisinhar das tempestades , saltam ao lume d' agua peixes prateados , assim tambem do intimo do seu peito respirações suspiradas sahiam de quando em quando , agitando-a na quietação muda das suas meditações concentradas . -- Porque não teria elle vindo ? -- Era a pergunta que o seu espirito não cessara ainda de formular , sem que sahisse do circulo vicioso , d' uma resposta negativa . Acudiam-lhe muitos motivos , muitos pretextos , para o desculpar , para o censurar . -- Assim ! sem mais , nem mais ! -- pensava -- é ter-me em muito pouca estima -- e cheia d' um phrenesi nervoso apertava com mais força o lobulo da orelha , respirava frequente , agitando o seu sapatinho n ' umas flexões rapidas , que indicavam necessidade de movimentos expansivos . Os olhos marejavam-se-lhe d' uma humidade turva , lagrimas segregadas no reflexo de coleras occultas . -- Mas se estivesse doente ! Ah , como era infeliz ! Que maldita duvida -- e deixava-se cahir n ' uma suavidade de sentimentos , esquecia todas as recriminações , todas as queixas , tudo o que podesse recordar-lhe uma falta d' elle . Lembrava-se apenas que estaria talvez só , desamparado , entregue á indifferença egoista de criados de hotel , sem um amigo , sem uma irmã carinhosa , desvelada , que o affagasse como a uma creança , que lhe tomasse a cabeça entre as mãos , que depozesse um beijo animador na sua testa aquecida pela febre . Via-o sorrindo , se ella lhe podesse apparecer , com aquelle sorriso meigo dos febricitantes e o olhar prostrado , d' uma languidez doentia -- que lhe devia ficar tão bem ! -- Chorava então . A sua alma de mulher , apesar de educada na sentimentalidade vadia das pieguices de collegio , dos namoros de janella , das missas ao Domingo , dos luxos baratos , das leituras romanescas , dos sorrisos de " soirées " , irradiava uma sensibilidade pura , honesta , como um sol , que empanado pelo escuro das nuvens , se entremostra uma vez ou outra no fundo luminoso e transparente do azul sereno e indefinido . -- Ah , como desejaria ser sua esposa , sua irmã , sua amiga ! como ella o amaria assim doente , como seria desvelada , solicita , carinhosa . -- Calava-se ; as lagrimas deslisavam sobre as suas faces , abundantemente , como um rio que se solta . Pouco a pouco diminuiam , estancavam-se n ' uma sensação ardente , de febre nervosa que a invadia . Sentiu frio , lembrou-se que já era talvez muito tarde . N ' este instante o Jorge voltava do Club . A Joaquina fazia tilintar dentro as chavenas do chá . Poz-se em pé e principiou a despir-se ; a sua cama á franceza , estreita , de colcha branca , esperava-a n ' uma attitude virginal e passiva , como um ninho abandonado , ás quentes irradiações de corpos vivos . Era aquella tambem a hora a que costumava despedir-se d' Alberto ; por isso a crise ia diminuindo , cahia n ' um desalento molle , de prostração fatigante . Metteu-se no leito , despenteada , com um vagar preguiçoso , de habitos indolentes , alisando o travesseiro . Uma sensação de frescura do linho a penetrou até á medulla ; teve um calefrio rapido , um ah ! de satisfação ; ennovellou-se , como as creanças debeis e ficou assim , muito tempo , sem se mover , com os vagos olhos absortos , pregados na lampada , que ardia . Lembrou-se que não tinha resado ; descobriu o braço e fez o signal da cruz ; os labios balbuciavam umas orações banaes , narcotisadoras , que lhe fizeram pesar as palpebras . Tinha adormecido . Nas linhas do seu rosto divisava-se ora um sorriso alegre , de satisfação saciada , ora uma contracção spasmodica , revelando amarguras , desesperos intimos , que a commoviam . Sonhava com Alberto . -- " Via-se noiva , de vestido de faille branco , muito " chic " , feito nas Ferin , tendo ao peito um ramo de flôr de laranjeira e na cabeça um penteado elegante , coroado por uma grinalda identica , onde prendia um véo de tulle , amplo , magestoso , que a velava pudicamente ; nunca lhe parecera tão pequenino o seu pé , como calçado n ' aquelle sapato branco , de setim , dando um realce artistico á sua perna gentilmente vestida em meia de seda . -- Ah ! como o Alberto gostaria d' ella assim ! -- sorria vaidosa -- -- E a elle , via-o tambem , muito frisado , de gravata branca , a camisa com abotoadura de brilhantes , de casaca , muito attencioso , muito reverente , cheio de elegancia , invejado por todas , por ellas , pelas suas amigas , que a felicitavam com sorrisinhos traiçoeiros , compromettedores , que faziam córar . E de sobre a elegancia da sua " toilette " de noiva , ella , para se vingar , deixava cahir sorrisos , animadores , de consolação , para a Adelaide Mendes , para as Gomes , para a filha do Bastos , e outras que ainda estavam solteiras . Via o aspecto dos trens , enfileirados , ao sahir da egreja , e a sua carruagem de noiva , com os cavallos brancos , e cocheiros de fardas vistosas . O commendador Faria , muito cheio de brilhantes , pesado , enchendo elle só um trem , seria o padrinho . Ao sahir , quando já vinha pelo braço d' Alberto , as mulheres do povo , cobrindo-a de santas aspirações , de bençãos : -- que Deus a fizesse feliz , que fosse em boa hora -- -- Apesar de que não promettia muito a cara do noivo -- observara uma aldeleira ambulante , de grosso ventre levantado , e roupas velhas penduradas no braço de côres arreliosas . Que vontade teve de a esganar , o diacho da velha ... dizer que o seu Alberto , tão lindo , tão sympathico , não tinha boa cara : forte bruta ! -- Mas esqueceu-a breve ; o cortejo dos convidados , um sequito apparatoso que a rodeava como a um astro , fazia-lhe vaidade , tornava-a feliz , parecia-lhe que a dilatava de superioridade . Depois os convidados , n ' uma civilidade ironica , iam-se despedindo . As senhoras abraçavam-a , segredando-lhe ao ouvido e pondo beijos miudinhos nas suas faces aquecidas . A final ficaram sós , ella e o seu amado , o seu marido ! Havia uma lampada de crystal no quarto e os cortinados , como as vélas d' uma gondola , agitavam-se trementes , como se o leito fôra na realidade um barcosinho , onde ambos tivessem de navegar para um paiz distante , desconhecido , estranhamente novo . Elle tomara-a um pouco arrebatadamente , sentando-a nos joelhos , affagando-a com beijos e sorrindo , ao tirar-lhe o véo de noiva , que a fazia reflectir no espelho do toucador , toda branca , d' uma brancura eburnea , de camelia nevada . E no seu rosto adormecido divisava-se um limpido sorrir , de doce voluptuosidade , como se a alma lhe irradiara nas sensações tépidas d' aquelle sonhar delicioso . Mas logo após esta serenidade tranquilla e suave , em que talvez a sua imaginação voasse para esse periodo ditoso e perfumado da lua de mel , em que teria sempre junto de si o seu maridinho , muito carinhoso e muito meigo , o periodo dos jantarzinhos frugaes e delicados , com flores na meza e alegrias no espirito , as linhas da physionomia contrahiram-se-lhe n ' uma crispação dolorosa , e o sonho revestia uma feição diversa , em que a amargura vinha como uma flor envenenada , empeçonhar os dias de ventura ; -- era ainda aquelle o Alberto que ella amava , mas desleixado , vadio , ébrio ; tinha grosserias insupportaveis , ferocidades de despota -- -- e via-se triste , chorando muito , sem um consolo , sem um carinho que a alentasse ... -- era horroroso -- estava diante de si uma galeria subterranea , escura , um abysmo de sombras ... -- não , não queria caminhar , tinha medo ... -- mas elle , rindo , dera-lhe um impulso brutal , fizera-a entrar ; um caminho escabroso , cheio de asperesas , silvados rodeando-a por todos os lados ... cada passo custava-lhe muitas lagrimas ... e o Alberto ria , ria , estupidamente , como um idiota embriagado ... Um anjo se approximou d' ella ; tinha o perfil do commendador Faria , com os seus oculos d' ouro , e as mãos a despedirem luz como as dos illuminados celestes ; mas a luz sahia-lhe da base dos dedos , do logar dos anneis ; e tomou-a nos braços , sentia-se voar , muito cheia de doce gratidão , quasi esquecida , quando uma creança se lhe prendeu aos vestidos , parecendo reprehendel- a d' aquelle vôo egoista , olhando-a com a limpidez casta d' uns grandes olhos pretos ; ... mas o anjo -- commendador dominava-a , arrastando-a sempre , perguntando-lhe n ' um adociado brazileiro : -- se a sinhasinha não voava , -- que morreria se parasse , lá estava o snr. Alberto a rir-se d' ella -- e -- sim , lá estava ! -- olhou para traz , uma enorme cadeia a prendia a elle , e uns policias passavam então , empurrando-a , batendo-lhe brutalmente . -- Queria fugir , fugir : era horroroso ! " Despertou então . Um suor frio lhe humedecia a testa ; a cabeça doia-lhe um pouco , sentia-se fatigada . A luz da lampada esbatia-se moribunda nos primeiros alvores da manhã que vinham entrando pelas fendas da janella ; ouviu o gallo cantar no quintal e logo depois uma voz arrastada , n ' uma melopeia monotona , bradando do fundo da escala : -- Leiteira ! -- A Joaquina desceu ; ouvia-se um murmurio indistincto de vozes feminis , e em seguida o estrondear da porta que se fechava . N ' aquelle dia andou toda alvoroçada , nervosa , muito inquieta . Olhava muitas vezes o relogio , uma pesada machina de nogueira , a que o Jorge todos os sabbados dava corda , com a phrase rythmica : -- Tens de comer para oito dias . -- Parecia-lhe que os seus largos ponteiros de metal se moviam com uma lentidão desesperadora . Teve vontade de o adiantar -- mas era uma tolice -- pensou . Sentou-se a trabalhar para ver se distrahia . Descobriu no bastidor um bordado delicado , a matiz , um ramo de rosas , sobre que vinha poisar uma borboleta . A mão porém não lhe assentava , as sedas sahiam frequentemente da agulha , o desenho errava . -- Ora ! não estava para aquillo . -- Levantou-se , principiou a ler ; era " Agulha em palheiro " de Camillo Castello Branco ; interessava-se muito por aquelle sympathico filho do sapateiro , o heroe do romance , e sentiu deslisar umas lagrimas furtivas ao ver a formosa Paulina , uma doce creação do romancista , tão soffredora e tão amante . Tocaram a campainha . -- Quem seria ? -- disse pousando rapidamente o livro e pondo-se diante do espelho , para anediar o penteado . -- Se fosse visita de ceremonia ! que massada . -- Mas a Joaquina veio dizer : -- que estava ali a snr.