António Campos Júnior BREVE NOTA OS EVENTOS QUE ANTECEDEM ESTA HISTÓRIA Corria o ano de 1383 . O rei||_D._Fernando_I D.|_D._Fernando_I Fernando|_D._Fernando_I I|_D._Fernando_I , acabara de morrer com apenas 37 anos , vítima de doença . A sua única herdeira , Beatriz , era apenas uma criança de 10 anos de idade mas , inconsequentemente , já tinha sido mandada para fora do país para ser tomada como esposa do Rei de Castela . Com o trono vazio , a viúva , D. Leonor de Teles , tomou para si o poder aclamando reinar em nome da sua filha e do seu marido , o Rei de Castela , e pôs logo o seu amante galego , João Fernandes Andeiro , como seu consorte e ministro do reino . Tal ação trouxe a indignação da população em todas as suas fações : na plebe , na burguesia , no clero e entre a nobreza ; e o que começou por ser várias revoltas populares contra os éditos da rainha e do seu ministro , culminaria numa guerra civil , por todo o território , opondo os opositores e os defensores da nova monarca . A liderar a fação opositora , que recusava a nova rainha e a submissão do trono a Castela , estava João , Mestre de Avis , meio-irmão do falecido rei que , apesar de ser um filho bastardo , tinha sido reconhecido aos seis anos pelo pai , D. Pedro I , como filho e foi posto por este a estudar cavalaria na Ordem de Cristo , armando-o depois cavaleiro e dando-lhe o título de " príncipe -- Portugal " . Sendo um bastardo , a sua aclamação ao trono era ilegítima aos olhos da igreja , mas a apoia-lo tinha a povo , a burguesia e uma grande parte da nobreza que não via com bons olhos a hipótese de Portugal vir a ter um rei castelhano . Assim , a 6 de Dezembro desse mesmo ano de 1383 , juntamente com um grupo armado , João de Avis invade o Paço do Conselho ( atual câmara de Lisboa ) , mata o Conde de Andeiro e é proclamado regedor e defensor do Reino pela população que o aclama , inconsciente de que aquilo era o inicio de um dos mais perigosos e sangrentos conflitos que Portugal se veria confrontado até então . Sabendo da morte do seu ministro e amante , D. Leonor de Teles foge , antes de ser capturada pelos seguidores do Mestre de Avis , e refugia-se na corte do seu genro , D. João I de Castela , dando a este um pretexto para fazer aquilo que ele já desejava fazer : invadir Portugal e validar a sua pretensão ao trono . Estes eventos são o prelúdio real das situações que conduziram à guerra Luso-Castelhana entre 1383 e 1385 e que culminaria na batalha de Aljubarrota . A história que vai ler inicia-se já em plena invasão de Castela , durante o cerco de Lisboa de 1384 , que durou exatamente 4 meses e 27 dias , e que quase dizimou a população lisboeta . PRIMEIRA PARTE INFORTUNADOS AMORES DOR QUE ENLOUQUECE Fora calmo aquele dia de Junho de 1384 . O sol sumira-se afogueado , globo enorme de ouro fulvo que deixara pelos cumes dos montes e sobre as águas dormentes do Tejo um crepúsculo agoirento , vermelho como a púrpura antiga dos autocratas e como o sangue forte da plebe . Em todas as torres de Lisboa bateram lugubremente as badaladas das alvorada . Parecia que nunca os sinos da cidade tinham tido uma voz assim dolente ! Badaladas como trágicos soluços daquele bronze que parecia ter dentro em si a alma angustiosa da cidade . E não era deles afinal aquela tristeza imensa ; era do coração de quem os ouvia . A voz dos sinos era a mesma dos dias jubilosos ; no coração dos atormentados , dos famintos , dos que traziam consigo a dor e o luto , é que a repercussão mudara como se viesse timbrada pelas amarguras da Pátria e pelas tristezas de cada lar . -- Jesus ! -- soluçara uma velha a quem o marido e o filho tinham morrido , dias antes , numa sortida Ãs portas de Santa Catarina , contra os Castelhanos que cercavam Lisboa . Estão a dar aquelas badaladas como se fosse para lembrar os tantos que a morte levou e os muitos que hão de acabar , se o nosso Senhor não tiver dó desta pobre cidade e desta infortunada Nação ! E para maior agouro e mais doloroso contraste , as sinetas de bordo das cinquenta e três naus e galés que El-rei de Castela tinha no Tejo também tocaram na alvorada , mas essas numas vibrações agudas , ligeiras , como se tivessem um timbre de riso de escárnio pela aflição da cidade . Ouviam-se bem na trágica melodia daquele crepúsculo . A armada potente de Castela estava atracada desde Santos até para lá de Cacilhas , muito próxima da praia , a cerrar estreitamente o cerco . Mas do acampamento castelhano , a rodear Lisboa das alturas de Santa Clara ao Monte da Graça e à Penha , das extremidades de Valverde ( o valezito da atual Avenida da Liberdade ) , daqueles hortejos Ãs lombas de Campolide e do monte de Santa Catarina Ãs praias de Santos ; dali vinham ainda mais opressoras repercussões naquele anoitecer de Junho . Vinham do estridor arrogante das trombetas no soberbo alarde das Trindades . -- Estão a uivar os lobos de Castela ! Má peste os ponha em fuga ! -- comentara um besteiro de cabelos grisalhos . Já pela noite dentro , as procissões de penitência cruzavam-se nas ruas , gemendo o seu " miserere " , e as igrejas atulhavam-se de gente angustiada , que fazia preces pela boa fortuna da cidade . Para que Deus protegesse o jovem Nuno Álvares Pereira , já vencedor dos Castelhanos na batalha dos Atoleiros , e para que a nossa Senhora trouxesse rapidamente e a salvamento a esquadra que esperavam do Porto com o socorro de que tanto carecia a capital . Depois passaram silenciosas , num passo pesado e lento , de piques e bestas ao ombro , as quadrilhas de peonagem de reforço para as setenta e sete torres e trinta e oito portas que tinham as muralhas de Lisboa e para as trincheiras de estacaria dobrada , que reforçavam as defesas até à praia de Santos , e seguiam ao longo da Ribeira e dos Fornos da Cal até ao mosteiro de Santa Clara . Para os lados das Portas de Santa Catarina e da Torre de Álvaro Pais ( na moderna rua de S. Roque ) , trotava um grupo de cavaleiros , de bacinetes emplumados , cotas e braçais . Iam para onde o perigo era maior e mais frequentes as escaramuças com os sitiantes . Depois o soluçar das preces emudeceu , as velas dos altares apagaram-se , as grandes portas das igrejas cerraram-se . Esmoreciam pelas esquinas e sobre as portas de casas abastadas os lampiões e as candeias dos nichos , à míngua de umas gotas de azeite , porque até nisto se manifestava a miséria daquela encantadora Lisboa , à qual os mouros tinham chamado a Sultana do Mar Azul do Ocidente . Foi correndo a noite e a cidade parecia adormecida num sono de pesadelos . Mas nem toda ela adormecera . Nas muralhas velavam as atalaias , e dos lados da Ribeira vinha , a espaços , um rumor brando de vozes . Mas nos lares que a morte enlutara de lágrimas de dor , nos castelos miseráveis , quantos esquálidos havia , que não conseguiam dormir por causa da sua horrorosa tortura de famintos ? No recanto de uma travessa , um grupo de esfarrapados esquartejava sofregamente uma mula escanzelada para o seu banquete daquela noite . Havia dois dias que não traziam na sacola nem uma côdea bolorenta de esmola , uma côdea daquele pão miserável que então se fazia na cidade com o bagaço da azeitona , as raízes das ervas e as malvas dos quintalejos abandonados . No terreiro , onde ainda um mês antes se vendiam uns restos de trigo , bandos de crianças semi-nuas , estonteadas de sono e roídas de fome , andavam a arranhar o chão para ver se a terra tinha escondida em si a fartura de alguns bagos de trigo . Eram mais bem sucedidos que as pobres crianças , os cães sem dono , a focinhar nas montureiras , que trescalavam podridões de cadáveres . Em frente da Sé , as torres castelãs , envoltas num manto de sombra como figuras gigantescas de alguma lenda , uma mulher nova , de cabelos esparsos , uma farrapagem de brocados a cingir-lhe o corpo , que era talvez belo , parara arquejante , aconchegando muito aos seios um vulto pequenino de criança , num choro convulsivo e débil . -- Como tu choras , amor da minha alma ! Cheia de fome ! Eu sei ! Eu sei ! Filha , dava-te o meu sangue , e não posso matar-te a fome ! Murmurara-lhe isto num estrangulamento de soluços como se a pequenina a pudesse compreender , e apertava-a mais contra o peito como se quisesse que do seu seio ressequido aquela boquita lhe pudesse beber o sangue . -- Lavada em lágrimas ! Têm mais sorte os que morrem ! Que tamanha misericórdia seria se a nossa Senhora nos levasse a ambas para si ! E a pequenita num choro cada vez mais convulso , mais rouco , mais dolorido . Num relancear dos seus olhos de alucinada , turvos de lágrimas , a desventurada mulher deu com um painel da Senhora||_Mãe_de_Deus Mãe|_Mãe_de_Deus de|_Mãe_de_Deus Deus|_Mãe_de_Deus , que o padre||_Cabido Cabido|_Cabido mandara erguer por cima da porta do templo , desde que as misérias do cerco tinham posto a cidade em maiores desalentos . Uma grande lâmpada de bronze punha os seus reflexos de luz dourada na figura da Virgem com o seu Jesus pequenino ao colo , Mãe e Filho numa expressão de júbilo e ridente fulgor . Foi até ela , a tremer , a pobre esfarrapada ; ajoelhou-se fervorosamente , a acalentar a filha , e pôs no painel um olhar mortificado , numa súplica em que as lágrimas davam o dobro das palavras . -- Senhora , acudi-me ! Ninguém me ouviu , ninguém me pôde socorrer ! Escutai-me vós ! Socorrei-me , Senhora ! Mãe divina fostes , mas também eu quero à minha filha , como vós , Senhora , ao vosso filho . Sofreu , sofrestes com ele , e mataram-no ; mas o vosso era Deus , e a esta , coitadinha , sou eu que a deixo morrer ! Senhora , talvez nunca sofresse fome o vosso pequenino Jesus , por se não terem secado para ele os vossos seios como secaram os meus ! A criancinha estrebuchou-lhe nos braços como uma avezita agonizante e soltou um grito dolorido . A esfarrapada ergueu-se de repente , a tremer doidamente , e deu uns passos torcidos para que a luz da lâmpada lhe iluminasse melhor o rosto da pequenina . -- Estás a esfriar ! Filha ! Filha ! Olha para mim ! -- rouquejou ao beijá-la , a tatear-lhe a cara , em convulsões de epilética . Mas a filha já não a ouvia . Estava morta . Morta pela fome . A mulher sacudiu-se em soluços e pôs-se numa correria doida pelo terreiro da Sé com o cadáver da pequenina erguido nos braços , trementes como se fossem de uma octogenária . E no céu de profundo azul brilhou um fulgor intenso de estrelas , no alheamento e na indiferença daquela dor de mãe a envolver-se em desvario de loucura ! A enlouquecida sentou-se no degrau do portal a regougar uma trova de acalentar crianças e a embalar nos braços o corpo hirto da filha . Vibraram de repente naquele lúgubre silêncio vozes altas de gente que vinha da Porta de Ferro a correr . -- Gentes , despertai ! Boas novas chegaram ! Erguei-vos e dai graças a Deus ! E com as vozes altas , alvoroçadas , ressoavam nos ares as marteladas das aldravas , revoava um sussurro de gente surpreendida , um ranger de portas que se abriam e um ruído de adufas que se levantavam . Entrou um grupo de homens no terreiro da Sé . Vinha diante deles um galeote com uma acha de pinho embreada , acesa em guisa de archote , a esfumar de negro aquela frouxa penumbra das estrelas e a projetar os seus clarões vermelhos na fachada vetusta daquele grande templo . -- Por Deus , que chegaram boas notícias ! -- Que notícias são ? -- inquiriram os estremunhados , assomando Ãs portas com as candeias de luz na mão . -- São notícias de Nuno Álvares , o jovem campeão ? -- perguntavam . -- Quereis ver que deu nova arremetida contra os castelãos e venceu outra batalha ? -- Eu já sonhei com ele três noites a fio , a entrar por Castela adentro , ao lado do senhor||_S._Jorge S.