de Alexandre Herculano INTRODUÇÃO A morte de Afonso VI , rei -- Leão e Castela , quase no fim da primeira década do século XII , deu origem a acontecimentos ainda mais graves do que os por ele previstos no momento em que ia trocar o brial de cavaleiro e o cetro de rei pela mortalha com que o desceram ao sepulcro no Mosteiro de Sahagún . A índole inquieta dos barões leoneses , galegos e castelhanos facilmente achou pretextos para dar largas Ãs suas ambições e mútuas malquerenças na violenta situação política em que o falecido rei deixara o país . Costumado a considerar a audácia , o valor militar e a paixão da guerra como o principal dote de um príncipe , e privado do único filho varão que tivera , o infante||_D._Sancho D.|_D._Sancho Sancho|_D._Sancho , morto em tenros anos na batalha de Ucles , Afonso VI alongara os olhos pelas províncias do império , buscando um homem temido nos combates e assaz enérgico para que a cara lhe não vergasse sob o peso da férrea coroa da Espanha cristã . Era preciso escolher marido para D. Urraca , sua filha mais velha , viúva de Raimundo , conde de Galiza ; porque a ela pertencia o trono por um costume gradualmente introduzido , a despeito das leis góticas , que atribuíam aos grandes e até certo ponto ao alto clero a eleição dos reis . Entre os ricos homens mais ilustres dos seus vastos estados , nenhum o velho rei achou digno de tão elevado consórcio . Afonso I de Aragão tinha , porém , todos os predicados que o altivo monarca reputava necessários no que devia ser o principal defensor da Cruz . Por isso , sentindo avizinhar-se a morte , ordenou que D. Urraca apenas herdasse a coroa desse a este a mão de esposa . Esperava por um lado que a energia e severidade do novo príncipe contivesse as perturbações intestinas , e por outro lado que , ilustre já nas armas , não deixaria folgar os ismaelitas com a notícia da morte daquele que por tantos anos lhes fora flagelo e destruição . Os acontecimentos posteriores provaram , todavia , mais uma vez , quanto podem falhar todas as previsões humanas . A história do governo de D. Urraca , se tal nome se pode aplicar ao período do seu predomínio , nada mais foi do que um tecido de traições , de vinganças , de revoluções e lutas civis , de roubos e violências . A dissolução da rainha , a sombria ferocidade do marido , a cobiça e orgulho dos próceres do reino convertiam tudo num caos , e a guerra civil , deixando respirar os muçulmanos , rompia a cadeia de triunfos da sociedade cristã , à qual tanto trabalhara por dar unidade o hábil Afonso VI . As províncias já então libertadas do jugo ismaelita não tinham ainda , digamos assim , senão os rudimentos de uma nacionalidade . Faltavam-lhes , ou eram débeis , grande parte dos vínculos morais e jurídicos que constituem uma nação , uma sociedade . A associação do rei aragonês no trono de Leão não repugnava aos barões leoneses por ele ser um estranho , mas porque a antigos súbditos do novo rei se entregavam de preferência as tenências e alcaidarias da monarquia . As resistências , porém , eram individuais , desconexas , e por isso sem resultados definitivos , efeito natural de instituições públicas viciosas ou incompletas . O conde ou rico homem de Oviedo ou de Leão , da Estremadura ou de Galiza , de Castela ou de Portugal referia sempre a si , Ãs suas ambições , esperanças ou temores os resultados prováveis de qualquer sucesso político , e aferindo tudo por esse padrão procedia em conformidade com ele . Nem podia ser de outro modo . A ideia de nação e de pátria não existia para os homens de então do mesmo modo que existe para nós . O amor cioso da própria autonomia que deriva de uma conceção forte , clara , consciente , do ente coletivo , era apenas , se era , um sentimento frouxo e confuso para os homens dos séculos XI e XII . Nem nas crónicas , nem nas lendas , nem nos diplomas se encontra um vocábulo que represente o Espanhol , o indivíduo da raça godo-romana distinto do Sarraceno ou Mouro . Acha-se o Asturiano , o Cantabro , o Galiciano , o Portugalense , o Castelhano , isto é , o homem da província ou grande condado ; e ainda o Toledano , o Barcelonês , o Compostelano , o Legionense , isto é , o homem de certa cidade . O que falta é a designação simples , precisa , do súbdito da coroa de Oviedo , Leão e Castela . E porque falta ? É porque em rigor a entidade faltava socialmente . Havia-a , mas debaixo de outro aspeto : em relação ao grémio religioso . Essa sim ; que aparece clara e distinta . A sociedade cristã era una , e preenchia até certo ponto o incompleto da sociedade temporal . Quando cumpria aplicar uma designação que representasse o habitante da parte da Península livre do jugo do islame , só uma havia : christianus . O epíteto que indicava a crença representava a nacionalidade . E assim cada catedral , cada paróquia , cada mosteiro , cada simples ascetério era um anel da cadeia moral que ligava o todo , na falta de um forte nexo político . Tais eram os caracteres proeminentes da vida externa da monarquia neogótica . A sua vida social interna , as relações públicas entre os indivíduos e entre estes e o Estado tinham sobretudo uma feição bem distinta . Era a larga distância que separava das classes altivas , dominadoras , que fruíam , as classes , em parte e até certo ponto servas , e em parte livres , que trabalhavam . A aristocracia compunha-se da nobreza de linhagem e da jerarquia sacerdotal , a espada e o livro , a força do coração e braço , e a superioridade relativa da inteligência . A democracia constituíam-na dois grupos notavelmente desiguais em número e em condição . Era um o dos burgueses proprietários com pleno domínio , moradores de certas povoações de vulto , comerciantes , fabricantes , artífices , isto é , os que depois se chamaram entre nós homens de rua , indivíduos mais abastados e mais insofridos , fazendo-se respeitar ou temer , numas partes pela força do nexo municipal , concessão do rei ou dos condes dos distritos em nome dele , noutras partes pelas irmandades ( conjurationes , germanitates ) , associações ajuramentadas para resistirem aos prepotentes , e cujas origens obscuras talvez vão confundir-se com as origens não menos obscuras das beetrias . O outro grupo , incomparavelmente mais numeroso , constituíam-no os agricultores habitantes das paróquias rurais . Nessa época ainda eram raros os oásis da liberdade chamados " alfozes " ou termos dos concelhos . Dispersa , possuindo a terra por títulos de diversas espécies , todos mais ou menos opressivos e precários , na dependência do poderoso imunista , ou do inexorável agente do fisco , a população rural , ainda parcialmente adscrita à gleba , quase que às vezes se confundia com os sarracenos , mouros ou moçárabes , cativos nas frequentes correrias dos Leoneses , e cuja situação se assemelhava à dos escravos negros da América , ou a coisa ainda pior , dada a rudeza e ferocidade dos homens daquele tempo . A burguesia ( burgenses ) , embrião da moderna classe média , assaz forte para se defender ou , pelo menos , opor à opressão a vingança tumultuária , era impotente para exercer ação eficaz na sociedade geral . Veio isso mais tarde . Assim , o único poder que assegurava a unidade política era o poder do rei . A monarquia ovetense-leonesa fora como uma restauração da monarquia visigótica , entre todos os estados bárbaros a mais semelhante na índole e na ação ao cesarismo romano . Uma série de príncipes , senão distintos pelo génio , como Carlos Magno , todavia de valor e de energia não vulgares , tinha sabido manter a supremacia real , anulada gradualmente além dos Pirenéus pela sucessiva transformação das funções públicas em benefícios e dos benefícios em feudos . Entretanto à autoridade central faltava um arrimo sólido a que se encostasse ; faltava-lhe uma classe média , numerosa , rica , inteligente , émula do clero pela sua cultura . Essa