ª D. Amelinha Bastos , aquella que tinha casado . -- -- E vem só ? -- -- Vem , minha senhora . -- -- Ah ! que mandasse entrar para a sala de visitas , que se aviasse . -- -- Não te encommodes , não te encommodes , menina , eu não sou de ceremonias , venho mesmo para a tua sala de trabalho , -- disse a Bastinhos entrando estouvadinhamente , chilreando como um passaro alegre . Beijaram-se muito , -- que não havia quem a visse , devia estar muito zangada , se era cousa que se fizesse . -- -- Ai , filha , tenho tido tanto que fazer . -- -- Tira o chapéu ; espera , eu o tiro , -- e com um geito feminil , delicado , levantou-lh ' o de sobre o penteado , emquanto a Amelinha , quieta como uma creança que se enfeita , esperava n ' uma attitude passiva . A Bastinhos principiou logo a fallar , tinha uma grande verbosidade , muita volubilidade nos pensamentos , de quem tem muito a descrever , mas que o faz sem methodo . -- A modista , os passeios , o theatro , se não sabia do ultimo escandalo da mulher do commendador Bernardo , que fôra uma vergonha , que o marido ia requerer o divorcio . -- -- Estou admirada ! -- dizia-lhe Ermelinda . -- É o que te digo , menina , e então com quem , vê se adivinhas ? -- -- Não , que não adivinhava . -- -- Com o Alberto , filha , com o Alberto ! -- e desatou n ' uma gargalhada crystalina , debruçando-se sobre o bordado a matiz , muito curiosa . Ermelinda sentiu as pernas tremerem-lhe ; a sua physionomia invadiu-se rapida d' uma pallidez pronunciada ; o seu desejo seria ter n ' aquelle momento uma explosão de colera , de lagrimas ; mas a Amelinha Bastos estava ali e a sua presença suffocava-a , como uma mascara que nos affogueia o rosto . -- Se queria tomar alguma cousa -- perguntou-lhe -- tinha-se esquecido . -- -- Nada , nada ! -- -- Vê lá , menina ? -- -- Tens tu por ahi Xerez ? é do vinho que mais gosto , meu marido aprecia-o muito ! -- -- Que ia buscar-lh ' o n ' um instante , que a desculpasse por ter de ficar só . -- -- Á vontade , filha , á vontade -- e pegou no romance que Ermelinda estava lendo , em quanto esta se retirava a buscar-lhe o Xerez . D ' ali por momentos Ermelinda entrou com uma pequena salva de prata , onde vinha uma garrafa de crystal e dous calices ; a Amelinha muito prompta , com grande espalhafato , foi ajudal-a . Ella mesma encheu os calices e tomando um , disse com modo desenvolto : -- Á tua felicidade , Ermelinda . -- -- Obrigada , menina . -- Mas os seus olhos turvaram-se d' umas lagrimas , depressa occultas n ' um lenço em que fingiu assoar-se ; dentro mesmo ella tinha chorado , agradecendo no seu intimo á Amelinha aquelle desejo do Xerez , que lhe dera uns instantes de isolamento . A Amelinha , sentada na " chaise-longue , saboreava o vinho em pequenos sorvos , fazendo covinhas nas faces . Depois , como tomada d' uma lembrança repentina : -- E o teu namoro , como vai , menina ? -- -- Oh , filha , se queres que te diga ... -- -- Dize lá , dize lá , estou muito curiosa de saber -- e curvou-se um pouco , n ' uma " pose " confidencial , de quem escutaria com ávido interesse . -- Andamos assim , meios cá , meios lá -- respondeu Ermelinda encolhendo os hombros , franzindo o labio , -- se queres que te diga , menina , já me importei com elle , aquillo foi uma " phantasia " , uma brincadeira que pouco durou ! Para mim já não ha " illusões " . -- -- Pois tinham-me asseverado que te casavas . -- -- Credo , nem se pensou em tal ! -- Mas como desejasse evitar a continuação da conversa : -- E tu , como te dás com o Guilherme ? -- -- Bem , filha , magnificamente ! -- -- Tu é que foste feliz -- disse Ermelinda tomando a mão , que a Amelinha abandonou , n ' uma " nonchalance " de bébé , gosando com aquelle aperto que lhe lembrava uma caricia do seu maridinho . -- Por emquanto não tenho rasão de queixa ; o Guilherme não vê outra cousa diante dos olhos ; até , se queres que te diga , às vezes chega-me a aborrecer com tantas pieguices . -- -- Ingrata ... -- -- Ingrata , não ! Mas tu o sabes ... sou assim um poucochinho estroina ... não gosto de homens tão serios e tão pêccos . -- -- Olha , menina , é n ' essas pequenas coisas que consiste a felicidade . -- -- Boa ! ahi queres tu prégar- me um sermão de moral ! oh , menina , enche-me este calice ; mas ainda agora reparo que tens lagrimas nos olhos ! -- Lagrimas , eu ! estás doida ! -- -- Coitadinha da pequerrucha , que quer illudir uma mulher casada -- disse arrastando a voz n ' um chilrear cantadinho -- e batendo-lhe na face palmadinhas amigaveis , animando-a , pedindo-lhe a confidencia d' aquelle chôro . -- Que não era nada ; às vezes ficava assim nervosa , tinha d' aquellas extravagancias . -- -- Nervosa , tambem ella era muito ! o dr.||_Arnaldo_Braga Arnaldo|_Arnaldo_Braga Braga|_Arnaldo_Braga dizia que era todo o seu mal -- e a Amelinha principiou a explicar , com grande volubilidade , as impressões que sentia ouvindo musica , ao ver no theatro um drama triste , ou então quando o seu gato preto , em certos dias , se lhe atravessava no caminho e ella , sem querer , lhe pisava a cauda e ouvia o miar queixoso do animal . -- Muito nervosa , muito ! este anno vou até para a Foz e tomo um grande numero de banhos ; já combinei com o Guilherme . -- -- És feliz , menina , és feliz ! -- -- Assim ! ... -- fez Amelinha contrahindo o labio com certo desdem ! e curvando-se disse-lhe ao ouvido uns segredinhos quentes , que fizeram enrubescer Ermelinda . -- Ora ! -- respondeu esta -- póde lá ser isso ! -- -- É o que te digo , filha ! -- e a Amelinha , pondo-se em pé , principiou a passear , cantarolando a canção do Rigolleto : " La donna é mobile " N ' este momento o velho relogio de Jorge bateu as duas horas . -- Ai ! tão tarde ! Credo ! Adeus , menina , vou-me embora ! -- -- Já ? -- -- Já ; ainda tenho de ir ao Pinheiro , a Cedofeita . Preciso umas guarnições para o meu vestido d' estação . -- -- N ' esse caso não te demoro ! -- e Ermelinda , collocando-lhe de novo o chapeu , fazia-a prometter que viria mais vezes , para passarem um bocadinho juntas . -- Estou às vezes tão só ! -- -- Pois hei-de vir , filha , hei-de vir ! e pondo-lhe na face uns beijos sonoramente cantados , a Amelinha , affogueada pelas irradiações do Xerez , muito alegre como