|_S._Jorge Jorge|_S._Jorge , com o seu bacinete de ouro e a sua lança de prata ! E que tinha levado à escalada os muros de Badalhouce . -- Não vos deiteis a adivinhar , gente endrominada , que o caso foi outro . -- Dizei qual. -- Contai o que houve . Falai depressa . Dizei -- insistiram muitas vozes . -- Lançou ferro ( atracou ) em Cascais a armada que veio do Porto a socorrer-nos -- esclareceu um dos recém-chegados . -- Pois Santa Maria seja bendita e que viva quem nos vem ajudar . -- Viva ! Viva ! -- E o senhor||_dom|_Bispo dom||_dom|_Bispo Bispo|_dom|_Bispo que mande abrir as portas da Sé , e os senhores cónegos que mandem pôr luzes nos altares , para que Deus nos ampare ! -- E quem trouxe tal notícia ? -- Um homem bom do Porto , mercador rico , de rijas febras e destemida gana para o mar , que pelo escuro da noite fugiu de Cascais num batelzito e , por entre a armada inimiga , se atreveu a cá vir trazer-nos a boa notícia ! -- Já esteve a falar com o Mestre -- informou outro dos avisadores , referindo-se ao Mestre da Ordem Militar de Avis , filho bastardo de el-rei||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro . -- E com ele veio também aquele destemido fidalgo jovem de Riba-Douro , que foi o mais belo pajem da rainha comborça e o mais animoso na guerra do ano passado . -- Não sei quem seja ! -- Ora ! Nem Lisboa conhece outro mais afoito de alma . É aquele jovem de vinte anos que mandou desafiar o Condestabre de Castela . -- Ah ! Esse então todos nós sabemos quem é . -- É claro que se sabe . É Ruy de Vasconcelos , da melhor nobreza de Riba-Douro . -- Morrem por ele as mulheres novas . E dizem que no paço real por ele se perdeu certa dama linda como as estrelas . E olhai que nunca mais se lhe soube o paradeiro ! E enquanto iam falando assim , em grupos ou de porta para porta , a multidão dos alvoroçados aumentava de instante para instante ; as luzes das candeias brilhavam pelas adufas como pirilampos e voejava pelos ares um rumor mais intenso de passos e de vozes . Entretanto , no portal da Sé , alheada de tudo , a enlouquecida mãe , a quem a filha morrera , soluçava as orações com ela deitada no regaço . A multidão podia lá ouvi-la ! Ninguém reparara naquela mulher nova , enrodilhada em farrapos de brocado , endoidecida no drama da maior dor humana , toda mirrada na sombra enorme da igreja . E ela também absolutamente alheia a todo aquele alvoroço , como se ali a tivessem cegado as suas próprias lágrimas e de tudo tivesse ensurdecido no estonteamento daquela mágoa inexcedível e sem remédio ! -- Gentes , aí vem o Mestre , o Defensor , o que um dia será rei ! -- gritou à frente da multidão , numa voz dominadora , que se sobrepunha a todas as outras , um homem alto , espadaúdo , exemplar admirável dessa raça de plebeus que havia então , de consciência lavada e ânimo intemerato , para falarem alto fosse a quem fosse , e para morrerem a peito descoberto pelo seu crer e pela sua coragem . Era o tanoeiro Afonso Eanes , o chamado " Juiz do Povo " , um revolucionário dos dias turbulentos que seguiram à morte do rei||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando . Tinha sido o tribuno e o comandante da populaça , para que a Nação se defendesse das pretensões de el-rei -- Castela e não lhe deixasse levar a coroa do monarca falecido , na herança da infanta portuguesa D. Beatriz , esposa do rei invasor , mais a bandeira e a história da terra portuguesa . E o caso Foi que , sem a intervenção daquele mestre tanoeiro , talvez a Nação não tivesse por chefe o jovem Mestre de Avis , e tivesse esmorecido na defesa da sua independência . Entre os homens de ação preponderante que apoiaram o bastardo de el-rei||_D. D.|_D. Pedro e da plebeia Teresa Lourenço à subida do trono , três havia de incontestável grandeza -- Nuno Álvares Pereira , fidalgo e guerreiro juvenil ; Álvaro Pais , o velho chanceler dos tempos de el-rei||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando , e aquele valente mesteiral ( mestre artesão ) , que se chamava Afonso Eanes Penedo . -- lo , aí vem ! -- anunciou outra voz . -- E com ele aquela alma boa do povo . O nosso querido velhinho , Álvaro Pais . -- Certo se irá recolher o Mestre aos paços de Apar S.||_Martinho Martinho|_Martinho . -- Viva o Mestre ! -- gritou uma multidão próxima das Portas de Ferro . E pouco depois , adiante de todos -- mulheres e carpinteiros da Ribeira com archotes aceso -- , Sem nenhuma ostentação de poder , singelamente , quase ombro a ombro com o povo que o adorava , o Mestre de Avis subia lentamente com Álvaro Pais , muito abordoado ao seu bastão , arrastando por ali acima , penosamente , com as suas pernas trôpegas . Ao lado dele , na esquerda , um legista que , há dois anos , viera da Universidade de Bolonha onde se formara em leis -- o doutor||_João_das_Regras João|_João_das_Regras das|_João_das_Regras Regras|_João_das_Regras . Um pouco atrás , acotovelados pela multidão dos maltrapilhos descalços , dois pajens com tochas acesas , e depois o comandante dos besteiros . Oito homens de armas por escolta e mais ninguém naquele cortejo do Defensor do Reino -- título dado pelos cidadãos de Lisboa -- o Mestre da Ordem de Avis ; um infante bastardo pelo pai , um homem do povo pela mãe . Havia explicação para o cortejo ser pequeno . Ainda nessa tarde o Mestre recebera avisos de certos movimentos suspeitos da esquadra castelhana e fora logo para as Portas do Mar , sem nenhuma comitiva , para observar ele próprio qual seria o intento do almirante de Castela . E por lá se demorara pela noite dentro , de atalaia , sem ter podido perceber o intento daquela evolução dos navios sitiantes . Tomou precauções , mandou um aviso confidencial Ãs torres e Ãs quadrilhas que guardavam as portas para se manterem em dobrada vigilância , mas não quis dar alarme à pobre cidade , já tão atribulada de provações . Nas trincheiras da praia dirigiu ele próprio , sem alarmes , as precauções de sobreaviso e , como em outras ocasiões , teve a auxiliá-lo dedicadamente o arcebispo de Braga , D. Lourenço , com o seu estado-maior de cónegos e a sua hoste de frades e clérigos seculares . Os trabalhos e os sacrifícios eram para todos . O arcebispo , um homem intrépido , não admitia isenções de privilégio para ninguém naquela conjuntura angustiosa . Para ele era também serviço de Deus defender a Nação à mão armada , e a sua hoste de tonsurados não era das menos fervorosas nem das menos destemidas na defesa das trincheiras e no arranque das sortidas . Fora ele até o principal organizador na defesa do lado do rio , passando indiferentemente da sua tarefa de dirigente aos mais rudes trabalhos de construção , para estímulo da peonagem e dos seus clérigos . Pela noite adiante chegara o batel em que vinha o comerciante do Porto , João Ramalho , com a notícia de ter atracado em Cascais a esquadra de socorro . O Mestre combinou então com o Ramalho o plano a seguir , não só quanto à entrada dos navios , mas também a respeito do apoio que poderiam dar-lhe os defensores da cidade . Assente o que devia fazer-se para que a empresa , realmente grave , tivesse bom êxito , Ramalho voltou para Cascais com o mesmo risco e destemor , e o Mestre regressava agora ao paço para ali discutir com os seus cavalheiros e caudilhos do povo , entre os quais tinham lugar proeminente os homens de ofícios da " Casa dos Vinte e Quatro " do povo , com todas as minúcias e disposições da parte do plano que pertencia à cidade . E era neste assunto gravíssimo que o Mestre vinha a conversar com aquele velho alquebrado , que fora o cérebro dirigente da revolução e trazia em si , no seu arcaboiço de septuagenário , uma das maiores almas de Portugal . A multidão olhava para aqueles os dois esperançada como se aquele homem de gorra negra e cabelos de neve fosse o símbolo imaculado da Pátria , que os de Castela pretendiam matar , e o outro , um bastardo real , monge-cavaleiro de vinte e seis anos , representasse a maior promessa e a mais rútila esperança de um Portugal remoçado , mais forte , mais brilhante , de mais pura e altiva alma , emergido dos Iodos daquela decadência pelos milagres de esforço de uma revolução . -- Viva o nosso Messias ! -- gritaram algumas mulheres comovidamente . E envolveram , num olhar de sonho , aquele homem jovem , de amplas costas , trigueiro e rubro como os galeotes da Ribeira e os picos das montanhas ; de rosto largo numa forte expressão de energia ; naquela cabeça de pensador o bacinete emplumado dos campeadores fidalgos , nos ombros largos o manto branco dos Cavaleiros de Avis e sobre a cota de armas o estreito escapulário com a esguia cruz verde do mestrado da Ordem , estampada naquela brancura do hábito , a lembrar as toalhas dos altares e a bandeira da Nação . Messias da Pátria para a redimir , filho de um rei para ascender ao trono , se a Nação vencesse , filho de uma mulher do povo , como o aclamavam febrilmente . -- Que Deus vos guarde , Senhor ! -- clamava a ralé num voto fervoroso , de braços erguidos como para o abraçar , e a trapagem de burel agitava-se-lhe sobre o peito arquejante . -- Deus vos ouça , gente leal , e a todos nos mantenha na santa defesa de Portugal -- volveu-lhes o Mestre , pondo neles , afetuosamente , os seus olhos negros , penetrantes , e esboçando nos lábios rubros um sorriso de familiaridade , que lhe modificava as linhas duras do longo rosto , quase quadrangular , de queijo proeminente e barba escanhoada , conforme o preceito imposto aos monges cavaleiros . -- Amanhã haveremos de ter dura luta . A armada que veio do Porto entrará e nós de cá lhe daremos uma mão -- disse o Mestre . -- Grande armada , Senhor ? -- perguntou um mesteiral , de barrete na mão . -- Dezassete naus e outras tantas galés . -- Mestre e Defensor nosso , bom socorro será , mas a outra de Castela tem mais do dobro ! Respondeu-lhe . -- Deus estará com+nós , e pela nossa causa a alma e o sangue de nós todos . Ficai prevenidos . Ao romper da manhã , estaremos todos onde for preciso . Conto com+vós ; contai comigo . El-rei de Castela não levará a herança que vem aqui buscar . Só Lisboa lhe&lhes+a poderia entregar , e nem vós nem eu deixaremos que a tome . -- Mestre e Defensor , honradas palavras dissestes ! -- acudiu Afonso Eanes na sua voz dominadora -- A cidade não se rende e a herança não se entrega ! -- Assim o queremos todos e assim será com a ajuda de Deus ! -- confirmou o Mestre com uma grande energia sugestiva . -- Todos ! -- gritaram -- Por esta nossa terra contra as hostes de Castela : Portugal e S.