classe , como já advertimos , ainda simples embrião , só no século XIII começou a ser uma fraca entidade política , aliás rapidamente desenvolvida e avigorada . Desde aquela época é que a realeza aproveitou mais ou menos a sua aliança para domar as aristocracias secular e eclesiástica , como com o auxílio dela as monarquias de além dos Pirenéus conseguiram tirar ao feudalismo a preponderância , e quase inteiramente o carácter político . Hoje é fácil iludirmo-nos , crendo ver nas revoluções e lutas do Ocidente da Península no decurso dos séculos VIII a XII a anarquia feudal , confundindo esta com a anarquia aristocrática . Não era a jerarquia constituindo uma espécie de famílias militares , de clãs ou tribos artificiais , cujos membros estavam ligados por mútuos direitos e deveres , determinados por um certo modo de fruição de domínio territorial , em que se achava incorporada a soberania com exclusão do poder público . Em vez disto , era o individualismo rebelando-se contra esse poder , contra a unidade , contra o direito . Quando as mãos que retinham o cetro eram frouxas ou inabilmente violentas , as perturbações tornavam-se não só possíveis , mas , até , fáceis . A febre da anarquia podia ser ardente : o que não havia era a anarquia crónica , a anarquia organizada . Eis as circunstâncias , que , ajudadas pelos desvarios da filha de Afonso VI , converteram o seu reinado num dos mais desastrosos períodos de desordens , de rebeliões e de guerras civis . A confusão vinha a ser tanto maior , por isso mesmo que faltava o nexo feudal . Eram tão ténues os laços entre o conde e o conde , o maiorino e o maiorino , o alcaide e o alcaide , o prestameiro e o prestameiro , o homem de mesnada e o homem de mesnada , e , depois , entre estas diversas categorias , que as parcialidades se compunham , dividiam ou transformavam sem custo , à mercê do primeiro ímpeto de paixão ou cálculo ambicioso . Deste estado tumultuário derivou a separação definitiva de Portugal , e a consolidação da autonomia portuguesa . Obra a princípio de ambição e orgulho , a desmembração dos dois condados do Porto e de Coimbra veio por milagres de prudência e de energia a constituir , não a nação mais forte , mas decerto a mais audaz da Europa nos fins do século XV . Dir-se-ia-um povo predestinado . Quais seriam hoje de feito as relações do Oriente e do Novo Mundo com o Ocidente , se Portugal houvesse perecido no berço ? Quem ousará afirmar que , sem Portugal , a civilização atual do género humano seria a mesma que é ? O conde||_Henrique Henrique|_Henrique pouco sobreviveu ao sogro : cinco anos escassos ; mas durante esses cinco anos todos aqueles actos seus cuja memória chegou até nós indicam o exclusivo intuito de alimentar o incêndio das discórdias civis que devoravam a Espanha cristã . Nas lutas de D. Urraca , dos parciais de Afonso Raimundes e do rei -- Aragão , qual foi o partido do conde ? Todos sucessivamente ; porque nenhum era o seu . O seu consistia em constituir um estado independente nos territórios que governava . E no meio dos tumultos e guerras em que ardia o reino , ele teria visto coroadas de bom sucesso as suasdiligências , se a morte não viesse atalhar-lhe os desígnios junto dos muros de Astorga . Mas a sua viúva , a bastarda de Afonso VI , era pela astúcia e ânimo viril digna consorte do ousado e empreendedor borgonhês . A leoa defendeu o antro onde não se ouvia já o rugido do seu fero senhor , com a mesma energia e esforço de que ele lhe dera repetidos exemplos . Durante quinze anos lutou por conservar intacta a independência da terra que lhe chamava rainha , e quando o filho lhe arrancou das mãos a herança paterna , só havia um ano que a altiva dona curvara a cerviz perante a fortuna do seu sobrinho Afonso Raimundes , o jovem imperador -- Leão e Castela . Era tarde . Portugal não devia tornar a ser uma província leonesa . Se D. Teresa se mostrara na viuvez digna politicamente do marido , o filho era digno de ambos . O tempo provou que os excedia em perseverança e audácia . A natureza dera-lhe as formas atléticas e o valor indomável de um desses heróis dos antigos romances de cavalaria , cujos dotes extraordinários os trovadores exageravam mais ou menos nas lendas e poemas , mas que eram copiados da existência real . Tal fora o Cid . Os amores adúlteros de D. Teresa com o conde de Trava , Fernando Peres , fizeram com que cedo se manifestassem as aspirações do jovem Afonso Henriques . Os barões da província que tendia a constituir-se em novo estado achavam naturalmente nele o centro da resistência à preponderância de um homem que deviam considerar como intruso , e a quem a cegueira da infanta-rainha cedia o poder que dantes tão energicamente exercera . À irritação e inveja que a elevação desse estranho devia despertar no coração de cada um deles , ajuntava-se decerto a consideração das consequências inevitáveis da ilimitada preponderância do conde . Fernando Peres pertencia a uma das mais poderosas famílias da Galiza e a mais adicta ao jovem soberano de Leão e Castela . O seu pai fora o aio e tutor do príncipe quando as paixões sensuais de D. Urraca o cercavam de sérios perigos . Nada mais natural do que resultar daquela preponderância a ruína da nascente independência do novo Estado . O que se passava em Portugal era em resumido teatro o que pouco antes se passara em Leão . Ali , os amores de D. Urraca com o conde||_Pedro_de_Lara Pedro|_Pedro_de_Lara de|_Pedro_de_Lara Lara|_Pedro_de_Lara tinham favorecido as ambiciosas pretensões de Afonso Raimundes , concitando contra elas os ódios dos barões leoneses e castelhanos . Aqui , os amores de D. Teresa acenderam ainda mais os ânimos e trouxeram uma revolução formal . Se na batalha do campo de S. Mamede , em que Afonso Henriques arrancou definitivamente o poder das mãos da sua mãe , ou antes das do conde de Trava , a sorte das armas lhe houvera sido adversa , constituiríamos provavelmente hoje uma província -- Espanha . Mas no progresso da civilização humana tínhamos uma missão que cumprir . Era necessário que no último ocidente da Europa surgisse um povo , cheio de atividade e vigor , para cuja ação fosse insuficiente o âmbito da terra pátria , um povo de homens de imaginação ardente , apaixonados do incógnito , do misterioso , amando balouçar-se no dorso das vagas ou correr por cima delas envoltos no temporal , e cujos destinos eram conquistar para o cristianismo e para a civilização três partes do mundo , devendo ter em recompensa unicamente a glória . E a glória dele é tanto maior quanto , encerrado na estreiteza de breves limites , sumido no meio dos grandes impérios da Terra , o seu nome retumbou por todo o globo . Pobres , fracos , humilhados , depois dos tão formosos dias de poderio e renome , que nos resta senão o passado ? Lá temos os tesouros dos nossos afetos e contentamentos . Sejam as memórias da pátria , que tivemos , o anjo de Deus que nos revoque à energia social e aos santos afetos da nacionalidade . Que todos aqueles a quem o engenho e o estudo habilitam para os graves e profundos trabalhos da história se dediquem a ela . No meio de uma nação decadente , mas rica de tradições , o trabalho de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral , é uma espécie de sacerdócio . Exercitem-no os que podem e sabem ; porque não o fazer é um crime . E a arte ? Que a arte em todas as suas formas externas represente este nobre pensamento ; que o drama , o poema , o romance sejam sempre um eco das eras poéticas da nossa terra . Que o povo encontre em tudo e por toda a parte o grande vulto dos seus antepassados . lhe-amarga a comparação . Mas como ao inocentinho infante da Jerusalém Libertada , homens da arte , aspergi de suave licor a borda da taça onde está o remédio que pode salvá-lo . Enquanto , porém , não chegam os dias , em que o puro e nobre engenho dos que então hão de ser homens celebre