um passaro na Primavera , desceu o véo de tulle branco sobre o rosto e sahiu , batendo com grande estrondo a porta da campainha . -- Sempre está uma douda ! -- disse Ermelinda vendo-a sahir ! -- e após um silencio de reflexão : -- E adeus , são estas as que são mais felizes ! Ainda n ' aquella noute o Alberto deixára de apparecer . No dia immediato era Domingo . Os moveis quietos , n ' uma ordem respeitavel , com uma seriedade burocratica , esperavam as " visitas " ; tudo arrumado , polido , com grandes vaidades de limpesa . Tinham-se renovado as flores das jarras , de vidro fosco , com uns ramos de rosas pintadas no seu ventre bojudo ; nem uma cadeira fóra do seu logar , nem um jornal sobre a " jardiniere " , toda aceiada com o seu panno de largas bordaduras , nem uma musica aberta sobre o piano , nem uma planta que se não houvesse regado , nem um album que não estivesse cuidadosamente fechado ; uma falta emfim d' essa desordem adoravel , immensamente artistica , que prende o espirito ao ambiente salutar e alegre da sala de trabalho . Dentro , nos quartos , a contrastar com essa monotonia aceiada para os que vem de fóra , sem descalçar as luvas , analysar os nossos albuns e criticar os nossos moveis , uma desordem perturbadora , preguiçosa , reles , cortada pelo cheiro ammoniacal de roupa suja , espalhada no chão , sobre as cadeiras , n ' um monte desordenado . A commoda d' Ermelinda , com as suas gavetas abertas , ostentava brancuras de saias , de penteadores , de camisinhas , e umas pequenas caixas de cartão , com estampas lithografadas , d' onde sahiam perfumes e folhas seccas , aromaticas . O cofresinho das joias abria-se indiscreto patenteando objectos d' ouro com finas perolas , brilhantes miudos , como olhares luminosos que pareciam espreitar da mollesa macia do setim azul . Ermelinda toda opprimida no seu vestido de " foulard " cinzento , a manga um pouco larga , tomou uma manilha estreita e com um vagar indolente , embevecendo-se na penugem negra do seu braço , enrolou-a , correndo-a por sobre a carne , ao arrepio , até onde pôde seguir o arco da pulseira . Depois , ao calçar as luvas , ais abafados lhe sahiam do peito , suspirosos , como se reflectissem ainda as vibrações d' aquella crise nervosa , porque a sua alma houvera passado nos dias ultimos . Mas o Jorge , que passeava lentamente na sala , ainda com o palito ao canto da boca , esquecido , com a meditação suspensa de calculos financeiros , de cotações da Bolsa , o fato endomingado , a camisa branca sobre que assentava a gravata preta de setim , um pouco impaciente já : -- Então vens d' ahi hoje , menina ? -- Já vou , papá , já vou . -- E mais apressada , olhando-se ao espelho uma vez ainda , pregando um novo alfinete no collo do vestido , Ermelinda fechou a porta do quarto , e voltando-se para dentro : -- Prompta . -- Já não era sem tempo ! isto de mulheres ! -- No portal Ermelinda fazia o apanhado , que rangia n ' um " frou-frou " de fazenda nova ; emquanto a Joaquina de cima espreitava para os ver sahir , elles combinavam o passeio , consultavam-se sobre o caminho a seguir . -- Que era melhor ir primeiro á missa -- dizia Ermelinda -- e depois voltariam pelo jardim , ou iriam ao Palacio . -- Seria como ella dizia -- concordava o Jorge . E os dous , na plenitude vaidosa do luxo de Domingo , tomando apenas os passeios da rua , reverenciando as pessoas conhecidas , com um ar todo festival , de superioridade engrandecida , e de roupa lustrosa , seguiam para a Trindade , para a missa das onze . Homens á porta accumulavam-se vedando o caminho , e em frente , no atrio da Assembleia os dandys do Porto , fallando de cavallos e de jogo , ou contando anedoctas indecentes , estalavam grandes risadas que os faziam contorcer em posições ridiculas , funambulescas , dobrando-se , dando palmadinhas sobre as coxas . O Alberto estava entre elles , e ao ver passar Ermelinda , toda comprimida no seu vestido , o seu bello olhar profundamente negro , a epiderme morena um pouco empallidecida , exhalando frescura , sentiu um desejo mordente de entrevistas nocturnas , de " têtes-à-têtes " amorosos , chegados um do outro , a cintura enlaçada , as respirações confundindo-se . E quando o Jorge passou , cortejando palacianamente os seus amigos , elle notou que Ermelinda , ao havel- o reconhecido , voltara o rosto desdenhosamente , sem que denotasse no olhar sequer uma interrogação , uma queixa , um desespero . Os outros , que sabiam do namoro , perguntaram curiosamente : -- o que tinha havido , se as relações estavam cortadas ? -- e ao verem que o Alberto balbuciava , riram estrondosamente , beliscando-lhe o amor proprio . Um mais intimo acercou-se d' elle : -- Se tinha cahido -- perguntou . -- Deixa-me -- respondeu bruscamente e partiu na direcção da Egreja , a badine agitada , n ' uma convulsão de phrenesi . -- Bravissimo ! Romeu feito Tartufo ! ... -- e batiam as palmas , rindo da pilheria , muito contentes da sua imbecilidade enfatuada . O padre sahia n ' este momento da sachristia ; um murmurio rumoroso se levantava entre a multidão que ajoelhava ; as damas abriam os livros de missa , fazendo rugir estrepitosamente as saias engommadas , os " failles " novos , emquanto os homens , na seriedade dos seus casacos pretos , amontoando-se a um lado , estendiam lenços brancos , como genuflexorios . Uma luz suave cahia das janellas do côro derramando tons sanguineos , de damascos vermelhos , sobre as senhoras que ficavam n ' aquella direcção , emquanto uma penumbra doce