||_Jorge Jorge|_Jorge ! -- Ide agora repousar , meus filhos -- disse-lhes paternalmente Álvaro Pais , na sua voz tremente de velho -- Ao romper da manhã seremos uns com os outros e o dia há de ser de bravia luta . Mas até eu , com as minhas pernas trôpegas , me hei de arrastar para onde for preciso para que a soldadesca de Castela veja como os velhos de Lisboa são capazes de morrer pela sua terra . -- Pai do povo sois vós -- disse uma regatona velha da Ribeira conhecida entre o povo por " Tia Lourença da Ribeira " , que reunia à sua volta um grupo de mulheres mais novas . -- e aqui tendes quem vos ajude a ir ver como esse bailado de amanhã há de ser . Falta o pão na cidade , mas ainda , louvores a Deus , não faltam as pedras para britar os focinhos a esses cães danados de Castela ! -- Ide repousar , meus filhos -- repetiu o alquebrado chanceler dos tempos de D. Fernando -- Muito há que dispor para o dia de amanhã , e a todas as coisas precisa de prover a sua graça -- disse indicando o Mestre -- Ide com Deus . -- Até ao amanhecer -- acudiu D. João num gesto amigável de despedida . E foi andando para cima , ao lado de Álvaro Pais e do douto João das Regras . -- Viva o Mestre ! Viva o nosso Messias ! -- aclamou a multidão num arrebatamento de entusiasmo , como se estivesse esquecida de todas as privações , de todas as misérias e de quantos perigos enormes podia trazer-lhe o dia seguinte . -- Vamos ter pão , mulheres de Deus ! -- disse a regatona da Ribeira -- Virá trigo na armada do Porto . Vai acabar a fome ! Destacando-se do adro da Sé , numa aparição como a de um fantasma , nos braços a criancita morta , a pobre mãe enlouquecida , disse em gritos agudos como uivos : -- Acabar a fome ! ... Também a minha filha ... Acabou ! Tantas mulheres ! E não houve nenhuma ... Nenhuma ... Que lhe matasse a fome ... A ela ! ... Olhai ... Morreu ! Uma profunda impressão de estranheza e de supersticioso pavor oprimiu a multidão , e com mais profunda violência o coração das mulheres . Recuaram , cheias de terror como se aquela desventurada fosse um espectro fugido de alguma campa da Sé . Num extenuamento de forças , a infortunada dobrou os joelhos subitamente e caiu sobre o cadáver da filha . -- Eh ! Mulheres , que por bem pouco temeis ! -- exclamou a tia||_Lourença Lourença|_Lourença -- Já supondes que é alguma alma penada ! De fome é que ela falava ; e com fome seria que baldeou a terra ; era capaz de o jurar . Pois eu não tenho medo e vou dar ajuda a essa criatura de Deus . -- Cuidado , tia||_Lourença Lourença|_Lourença , que pode ser moura encantada ou judia feiticeira , que ande a penar ! -- Credo ! Figas , demónio ! -- disseram algumas . -- Contos da Carochinha . Eu vos digo já o que é . E a regatona aproximou-se da desditosa ; para grande assombro da assistência , ajoelhou-se no chão e levantou-lhe a cabeça . -- Mãe bendita , que ela parece estar morta ! Chegai , cá por caridade , esse pedaço de luz . Um mesteiral aproximou-se dela com os restos de um archote que ficara a arder no chão . -- Arcanjo bento , que linda ela é ! Rapariga de boa criação , parece feita de marfim ! Vinde ver ; não tenhais medo . Uma pequenita com a cabecita dourada ! Morta , está morta ! Ela , a mãe , é que ainda tem vida . Está-lhe a boca a tremer e as lágrimas a saltarem-lhe em fio dos olhos cerrados ! Um fiozito e uma cruz de oiro ao pescoço ! Aproximai-vos , pasmadas dos meus pecados , que esta nem é moura nem judia . As mulheres aproximaram-se , mal refeitas ainda do seu terror supersticioso . Aguilhoados pela curiosidade , alguns mesteirais e maltrapilhos se tinham já aproximado , formando uma roda . -- Jesus ! Que magreza tamanha ! -- comentou uma rapariga saloia . -- E olhai que este saiozinho esfiampado é do tecido rico das donas ! -- notou outra . -- Brocado -- esclareceu a tia||_Lourença Lourença|_Lourença . -- Talvez lhe&lhes+o tivessem dado de esmola ! -- lembrou uma tecedeira da Corredoura . -- Hum -- objetou a tia||_Lourença Lourença|_Lourença -- A pele branca e assim fina , que nem as toalhas dos altares , condiz bem com esta esfarrapada rica . Esta nunca andou como nós à torreira do sol nem ao vento frio das madrugadas . -- Quem será , tia||_Lourença Lourença|_Lourença ? -- Eu sei lá , mulher ! Talvez mal casada com algum desses tredos que se foram para os cães gadelhudos de Castela . Nestes ruins tempos tudo pode ser , mulheres de Deus ! Mas aqui a falar é que a gente não a acode . Vamos levá-la daqui . Dou-lhe eu uma cama no meu casinhoto , e ainda lá tenho um naco de pão de bagaço para lhe matar a fome . Talvez tivesse ficado por aí escondida , como outras que eu sei , abandonadas pelos pais e pelos maridos , que foram ao faro dos favores do rei castelão . -- Também eu sei de algumas e bem conheço a toca onde estão metidas ! -- Aqui , bem perto , sei eu de mãe e filha que vivem escondidas , e essas , minhas queridas , não passam fome ! -- disse a tia||_Lourença Lourença|_Lourença , aconchegando para si e friccionando com as suas mãos encortiçadas a testa de neve da pobre mãe desmaiada . -- Essas conheço eu bem ! -- disse uma velha mendiga -- Olhai , uns passos ali para baixo , além , naquela grande casa , onde ninguém apareceu nem se ergueram as cortinas quando o Mestre passou ! Vivem na farturinha e querem lá saber do resto ! Ali não entra a fome ! E a velha mendiga , com a mão engelhada , a tremer no ar , apontou para um grande prédio , todo envolto em sombras . -- A rapariga está a querer voltar a si -- anunciou jubilosamente a tia||_Lourença Lourença|_Lourença -- Vá , minha linda , eu vos darei guarida , se não tiverdes para onde ir . Estava a pôr-se a lua no céu , como uma pérola enorme a deslizar por um mar azul , profundo , imenso . -- Filha ! -- rouquejou a enlouquecida , enclavinhando as mãos por entre os negros cabelos revoltos . E desprendeu-se de repente dos braços da tia||_Lourença Lourença|_Lourença . Pôs-se de pé , relanceou em volta um olhar espavorido . Deu com o cadáver da criança , estendido no chão , soltou um grito como se tivesse sido arrancado da sua alma espedaçada , estendeu-lhe os braços , cambaleou e foi cair de joelhos ao pé dela , numa convulsão-de soluços . -- Então , resignai-vos -- pediu-lhe a regatona , inclinando-se para ela enternecidamente -- Tantas mães têm perdido os seus filhos pequeninos ! Tantas ! E parecia velada de choro a voz forte e áspera daquela velha de soberba musculatura , que tinha as rudes audácias de um rufia e as brandas meiguices de uma pomba . -- Endoidece-a a dor ! Coitada ! -- segredou piedosamente para a velha mendiga uma forte rapariga , que também era mãe . -- Filha da minha desgraça , filha da minha alma ! Caem sobre ti as estrelas do céu ... Flores pequeninas , todas feitas de luz ! -- Então , minha pobre menina ! Vamo-nos embora daqui . Eu buscarei para a vossa pequenina as flores que o sol ainda não queimou . Rosas de todo o ano , branquitas como ela , que eu tenho no meu quintalejo . -- Olhai a lua ... A sua madrinha ... Não tinha outra ... Nem pai que se soubesse ! ... -- Vamos lá -- insistia a tia||_Lourença Lourença|_Lourença -- Eu levo a inocentinha . Também tive filhos pequeninos , também Deus mos levou , e a um , que chegou a homem , mataram os castelãos , há dois meses . Aqui vos diz este meu burel de dó . Vinde comigo . De súbito , ouviu-se uma tropeada de cavalos . Desciam escudeiros apressadamente dos lados do paço de Apar S.||_Martinho Martinho|_Martinho . Iam com avisos do Mestre , convocando para a madrugada , os chefes da nobreza e os homens dos ofícios da Casa dos Vinte e Quatro do Povo , espécie de conselho de defesa , pequeno parlamento popular , que , quatro séculos mais tarde , se poderia chamar em França um comité de salvação pública sem guilhotina . A tia||_Lourença Lourença|_Lourença conseguira afinal levar dali a enlouquecida . Deitara nos seus braços a criança morta e duas vizinhas suas iam amparando a pobre mãe , num alheamento de tudo , sem forças que não fossem para o arranco dos soluços e para os gritos pungitivos da sua mágoa . Seguiam por ali abaixo . A regatona morava num beco muito próximo Ãs Portas do Mar . Debaixo vinham subindo a pé , lentamente , dois homens que não podiam confundir-se com gente da plebe , ainda mesmo que não trouxessem atrás de si dois escudeiros apeados . Um deles , jovem forte e esbelto , de admirável gentileza , trazia um bacinete emplumado , cota e braçais , esporas douradas de cavaleiro fidalgo . O outro , de longas barbas brancas , rosto macilento , avergoado de rugas , tinha um olhar de amargurado e o ar de mortificação de um asceta . Cingia-lhe o corpo ressequido uma túnica de tecido branco , de grande cabeção orlado de conchas com uma cruz vermelha do lado esquerdo ; à cintura corda de esparto , nos pés grosseiras sandálias . Apoiava-se a um alto bordão , que tinha uma cabaçazita pendente , como usavam os peregrinos da Terra Santa . Dava-lhes em cheio o luar , e , naquele seu estranho contraste , dir-se-iam-figuras fantásticas numa aparição de lenda . -- Pobre Portugal , meu querido Ruy ! -- vinha dizendo o velho . Num estreitamento da ladeira cruzaram-se com eles as mulheres que levavam a enlouquecida . -- Monge peregrino ! -- exclamou a desditosa , subitamente agitada por aquela aparição -- A minha filha ... Sabe ? ... Morreu de fome ! ... Monge , reze por ela ! E , sacudindo as duas mulheres com febril energia , tentava aproximar-se do peregrino . -- Que é isto , criaturas ? ! -- perguntou o jovem cavaleiro -- Que significam as palavras desta mal-aventurada ? A tentar desprender-se das outras , a desditosa dobrara-se toda para a frente , de cabeça baixa , mas , de repente , como se tivesse reconhecido a voz daquele homem fidalgo e essa voz a tivesse confrangido duramente , ergueu-se com uma face violenta e volveu de relance para ele o olhar turvo de lágrimas . Subitamente levou as mãos ao rosto e caiu para trás nos braços das duas mulheres , dando um grito indefinível . As mãos , numa tremura , tinha-as espalmadas contra o rosto como se tivesse a preocupação de o esconder daquele jovem cavaleiro . -- Mas explicai-me , criaturas , que mulher é esta , e porquê este seu desvario aflitivo ? ! -- interrogou com estranheza o juvenil companheiro do monge . -- Senhor cavaleiro , desculpai-a . Morreu-lhe a filha -- explicou umas das mulheres -- e a pobrezinha tresvariou ! -- Pois que Deus , Senhor nosso , tenha piedade da sua dor e lhe dê resignação -- disse humildemente o velho peregrino . -- Vejo que sois de pobre condição -- acrescentou o cavaleiro , metendo a mão na escarcela -- Aqui tendes para ajudarem a pobre mulher . E estendeu a mão para uma das que a seguravam . Dava-lhe uma pequena moeda de ouro . -- Seja pelo amor de Deus ! -- agradeceu a mulher -- e que a nossa Senhora vos dê boa fortuna . -- E voz- la conceda também -- respondeu-lhe , seguindo para cima com o peregrino . -- Levai-me daqui -- pedia em voz baixa a endoidecida -- Depressa ... Não lhe mostreis ... A pequena ! Não lhe digam que era minha filha ! Não ! A ele nunca ! Tenho vergonha ! Tenho vergonha ! E assim a levaram dali , com as mãos cada vez mais cingidas ao rosto , como se uma grande vergonha a oprimisse tanto , que até aquela sua loucura de mãe a pudesse compreender e sentir ! DRAMA ANTIGO Em Santo Elói , o cavaleiro e o monge pararam em frente do portão de um velho palácio brasonado . -- Tio||_Mendo Mendo|_Mendo , ides ver que alvoroço fará a minha querida mãe . -- Por mim então , nem que fosse num sonho me poderia esperar ! -- Tal como a mim me sucedeu no Porto , quando lá fostes dar , ao fim de tantos anos de trabalhos . -- Tantos ! Olha , faz amanhã doze anos que eu me parti daqui com o coração despedaçado e a alma cheia de luto . -- Todos julgavam que por lá tinhas morrido ! -- Às vezes nem sequer pode morrer quem não quer fazer a Deus a ofensa de se matar . Histórias tristes e longas . Bate lá e arranja modo para que a tua mãe não fique mais doente com esta surpresa da minha vinda . -- Nem ela conta comigo . Mas descansai , tio||_Mendo Mendo|_Mendo , que eu acautelarei o nosso aio e as criadas para que lhe não deem a notícia de repente . Bateu serenamente com a grande aldrava de bronze do portão . Os dois escudeiros tinham parado a uma dezena de passos . -- Teria sido melhor vir mais cedo -- disse o peregrino . -- Bem o queria eu , mas com as informações que tive de dar ao Mestre e depois naquela demorada conversa com o Arcebispo , acerca das coisas do Norte , foi-se passando uma grande parte da noite . -- Podíamos vir cá de manhã . -- Vós preciseis de repouso . De manhã haverá de ajudar na entrada das naus e galés , sabe Deus com que longos e arriscados trabalhos , e me-o remorso de estar em Lisboa por tão demoradas horas sem vir ver a minha mãe . -- Dizes bem , Ruy . Tardam em abrir ! -- Bato outra vez . Deu três fortes marteladas e então , poucos minutos passados , assomou ao postigo do portão a cara engelhada de um velho . -- Quem bate , e a que vindes ? -- perguntou . -- Meu querido Gonçalo , sou eu . -- Santa Maria ! -- exclamou o velho . -- Não te espantes tanto , homem de Deus , e vem depressa . A minha mãe como está ? -- Um pouco melhor dos seus achaques , senhor meu . -- Louvores a Deus ! Mas não faças ruído para que se sobressalte ! O Gonçalo Vasques abriu com penoso esforço a pesada porta de carvalho com chaparia de ferro . -- Santa noite , meu querido senhor -- saudou , muito dobrado . -- Boa noite , meu velho . Porque foste tu a vir abrir o portão ? -- O jovem do portão está doente , e aos outros não há ruído que os acorde . Mas eu ainda não estou em mim , meu querido amo e senhor ! A grande alegria que vai ter a senhora||_D._Dulce D.