exclusivamente as solenidades da arte no altar do amor pátrio , alevantemos uma das muitas pedras tombadas dos templos e dos palácios , para que os obreiros robustos que não tardam a surgir digam quando a virem : " as mãos que te puseram aí eram débeis , mas o coração que as guiava antevia já algum raio da luz que nos ilumina " . DOM||_BIBAS BIBAS|_BIBAS Castelo de Guimarães , qual existia nos princípios do século XII , diferençava-se entre os outros , que cobriam quase todas as eminências das honras e prestamos de Portugal e da Galiza , pela sua fortaleza , vastidão e elegância . A maior parte dos edifícios desta espécie eram apenas então um agregado de grossas vigas , travadas entre si , e formando uma série de torres irregulares , cujas paredes , muitas vezes feitas de cantaria sem cimento , mal resistiam aos golpes dos aríetes e aos tiros das catapultas , ao passo que os madeiros que ligavam esses fracos muros , e lhes davam certo aspeto de fortificação duradoura , tinham o grave inconveniente de poderem facilmente incendiar-se . Assim , não havia castelo onde entre as armas e bastimentos de guerra não ocupassem um dos mais importantes lugares as amplas cubas de vinagre , líquido que a experiência tinha mostrado ser o mais próprio para apagar o alcatrão incendido , que como instrumento de ruína usavam nos sítios dos lugares afortalezados . Quando o gato ou vínea , espécie de barraca ambulante , coberta de couros crus , se aproximava , pesada e lenta como um espectro , aos muros de qualquer castelo , enquanto os cavaleiros mais possantes arcavam com pedras enormes , levando-as aos vãos das ameias , para daí as deixarem cair sobre o teto da máquina , os peões conduziam para o lanço de muralha ou torre , a que esta se dirigia , uma quantidade daquele líquido salvador capaz de abafar as chamas envoltas em rolos de fumo fétido , que não tardariam a lamber as traves angulares do guerreiro edifício . Muitas vezes essas precauções eram inúteis , principalmente contra os Sarracenos . Entre estes uma civilização mais adiantada tinha moderado o fanatismo , quebrando os brios selvagens , diminuído a robustez física dos homens de armas : a sua mestria , porém , da arte da guerra supria estas faltas e equilibrava nos combates o soldado muslim com o guerreiro cristão , mais robusto , mais fanático e por isso mais impetuoso do que ele . Era principalmente nos assédios , quer defendendo-se , quer acometendo , que os Árabes conheciam todo o preço da própria superioridade intelectual . As suas máquinas de guerra , mais perfeitas que as dos nazarenos , não só pela melhor combinação das forças mecânicas , como pela maior variedade de engenhos e invenções , davam-lhes notáveis vantagens sobre a grosseira tática dos seus adversários . Sem o socorro da vínea , os Árabes sabiam incendiar de longe os castelos com os escorpiões arrojados pelas manganelas de fogo . De enxofre , salitre e nafta compunham eles um misto terrível , com que despediam dos engenhos globos de ferro cheios do mesmo composto , que , serpeando e sussurrando nos ares , iam estourar e verter dentro dos muros assediados uma espécie de lava inextinguível e infernal , contra cuja violência eram baldadas quase sempre todas as prevenções , e não menos baldadas a valentia e a força dos mais duros cavaleiros e homens de armas . Mas o Castelo de Guimarães podia , do teso sobre que estava assentado , olhar com tranquilo desdém para os formidáveis e variados engenhos militares de cristãos e sarracenos . A melhor fortaleza da Galiza , o Castro Honesto , que o muito poderoso e venerando senhor||_Diogo_Gelmires Diogo|_Diogo_Gelmires Gelmires|_Diogo_Gelmires , primeiro arcebispo de Compostela , reformara de novo , com todo o esmero de quem sabia ser aquele castro como a chave da extensa honra e senhorio compostelano , era , por trinta léguas em roda , o único , talvez , que ousaria disputar primazias com o de Guimarães . Como a daquele , a cárcova deste era larga e profunda : as suas barreiras eram amplas e defendidas por boas barbacãs , e as suas muralhas , torreadas com curtos intervalos , altas , ameadas e desmarcadamente grossas , do que dava testemunho o espaçoso dos adarves que corriam por cima delas . O circuito , que tão temerosas fortificações abrangiam , encerrava uma nobre alcáçova , que , também coberta de ameias , campeava sobranceira aos lanços de muros entre torre e torre , e ainda assoberbava estas , à exceção da alvarrã ou de menagem , que , maciça e quadrangular , com os seus esguios miradouros bojando nos dois ângulos exteriores , e erguida sobre o escuro portal da entrada , parecia um gigante em pé e com os punhos cerrados sobre os quadris , ameaçando o burgo rasteiro e humilde , que , lá em baixo no sopé da suave encosta , se encolhia e apoquentava , como vilão que era , diante de tamanho senhor . Mas não vedes aí ao longe , por entre a casaria da povoação e verdura das almuinhas , que , entressachadas com os edifícios burgueses , servem como vasto tapete , onde assentam os panos de muros alvos , e os telhados vermelhos e aprumados das casas modestas dos peões ? Não vedes , digo , a alpendrada de uma igreja , a portaria de um ascetério , a grimpa de um campanário ? É o Mosteiro de D. Mumadona : é um claustro de monges negros ; é a origem desse burgo , do castelo roqueiro e dos seus paços reais . Havia duzentos anos que neste vale viviam apenas alguns servos , que cultivavam a vila ou herdade de Vimaranes . Mas o mosteiro edificou-se , e a povoação nasceu . O ameno e aprazível sítio atraiu os poderosos : o conde||_Henrique Henrique|_Henrique quis aí habitar algum tempo , e sobre as ruínas de um fraco e pequeno castelo , a que os monges se acolhiam perante o assolador tufão das correrias dos Mouros , se alevantou aquela máquina . O trato e frequência da corte enriqueceu os burgueses : muitos francos , vindos em companhia do conde , aí se tinham estabelecido , e os homens de rua , ou moradores do burgo , constituíram-se em sociedade civil . Então surgiu o município : e essas casas , aparentemente humildes , encerravam já uma porção do fermento da resistência antiteocrática e antiaristocrática , que , espalhado gradualmente pelo país , devia em três séculos pôr manietados aos pés dos reis a aristocracia e a teocracia . Os imperantes supremos , enfarados já na caça , que abasteceria de futuro as mesas dos banquetes triunfais dos seus sucessores , atrelavam perto dela os lebréus : punham o concelho ao pé do castelo , do mosteiro e da catedral . Guimarães breve obteve do conde um foral , uma carta de município , tudo pro bono pacis , como reza o respetivo documento . É nesta alcáçova , cingida das suas fortificações lustrosas , virgens , elegantes , e todavia formidáveis , onde a nossa história começa . Habitavam então nela a muito virtuosa dona , e honrada rainha , D. Teresa , infanta dos Portugueses , e o muito nobre e excelente senhor||_Fernando_Peres Fernando|_Fernando_Peres Peres|_Fernando_Peres , conde de Trava , cônsul da terra portugalense e da colimbriense , alcaide-mor na Galiza do Castelo de Faro , e em Portugal dos de Santa Ovaia e de Soure . Era ele a primeira personagem da corte de Guimarães depois de D. Teresa , a formosíssima infanta , para nos servirmos do epíteto que nos seus diplomas lhe dava o conde||_D._Henrique D.