envolvia todo o resto . Destacavam dos corredores familias retardatarias ; as meninas estouvadinhas , adiante , acommodando-se em passos miudos , como as aves que poisam , fitavam os homens com uma curiosidade muito feminil e cochichavam , reconhecendo alguem . Houve um prurido devoto quando principiou a missa ; os labios moveram-se silenciosamente ; os olhos cravaram-se nos livros ; as beatas faziam deslisar com avidez as contas untuosas ; mas pouco a pouco o narcotismo das coisas monotonas ia-se derramando , causando tedios ; bocejos disfarçados escondiam-se por detraz dos lenços brancos e os homens , com uma obstinação sensual , de namoradores vadios , apreciavam os melhores bocados , faziam " vistas " . " Crevés " de risca ao meio , muito aromatisados de " patchouli " , as luvas a estalar , cofiavam os pequeninos bigodes , fazendo " signaes " ; e no fundo escuro das copas dos chapeus , cartas de namoro destacavam , impondo-se ás burguesinhas sentimentaes , que esperavam o aperto da sahida , no portico . A Ermelinda estava proxima da Adelaide Mendes ; o Alberto ficou em frente com o Juca , o sobrinho do brazileiro . Confidenciavam . -- E então a mulher do commendador , conta-me essa historia , menino ? -- -- Nem lhe falasse em tal ! Ridiculo ... simplesmente ! -- Ah , ah ! E o marido ? -- Que era o mais santo dos maridos ! Uma pomba ! ... tinha ido com ella para o Bussaco esconder as maguas na verdura dos cedros ! ... -- Mas apanhou-te ! ... -- Shoking ! ... respondeu encolhendo os hombros . E em quanto o Juca o asseteava de perguntas , muito minucioso , querendo saber tudo , o Alberto olhava devoradoramente Ermelinda , torcendo o bigode , mordendo-o , franzindo o sobre-olho , n ' uma attitude de irritação concentrada . Mas ella , muito seria , muito devota , poisando os bellos olhos no livro de missa , fingia não vel- o , entregando-se toda ao amor divino , e gosando com uma beatitude recompensada , a impaciencia que percebia manifestar-se n ' elle . A Adelaide Mendes segredou-lhe ao ouvido : -- Que o Alberto estava com o Juca , se já o tinha visto ... -- Que sim , era-lhe indifferente . -- Então andaes " arrufados " ? -- Não , mas ... tinham-lhe passado os enthusiasmos . -- E está de luto ! quem lhe morreu ? sabes ? -- Não , que não sabia ! -- e vesgamente , no estrabismo de quem quer ver sem que os outros dêem por isso , a filha do Jorge observava o Alberto , pondo-se a si mesma o ponto de interrogação d' aquelle vestir lutuoso . -- Se seria algum parente da provincia -- pensava -- e que elle tivesse de partir sem a poder avisar ! ... ah , sempre era então desculpavel -- e enternecia , amollecendo a asperesa do olhar , quebrando-a no vago fluido dos olhos d' elle , que sentia poisar sobre todo o seu corpo , absorvendo-a . Mas a campainha do coadjutor principiava a vibrar ; corpos se curvaram n ' um mysticismo reverente e ouviam-se os peitos echoar no tympanismo das contricções . O padre elevava serenamente a hostia , devagar com uma grande lentidão ceremoniosa ! E depois , um silencio demorado , até que a campainha vibrou de novo mais forte , com sonoridade , como que dispensando as attenções ; lenços se recolhiam no escuro das algibeiras e os homens tomavam uma " pose " mais elegante , o tronco direito . A benção desceu e todos , recurvando-se um pouco , se persignaram rapidamente , com desdem , voltando-se , comprimentando ceremoniosos , com a cabeça . O povo começava a evacuar a egreja , n ' um ruido de tropel , confusamente , de quem quer sahir primeiro . E as senhoras mais atraz , sorrindo , beijavam-se , fechando os livros . Os conhecidos vinham , comprimentavam . -- Suffocava-se um pouco , -- e lá fóra um sol alegre , primaveral , que brincava atravez do reposteiro , penetrando no templo , na instantaneidade da luz , quando alguem sahia . Grupos se formavam . A Adelaide Mendes , a Ermelinda , a D. Carola , e envolvendo-as como n ' uma circumferencia de respeito , o Juca de chapeu na mão abanando-se , com a desenvoltura d' um frequentador do Circo , o Jorge todo grave , um sorriso a escoar-se dos labios escanhoados para as suissas grisalhas , nitidamente penteadas , e o Alberto , n ' uma " pose " melancholica , o chapeu sobre o quadril , todo de preto , com uns grandes ares romanticos e tristes . O Jorge por uma polidez excessiva perguntou : -- Se fôra alguem de sua familia , que havia fallecido ? -- -- sua tia , D. Joanna de Atayde , lá na provincia , uma boa velha que quasi- lhe fôra mãe e que até na morte o considera filho ! -- deixando-te herdeiro , ein ? -- interveio o Juca : -- -- que sim , que deixara , mas que sobre tudo lhe sentia a falta , um coração de santa ! ... -- os meus sentimentos -- comprimentou gravemente o Jorge . -- pois olha menino , eu dou-te os meus parabens ; e de mais a mais sendo ella velha ! ... -- Poz nos labios um sorriso amargurado como unica resposta . As senhoras tinham ouvido , e ellas tambem davam os seus pezames , tomavam parte na sua dôr ; -- que eram consolações amigas , suaves como um balsamo -- respondeu . E quando Ermelinda lhe apertou a mão , foi já com uma compassividade meiga no olhar , -- perdoando , sabendo em fim o motivo . -- Foram sahindo . Iam todos para a Cordoaria ouvir musica , -- era a banda do dezoito que tocava , tinha visto isso no " Commercio " -- dizia o Jorge -- -- e o snr. Alberto se recolhia á provincia , -- perguntava . -- -- que não , ou talvez o fizesse temporariamente ! ... Venderia as propriedades e metteria o dinheiro em qualquer