|_D._Dulce Dulce|_D._Dulce ! Andava já raladinha de receios e de saudades por vós ! -- Pois sim , meu velho , mas sem alvoroto haveis de ir acordar a sua aia , para que lhe dê aviso da minha chegada e lhe diga que ao romper da alvorada irei beijar-lhe a mão . De olhos pasmados no peregrino , o Gonçalo Vasques levantou de cima do banco antigo de cedro o lampião de aros de ferro e vidros corados , que ali pousara para abrir o portão , e indicou aos dois escudeiros os brandões metidos em argolões de bronze , na extrema do vestíbulo , a um outro lado da larga escadaria . -- Vinde acendê-los para acompanhardes o nosso amo . Cada um dos escudeiros trouxe uma tocha que acendeu um lampião . Entretanto , o velho Gonçalo não tirava os olhos do peregrino , mirando-o de alto a baixo com uma grande expressão de espanto e de supersticiosa veneração . Como poderiam ter entrado na cidade , cercada por terra e mar , o jovem cavaleiro , seu amo , e aquele peregrino de longos cabelos e grandes barbas de neve ? ! E porque o trazia consigo seu amo Ruy de Vasconcelos ? Era isto o que ele a si próprio perguntava , atónito . Mendo percebeu-lhe a estranheza e aproximou-se dele lentamente , depois de ter observado que ninguém mais poderia ouvi-los , pois os escudeiros se tinham afastado . -- Nem podeis sonhar sequer , Gonçalo Vasques -- disse-lhe baixo , com uma grande expressão de tristeza , pondo-lhe a mão no ombro , afetuosamente -- que velho é este de tamanha grandeza para vós ! -- Senhor , peregrino dos Santos Lugares me parece que sois , mas não me diz a memória que eu algum dia vos tivesse visto ! -- Desde jovem , por largos anos , Gonçalo Vasques . Em todos os dias e em cada hora me víeis . Mas tão mudado me trazem as mágoas e os trabalhos , que nem já me podeis conhecer e mais velho pareço do que sou ! -- Pela voz me estais a lembrar alguém , a quem muito queria e venerava e daqui fugiu infortunado , fidalgo e senhor com quem me criei ! Mas engano certo será dos meus ouvidos e do meu coração de velho ! Passaram muitos anos , senhor , que ele se foi ! Depois aqui se contou um dia que tinha morrido e houve luto nesta casa ! Eu creio que os mortos não voltam . -- Quer Deus às vezes que alguns voltem . De uns sei eu que voltaram , Gonçalo Vasques . Numa tremura de comoção , o septuagenário pôs nele um olhar investigador , cheio de enternecido interesse . -- Pelo tanto que os ficaram a chorar e pela tamanha saudade que deixaram , de alguns sei eu que deviam de voltar , porém nunca mais ninguém os viu , meu senhor ! -- Pois ide avisar a aia da vossa ama e lá em cima eu vos contarei depois o caso de um que voltou -- disse-lhe o peregrino , comovidamente . Em maior tremura , num alvoroço de dúvida , o Gonçalo Vasques tomou o lampião e volveu-lhe em voz rouqueiante : -- Vou , cá vou , e será como dissestes . Foi para a escada com as pernas a vergarem-se-lhe e o coração a bater-lhe . Doidamente como se quisesse fugir-lhe do peito . -- Pela voz parece-se um pouco ! -- ia dizendo consigo -- Talvez o não tivesse levado a morte . Já tem havido casos assim , consoante dizem os contos antigos . Estou em crer que é ele ! Meu conhecido desde novo , por muitos anos , que outro poderia ser ? Entretanto , muito inclinado para o tio , Ruy dizia-lhe quase em segredo : -- Já adivinhou quem sois , o pobre do Gonçalo Vasques ! Olhai como as pernas se lhe vergam a tremer por aquela escada acima . Tio e sobrinho tinham entrado para a sala de armas , sala alterosa e vasta , de altas janelas de ogiva com vitrais flamantes . As paredes adornadas de soberbos troféus e panóplias antigas . Poucos minutos volvidos , o Gonçalo Vasques entrava . -- E então ? -- perguntou-lhe Ruy de Vasconcelos . -- A criaturinha ergueu-se toda cheia de pasmo e lá foi a tremelicar para os aposentos de dormir da senhora||_D._Dulce D.|_D._Dulce Dulce|_D._Dulce . -- Muito bem . -- Agora escuta , Gonçalo Vasques -- disse-lhe o peregrino , aproximando-se comovidamente -- Aquele infortunado que há muitos anos foi-se embora , é dos mortos que voltam , e aqui o tens de braços abertos para ti , meu velho . -- Jesus da minha alma , que mo estava a adivinhar o coração ! -- exclamou com uma neblina de lágrimas na voz e no olhar -- O meu querido senhor||_Mendo_Rodrigues Mendo|_Mendo_Rodrigues Rodrigues|_Mendo_Rodrigues , tão amigo e meu protetor , tão grande exemplo de cavaleiros ! -- E ainda maior exemplo de desventurados ! -- Bendito Deus , ainda que tudo isto não se passasse de um sonho ! Deixai que vos beije as mãos ! -- soluçou , a dobrar os joelhos . -- Velho , de pé , os teus cabelos brancos estão a par dos meus ; peito a peito para que os nossos corações se escutem , e nos meus braços , como há cinquenta e três anos tu me erguias nos teus , amigo lealíssimo dos mais devotados que eu tive . Abraçaram-se comovidos . -- Senhor||_Ruy_de_Vasconcelos Ruy|_Ruy_de_Vasconcelos de|_Ruy_de_Vasconcelos Vasconcelos|_Ruy_de_Vasconcelos , meu honrado senhor e amo -- disse da porta Marta Vicente , a aia de D. Dulce . -- Saudações , minha boa Marta . -- Bons olhos vos vejam e boa fortuna venha com+vós , meu senhor ! -- A minha mãe ? -- Dela vos trago recado para a irdes ver sem demora aos seus aposentos de dormir . Senhor , está num alvoroço com a boa noticia que lhe dei ! -- Pois ide lá dizer-lhe que não tardo um credo em lhe ir receber a bênção . -- Eu vou , meu senhor -- disse , olhando insistente , numa grande expressão de estranheza , para o velho peregrino . E assim que ela se retirou , Ruy disse para o tio : -- Ficai vós aqui , tio e meu senhor , se tal vos apraz . -- Fico , sim . Aqui me acompanhará o nosso Gonçalo Vasques . -- Eu irei dispondo o coração da vossa irmã para tamanha surpresa . -- Deste mal-aventurado morto que voltou -- interrompeu Mendo Rodrigues , sempre naquele profundo tom de tristeza que se tornara o timbre de mágoa imutável da sua voz . -- Gonçalo Vasques , amigo , senta-te . -- Senhor , diante de vós ! -- Neste escabelo ( tipo de banco ) , ao pé de mim . Puxou-o para si brandamente e sentou-se ao lado dele . -- Não bastariam noites inteiras , grandes como noites de Dezembro , para eu te contar os longos anos que sofri . Há de isto ir a pouco e pouco , se a vida me chegar para tanto . Agora o que mais importa é falar desta pobre terra de Portugal , em tamanho perigo de se perder , Gonçalo Vasques ! -- E , a bem dizer , por causa da mesma criatura que a vós vos perdeu , meu senhor ! -- A rainha comborça ! ( concubina ) -- rouquejou Mendo Rodrigues , erguendo-se de repente , as rugas mais cavadas no rosto , a palidez mais lúgubre , os lábios numa contração violenta , o olhar num súbito relampejar de cóleras -- Há seis meses me disseram em Inglaterra que , de dia para dia , se tornara mais vil essa loba real , a ladrar amores com um cachorro galego ! Contava-se que , a poder de ciúmes , matara o marido , como a poder de ignomínias infamara o trono , vergonha e afronta de todas as rainhas , vergonha e afronta das piores esposas , ralé degradante das ínfimas bonejas ! -- Senhor meu , acalmai-vos por quem sois ! -- rogou-lhe . -- E pelo que sou -- respondeu-lhe , moderando-se -- Tens razão , Gonçalo Vasques . Sete anos a arrastar-me na humildade destas vestes , a esmagar o coração contra o meu próprio passado , a pedir a Deus que me levasse ou de tudo me fizesse esquecido , e nem a morte me quis , nem o coração se esqueceu ! Não mereci que Deus me ouvisse , e ainda há tempestades de ódio e de cólera neste Mar Morto em que a minha alma naufragou ! Em velho , procurarei ser calmo -- rouquejou , sentando-se outra vez ao lado dele -- Vai-me contando o que sabes desta nossa terra , Gonçalo Vasques . Em Inglaterra só me souberam dizer umas coisas incompletas e mal compreendidas . Anteriormente , em Tunes , onde fui cativo e remador de galés , em Alexandria onde me traficaram como escravo e na Terra Santa onde vivi de esmolas , ninguém sabia e ninguém dizia nada desta nossa terra de Portugal ! -- O que vós passastes , senhor||_Mendo_Rodrigues Mendo|_Mendo_Rodrigues Rodrigues|_Mendo_Rodrigues ! -- Contos longos de infernal amargura guardo-os para as longas e tormentosas noites de Inverno , se quiser Deus que eu lá chegue . Depois daquela noite de desgraça em que me fui daqui , manchado de sangue e louco de desespero , aquela horrenda noite de Outubro de 1371 , que nunca mais me saiu da alma , cheia de negrumes , laivada de sangue ... -- Por causa daquela treda mulher de encantamentos , que foi rainha caluniosa dos Portugueses ! -- No meu tempo era somente uma adúltera de enfeitiçadora juventude e perversa desvergonha , a quem el-rei doidamente se avassalara . -- Aquele senhor||_rei rei|_rei D. Fernando , a quem Deus perdoe os tamanhos males que trouxe à nossa terra com tais desonestos amores , que até para ele foram de morte ! -- E quem sabe ainda se também para Portugal ! -- É verdade , senhor , quem sabe ? ! -- Mas vai-me tu desafogadamente , como te lembrarem , as coisas de mais importância , que se passaram aqui . De Inglaterra embarquei para o Porto , muito enfermo e em tal desfalecimento de ânimo lá cheguei , tão devorado de febres , que mal falei do tempo ido com o meu sobrinho Ruy . Nem com ele desafogaria como contigo , meu velho e leal confidente . Guerras sei eu que umas poucas tem havido de ruína e de vergonha nesta desgraçada terra , desde aquela em que eu entrei como tu sabes . -- A do ano de 1369 -- disse Gonçalo Vasques -- E só essa não foi por causa daquela mulher de tão lindo rosto , que parecia uma santa , e de tão negregado coração , que nem as feras queriam ser o que ela foi ! Aquela de 69 anos não trouxe grandes males . -- Foi uma guerra por ambição de el-rei , que meteu Portugal na Liga dos reinos -- Aragão e de Navarra , contra o rei||_Henrique Henrique|_Henrique II de Castela , das Astúrias , de Galiza e Leão . -- E nessa Liga entrava também o rei mouro de Granada , segundo ouvi ! Um rei mouro ! -- Entrava . Dessa não nos vieram grandes prejuízos , bem o sabes . Invadimos a Galiza e tomámos a Corunha . É verdade que também os Castelhanos entraram depois