|_D._Henrique Henrique|_D._Henrique , o qual devia saber perfeitamente se esta denominação lhe quadrava . Apesar de entrada em anos , não cremos que , na época a que se refere a nossa narrativa , este epíteto fosse inteiramente anacrónico , porque nem a bastarda de Afonso VI era ainda idosa , nem devemos imaginar que a afeição de Fernando Peres fosse nua e simplesmente um cálculo ambicioso . Esta afeição , porém , ardente e mútua , como pelo menos parecia ser , sobremaneira afiava , tempos havia , as línguas dos maldizentes . Pouco a pouco muitas graves matronas , em quem a idade fizera seu ofício de mestra da virtude , se tinham alongado da corte para suas honras e solares . Com mais alguma resignação as donzelas ofereciam a Deus o próprio sofrimento em presenciar este escândalo . Para além do mais , a vida cortesã era tão risonha de saraus , de torneios , de banquetes , de festas ! alegravam-na tanto a chusma de cavaleiros jovens , muitos dos quais tinham pela primeira vez vestido as armas na guerra do ano antecedente contra o rei -- Leão ! Além disso , que igreja havia aí , a não ser a Sé de Braga , onde as solenidades religiosas fossem celebradas com mais pompa que no Mosteiro de D. Muma , tão devotamente assentado lá em baixo no burgo ? Que catedral ou ascetério tinha órgão mais harmonioso que este ? Onde se podiam encontrar clérigos ou monges , que em mais afinadas vozes entoassem um glória in excelsis , ou um exsurge domine ? Culto , amor , saraus , tríplice encanto da Idade Média , como vos resistiriam estes corações inocentes ? As donzelas , bem que lhes custasse , continuavam , portanto , a cercar a sua bela infanta , que muito amavam . As velhas , essas , pouco importava que tivessem desaparecido . Tais razões , e várias outras , davam as damas aos seus naturais senhores , para continuarem a viver a vida folgada do paço : aos pais a devoção ; aos maridos o acatamento à muito generosa rainha , de quem eles eram prestameiros e alcaides ; aos irmãos , sempre indulgentes , a paixão pelas danças e torneios , cujo engodo eles melhor ainda sabiam avaliar . Debaixo , porém , destes urgentes motivos outro havia não menos poderoso , e em que nenhuma reparava , ou que , se reparava , não se atreveria a mencionar . Este motivo era uma bruxaria , um feitiço inexplicável , uma fascinação irresistível , que em todos aqueles espíritos um único homem produzia . coisa incrível , por certo , mas verdadeira como a própria verdade . Palavra de romancista ! E não era lá nenhum grande homem : era um vulto de pouco mais de quatro pés de altura ; feio como um judeu ; barrigudo como um cónego de Toledo ; imundo como a consciência do célebre arcebispo Gelmires , e insolente como um vilão de beetria . Chamava-se do seu nome Dom||_Bibas Bibas|_Bibas . Oblato do Mosteiro de D. Muma , quando chegou à idade , que se diz da razão , por ser a das grandes loucuras , achou que não era feito para ele o remanso da vida monástica . Atirou Ãs malvas o hábito , a que desde o berço o tinham condenado : e , ao cruzar a porta do ascetério , escarrou ali em peso o latim com que os monges começavam a empeçonhentar-lhe o espírito . Depois , sacudindo o pó das suas sapatas , voltou-se para o muito reverendo porteiro , e por um esforço sublime de abnegação atirou-lhe à cara com toda a ciência hebraica , que tinha alcançado naquela santa casa , gritando-lhe com uma visagem de escárnio : raca maranata , raca maranata e desaparecendo após isso , como a zebra perseguida desaparecia naqueles tempos aos olhos dos monteiros nas florestas do Gerês . Não referiremos aqui a história da solta juventude do nosso oblato . Por meses a sua vida foi uma destas vidas como era comummente naquela época , e o é ainda hoje , a do homem do povo que , a não ser nos claustros , tentava cravar os dentes no pomo vedado ao pobre a aristocrática mandriice ; uma vida inexplicável e milagrosa ; uma vida , na qual ao dia folgado de fartura e beberronia impensadas seguiam muitos de perfeita abstinência . A miséria , porém , criou-lhe uma indústria : Dom||_Bibas Bibas|_Bibas começou a sentir em si as inspirações de trovista e os garbos de folião : pouco a pouco a sua presença tornou-se tão desejada nas tabernas do burgo , como as cubas de boa cerveja , então bebida trivial , ou antes tão agradável como os eflúvios do vinho , que naquela época ainda escasseava algum tanto nas taças dos peões . A fama de Dom||_Bibas Bibas|_Bibas tinha subido a altura incomensurável , quando o conde||_Henrique Henrique|_Henrique assentou sua corte em Guimarães . Felizmente para o antigo oblato , o bufão que o príncipe francês trouxera de Borgonha , lançado entre estranhos , que mal entendiam seus motejos , conhecera que era uma palavra sem sentido neste mundo . Morreu declarando ao seu nobre senhor , em descargo de consciência , que buscasse entre os homens do condado alguém que exercesse este importante cargo ; porque sorte igual à sua esperava qualquer bobo civilizado da civilizada Borgonha no meio destes selvagens estúpidos do Ocidente . Na cúria dos barões , ricos-homens e prelados , que então se achavam na corte , propôs o conde o negócio . Havia votos que tal bobo se não procurasse . Fundavam-se os que seguiam esta opinião em que nem nas leis civis de Portugal , Coimbra e Galiza ( o livro dos juízes ) , nem nos degredos do padre santo , nem nos costumes tradicionais dos filhos dos bem-nascidos , ou fidalgos -- Portugal , havia vestígios ou memória deste ofício palatino . Venceu , porém , o progresso : os bispos e uma grande parte dos senhores , que eram franceses , defenderam as instituições pátrias , e a alegre truanice daquela nação triunfou , enfim , da triste gravidade portuguesa na corte de D. Henrique , bem como o breviário galo-romano triunfara poucos anos antes do breviário gótico perante D. Afonso VI . Foi então que Dom||_Bibas Bibas|_Bibas se viu elevado , sem proteções nem empenhos , a uma situação , a que nos seus mais ambiciosos e agradáveis sonhos de felicidade nunca tinha imaginado trepar . O próprio mérito e glória lhe puseram nas mãos a palheta do seu antecessor , a gorra asinauricular , o gibão de mil cores e o saio orlado de guizos . De um para o outro dia o homem ilustre pôde olhar senhoril e estender a mão protetora para aqueles mesmos que na véspera o apupavam . Diga-se , porém , a verdade em honra de Dom||_Bibas Bibas|_Bibas : até o tempo em que sucederam os acontecimentos extraordinários que começamos a narrar , ele foi sempre generoso , nem nos consta abusasse jamais do seu valimento e da sua importância política em dano dos pequenos e humildes . O leitor que não conhecesse por dentro e por fora , como se usa dizer , a vida da Idade Média , riria da pequice com que atribuímos valor político ao bobo do conde de Portugal . Pois o caso não é de rir . Naquela época o cargo de truão correspondia até certo ponto ao dos censores da república romana . Muitas paixões , sobre as quais a civilização estampou o ferrete de ignóbeis , ainda não eram hipócritas ; porque a hipocrisia foi o magnífico resultado que a civilização tirou da sua sentença . Os ódios e as vinganças eram lealmente ferozes , a dissolução sincera , a tirania sem mistério . No século XVI , Filipe II envenenava seu filho nas trevas de um calabouço , no princípio do XIII , Sancho I de Portugal , arrancando os olhos aos clérigos de Coimbra que recusavam celebrar os ofícios divinos nas igrejas interditas , chamava para testemunhas daquele feito todos os parentes das vítimas . Filipe era um parricida polidamente covarde ; Sancho um selvagem atrozmente vingativo . Entre os dois príncipes há quatro séculos nas distâncias do tempo e o infinito nas distâncias morais . Numa sociedade em que as torpezas humanas assim apareciam sem véu , o julgá-las era fácil . O dificultoso era condená-las . Na extensa escala do privilégio , quando um feito ignóbil ou criminoso se praticava , a sua ação recaía , por via de regra , sobre aqueles que se achavam colocados nos degraus inferiores ao perpetrador do atentado . O sistema das jerarquias mal consentia os gemidos : como seria portanto possível a condenação ? As leis civis , na verdade , procuravam anular ou pelo menos modificar esta situação absurda ; mas era a sociedade que devorava as instituições , que não a compreendiam a ela , nem ela compreendia . Porque de reinado para reinado , quase de ano para ano , vemos renovar essas leis , que tendiam a substituir