banco ; além d' isso era preciso pagar as dividas de rapaz , tornar-se em fim homem sério ! -- Tu ! -- desatou a rir o Juca . -- E porque não -- observou o Jorge n ' um tom amigavel de reprehensão -- ainda está verde este diabrete -- indicou sorrindo , apontando-o ao Alberto , com o grosso pollegar da sua luva escura -- que fazia muito bem , denotava muito nobres sentimentos , todos tinham tido as suas rapaziadas , mas lá vinha um dia ... em que se tomava juizo -- aconselhava . -- -- faria por tomal- o elle tambem ! -- respondeu sério , n ' um tom accentuado , de novas resoluções emprehendidas . E emquanto o Jorge se enchia por elle d' uma sympathia calculada , vendo-o , regenerado , vivendo na boa sociedade , elegante e fidalgo , e de resto , namorando a sua Ermelinda , que poderia vir a ser sua esposa , o Alberto , num sorriso intimo , de bom comediante , acariciando o bigode : -- Estás cahido -- meditava . O commendador Faria vestia-se no seu gabinete do " Hotel " ; tinha um grande apuro de si proprio , muito escanhoado , o cabello lusidio de pomada , a risca ao lado , as barbas muito penteadas , a camisa d' uma brancura anilada com ricos botões de brilhantes . Tirou do bolso um chronometro inglez , de setenta libras -- dez horas ein , e se esquecia de almoçar ! -- e vestindo o casaco , dando o nó da gravata , ageitando os oculos em frente do espelho , foi abrir a janella do quarto ; mas recuou , teve um movimento instinctivo de retirada , -- que caiporismo de mulher , não largava um homem , parecia " Mineira " , ella , que grande massada -- alto , porém , sorrindo , comprimentou a D. Clementina do Rosario , fez oscillar a sua grossa cabeça com um bello ar de amabilidade , teve mesmo uma phrase galante para com a visinha , que todos os dias , n ' um rigor chronometrico de vinte e quatro horas , o asseteava com a sua carnação copiosa e fresca , o collo alvo da brancura lactea das camellias , e um sulco escuro , que descia , n ' uma curva insinuante , attrahindo o brazileiro , cuja janella um pouco superior lhe offerecia as vantagens d' uma contemplação a " vol d' oiseau " . -- Uma manhã muito fresca -- dizia -- appetecia um passeio pelo campo -- -- elle então que precisava tomar seus banhos em Vizella . -- e quem o impedia , ella talvez para lá fosse tambem aquelle anno -- -- mas tinha seus negocios , que não havia outro motivo , não ... -- na idade d' elle ... -- quarenta e cinco , D. Clementina , já cá estatavam quarenta e cinco -- -- que era isso ! e ninguem o dizia , tão bem conservado . -- Sorria-se . Um trem passava levando as palavras no ruidoso estremecer dos seus movimentos ; vendilhões apregoavam , e a D. Clementina , na impossibilidade de atirar amabilidades para a janella do commendador , enviava uns sorrisos pudicos , d' uma honestidade quarentona , como ainda sabiam fazel- os os seus labios de purpura desbotada . E depois , quando voltou uma intermittencia de silencio , que permittia a transmissão da voz , erguendo-se um pouco , n ' uma flexão tetanica de collo , muito novedadeira : -- Então sabe que Ermelinda casa ! -- não , não sabia , boatos talvez -- -- qual historia ; era verdade , podia ella affiançal- o ; estivera lá em casa ainda hontem ; o commendador é que apparecia poucas vezes agora ... , e não fazia mau casamento ... o Alberto herdara d' uma tia -- -- pois não sabia , não sabia ! ... e o commendador deixando cahir mollemente a sua affirmativa , sentia passar na sua memoria avivada , como n ' um kaleidoscopo , em que as imagens se succedem , aquella " soirée " de casa do Mendes , a sua infelicidade ao " sólo " , e seu enleio a dansar os Lanceiros , quando a Ermelinda um tanto " coquette " , envolvendo-o na doçura quente do seu olhar , exhalando aromas subtis , que embriagavam , lhe sorria acariciadora , mostrando a brancura dos seus dentes eguaes , e um collo decotado , suavemente trigueiro , onde poisava um formoso signal escuro . E depois a noute de insomnia que elle passara , affagando aquella imagem que fugia , esvaindo-se na penumbra pallida das suas ideias desfallecentes . O seu coração tivera então umas pulsações mais desordenadas , alguma cousa de estranho , como a onda d' uma vida nova , que elle nunca tinha experimentado . Lembrava-se que só uma vez sentira uma impressão quasi analoga , a bordo d' um paquete , por uma " lady " ingleza , de meigo olhar azul , que lia melancholicamente no tombadilho , á tarde , quando o sol cahia em irradiações douradas na linha do poente e se via a helice abrir um sulco nevado , de espumosa brancura , no dorso azul do grande mar dormente . Mas então , ao desembarcar no Lazareto , a ingleza seguira para Bordeaux e elle , na capital , fôra pouco e pouco esquecendo aquelle episodio romanesco da sua vida . Mas agora , lembrando-se que Ermelinda ia ser d' outro , que a veria todos os dias , sorrindo com a meiguice do seu olhar para o marido que lhe daria o braço , sentia um mal estar , um como desejo de ser mau , oppondo-se ao seu casamento , contrariando-lhe a felicidade , -- não por que aquillo lhe importasse ... mas , não sabia explicar , sentia-se encommodado , a final de tudo . E distrahido , cofiando com um automatismo inconsciente a suissa grisalha , esquecendo que estava á janella a conversar com a D. Clementina , que o requestava toda vaidosa da sua redondesa de formas , retirou-se bruscamente , sem se despedir . Mas lembrando-se da sua descortesia , voltou : -- que o chamavam de dentro , se era servida de seu almoço . -- Ouviu-se no