por Trás-os-Montes e pelo Minho e nos tomaram Bragança e Braga e cercaram Guimarães . Mas por ali se ficaram , e só no ano seguinte se atreveram a cercar a nossa Cidade Rodrigo , com o mesmo nulo resultado com que os nossos lhe foram bloquear o rio Guadalquivir , para render Sevilha . -- As outras que se lhe seguiram foram cem vezes piores ! -- Daquela só veio um grande mal , porque de além Minho trouxe el-rei , como seu parcial , a esse cão Galego que se chamava João Fernandes Andeiro . -- Que foi a sua e a nossa vergonha por aqueles amores de infâmia ... -- Com a loba real de cabelos fulvos e olhai enfeitiçador , que era Leonor Teles . Quando eu parti , estava el-rei já com a intenção de quebrar o ajuste do seu casamento com a infanta de Castela , pois já o tinha avassalado a formosa esposa de João Lourenço da Cunha . -- Dali veio então a causa de todas as guerras que nos têm afligido ! El-rei queria à força casar com ela , sem lhe importar que fosse casada e tivesse o marido vivo . O povo soube do desvario e amotinou-se . Foi então que el-rei fugiu com ela e lá se foi casar para os lados do Porto , em Leça do Bailio ; pouco depois do vosso tamanho infortúnio . Mulher de dois maridos ! Mas os reis podem muito , e o Santo Padre lá deu por desfeito o casamento com o outro , que fugiu para Castela . Ouvi dizer que por lá andava na corte , com tal descaramento e escárnio da sua própria afronta , que trazia na gorra , em guisa de plumas , duas pontas de ouro . -- Que abjeto homem e que pervertidos tempos estes nossos ! -- O povo sentiu pelo rei a vergonha que ele não sentia ! Alvorotou-se Lisboa ; mas o que podia o pobre povo , se tantas pessoas da nobreza e tantos prelados se conformavam com aquela rainha sem vergonha ? Os mais audazes foram esganados pelas justiças de el-rei e , na cabeça de todos eles , um tal Fernão Vasques , alfaiate que valia tanto como se fosse um destemido cavaleiro ! A esse o vi eu a espernear na forca , depois de lhe terem decepado as mãos ... -- Ouvi em Inglaterra que o rei||_Henrique_de_Castela Henrique|_Henrique_de_Castela de|_Henrique_de_Castela Castela|_Henrique_de_Castela muito se ofendera pela quebra do ajuste de casamento com a infanta sua filha , que o senhor||_rei rei|_rei D. Fernando trocara por Leonor Teles ... -- A Flor de Altura como por cá lhe chamavam na corte , meu senhor . -- Flor -- perdição para tantos homens e para esta terra é que ela o foi ! Flor que entontecia pelo muito que tinha de bela , e matava nos seus espinhos como se fossem línguas venenosas de serpentes ! Em Bristol me contaram que o rei||_Henrique_de_Castela Henrique|_Henrique_de_Castela de|_Henrique_de_Castela Castela|_Henrique_de_Castela declarou guerra ao nosso por aquela ofensa , e então se aliou D. Fernando com o rei -- Inglaterra e veio cá o Conde de Cambridge . -- Dessa aliança de reis nada vos sei dizer , meu senhor ; mas o que eu sei é que aí chegaram muitos ingleses , gente dura e feroz para combater e dizem que ainda pior para destruir e rapinar , se eram certas as queixas que deles fazia o povo . Anos terríveis de desgraça para a nossa terra ! Nem a pior peste , nem o mais horroroso terramoto , nos podiam trazer mais ruínas , mais lágrimas , tamanha perda de vidas , tal medonha levada de sangue ! E Gonçalo Vasques levantou-se numa atitude de desespero . -- Vieram os Castelhanos pela Beira dentro , tomaram e destruíram cidades , vilas , aldeias ! Queimadas , em cinzas , tudo raso até chegarem a Coimbra ! E foi nesse triste ano de 1372 que a loba real , como vós lhe chamais , teve uma filha , a infanta D. Beatriz , causa desta guerra de agora e , ao cabo de contas , ainda uma causa que vem da maldita mãe que tinha , Deus me perdoe ! -- Eu sei . É a esposa do rei||_D._João_I_de_Castela D.|_D._João_I_de_Castela João|_D._João_I_de_Castela I|_D._João_I_de_Castela de|_D._João_I_de_Castela Castela|_D._João_I_de_Castela . -- Esposa de doze anos , meu senhor ; uma criança com quem os Castelhanos andam a jogar contra nós ! A pobrezinha pode lá entender esses enredos em que a meteram ? Ainda ela andava no berço e já lhe andavam a tratar do casamento ! Uns poucos de casamentos , que se iam ajustando e desmanchando enquanto a infantazinha ia crescendo ! Nunca se tinha visto coisa assim ! Depois de lhe terem arranjado dois noivos diferentes de Castela , chegaram a celebrar-lhe as bodas com o filho de um duque inglês , que aí veio . E ela com nove anos ! Depois , ainda outro noivo de Castela , porque o noivado com o Inglês desfez-se , e por fim , o ano passado , a foram levar à fronteira , pobre menina de onze anos , para que fosse esposa do rei viúvo de Castela . -- E para que lhe servisse de joguete político , está-se a perceber , para o rei castelhano reclamar a coroa , a bandeira , as tradições , o brasão , o próprio nome desta nossa terra , com tanto amor e tamanho esforço erguida no Mundo ! Mas dá-me ideia de que foi a invasão de 1372 ( * ) . Os Castelhanos tinham chegado a Coimbra , disseste . -- E de lá vieram sobre Lisboa , que não tinha então os muros e torres que se fizeram , três anos depois . -- Isso já eu notei . As muralhas que eu conhecia faziam a cidade mais pequena e muito a confrangiam em volta do monte do Castelo . -- Pois a nova cerca quem a ergueu foram os braços do povo . Fazei ideia , senhor , que , há onze anos , os Castelhanos do rei||_Henrique Henrique|_Henrique puderam ter o seu arraial no alto de S. Francisco e a cerca nova vai entestar agora com o monte de Santa Catarina ! O terror que foi aquele cerco de 73 ! Deitaram fogo Ãs casas e assolaram tudo à volta da cidade , aqueles excomungados de Castela ! Mas , ao menos , não os deixaram entrar cá dentro . No ano de 1381 houve outra invasão e a perda da nossa armada nos mares de Castela ! Pudera ! Ia a comanda-la um irmão da loba , para que todas as nossas desgraças proviessem dela ! Logo no ano seguinte se fizeram as pazes com Castela e ainda foi pior que as fizessem ! O rei castelhano tinha ficado viúvo , e logo a comborça real se lembrou de lhe dar a filha em casamento , para ficar mais segura no trono . E lá foi levar-lhe&lhes+a a Elvas . Aquela seria a herdeira da coroa dos nossos reis , e como tal se disse que lhe juraram lealdade os fidalgos -- Portugal e Castela , para o caso de el-rei não ter filho varão legítimo que lhe&lhes+a herdasse . -- Não tinha ? -- Teve um ... Tinha nascido no paço , no ano anterior . Era filho varão da rainha||_D._Leonor_Teles D.|_D._Leonor_Teles Leonor|_D._Leonor_Teles Teles|_D._Leonor_Teles . -- Percebo . -- Contou-se que el-rei o tinha esganado à nascença ! Deus me perdoe se assim não foi ! -- Havia de ter sido , Gonçalo Vasques . O mísero rei devia andar ralado de ciúmes , cheio de infernais desesperos aquele seu coração cobarde . -- Meio morto e de dela escravo é que ele andava , meu senhor ! Quem reinava era ela , e a quem tinha amor era o Galego João Fernandes Andeiro , feito Conde de Ourém , por graça de el-rei . -- Miséria de rei ! Podia fazer da coroa a insígnia de escárnio que João Lourenço fizera da gorra ! Nas suas horas de perfídia , a comborça lhe-ia dos ombros o manto do pai , o rei justiceiro , do avô , o bravo do Salado , para lhe&lhes+o transmudar em almadraque do conde Galego ! Cobarde para ser rei , cobarde de mais até para ser homem ! Viu alguém que fosse rebater os invasores de Castela à frente da sua hoste , como os reis de quem provinha ? -- Ninguém , senhor ! Na guerra de 73 meteu-se em Santarém , todo perdido de amores , pela sua enfeitiçadora , e não houve súplicas que o tirassem de lá ! Lisboa e o Reino que chorassem os seus males e se defendessem como pudessem . Até se conta que a Rainha se regozijava com as tamanhas desventuras que Lisboa estava a sofrer ! -- E porque essa inaudita perversidade ? ! -- Porque Lisboa tivera vergonha pelo rei e fiz uma revolta contra aquele casamento . -- E o poltrão a tudo se dobrava ! Tinha dentro em si um inferno de zelos , sentia-se enterrar numa sepultura de lama , e só a coragem lhe chegou para estrangular uma criança ! Fosse como qualquer homem honroso , e tinha apunhalado a comborça mesmo nos degraus do trono . -- loba . Tal como o irmão bastardo , o senhor||_infante|_D._João infante||_infante|_D._João D.|_infante|_D._João João|_infante|_D._João , matou a irmã da -- Maria Teles ! Mas essa , menos linda que a irmã , era honesta como ela nunca foi ! -- Senhor , pois por causa da irmã foi que o marido lhe deu morte cruel e traiçoeira . A loba receava que D. Maria , casada com o bastardo de um rei , viesse ainda a fazer-lhe sombra , e levantou-lhe a calúnia de esposa infiel . -- Para desse modo a irmanar consigo . -- Armou-lhe a intriga , teve quem fosse meter a calúnia nos ouvidos do marido de D. Maria Teles , e D. João lá foi a Coimbra matá-la como um animal ! Ouvi que lhe retalhara a golpes de adaga aquele seu corpo de neve ! -- Tempos torpes estes nossos ! Da morte do Conde Andeiro soube eu na cidade -- Londres . -- Tinha de ser , meu senhor . Aquilo era vergonha de fazer corar um judeu ! E a cadela coroada cada vez com menos vergonha ! Não seria injúria nenhuma se lhe prendessem na coroa o véu açafroado daquelas que não podem viver entre gente honesta , -- O Mestre de Avis matou o Galego com um golpe de adaga . Foi o que eu ouvi em Inglaterra e depois no Porto . -- Deu-lhe o golpe depois de o ter levado para o vão de uma janela do paço . Mas quem acabou de matar o Andeiro foi um fidalgo de nome Ruy Pereira , homem de ânimo destemido . -- Conheço-o . Vem na armada do Porto . -- Foi a 6 de Dezembro do ano passado que o mataram . El-rei||_D. D.|_D. Fernando tinha falecido a 22 de Outubro , e a 22 de Novembro , tinham sido as suas exéquias . -- Boa memória têm os teus setenta e quatro anos , Gonçalo Vasques ! -- Senhor , o coração ajudou-a a não esquecer estas datas , que lembram desgraças da nossa pobre terra de Portugal ! A morte do mísero rei pôs o povo em grande mortificação . Logo se percebia que o rei castelhano havia de vir pela herança da coroa . Nem ele casou para outro fim com aquela infanta de onze anos . E com a coroa o Reino . O povo bem sabia que dos fidalgos havia alguns do lado da rainha comborça e muitos do lado da infantazinha , rainha -- Castela . -- A herança maior era a de Portugal para os Portugueses . A maior e a única legítima herança . -- Essa , meu senhor , só teria poucos fidalgos que a defendessem , embora alguns valessem por muitos . Ai de Portugal , se não tivesse por si a alma e o braço do povo ! O Mestre matou o Andeiro , mas quem fez a revolução foi o povo . Aqui em Lisboa e no Porto . As duas melhores lanças que tem Portugal são a do Mestre e a de um jovem cavaleiro que lá anda a lutar pelas terras do Alentejo e já venceu uma batalha aos Castelhanos . -- Um bastardo do Prior da Ordem dos Hospitaleiros , um rapaz de assombroso valor , Nuno Álvares Pereira . -- Senhor , esse mesmo é . -- Fala-se dele em Inglaterra , e muito hoje a ele se referiu o teu amo Ruy . -- Vale esse mais , todos o dizem , que três dobros dos outros que são pela rainha criança , esposa do rei castelhano . Senhor||_Mendo_Rodrigues Mendo|_Mendo_Rodrigues Rodrigues|_Mendo_Rodrigues , perdoai-me o desafogo , mas até esses dois , o Mestre e Nuno Álvares , são como se fossem do povo , e o Mestre do povo descende também . -- O Mestre por ser filho de Teresa Lourenço ; bem sei . -- E Nuno Álvares , bastardo como ele , porque a sua mãe Iria Gonçalves , ao que me contaram , se não é bem da gente humilde , muito mais está chegada ao povo que à ilustre nobreza destes reinos . Iria Gonçalves foi cuvilheira da senhora infanta , rainha -- Castela , ainda esta era pequenina . -- Senhor , perdoai ! Dais-me confiança de amigo e eu falo-vos com o coração nas mãos . Regala-me ver que os da minha semelhança também servem para opor os embargos do seu sangue a essa herança , que seria a morte de Portugal . -- Dizes bem , Gonçalo Vasques . Honrado esse teu orgulho , meu velho ! -- volveu-lhe o fidalgo , abraçando aquele septuagenário , que o apertava a si numa tremura de comoção . -- Mendo ! Meu desventurado irmão ! -- dissera da porta da sala uma dama de singular palidez . E foi para o peregrino de braços abertos , o peito num arquejar violento , como se o agitassem ondas de soluços . -- Dulce ! -- rouquejou Mendo , recebendo-a nos braços -- Minha irmã ! -- disse , beijando-a , a tremer , os olhos afogueados em lágrimas -- Aqui tens o espantoso desgraçado que supunhas morto . -- Ouviu-me Nossa Senhora , meu querido Mendo ! O meu coração pedia-lhe por ti , mesmo quando todos te davam por morto . Eu não podia desmentir o boato , mas olha que trazia comigo uma voz a dizer-me bem que podia Nossa Senhora fazer-me o milagre de trazer-te . E ouviu-me e trouxe-te , bendita seja a sua infinita misericórdia ! -- Merecias tu que te ouvisse ; eu não , que tantas vezes , sem remédio , lhe pedi a morte . -- Que envelhecido vens , meu pobre irmão ! Mas eu já sei o muito que padeceste . O Ruy contou-me tudo . -- O pouquíssimo que eu tive ocasião de resumir-lhe , minha Dulce . -- Mas voltaste , mas tenho-te aqui . Bendita noite ! E sentou-se no escabelo de espalda , extenuada , a respirar a custo . -- Senta-te aqui ao pé de mim . Eu por qualquer coisa me afadigo . Aqui , sim ? -- Contaram-me que tens estado enferma , que tens padecido muito -- disse-lhe o irmão afetuosamente , sentando-se ao pé dela . -- O mal maior é do coração , assim como se muitos punhais o tivessem ferido e ficassem cravados nele , para que nunca mais as feridas fechassem . Cansou , respirava oprimida . -- Eu sei , Dulce . Por mim também , pela minha desgraça , e pelo meu crime , a dor , que veio agravar a tua viuvez . A que eu te causei , pior ainda , porque foi também de vergonha . -- Não , não ! Não se fala agora dessas coisas mortificadoras . -- Sim , tranquiliza-te . -- Voltaste , temo-te aqui ; eis o milagre consolador . -- Mãe e senhora -- disse-lhe Ruy , que estivera a falar baixo com Gonçalo Vasques . -- Diz . -- Vai levando-se a madrugada e o meu tio e senhor há de precisar de repouso . -- Ah ! Certamente -- confirmou Dulce . -- Não te preocupes por mim . -- Tivemos-lo no Porto sempre a arder em febre , e em toda a viagem quase não pôde levantar cabeça ! -- disse Ruy para a mãe . -- Senti alma nova quando avistei a serra de Sintra ; enrijei com os ares de Lisboa . -- Mãe , chorou como uma criança quando a terra se avistou ! -- Saudades de doze anos . Aqui nasci , aqui me criei , e só daqui me levou um vento louco de desgraça . Já que a morte me não queria para si em terras estranhas , aqui a viria esperar , nesta linda terra , à qual tanto queria e quero , mal afortunada terra , minha segunda mãe , de tanta desventura como eu ! -- Mendo , e quem sabe ainda para que maiores infortúnios ? ! -- disse , relanceando um olhar de amargura para o filho -- Se Deus a desamparar e os bons homens não bastarem para lhe acudir ! Ouviram-se os sinos próximos . -- Já se ouve o toque das matinas ! -- notou Ruy -- Uma cidade alvoroçada madruga mais cedo ! Foi a uma das janelas , destrancou-lhe as portas e entreabriu um pouco a vidraça , de cores vivas e pinturas de batalhas , por maneira a evitar que a aragem fresca da madrugada pudesse fazer mal à mãe . -- Serão três horas , se forem . Ainda é luar como de dia ! Anda o povo impaciente : Está a tocar o sino grande da Sé . Fechou a janela . D. Dulce erguera-se , e todos de pé , de mãos postas , rezaram baixo o avé maria matinal . Ruy foi beijar a mão à mãe . -- Filho , Nossa Senhora esteja contigo -- disse , dando-lhe a bênção e beijando-lhe a face carinhosamente . -- E com+vós , mãe e senhora minha . -- Tio , a vossa bênção -- pediu-lhe , beijando-lhe a mão . -- Que o Deus dos oprimidos e da suprema justiça te ampare e seja pela sua glória , cavaleiro fidalgo , que tanto esforço deve ao teu nome e tanto tens de pagar à tua terra pelo teu foro de homem leal e para resgate das tamanhas desgraças que outros causaram . Abençoou-o com uma grande solenidade religiosa e depois abraçou-o . -- Ruy , eu sei que tens sido dos mais esforçados como és dos mais jovens entre quantos são a derradeira esperança de Portugal , homens de prole ou homens da plebe , que de uns e outros , da alma e do sangue de todos , carece agora Portugal . Bem hajas , cavaleiro . Bendita seja a tua espada ; bendito seja o teu sangue ! Numa comoção profunda , Ruy tomou-lhe as mãos febrilmente e beijou-lhe&lhes+as . -- Ama e senhora minha -- disse Gonçalo Vasques para D. Dulce , dobrando-se a tremer -- glorioso dia seja este que vai começar , para todos os vossos , para todos os nossos . -- Deus vos escute , Gonçalo Vasques . Apareceu à porta um escudeiro . -- Senhor cavaleiro -- disse curvando-se . -- Que me quereis ? -- Chegou recado do Mestre para lhe irdes falar ao paço de Apar S. Martinho , antes que rompa a manhã . -- Em breve estarei com sua senhoria . Quem trouxe o recado ? -- O próprio Juiz do Povo . -- Então é o meu afilhado Afonso Eanes -- disse D. Dulce -- E não o mandaram entrar ? ! -- disse para o escudeiro . -- Senhora , ficou à espera de resposta na sala baixa do recebimento . -- Pois que suba . Ruy , vai tu lá buscá-lo . -- Da melhor vontade , mãe e senhora minha . E saiu com o escudeiro . -- Quem vem a ser esse Afonso Eanes ? -- perguntou Mendo . -- Um honrado tanoeiro , de quem certamente já te esqueceste . Aqui veio muitas vezes , e dois anos depois de saíres do reino casou-se e fui eu madrinha da noiva , uma honesta rapariga que se criara em casa da nossa tia||_D._Úrsula D.|_D._Úrsula Úrsula|_D._Úrsula , que Deus tenha consigo . -- Não me recordo . É ele então o Juiz do Povo ? -- É . E o mais que ele tem sido dizei-o vós , Gonçalo Vasques . -- Homem de espada , aquele mestre tanoeiro , homem para saber falar ao Povo e ir adiante dele ! -- informou o velho com o seu adorável desvanecimento de plebeu -- Quando foi a reunião do povo e de alguns fidalgos no alpendre de S. Domingos , para se decidir se o senhor||_Mestre Mestre|_Mestre de Avis havia de ser ou não nomeado Regedor e Defensor do Reino , isto em Dezembro do ano passado , alguns houve que lhes puseram dúvidas ; mas Afonso Eanes falou-lhes claro e forte , de mão na sua espada de mesteiral , e venceu o que ele disse e quis , e o Mestre foi nomeado . Desgostoso pelos poucos fidalgos que estavam com ele e pelos fracos meios que tinham para defender Lisboa , o Mestre chegou a querer ir para Inglaterra , ou fingiu que tal era o seu intento ; mas Afonso Eanes tomou-lhe as rédeas do cavalo e disse-lhe resoluto que tal não fazia , porque o povo não queria ser de Castela e só ele devia ser o guia e o chefe do povo . Aquele é bem o Condestável do povo . -- Entrai , mestre Afonso Eanes -- disse da porta Ruy de Vasconcelos . -- Santa madrugada -- disse o Juiz do Povo , entrando enleado , ele que nas praças , à frente das turbas , ou nos alpendres de S. Domingos , falando à sua gente e aos nobres , era homem de resolução desenvolta e sem papas na língua . Foi direito a D. Dulce e saudou-a , dobrando-se , a ponteira da sua larga espada a arranhar o ladrilho da sala . -- Madrinha e senhora da minha maior veneração ! -- disse-lhe . -- Muito me apraz ver-vos aqui , honrado Afonso Eanes . Vossa mulher e filha , estão bem ? -- Louvores a Deus , bem , senhora minha . -- Trazeis-me então recado de urgência para o meu filho ? -- O Mestre quer ouvir o vosso filho a respeito de mais umas coisas da armada que veio do Porto . -- Haverá luta ? -- Senhora , talvez daqui a poucas horas . -- Deus seja por nós ! -- murmurou D. Dulce , num confrangimento do coração . -- Senhor||_Afonso_Eanes Afonso|_Afonso_Eanes Eanes|_Afonso_Eanes , vou pôr a cota e os braçais . Será demora de instantes , e aqui voltarei depressa para ir falar ao Mestre . Saiu . Mendo Rodrigues falava baixo com Gonçalo Vasques ao pé de um grande troféu de armas , que tinham sido glorificadas na batalha do Salado . -- Afilhado -- dizia D. Dulce a meia voz para o famoso caudilho da plebe -- o meu dever de mulher Portuguesa , devoção e dever , não me consente mágoas e receios diante daquele filho , que é toda a minha vida ; pertence à Nação o seu braço e o seu sangue ; mas o meu pobre coração de mãe todo mortifica-se em temores de morte , cada vez que esse jovem temerário se afasta de mim ! -- Senhora , que remédio ! Matar-nos-iam Portugal , se já não houvesse quem por ele desse a vida ! -- Eu sei , afilhado . Esse é o dever , maior em mim do que em outras mães , a quem não couberam os encargos de família que eu tenho . O avô de Ruy morreu no Salado ; o pai , bem o sabeis , há três anos o mataram os Castelhanos na desastrosa batalha naval de Saltes . Mas os meus receios de mãe nunca diante dele os disse . Andam comigo emudecidos . Quando daqui saiu á armada para socorrer o Porto e voltar de lá mais forte de gente e de navios , Ruy ofereceu-se para ir nela , como também sabeis , no intuito de trazer de lá a gente armada da nossa casa e terras de Riba-Douro . Muito louvei o fidalgo-cavaleiro por tal resolução , mas Deus me livre que ele saiba as muitas lágrimas que pela sua causa chorei . -- Madrinha e senhora , como não havíeis vós de proceder assim pelo vosso ilustre nome e pelo vosso sangue nobre e leal , se até as mães sem apelidos , esfarrapadas da arraia-miúda , têm feito o sacrifício dos seus filhos nesta contenda contra quem nos quer levar a coroa que era dos nossos reis e a bandeira que é de nós todos ? Senhora , algumas há que têm perdido todos os seus filhos e vão com os filhos das outras para os muros e torres em guisa de peonagem , para se baterem com os de Castela ! -- Podem fazê-lo . -- Eu sei , senhora minha . Nas suas condições , os trabalhos endureceram-lhe o ânimo . Ferro que a má sorte malhou a fogo , tomou a rijeza do aço . Parece que se lhes mudam em sangue as lágrimas que tinham o direito de chorar ! Há três semanas , senhora minha , morreu ao pé de mim , Ãs Portas de Santa Catarina , com o coração trespassado por uma lança castelhana , uma pobre mãe coberta de luto . No começo do cerco mataram-lhe o marido ; dois filhos morreram-lhe um mês depois a defender a torre de Álvaro Pais ! Andava ralada de mágoas , roída de fome , e ainda teve ânimo para ir combater ! Vós , senhora , fazeis sacrifício diferente ; mas a verdade é que o fazeis em proveito da nossa causa , ocultando do vosso filho choros e receios que podiam quebrar-lhe o ânimo , e ele é dos mais valorosos e dos que mais valem entre quantos ficaram leais a Portugal . -- Muito dado a proezas e sonhos de cavalarias novelescas . Olhai o seu louco desafio ao Condestável de Castela , muito empenho em imitar o jovem Nuno Álvares , e aqui tendes porque eu sinto receios maiores do que outras mães . -- Mestre Afonso Eanes , podemos sair -- disse o jovem cavaleiro , entrando de bacinete emplumado , cota e braçais . Não trazia armadura completa porque só era possível o combate a pé . Na cidade tinham morrido de fome , tinham sido abandonados à voracidade