pela igualdade da justiça a desigualdade das situações ? É porque semelhante legislação era letra-morta , protesto inútil de algumas almas formosas e puras , que pretendiam fosse presente o que só podia ser futuro . Mas no meio do silêncio tremendo de padecer incrível e de sofrimento forçado , um homem havia que , leve como a própria cabeça , livre como a própria língua , podia descer e subir a íngreme e longa escada do privilégio , soltar em todos os degraus dela uma voz de repreensão , punir todos os crimes com uma injúria amarga , e patentear desonras de poderosos , vingando assim , muitas vezes sem o saber , males e opressões de humildes . Este homem era o truão . O truão foi uma entidade misteriosa da Idade Média . Hoje a sua significação social é desprezível e impalpável ; mas então era um espelho que refletia , cruelmente sincero , as feições hediondas da sociedade desordenada e incompleta . O bobo , que habitava nos paços dos reis e dos barões , desempenhava um terrível ministério . Era ao mesmo tempo juiz e algoz ; mas julgando , sem processo , no seu foro íntimo , e pregando , não o corpo , mas o espírito do criminoso no potro imaterial do vilipêndio . E ele ria ; ria contínuo ! Era rir diabólico o do bobo : porque nunca deixava de ir pulsar dolorosamente as fibras de algum coração . Os seus ditos satíricos , ao passo que suscitavam a hilaridade dos cortesãos , faziam sempre uma vítima . Como o ciclope da Odisseia , na sala de armas ou do banquete ; nos balcões da praça do tavolado ou das tauromaquias ; pela noite brilhante e ardente dos saraus ; e até junto dos altares , ao reboar o templo com as harmonias dos cânticos e salmos , com as vibrações dos sons do órgão , no meio da atmosfera engrossada pelos rolos do fumo alvacento do incenso ; em toda a parte e a todas as horas , o bufão tomava ao acaso o temor que infundia o príncipe , o barão ou o ilustre cavaleiro , e o respeito que se devia a dona veneranda ou a dama formosa , e tocando-os com a ponta da sua palheta , ou fazendo-os voltear nos tintinábulos do seu adufe , convertia esse temor e respeito numa coisa truanesca e ridícula . Depois , envolvendo o carácter da nobre e grave personagem , atassalhado e cuspido , num epigrama sangrento ou numa alusão insolente , atirava-o aos pés da turba dos cortesãos . No meio , porém , das risadas estrepitosas ou do rir abafado , lançando de passagem um olhar brilhante e vago ao gesto confrangido e pálido da vítima , e , como o tigre , recrudescendo com o cheiro da carniça , o bobo cravava de salto as garras naquele a quem ódio profundo ou inveja solapada fazia saborear com mais entranhável deleite a vergonha e abatimento do seu inimigo . Então a palidez deste pouco a pouco deslizava num sorriso , e ia tingir as faces do cortesão que havia instantes se recreava folgado na vingança satisfeita . Se era em banquete ou sarau , onde o fumo do vinho e a ebriedade que nasce do contacto de muitos homens juntos , das danças , do perpassar das mulheres voluptuariamente adornadas , do cheiro das flores , das torrentes de luz que em milhões de raios aquece o ambiente , a loucura fictícia do truão parecia dilatar-se , agitar-se , converter-se num turbilhão infernal . Os motejos e as insolências volteavam sobre as cabeças com incrível rapidez : as mãos que iam unir-se para aprovar estrondosamente o fel da injúria vertido sobre uma cara odiada ficavam muitas vezes imóveis , contraídas , convulsas , porque entre elas tinha passado a seta de um epigrama azeirado , e havia batido no coração ou na consciência de quem imaginava só aplaudir a alheia angústia . E por cima daquele estrépito de palmas , de gritos , de rugidos de indignação , de gargalhadas , que gelavam frequentemente nos lábios dos que as iam soltar , ouvia-se uma voz esganiçada que bradava e ria , um tinir argentino de guizos , um som baço de adufe ; viam-se brilhar dois olhos reluzentes e desvairados num rosto disforme , onde se pintava o escárnio , o desprezo , a cólera , o desfaçamento , confundidos e indistintos . Era o bobo que nesse momento imperava despótico , tirânico , inexorável , convertendo por horas a frágil palheta em cetro de ferro , e erguendo-se altivo sobre a sua miserável existência como sobre um trono de rei mais porventura que trono ; porque nesses momentos ele podia dizer : " os reis também são meus servos ! " . Tal era o aspeto grandioso e poético daquela entidade social exclusivamente própria da Idade Média , padrão levantado à memória da liberdade e igualdade , e Ãs tradições da civilização antiga , no meio dos séculos da jerarquia e da gradação infinita entre homens e homens . Quando , porém , chamámos miserável à existência do truão , a esta existência que descrevêramos tão folgada e risonha , tão cheia de orgulho , de esplendor , de predomínio , era que nesse instante ela nos aparecera sob outro aspeto , contrário ao primeiro , e todavia não menos real . Passadas estas horas de convivência ou de deleite , que eram como uns oásis na vida triste , dura , trabalhosa e arriscada da Meia Idade , o bobo perdia o seu valor momentâneo , e voltava à obscuridade , não à obscuridade de um homem , mas à de um animal doméstico . Então os desprezos , as ignomínias , os maus tratos daqueles que em público tinham sido alvo dos ditos agudos do chocarreiro , caíam sobre a sua cabeça humilhada cerrados como granizo , sem piedade , sem resistência , sem limite : era um rei desentronizado ; era o tipo e o resumo das mais profundas misérias humanas . Se naqueles olhos então assomassem lágrimas , essas lágrimas seriam ridículas , e cumpria-lhe tragá-las em silêncio ; se um gemido se lhe alevantasse da alma , fora necessário recalcá-lo : porque lhe responderia uma risada ; se a vergonha lhe tingisse as faces , deveria esconder o rosto : porque essa vermelhidão seria bafejada pelo hálito de um dito de torpeza ; se uma grande cólera lhe carregasse o gesto , lhe-como remédio um insolente escárnio . Assim no largo tirocínio de um dificultoso trabalho , o seu primeiro e capital estudo era varrer da alma todos os afetos , todos os sentimentos nobres , todos os vestígios da dignidade moral ; esquecer-se de que havia no mundo justiça , pudor , brio , virtude : esquecer-se de que o primeiro homem entrara no paraíso animado pelo sopro do Senhor , para só se lembrar que saíra dele , já precito , por uma inspiração de Satanás . Tudo isso dirá o leitor é muito bom ; porém , não explica o prestígio , a espécie de fascinação que Dom||_Bibas Bibas|_Bibas exercitava no espírito das damas e donzelas da viúva do conde||_Henrique Henrique|_Henrique , a bela infanta de Portugal . Lá vamos . O nosso Dom||_Bibas Bibas|_Bibas com os seus cinco palmos de altura era um homem extraordinário , e a truanice , essencialmente francesa , tinha por arte dele feito em Portugal um verdadeiro progresso : estava visivelmente melhorada em terreno alheio , como os alperches , de que reza nos seus cantares o adail dos poetas portugueses . O novo bufão do conde||_Henrique Henrique|_Henrique , ao começar os graves estudos e as dificultosas experiências de que carecia para preencher dignamente o seu cargo , teve a feliz inspiração de associar algumas doutrinas cavaleirosas com os mais prosaicos elementos da chocarrice fidalga . Na torrente dos desvarios , quando mais violento derramava em roda de si a lava ardente dos ditos insultuosos e cruéis , nunca dos lábios lhe saiu palavra que fosse despedaçar a alma de uma dama . Dom||_Bibas Bibas|_Bibas debaixo da cruz da sua espada de lenho sentia bater um coração português , português da boa raça dos Godos . Suponde o mais humilde dos homens , suponde a mais nobre , a mais altiva mulher : que esse homem a salpique do lodo da injúria , e será tão infame e covarde como o poderoso entre os poderosos , que insultasse a donzela inocente e desvalida . E porquê ? Porque um tal feito