ar um -- obrigado -- e o descer d' uma vidraça que cahia -- no caixilho , para só se erguer no dia immediato . -- ainda era aproveitavel esta D. Clementina , mas uma mulher que elle aborrecia , lhe causava nojo ... e então não era para comparar com a outra ... e ahi estava elle a pensar n ' ella , se encommodava com aquillo . -- -- que era uma tolice -- pensava -- já não era creança e a Ermelinda era uma rapariga nova ... o pae havia de querer dinheiro ... o banco não estava muito seguro , elle sabia d' umas transações pouco felizes -- e não faltavam mulheres -- concluia alto . Affrouxava- lhe a genese do novo ideal perante o conhecimento prático da vida -- ora , que se não ralaria . -- E sahindo do quarto encaminhou-se para a sala de jantar , onde o esperava a costelleta que elle humedeceu com suas pimentinhas , o escaldado de farinha de Serohy , os ovos quentes , e simultaneamente a conversação dos companheiros , muito animada , recordando os affanosos dias do Rio de Janeiro , as distracções das Xacaras de Bota-fogo , das Larangeiras . A conversação estabelecia-se , de companheiro a companheiro . Reminiscencias se avivavam , cortando-se mutuamente , como bolhas de champagne , que effervescem n ' uma confusão tumultuaria . O Lourenço Pereira á direita do commendador , tinha acabado de almoçar , recostava-se , accendendo um charuto , reclamando o " dessert " do cavaco . Fallou-se nas companhias de Bonds , que faziam percurso para o Bota-fogo . -- E a proposito , se recorda você , commendador , a partida que aconteceu lá ao Mendes , com aquella Francezita da rua do Ouvidor ? -- -- Pintou a manta aquelle estroina ! -- Mas que o Juca Silveira não lhe ficava a dever nada , ein ! -- -- O Juca , é verdade ! ... e onde está elle agora , sabe você , Lourenço ? -- Não é socio do Chico do Barbadinho ? -- não , que não era ! desmanchara de ha muito a sociedade -- elle , já me recorda elle ! Pois esse rapaz tem agora commandita com o Pinto , aquelle que morava lá adiante na rua do Gonçalves Dias , á esquina . -- O commendador não se recordava ; veio outra explicação do Lourenço subsidiar-lhe a memoria . -- O Pinto , que tem casa de molhados á rua da Alfandega , com o José Casimiro , que morreu da febre em 74 . -- Já , já ! Ora com quem foi parar o Juca ! estava admirado ! ... -- E ia bem ! A casa tinha muito credito do tempo de Cunha Almeida & C.ª -- Bom moço , o Juca ! Successivas recordações se evocavam , generalisando-se . O almoço tinha concluido ; os estomagos digeriam na tranquillidade feliz d' um bem estar ocioso , e os charutos ardendo deixavam cahir a cinza esbranquiçada sobre a toalha da meza , d' onde o criado retirava os serviços n ' uma attitude diligente e curva . A luz suavemente cortada pelos " stores " , estendia um rastro alegre por sobre as aparadeiras , dando um brilho metallico ás louças que pousavam sobre o marmore , ás fructeiras , ao centro da mesa coberto de flores , aos crystaes dispersos ainda com restos de vinho , que não tinham sido levantados ; em quanto as moscas n ' um zumbir monotono , volteando em redor do grande candelabro de dous ramos , cahiam sobre as chavenas aproveitando os restos d' assucar . Lá fóra , nas cruas irradiações do sol que batia n ' um predio fronteiro , presentiase um dia de calor , das fortes temperaturas tropicaes ; mas os brazileiros , oppunham-lhe a sua calça branca , rija de gomma , e os seus Chilis , leves d' uma frescura hygienica . Iam-se pouco a pouco levantando , sahindo da sala , aos grupos , como os mansos animaes emigradores , trauteando pequenas canções , chacaras Brazileiras , -- a " Mulatinha do caroço " , o " Nhonhó " , e já na rua dirigiam-se aos estabelecimentos conhecidos , aos Bancos , á Associação commercial , ou vinham parar na Praça Nova , -- o " palheiro " -- como elles o denominam -- em casa do Pimenta , do Guimarães , do Prata . Um ruido de cidade , como um latejo palpitante de vida , se concentrava na praça . A intervallos os americanos passavam , pachydermes gigantes , de movimentos vagarosos , n ' um trote miudo de muares ; o povo esfervilhava , trajes variegados das lavradeiras dos arrabaldes , d' uma vivesa crua de colorido , os da cidade com seus fatos claros , caminhando depressa , na sombra dos edificios , evitando aquelle dardejar de irradiação que batia cruamente na calçada . Os trens infileiravam-se a um dos lados , os cavallos pacificos , de cabeça baixa , quebrados pela ardencia do calor , em quanto ao centro o Rei-Soldado , golpeado pelo sol , com uma grande intrepidez de estatua , empoado , mostrava do alto do seu cavallo a carta constitucional ao Rainha , cuja taboleta annunciava tripas aos sabbados e ás quintas-feiras . Na Baviera , no Camanho , no Suisso , homens entravam , pedindo gelo , refrescos , sorvetes de morango ; quem passava via o loiro da cerveja nos copos estreitos , e individuos recostados , abanando-se com os chapeus ; na Moré os janotas , estoirando as luvas , cumprimentavam , bocejando , na grande nostalgia de cerebros vasios e quando succedia que alguma senhora ao subir dos passeios mostrava a levesa elegante do pé , olhares esgaseados , d' uma sensualidade sorna as procuravam , mordendo-as com o desejo surdo de calcinações febris ; e logo os brazileiros em casa do Guimarães , sentados nos mochos do estabelecimento , bamboleando-se , se acotovellavam cochichando : -- Bom bocado ! ein ! ... se não tinham reparado . -- -- Viu-se o Jorge passar com Ermelinda ; o commendador estava lá no seu mocho , lendo o " Commercio do Porto " com uma grande attenção minuciosa ; mas os outros noticiaram logo : -- que lá ia o Jorge com a filha . -- sempre se casava ella , ein ? -- Levava boa rez , não tinha duvida -- disse de dentro o negociante -- -- e a rapariga estava de appetecer -- accrescentaram -- mas ao verem que os dous tomavam um trem , -- Ora para onde irão elles a esta hora ! sempre o desejava saber -- observou o Juca , curiosamente , batendo com a badine no balcão . -- E sahiu rapido , borboletando como um colibri , desejoso de saber . O commendador desviara os olhos do jornal ; parecia-lhe que d' aquella mulher , que estava uns vinte passos distante , irradiava alguma cousa de subtil e quente , como um veneno oriental que lhe corresse nas veias ; fitava-a insistentemente , atravez dos seus oculos d' ouro , como desejando attrahil- a para si , n ' aquelle mutismo de obediencia passiva , com que os magnetisadores recebiam as suas allucinadas . E ao ver Ermelinda saltar para o trem , descubrindo brancuras de vestidos n ' um movimento rapido , sentiu-se como que estonteado , uma aura que lhe ennevoava a visão , alguma cousa de terrivel e doce , que escachoava confusamente no seu cerebro , e pondo-se a pé , um pouco pallido , disse para o caixeiro do estabelecimento -- Me dás um copo d' agua , Manoel ? -- E bebeu-a d' uma assentada , um pouco apressadamente , como se confiasse em que a acção fresca do liquido lhe acalmaria aquella agitação intima , que bem a seu pesar , lhe sacudia os nervos tão pacificos . Mas n ' este momento o Juca , entrava todo offegante , vaidoso de si , dando um giro mais largo á sua " badine " . -- Já sabia ... -- rodearam-n* ' o ; uma grande curiosidade patenteada em todas as physionomias . -- Então , dize lá , menino ? ... -- Ao tabellião , meus lyrios , ao tabellião ; vão assignar as escripturas . -- Os commentarios choveram ; o commendador tinha-se retirado , apenas soubera da informação do Juca . -- Me incommoda , isto , ein , não sei porquê -- ia elle a rumurejar quando passava á esquina de S. Bento . Alberto conseguira effectivamente insinuar-se no espirito de Jorge ; as relações iam-se estreitando , tornando-se mais intimas ; principiou a frequentar a casa , á noite , á hora do chá . O commendador apparecia uma vez ou outra ; e quasi sempre a D. Clementina vinha tambem , o seu pequenino cão felpudo , de que narrava com uma grande prolixidade enfadonha as travessuras , as caricias . -- Querem saber o que elle fez outro dia ... o meu Totósinho ... -- e affagava-o correndo-lhe a mão pelo dorso , n ' uma boa caricia amoravel -- estava eu já deitada , elle dorme no meu quarto o Totó e ouço-o gemer , gemer , parecia mesmo um christão , fóra a alma , chamo por elle , vem muito candongueiro ... -- Mas já ninguem lhe prestava attenção ; o Jorge tinha proposto uma pequena partida de sueca , e acceitara-se com vontade , -- era preferivel á historia do fraldiqueiro -- dissera baixo o commendador . -- A D. Clementina cortou a narrativa , -- gostava da sueca , era o seu jogo , seremos parceiros , commendador ? -- Com muito gosto , minha senhora . -- A Ermelinda e o Alberto é que achavam massador , -- ir agora jogar a sueca , que estopada -- -- ainda se viesse por ahi a D. Gabriella , a viuva do Brandão -- cochichavam . Ouviu-se uma campainhada . Exultaram . -- Havia de ser a D. Gabriella ! ... vai abrir , Joaquina . -- Era effectivamente a viuva ; um ar ressequido , de rata velha , arrastando os ss , com um silvo prolongado em todos os vv , ainda pretenciosa , com uma paixão occulta pelo Jorge , que tinha a felicidade de a não perceber . Disposeram a meza . Ermelinda e Alberto , um pouco affastados folheavam os albuns , distrahidamente embevecendo-se em phantasias coloridas , muitos projectos -- que haviam de effectuar , um dia , logo que fossem um do outro , para todo o sempre . -- O Jorge questionava . -- Pois se o trunfo era copas , minha senhora , era copas ... -- Julguei que podia embarcar a bisca ali no valete do commendador . -- -- Qual historia ! Ahi tem o resultado , perdemos por sua culpa ... E voltando-se para Ermelinda : -- Toca alguma coisa , menina ; não sei para que te serve a habilidade ! ... -- Já vou , papá ... E sentou-se ao piano , o Alberto ao lado , voltando-lhe a musica . Era um motivo da " Traviata " , d' um sentimentalismo enervante , que punha no espirito uma doce melancholia ; tocou depois um trecho da Dinorah , a " walsa da sombra " ; parecia que as notas vibrantes do piano recordavam aquelle gemido hilariante da pobre louca , que se desenhava em todo o seu perfil na lucillação casta do luar . Havia commoções ternas n ' aquella musica , toda repassada d' um perfume apaixonado , sentimentalista ; a alma deixava-se voejar na photosphera quente d' uns amores loucos , muito ideiais , com idylios banhados de luar , e phrases d' uma levesa etherea , d' uma brancura ingenua de estrellas ; amortecia o vigor dos fortes , como uma gaze feerica envolvendo um bronze ; e Alberto , contemplativo e scismador , de pé , absorvendo na languidez quebrada do seu olhar , a escultura formosa de Ermelinda , experimentava um desejo incoherente de se apossar de toda aquella mocidade , arrebatando-a , como um cavalheiro medieval , no corcel vertiginoso da sua phantasia . Mas o Jorge irritado : -- Oh , D. Gabriella , pois isso faz-se , ir metter a sua bisca debaixo do az . -- -- Mas , sr.||_Jorge Jorge|_Jorge ... -- Qual mas , nem qual carapuça ; a senhora está hoje d' uma abstracção imperdoavel ...