dos mendigos , ou posto fora por falta de rações , quase todos os cavalos de luta existentes no princípio do cerco . Lançados para fora dos muros quase todos , logo depois de terem expulsado como bocas inúteis os judeus e as aventureiras de véu açafroado . -- Tendes-me à vossa disposição , senhor||_Ruy_de_Vasconcelos Ruy|_Ruy_de_Vasconcelos de|_Ruy_de_Vasconcelos Vasconcelos|_Ruy_de_Vasconcelos . -- Mãe e senhora minha -- disse , aproximando-se dela para se despedir . D. Dulce levantou-se numa tremura , que inutilmente tentava disfarçar . Afogueara-se-lhe levemente o rosto , imensamente pálido . -- Filho , que Deus te abençoe como eu , e que seja pela glória do teu nome e da nossa terra a minha bênção -- disse , dando-lhe a mão a beijar . De súbito se ouviu o som distante dos sinos tocando a rebate ; D. Dulce fez-se lívida e sentou-se com um grande desfalecimento de ânimo . Gonçalo Vasques abriu as portas da janela e levantou a cortina . Uma lufada de ar frio da madrugada apagou umas tochas , que ardiam cingidas em argolas de ferro , e encheu a sala com a repercussão confusa das vozes do povo , do tropel da peonagem , de centenas de timbres dos sinos das igrejas e dos sinos de alarme das setenta e sete torres que havia nas muralhas da cidade . -- Torva madrugada ! -- exclamou , agoirento , o velho aio , num relance de olhos para o céu escuramente nublado , a contrastar agora com a noite luarenta e limpa daquele domingo que acabara há apenas três horas . -- Senhora , não vos sobressalteis -- dizia o tanoeiro -- Isto é apenas o alarme para pôr toda a gente em armas e chamar aos muros e torres da cidade uma parte da peonagem . Convém entreter assim os sitiadores de modo a persuadi-los que vamos fazer-lhe uma sortida . Entretanto irão-se dispondo na Ribeira as forças que têm de ajudar a entrada dos nossos navios . -- Vai passando o tempo , mestre Afonso Eanes ! -- veio lembrar-lhe Ruy com impaciência . -- A armada não começará a entrar senão na maré da hora de terça . Senhora , Deus fique com+vós -- disse , despedindo-se . -- E seja por nós todos . -- Mãe e senhora , adeus ! -- Filho , até quando puderes voltar . -- Uma palavra -- pediu o peregrino , tomando o sobrinho de parte -- Mantém o meu segredo -- disse-lhe baixo -- Para o Mestre e para todos serei o que já se disse que era . Um velho cavaleiro de Riba-Douro , que andou pelo Mundo em cavalarias andantes e no fim fez voto de peregrinar pelos Lugares Santos , ocultando de todos o seu nome . Aqui recomendei que não o divulguem . -- Tio e senhor , ficai descansado . Saíram . D. Dulce dobrou-se no escabelo , a soluçar . Magotes de homens armados passavam na rua vociferando cóleras contra os sitiadores . Atrás uma multidão de mulheres cantando esta rude trova de desafio aos traidores e aos Castelhanos : Esta es Lisboa presada , Miradla e deijadla , Se quizíeredes carnero Se quizíeredes cabrito Qual dieron a el Obispo . Assim de escárnio e de ameaça para os de Castela e para os de cá , era esta a canção dileta da plebe , desde os dias da revolta em que o Conde Andeiro , o vadio galego , caíra assassinado no paço do Limoeiro , e o bispo de Lisboa , um Castelhano , fora atirado de uma torre da Sé para o lajedo do adro . O Andeiro fora golpeado a poucos passos da rainha amante , e o bispo , enrodilhado na sua batina roxa , viera cair aos pés da multidão enfurecida , que lhe descarnou Ãs chuçadas os ossos esmigalhados e , em uivos de ódio , o levou de rastos , dilacerado , pelas ruas lamacentas da cidade , como se fosse um cão morto ! Têm destas alucinações medonhas e destas ferocidades odientas as revoltas dos povos que mais se humilharam e mais sofreram ! São as iniquidades monstruosas da sua dor e das suas vergonhas . O FILHO DE D. Dulce Ainda não tinha clareado bem a manhã , porque o sol nascente mal se percebia através do toldo , escuro das nuvens , quando o Mestre saiu do paço de Apar S. Martinho , com o seu pequeno estado-maior de fidalgos , o seu conselho de estado de mecânicos da Casa dos Vinte e Quatro , um séquito de pajens e escudeiros e uma tumultuosa comitiva de mulheres e farroupilhas da plebe , que desde alta madrugada o esperavam nas imediações daquela grande e sombria edificação real . A um lado do Mestre , já armado para combater , o Arcebispo de Braga , de bacinete como um cavaleiro , mas em vez de plumas , uma pequenina imagem dourada da Virgem , arnês sob a roqueta , o cinturão da espada a cingir-lhe a batina ; do outro lado , de gorro negro e beca de seda aleonada , o chanceler João das Regras . Poucos passos atrás , um clérigo minorista com o escudo do arcebispo campeador , e ao lado dele o padre||_João_de_Azambuja João|_João_de_Azambuja de|_João_de_Azambuja Azambuja|_João_de_Azambuja , amigo íntimo e companheiro de infância do Mestre ; meia dúzia de homens de prole , com os seus pajens e escudeiros , e com eles Ruy de Vasconcelos . Os vereadores da câmara com a sua bandeira nova , em que a cruz vermelha da Ordem de Cristo abraçava os castelos antigos do brasão nacional , o Juiz do Povo e os vinte e quatro deputados dos homens de ofício . Depois , a turbamulta . Iam à Sé ouvir missa ; depois seguiriam para a Ribeira , onde o arcebispo já tinha tudo preparado para o embarque da gente de armas que havia de ir dar a mão aos das naus e galés surtas em Cascais . No adro do templo estava o anadel-mor dos besteiros com um troço deles como se fosse um guarda de honra dos nossos tempos . Na frente com as suas vestes flamantes e os seus bacinetes de altas plumas vermelhas , os trombeteiros com as grandes trompas de prata , as longas do tempo do rei||_Pedro_I. Pedro|_Pedro_I. I.|_Pedro_I. Mal avistaram o Mestre e a bandeira da cidade , logo fizeram vibrar as trompas numa saudação triunfal , que os sinos das torres acompanharam em frenéticos repiques . Foi breve a missa . Enquanto descem à Ribeira , metamos nós por entre os magotes de gente estremunhada e faminta que vai para as igrejas fazer preces ou corre aos muros e Ãs torres para ajudar a defesa e dar entrada dos navios chegados do Porto . Tomemos o caminho do Castelo de S. Jorge para ver de alto , num relance de olhos , o panorama daquela linda Lisboa que muito crescera nos últimos vinte anos a despeito de todas as suas desventuras . É para nós um espetáculo curioso , magnífico ; havia de ter para os Portugueses daqueles tempos um aspeto comovedor , de carinhoso desvanecimento e de alanceados receios . Trezentos anos antes a Lissibona moura toda se aconchegava em pinha pelas encostas do monte da Alcáçova ( onde hoje se ergue o Castelo de S. Jorge ) , em contacto com o seu grande rio apenas pelo bairro excêntrico da Alfama . O monte da Graça e a colina onde foi edificada a igreja de S. Vicente ficavam nos arrabaldes da pequena cidade mourisca . O Rossio era um esteiro por onde as marés resfolgavam ; o monte do Carmo um áspero relevo dos terrenos convizinhos daquela cidadezita maometana . Volvidos dois séculos , a Lisboa portuguesa tinha uma cerca mais ampla , mas ainda não abrangia o Rossio nem S. Vicente , por muito cingida ao monte do Castelo ; porém já se desafrontava dos lados do Tejo , para lá da Porta da Alfofa e da Porta do Sol , até chegar à praia , entre a Porta da Judiaria pelo nascente e a Porta do Mar pelo poente , muito vizinha da Ribeira Velha . A cidade tinha crescido admiravelmente ; mas a cidade conquistada e agora ocupada por cristãos , já não cabia no seu encerro de muralhas e saltara para fora delas , formando núcleos de povoação até ao moderno largo do Loreto e Ãs vizinhanças do Corpo Santo pelo Oriente , e até além de S. Vicente , nas convizinhas de Santa Apolónia , pelo Ocidente . Da ladeira do Castelo bracejara até ao Caracol da Graça e ao monte de Santana . Foram estes os arrabaldes vandalicamente assolados pelos Castelhanos em 1373 , quando a tenda real do invasor podia erguer-se , a curta distância do Rossio , no monte de S. Francisco . Agora , naquele ano de 1384 , as muralhas novas , construídas nove anos antes , abrigavam quase todos aqueles núcleos de população . O acampamento dos Castelhanos vinha a subir de Santos para os altos da moderna Estrela até Campolide e dali tomava para o alto do Andaluz e pela baixa da Corredoura ao monte da Graça , fechando o vale de Arroios , para trepar Ãs encostas de Xabregas , a cavaleiro do Tejo . Se a manhã não estivesse nublada e o sol rompesse em triunfais esplendores , que soberbo espetáculo não seria aquele ! Mesmo assim imponente , porque não havia negrumes no céu que de todo pudessem velar a exuberância de luz de uma manhã de Junho , pondo em tudo aquilo uma densa tristeza de sombras , nem o sol ia subindo tão oprimido e afrontado de nuvens que , de um para outro momento , não lograsse esfarrapá- las de arremesso , para que a sua querida cidade , de séculos remoçada e sempre linda , lhe visse a face de ouro resplandecente e se não julgasse também ao desamparo daquele decorador , amorável e omnipotente , de quanto ela tinha de belo , de antigo , de glorioso . Luz -- apoteose a dar alma e voz Ãs pedras santas das igrejas e Ãs pedras musgosas das ruínas , luz vivificadora para fazer cantar numa aleluia de amores as fontes e as montanhas , luz evocadora para ressurgir as grandes figuras mortas , luz de sonho para um dia melhor em cada lar e para uma melhor ambição maior em cada povo . Viesse ela misericordiosamente naquele dia de atormentada crise , e todas as pobres mães enlutadas menos amarguradamente se resignariam , e talvez os famintos pudessem também sonhar dentro daquela cidade angustiada , sozinha agora a defender um nome , uma bandeira , a história e o futuro de uma nacionalidade . Vinha do oeste uma aragem viva e forte que fazia esvoaçar doidamente , como se fossem grandes pássaros de flamante plumagem , todos os pendões erguidos nas setenta e sete torres da cidade , e mais as centenas deles de desvairadas cores e soberbos emblemas que tinha o longo acampamento castelhano , cidade branca de vinte e cinco mil homens , quase metade da outra dos sitiados . E pela amplidão do Tejo , para os lados do Rasteio velho , as bandeiras e galhardetes das quarenta naus e catorze galés de D. Juan Fernandez de Tovar , almirante-mor de Castela . Avistava-se bem o pavilhão da tenda real em Santos , percebiam-se os piques , as lanças , os pendões da gente castelhana que ocupava o pontal de Cacilhas , o monte e a povoação -- Almada . Centenas de trombeteiros castelhanos atroavam os ares com os seus alardes de farroncaria . Na torre mais alta do Castelo , fidalgos e batalhadores inválidos , de cabeça branca e arcaboiço dobrado , curiosos inúteis , mulheres e crianças de várias condições sociais , esperam de olhos pasmados o lance gravíssimo , que pode ser a salvação ou a perda irremediável da cidade . -- Anjo bento , que tamanho poder eles têm ! -- comentava doloridamente uma pobre mulher com um filhito ao colo . -- Pudera , não ! -- disse-lhe do lado um velho de aspeto fidalgo , cavaleiro a quem tinham mutilado os dois braços naquela campanha da Galiza em que a hoste do rei||_Fernando Fernando|_Fernando tomou a Corunha -- Tudo aquilo é para levarem a herança que nós não lhe queremos entregar . E com tão avultada gente de guerra , a principal , a mais poderosa e soberba de todas as Espanhas ; das duas Castelas , de Leão , das Astúrias , da Galiza , da Navarra . Até cavalaria de cavaleiros mouriscos de Andaluzia ! -- E non diz vos mais cavaleiros franceses e homes d' armes do Bearne e de Gasconha dos mille -- informou por detrás do mutilado , naquela sua língua de trapos , um homem alto , vermelhaço , que já entendia sofrivelmente a língua portuguesa , mas não era capaz de falar senão naquela forma atrapalhada . Este novo interlocutor era o inglês micer Percivel , a quem o Mestre dera o encargo de tesoureiro , em substituição de D. Judas ( Judah-Aben-Mosseh-Navarro ) judeu rico e preponderante , que fora tesoureiro de el-rei||_D. D.