sai fora das raias da humanidade : não o praticam homens , não o julgam as leis : julga-o a consciência como um impossível moral , como um acto bestial e monstruoso . Para aquele que usa de semelhante feridade , nunca luziu , nunca luzirá no mundo um raio de poesia ? E há aí alguém a quem não sorrisse uma vez , ao menos , esta filha do céu ? Dom||_Bibas Bibas|_Bibas não pensava isto , mas sentia-o , tinha-o no sangue das veias . Daqui a sua influência ; daqui o gasalhado , o carinho , o amor com que donas e donzelas tratavam o pobre truão . Quando contra este indivíduo , fraco e ao mesmo tempo terror e flagelo dos fortes , se alevantava alguma grande cólera , alguma vingança implacável , ele tinha um asilo seguro onde iam quebrar em vão todas as tempestades : era o bastidor , à roda do qual as nobres damas daqueles tempos matavam as horas tediosas do dia , bordando na reforçada tela com fios de mil cores histórias de guerras ou folguedos de paz . Ali Dom||_Bibas Bibas|_Bibas , agachado , enovelado , sumido , desafiava o seu furioso agressor , que muitas vezes saía malferido daquele combate desigual , em que o bobo se cobria das armas mais temidas de um nobre cavaleiro : a proteção das formosas . O SARAU O aspeto do burgo -- Guimarães indicaria tudo menos um desses raros períodos de paz e repouso ; de festas e pompas civis e religiosas , que , semelhantes aos raios do Sol por entre nuvens húmidas de noroeste , alegravam a Terra , sorrindo a espaços no meio das tempestades políticas que varriam , naquela época , o solo ensanguentado da Península . Como se houvera alargado um braço até então pendente , o castelo roqueiro tinha estendido do ângulo esquerdo da torre do miradouro uma comprida couraça de vigas e entulho que vinha morrer num cubelo na orla exterior do burgo . Depois , da extremidade daquela muralha inclinada , do outeiro para a planura , corria a um e outro lado do baluarte uma tranqueira de pouca altura , donde facilmente besteiros e frecheiros poderiam despejar a salvo seu armazém em quaisquer inimigos que cometessem a povoação . O cubelo era como o punho cerrado do disforme braço que saía da torre alvarrã , e a tranqueira como uma faixa com a qual o gigante de pedra parecia tentar unir a si o burgo apinhado lá em baixo em volta do edifício monástico , que já contava dois séculos , o Mosteiro de D. Muma . O próprio edifício , posto que avelhentado e fraco , também parecia animado de espírito guerreiro ; porque as ameias que coroavam o terrado do campanário , pouco antes cobertas de ervas e musgo , estavam agora limpas e gateadas de novo , ao passo que por entre elas se divisava uma grossa manganela assentada no meio do eirado em disposição de arrojar pedras para a campanha , que se dilatava diante do formidável engenho . Todavia estas evidentes cautelas e precauções militares desdiziam bastante do que então se passava no castelo . Era pela volta das dez horas de uma noite calmosa de Junho . A lua cheia batia de chapa nas muralhas esbranquiçadas , e as sombras das torres maciças listravam de alto a baixo as paredes dos paços interiores de faixas negras sobre a pálida silharia de mármore , tornando-a semelhante ao dorso da zebra selvática . Contrastavam , porém , a melancolia e silêncio deste espetáculo noturno as torrentes de luz avermelhada jorrando por entre os mainéis que sustinham ao meio das altas e esguias janelas as bandeiras e laçarias de pedra . Estes mainéis e bandeiras , formando flores e arabescos , recortavam de mil modos aqueles vãos afogueados e brilhantes , rotos através das listas alvacentas e negras , de que a lua arraiava a cara do soberbo edifício . Na penumbra do extenso pátio que corria entre as muralhas e a frontaria do paço , branquejavam os saios dos cavalariços , que tinham de rédea as mulas de corpo dos senhores e ricos-homens ; cintilavam os freios de ferro polido e as selas à mourisca , tauxiadas de ouro e prata ; ouvia-se o patear dos animais e o sussurro dos servos conversando e rindo em tom sumido . Mas era lá em cima , nas salas esplêndidas , que se viam passar rápidos como sombras os vultos de damas e cavaleiros arrebatados no turbilhão das danças ; lá soavam as melodias das cítolas , das harpas , das doçainas , por entre as quais rompiam os sons vívidos das charamelas , o estrépito das trombetas , o rebombo dos tímpanos ; e quando aquelas toadas afrouxavam e morriam em sussurrar confuso , retinia uma voz áspera e aguda no meio daquele ruído de festa . Então fazia-se um profundo silêncio , que não tardava a ser partido por gritos e risadas estrondosas , que restrugiam pelas abóbadas , cruzavam-se e confundiam-se repercutidas em burburinho infernal . Via-se claramente que a embriaguez da alegria havia chegado ao auge do delírio , e que daí avante não podia senão decrescer . O tédio e o cansaço não tardariam a separar aquela companhia lustrosa , que parecia esquecer nos braços do deleite que tudo ao redor dela , no castelo e no burgo , anunciava as tristezas da guerra e os riscos dos combates . De feito , já nos reais aposentos da bela infanta de Portugal muitos dos ricos-homens e infanções , apinhados aos cinco e seis , aqui e acolá , ou encostados aos balcões da sala de armas , começavam a falar com viva agitação dos sucessos do tempo . As donzelas iam assentar-se nas almadraquexas enfileiradas junto da parede no topo da sala , onde se erguia , coisa de um pé acima do pavimento , o vasto estrado da infanta . Esta , na sua cadeira de espaldas , escutava Fernando Peres , que , firmando a mão no braço da cadeira , e curvado para ela por detrás do espaldar , com aspeto carregado , parecia dirigir-lhe de vez em quando palavras breves e veementes , a que D. Teresa , que não saíra do seu lugar desde o começar do sarau , respondia muitas vezes com monossílabos , ou com um volver de olhos em que se pintava a angústia , desmentindo o sorriso forçado que , frouxo e passageiro , lhe adejava nos lábios . Junto ao topo do estrado , do lado esquerdo da infanta , um jovem cavaleiro em pé falava também em voz baixa com uma formosa donzela , que , reclinada na última almadraquexa , respondia entre risadas aos ditos do seu interlocutor . E todavia no gesto do cavaleiro , na vivacidade das suas expressões , no seu olhar ardente se revelava que as respostas alegres da donzela desdiziam das palavras apaixonadas do jovem , cujo aspeto se entristecia visivelmente com aquela alegria intempestiva e cruel . Ao pé de uma das colunas de pedra , que subindo ao teto se dividiam como os ramos de uma palmeira em artesões de castanho , os quais morrendo nos vértices das ogivas em bocetes dourados pareciam sustentar a renque de lampadários gigantes pendentes da escura profundeza daquelas voltas ; ao pé de uma destas colunas , no lado oposto da sala , três personagens falavam também havia largo tempo , sem fazerem caso do tanger dos menestréis , do doudejar das danças , do sussurrar confuso que redemoinhava em volta deles . Era a sua conversação de género diverso das duas que já descrevemos . Aqui os três indivíduos pareciam tomar todos vivo interesse no objeto de que se ocupavam , ainda que de modo diferente . Um deles , alto , magro , trigueiro e calvo , porém não de velhice , porque era homem de quarenta anos , trajava um saio negro , comprido , e apertado pela cintura com uma larga faixa da mesma cor , vestuário próprio do clero daquele tempo ; o outro , ancião venerável , tinha vestida uma cogula monastical , igualmente negra , segundo a usança dos monges bentos ; o terceiro finalmente , o mais jovem dos três , era um cavaleiro que mostrava ter pouco mais de trinta anos , membrudo , alvo , cabelos anelados e louros um verdadeiro nobre da raça germânica dos Visigodos . O clérigo calvo , com os olhos quase sempre fitos no chão , só os punha de relance naquele dos dois que falava ; mas este olhar incerto e sorrateiro