|_D. Fernando e por ser um dos parciais da rainha||_D._Leonor_Teles D.|_D._Leonor_Teles Leonor|_D._Leonor_Teles Teles|_D._Leonor_Teles com ela fugira de Lisboa , logo Ãs primeiras convulsões da revolução . -- Se aqueles negregados metem no fundo a tal armada do Porto , o que será então de nós ! ... -- disse a mulher que tinha a criancita ao colo . -- Iremos todos de arremetida contra eles ; as próprias mulheres , as próprias crianças , até os velhos e mutilados como eu . Enquanto se forem entretendo a golpear os que não podem lutar , menor número de inimigos encontrarão diante de si os outros dos nossos que estão capazes de combater -- disse-lhe o decepado com fria serenidade . -- Jesus , filho da minha alma ! -- exclamou a pobre mãe num estarrecimento de ânimo , apertando febrilmente o pequenito contra o peito . -- Antes morrer Ãs lançadas para se acabar o cerco , do que ficar aqui a cair de fome e atroar os ares com lamúrias . -- Mas se as tais naus que vierem do Porto cá entrarem e trouxerem milho e trigo ... -- Em tal não creio eu -- interrompeu o mutilado -- Virão cheias de gente de armas , que não chegará para escorraçar daqui os de Castela . São mais bocas para a fome , e não será maravilha que , depois de já não haver nem ervas , nem raízes , nem bichos mortos para devorar , se tornem os Castelhanos os nossos carniceiros fornecedores e cada porta e cada torre das muralhas um talho para a cidade faminta . -- Senhor , não vos sei entender ! -- volveu-lhe a mulher num confrangimento de suposições . -- Queria dizer-vos que ainda haverá quem devore as carnes daqueles que os Castelhanos matarem . -- Tal não permita Deus e surdo seja o demo ! -- acudiu a pobre mulher com um gesto de terror -- Meu senhor , fome tenho eu e mais o meu pequenito , pois só esta madrugada tivemos um caldo de folhas de vide , que nem os cães seriam capazes de beber , e olhai que nem com o tresdobro da fome seria capaz de tocar num pedaço de carne dessa que dissestes ! Credo , Senhor meu Deus , antes a morte ! O Inglês entendeu e sorriu . -- Ratas -- alvitrou -- tem cidade milhones e daria comer gente mais dos meses . É carne coelhas pequenas . -- Vá de retro ! -- regougou uma velha a cuspinhar , enjoada -- Até me dá ganas de deitar os bofes pelas goelas fora ! Vamos agora para outro grupo . Um velho charlatão , mezinheiro e amador de astrologia , dizia coisas solenes aos seus ouvintes . -- Olhai as nuvens no céu a pintarem o que há de acontecer ! -- e apontava um acastelado de nuvens de formas caprichosas , que o vento ia desfazendo ou englobando com diverso aspeto -- Vede bem ali , para os lados da barra . Aquela nuvem maior parece mesmo a nossa cidade com os seus amores , o seu castelo , as suas torres ! E as outras , muito estendidas , mais esbranquiçadas , são assim como um grande rio com aqueles farrapos a darem-se ares de naus à vela . E a correrem , a correrem para cá . Assim como se fossem os nossos navios a entrarem a barra . E de cá aquela farraparia de névoas a desfazer-se . São as naus de Castela ! São as naus de Castela ! O céu diz tudo ; é no céu que se lê o destino dos homens e das nações , quando há quem saiba ler o que ele diz . E todos pasmados , num alvoroço de emoção , olhos cravados naquelas visualidades , a alma a voar-lhes para aquele sonho de astrólogo , que via a Lisboa nas nuvens , coisa de mais engenho do que ver Braga por um canudo . -- Este é estrólico -- explicava a outra mulher , uma quarentona adoutorada -- Ser estrólico , criatura de Deus , ainda é mais que ser clérigo ! Ler nos astros e meter os olhos pelas nuvens , sempre é maior prenda que entender livros e alanzoar latim . Efetivamente os recortes de uma grande nuvem pardacenta estavam dando , cada vez com mais completa ilusão , a forma de um monte coroado por um castelo , tendo em volta , pela encosta , um relevo de edificações de torres com ameias . Uma fachada de nublado mais claro , menos densa , a deixar transparecer uns tons azulados e um esmalte de luz , podia lembrar o mar ou um grande rio . Depois , sob a sugestão daquele farsista ou daquele visionário , astrólogo amador , não maravilha que aos olhos pasmados da pobre gente ingénua tudo aquilo se lhes estivesse desenhando nitidamente e até uns flocos soltos do nublado se lhes afigurassem as velas das naus que entravam , das naus que se desfaziam . -- O sol a romper ! -- clamaram de repente umas poucas de vozes em comovido alvoroço . -- Sobre aquela cidade e aquele mar de nuvens ! -- acudiu logo o astrólogo -- Como um resplendor de glória ! De súbito , mar e cidade desfizeram-se nos ares e por um minuto , espetaculosamente belo , apareceu desafogada a face resplandecente do sol . Então , como nas visualidades de uma lenda , faiscaram fulgores de ouro fulvo em todos os arneses , nas choupas de todos os piques , nas ascumas de todas as lanças , sobre as muralhas , sobre as torres , pelas sinuosas linhas da cidade branca do acampamento . Tinham transparências de cristal as espumas do Tejo , rutilações de azul e púrpura os vitrais dos templos e as altas janelas ogivais do paço da Alcáçova . -- Parece um milagre ! -- exclamou uma mulher com os olhos cheios de deslumbramento e de lágrimas . -- Milagres da nossa Senhora ! -- disse outra , lembrando uma imagem então muito piedosamente querida em Lisboa . -- Olhai a vidraria de S.||_Vicente_de_Fora Vicente|_Vicente_de_Fora de|_Vicente_de_Fora Fora|_Vicente_de_Fora ! Também será por nós o santo mártir ! Parece que de súbito se acenderam lá dentro todos os círios dos altares ! Durou instantes apenas aquele divino resplendor . Veio logo de oeste uma lufada violenta , a empurrar contra o sol uma montanha enorme de nuvens de azulado negrume . O sol apagou-se e um toldo imenso de sombras desceu lugubremente sobre a cidade , sobre o mar , sobre os abarracamentos dos Castelhanos . Entrou nas almas da pobre gente aquela ditalada sombra , confrangendo-lhe&lhes+as . Parecia-lhes aquilo um agouro fúnebre de desgraças . Revoaram então pelos ares uns murmúrios de amargurada estranheza . E logo outro sobressalto maior . Tocaram alarme os sinos das torres nas muralhas de Santo Agostinho e de S.||_Vicente_de_Fora Vicente|_Vicente_de_Fora de|_Vicente_de_Fora Fora|_Vicente_de_Fora . -- Os Castelhanos ! -- gritou alguém que estava daquele lado do Castelo que dava para os lados de S. Vicente -- Vão arremeter contra o Postigo do Arcebispo e contra as Portas -- S. Vicente . Reparai naquela chusma dos seus cavaleiros e homens de peonagem ! -- E mais lá para cima ! -- indicou outro , apontando a muralha e as portas do Largo da Graça . Ouvia-se o choro alto das mulheres . Algumas ajoelharam , de mãos postas , rezando aflitivamente . Já os sinos das igrejas davam também o sinal de rebate . Vibravam as trombetas como gritos selváticos de combate . -- Má peste mate esses castelãos e Deus os meta nas profundas do inferno ! -- praguejou uma recadeira , engelhada e rubra , de braços no ar e punhos fechados contra a gente de Castela . -- Põe as tuas mãozinhas , filho , e reza comigo para que a nossa Senhora nos acuda ! -- soluçava um mulher ainda nova com um pequenito ainda de joelhos ao pé de si , olhos marejados postos nela , numa vaga expressão de pavor . -- Aqueles cães ! -- bramiu o fidalgo mutilado -- Querem ver se nos tomam a cidade antes que a armada entre ! Completo engano . Aquela investida era apenas um ardil para atrair as maiores forças dos sitiados Ãquele lanço das muralhas , tão distante das obras defensivas da Ribeira , perturbando ou mesmo malogrando deste modo qualquer grande esforço dos lados do rio , em auxílio da esquadra que ia forçar a entrada no Tejo . Compreendiam bem os Castelhanos que se não poderia tomar de arremetida uma cidade que , desde o princípio de Abril , havia mais de dois meses , com tão valorosa tenacidade se tinha defendido . Mas o que eles tinham percebido também Era que , na Ribeira , desde a véspera , se estavam preparando navios , certamente para irem auxiliar a entrada da esquadra vinda do Porto , atacando de revés as naus e galés de Castela . Dois homens chegaram açodados Ãs portas de S. Vicente . Um deles cavaleiro fidalgo ainda jovem , o outro , homem do povo com o ar resoluto de um campeador . O fidalgo era Ruy de Vasconcelos ; o plebeu Afonso Eanes . Escaramuçava-se já febrilmente nas muralhas e torres , e os virotões e as pedras esfuziavam nos ares . As bestas de torno despediam virotes grandes , quase como lanças , as catapultas arremessavam pedregulhos , tiros de pedra como então se dizia , tiros que faziam estrondo . Mas a gritaria e a algazarra dos desafios e impropérios de uma e outra parte , em português e castelhano , em muito excedia o ruído das armas . O Juiz do Povo foi direito ao anadel , comandante de uma quadrilha ( pelotão ou destacamento ) de besteiros e peões de lanças e piques , ali de guarda aos nossos grossos portões chapeados da muralha de S. Vicente . -- Vai já bravia a luta , senhor anadel ! -- Por ora mais de gritaria que de sangue . Só ainda nos mataram cinco homens e temos ali na torre onze feridos . -- O Mestre manda que sustenteis bem este lanço da muralha ; mas não consintais que se juntem aqui mais homens que os precisos para a defensa . Aos que vierem das outras torres , mandai-os que voltem pelo mesmo caminho . Aos da chusma da cidade ordenai que vão ter com o Mestre à Ribeira , pois é lá que mais se carece de gente para lutar . -- Olhai as chusmas que vêm correndo para aqui -- disse-lhe o anadel , apontando uma multidão de populaça armada que vinha subindo . De foices , de chuços , de machados , de espetos , a multidão subia cantando : Esta és Lisboa prezada Miradla e deijadla . Afonso Eanes foi tomar-lhes o caminho . -- Gentes ! -- gritou-lhes . -- Viva Afonso Eanes , o Juiz do Povo , o braço direito do Mestre ! -- Viva ! Viva ! E que Deus o guarde ! -- gritaram por aquelas ruazitas e veredas abaixo centenas de vozes . -- Escutai ! Escutai ! -- clamaram das primeiras filas , e a palavra foi revoando de boca em boca por ali abaixo . -- Vai ele falar , e é o nosso coração que fala pela sua boca . -- Aqui se não precisa de mais gente para lutar -- disse o glorioso tanoeiro na sua voz dominadora . -- Mas os castelãos querem entrar na cidade por estes lados ! -- Não querem tal -- replicou Afonso Eanes -- Olhai que é fingimento deles para vos trazerem aqui enganados a uma luta , que não há de valer duas cascas de alho . -- Mas então para quê , mestre Eanes ? -- Para que o Mestre e o Arcebispo fiquem desamparados de gente na Ribeira , e se não possa dar ajuda aos navios que vieram do Porto . Ora aí tendes a que vem toda essa farronca de arremetida por estes lados . -- Mas vós para aqui viestes e não estais com o Mestre na Ribeira ! -- De lá vim com ordens suas para que se não junte aqui quem aqui não é preciso . -- Pois iremos já de carreira ter com o Mestre . -- Mas olhai que a batalha está mais bravia ! -- alegou um , menos submisso -- Reparai : mais de vinte feridos que vêm em braços , descendo daquele lanço de muro ! -- Deixai lá os feridos .