bastava para descobrir nele uma indiferença hipócrita e uma curiosidade real . No rosto do velho pintava-se profunda atenção , principalmente Ãs palavras do jovem , as quais , enérgicas , veementes e rápidas , davam testemunho das vivas comoções que agitavam a sua alma . Dos três grupos em que no meio de tantos outros fizemos principalmente reparar o leitor , já ele conhece as personagens do primeiro a viúva do conde||_Henrique Henrique|_Henrique e Fernando Peres de Trava . Para clareza desta importante história necessário é que lhe digamos quem eram os que compunham os outros dois , e lhe expliquemos os porquês da situação respetiva de cada um desses indivíduos . Entre as donzelas da infanta-rainha uma havia em que ela , mais que em nenhuma outra , tinha posto as suas afeições e complacências ; e com razão : criara-a de pequenina . Dulce era filha de D. Gomes Nunes de Bravais , rico-homem que morrera na rota de Vatalandi combatendo como esforçado a par do conde borgonhês . Expirando , o nobre cavaleiro encomendou sua filha órfã à proteção do conde . Este não se esqueceu da súplica do guerreiro moribundo ; trouxe a órfã para seus paços , e entregou-a a sua mulher . Nos tenros anos , Dulce prometia ser formosa , e , o que não era de menos valor , de um carácter nobre e enérgico e ao mesmo tempo meigo e bondoso . Pouco a pouco D. Teresa lhe ganhou amor de mãe . Até aos vinte anos , que já Dulce contava , este amor não afrouxara , nem no meio das graves preocupações que cercaram a infanta nos primeiros anos da sua viuvez , nem com a louca afeição do conde||_Fernando_Peres Fernando|_Fernando_Peres Peres|_Fernando_Peres . As esperanças que a donzela dera se tinham inteiramente realizado . Dulce era um anjo de bondade e de formosura . Mas este anjo inocente , rodeado dos carinhos das mais nobres damas , das adorações dos mais ilustres cavaleiros da corte , parecia ter encerrado inteiramente o coração ao amor . Verdade é que entre os jovens sempre atentos a indagar as inclinações das donzelas , tinham existido suspeitas de que esta indiferença e frieza era mais simulada que verdadeira . Eles tinham observado que os olhos de Dulce costumavam fitar-se com desusada complacência num donzel , que bem como ela fora criado na corte . Era este Egas Moniz Coelho , primo do ancião Egas Moniz , senhor -- Cresconhe e Resende e aio do jovem infante||_Afonso_Henriques Afonso|_Afonso_Henriques Henriques|_Afonso_Henriques . Pouco diferentes em idades , semelhantes em génio e carácter e educados juntos , desde tenros anos , pelo respeitável senhor da honra de Cresconhe , os dois jovens tinham contraído amizade íntima . Na mesma noite e na Sé de Zamora tinham velado as armas . Como prova da sua independência política , D. Afonso tomara do altar a armadura e a si próprio se fizera cavaleiro . Das mãos dele recebeu depois o mesmo grau , alvo da ambição de todos os jovens nobres , o seu amigo de infância ; e o infante e Egas , até aí irmãos pela afeição mútua , ficaram ainda mais unidos pela fraternidade das armas . As suspeitas dos jovens cavaleiros tinham nascido pouco depois da vinda de D. Afonso e de Egas para a corte de Guimarães . Mas semelhantes suspeitas breve se desvaneceram . Inesperadamente Egas Moniz partiu para as guerras de ultramar , ou , como hoje se diz , para a cruzada . Ninguém atinou com o motivo desta súbita resolução . Todavia , se os amores com Dulce existiam realmente , era essa paixão que o afastava dela . Nascido com espírito ardente , trovador e guerreiro , Egas precisava de obter glória , porque as almas poéticas daquele tempo não compreendiam o amor sem renome , nem talvez sem este o encontrariam no seio de nobre donzela , digna da sua afeição . A Terra Santa era naquela época o campo mais fértil para os ceifadores de glória : as reputações adquiridas na Palestina retumbavam por todo o orbe cristão . Era o amor que arrastava Egas para essa vida de riscos , privações e combates ? Quem poderia dizê-lo ? Ninguém sequer o pensou . O que é certo é que depois da sua partida , Dulce pareceu mais triste que de costume . Porém , se eram saudades , ou essa alma enérgica soube esconder seu martírio e devorar no silêncio e na solidão da alta noite as suas lágrimas , ou as saudades se extinguiram no meio da vida risonha e distraída da corte . O jovem trovador tinha esquecido a todos : pode ser que também a ela . Entretanto uma nuvem de cavaleiros a cercaram de adorações . Debalde ! Só um esperava acender alguma faísca de amor neste coração gelado . Era Garcia Bermudes , cavaleiro aragonês , valido do conde de Trava , e uma das melhores lanças de Espanha , que com ele viera a Portugal . Dotado de generoso ânimo , mas sobradamente altivo , e confiado no próprio mérito , Garcia Bermudes amava a donzela querida de D. Teresa , e esperava ser correspondido ; porém , no coração de Dulce achara um afeto que lá não quisera encontrar : amor sim ; mas amor de irmã . Era ele quem no meio das festas obtinha todas as preferências da filha adotiva da infanta : a sua conversação a que mais lhe aprazia . Contudo , quando no meio do ruído e alegria dos saraus , ou cavalgando no ginete possante e correndo ao lado do palafrém de Dulce pelas florestas e sarçais , nas montarias e caçadas , ele buscava oportunidade para proferir essas palavras veementes que escutadas sem cólera coroam esperanças de muitos dias , e repelidas entenebrecem o futuro e devoram uma existência , Dulce esquivava sempre com um gracejo esse instante decisivo , e o aragonês , afastando-se dela , amaldiçoava a hora em que a amara , para daí a pouco imaginar nova oportunidade em que pudesse resolver por uma vez o seu incerto destino . Dulce era a donzela , assentada na extrema almadraquexa do estrado ; Garcia Bermudes , o cavaleiro com quem ela falava e ria ; e o que entre os dois se passava , uma repetição dessas cenas em que tantas vezes a destreza da mulher que não ama sabe triunfar cruelmente da mais terrível entre as mais terríveis paixões , o amor do homem , recalcado no coração pela indiferença daquela a quem no abismo do seu orgulho disse : " tu serás minha ! " . Dos três personagens que , em pé no outro extremo do vasto aposento , pareciam alheios a tudo quanto passava em volta deles , embebidos em disputa violenta , um era o célebre Gonçalo Mendes da Maia , ao qual , em verdes anos , estremadas gentilezas de armas tinham feito dar o apelido de Lidador , de que por toda a sua larga vida ele se havia de mostrar constantemente digno . Era o outro o capelão de D. Teresa o muito honrado Martim Eicha , filho do muito excelente váli de Lamego , Eicha , que submetido pelo conde||_Henrique Henrique|_Henrique abraçara o cristianismo . Martim Eicha seguira o exemplo paterno , e , como em todas as opiniões deste mundo os renegados são os mais fervorosos na sua nova crença , achara ele em consciência que para se mundificar das torpezas do islamismo devia abraçar a pura vida do sacerdócio . Cónego da Sé de Lamego , restaurada por Fernando Magno , e que nesta época se achava unida à de Coimbra , o bom do tornadiço não pudera na santidade do seu ministério riscar do espírito a lembrança profaníssima de que nascera filho de um váli . Voavam-lhe os pensamentos altivos para os paços reais , como à gata da fábula fugiam as unhas para o murganho depois de transformada em mulher . Finalmente os seus desejos cumpriram-se . A bela infanta de Portugal chamou-o à corte , apenas dela saiu desgostoso o arcebispo de Braga , cujo carácter austero mal sofria os amores de Fernando Peres e de D. Teresa . Martim Eicha era o homem talhado para o caso . O seu evangelho fora , por assim dizer , escrito num palimpsesto do Corão , e as doutrinas do Profeta , relativas à metade mais formosa do género humano , reverdeciam-lhe às vezes através da severidade das sacras páginas e confundiam-se aos seus olhos com elas . Por esta causa , vinha o cónego Martim Eicha a ser o capelão mais a ponto naquelas intrincadas circunstâncias , em que os princípios de teologia moral andavam em tanta harmonia com os costumes , como neste bendito século décimo nono as sãs doutrinas políticas andam conformes com a realidade dos factos . Era , finalmente , a terceira pessoa daquela trindade argumentadora e disputante , o abade do Mosteiro de D. Mumadona , velho folgazão mas honesto , que na mesa dos banquetes despejava uma taça de vinho , e ainda um canjirão de cerveja , ou varria uma palangana de dobrada , iguaria mimosa desse tempo , com o mesmo fervor e devoto recolhimento com que na solidão da sua cela rezava as horas canónicas , ou garganteava no coro salmos e antífonas com os seus frades . Apesar dos benefícios que o ascetério de Guimarães recebera da infanta ; apesar do gasalhado que encontrava no paço , o bom do velho torcia sem rebuço o nariz à tão íntima privança do conde||_Fernando_Peres Fernando|_Fernando_Peres Peres|_Fernando_Peres com a rainha . Não porque desse ouvidos aos maldizentes , que ainda nas mais puras ações vertem a peçonha dos seus estômagos danados , mas porque não podia negar crédito ao que os seus olhos viam , e a experiência e razão lhe ensinavam . Enxergava ao longe o crescer da tempestade que ameaçava assolar a terra de Portugal : vira nascer , engrossar e rebentar como um vulcão o ódio entranhável , acumulado por anos , entre o senhor -- Trava e o jovem Afonso Henriques ; vira dividir-se a fidalguia em dois bandos ; e quando o infante , dois meses antes da época da nossa história , desaparecera dos paços de Guimarães , seguido de vários ricos-homens e cavaleiros da sua parcialidade , o bom do abade conhecera que uma terribilíssima luta se ia travar entre a mãe e o filho , luta desnatural e monstruosa , cujo desfecho , fosse qual fosse , não podia deixar de gerar muitos crimes . A precipitação com que se fortificara o burgo , e as notícias vagas de que o infante se aproximava de Guimarães com uma hoste numerosa , e acompanhado do arcebispo de Braga e dos seus homens de armas , lhe punham diante os olhos , como iminentes e inevitáveis , as cenas tremendas que de longo tempo previra . O estado dos negócios públicos era o objeto da acesa prática dos três ; ou , por nos servirmos de uma francesia da moda , eles faziam política . Era também o perigo que os ameaçava a ambos ; era a nuvem procelosa que viam já no horizonte da sua vida , até aí tão povoada de deleites , tão rica de esplendor e de predomínio , o pensamento que turbava a cara do nobre Fernando Peres , e fazia gotejar pelas faces da bela infanta as lágrimas , que em vão ela tentava conter . Com olhos enxutos e ânimo de ferro , a filha de Afonso VI tinha vivido , durante dezasseis anos , quase sempre nos campos de batalha , nos arraiais junto aos castelos cercados , ou encerrada nestes defendendo-os . Com olhos enxutos e ânimo de ferro , tinha visto várias vezes as rotas dos seus homens de armas , e tinha fugido com eles ; assistira a muitas cenas de carnificina ; ouvira muitas vezes pela alta noite , na tenda de guerra , gemidos de moribundos , e o uivo do lobo descendo das brenhas guiado pelo cheiro do sangue ; havia apenas um ano que se vira constrangida a curvar a cerviz à fortuna do seu sobrinho , o imperador||_Afonso_Raimundes Afonso|_Afonso_Raimundes Raimundes|_Afonso_Raimundes ; mas nunca sentira coar-lhe pelas veias o terror ou o desalento : a sua alma era a de guerreiro , escondida debaixo das formas delicadas e suaves de mulher . Criam-no todos : cria-o ela . Mas o prestígio passou . A dura prova a que a pusera uma paixão desgraçada revelava enfim a fraqueza feminil . Até então no jogo dos combates apenas arriscara o vasto senhorio de Portugal ; mas no que se lhe oferecia agora expunha o amante , expunha todo o futuro , toda a esperança e todos os contentamentos . Por isso as lágrimas da bela infanta corriam . Quem sabe se também entre estas alguma era pelo seu filho ? O sarau daquela noite fora para ela um longo martírio . O espetáculo do rir e folgar , o transluzir da alegria em tantos gestos faziam-lhe mais carregada a negra nuvem da sua tristeza : era um trato doloroso , cruel , dilatado ; era como o prelúdio medonho de um cântico infernal ; mas cumpria sofrê-lo resignadamente . Dos cavaleiros portugueses , que seguiam ainda a corte , muitos ânimos titubeavam indecisos entre o balção do infante e o pendão da rainha -- Portugal ; e a hesitação ou o temor seria o sinal para essa fidalguia brilhante passar ao campo contrário . Fernando Peres contava com os cavaleiros galegos , asturianos e aragoneses , de que pouco a pouco se rodeara : mas seria isto bastante para o salvar e salvar a infanta ? Eis o que era mais que duvidoso . Com a astúcia de fingido desafogo e destemor ele tentava enganar os que vacilavam , e fazer-lhes crer , dançando na borda do abismo , que fácil lhe seria galgá-lo . Mas o senhor -- Trava não se lembrava nos seus cálculos políticos de uma circunstância que devia influir no resultado final deles . O grande pensamento do conde||_Henrique Henrique|_Henrique ; o pensamento que o audaz borgonhês acariciara por tantos anos , e a que votara a existência a independência do condado -- Portugal -- , não morrera com ele : germinou , alimentou-se , e cresceu nas guerras com os Leoneses , guerras até certo ponto civis , em que D. Teresa prosseguira com tenacidade implacável . As mais províncias da Espanha gradualmente foram parecendo aos olhos dos cavaleiros portugueses uma terra estrangeira , estranhos os filhos delas . Um sentimento de nacionalidade surgiu nos corações , vago e confuso , mas enérgico . E no meio das suas graves preocupações e das suas previsões profundas , o conde de Trava não se esquecera de que vira pela primeira vez o sol sob o céu da Galiza . Se D. Teresa triunfasse , ele o estrangeiro seria o senhor da nobre e livre terra de Portugal . D. Afonso Henriques , porém , nascera aquém do Minho . Assim , muitos daqueles que o ambicioso filho de Pedro Froilaz supunha indecisos na véspera da grande luta eram já seus inimigos . É o que o leitor melhor avaliará por si próprio se quiser escutar a conversação travada entre Gonçalo Mendes da Maia , o santo abade do Mosteiro de D. Mumadona e o muito reverendo capelão da rainha . Não será grande o incómodo : basta-lhe lançar os olhos para o capítulo seguinte . RECEIOS E ESPERANÇAS Dom||_Bibas Bibas|_Bibas não era bobo ; era o diabo . Logo veremos porquê . Convidámos o leitor para escutar a conversação travada entre Gonçalo Mendes , o abade beneditino e o muito reverendo cónego de Lamego , Martim Eicha . Pode ouvi-los agora . Embebidos no seu grave disputar , todos três se esqueceram completamente do lugar onde estavam , e do sarau , que depois do doudejar vívido e alegre ao redor deles esmorecia já e esfriava em paroxismo final . A noite correra sem que de tal dessem tino . Sobre o tumultuar dos passos , sobre o ruído do falar confuso , sobre as toadas dos instrumentos que afrouxam , ouve-se primeiro o vozear retumbante do Lidador ; depois as palavras flautadas , escandidas , melifluamente hipócritas do capelão da infanta ; e por último as falas brandas , tardas e suaves do beneditino . Esta gradação corresponde ao progresso de silêncio que começa a predominar na sala : é a medida do tédio que leva de vencida o deleite naquele ajuntamento lustroso . -- ... Eis aí dizia o Lidador voltando-se para Martim Eicha o que eu havia previsto ; eis aí o resultado final do desenfreado orgulho do senhor -- Trava , e dessa desgraçada afeição da rainha . Depois do folgar pacífico em jogos de tavolado e saraus oferecem-nos uma festa de sangue . -- Mas quem sabe se essas notícias são verdadeiras ? interrompeu o abade , que parecia olhar duvidoso para o honrado cónego de Lamego . -- Sei-o eu ! replicou este com gesto de sobrecenho e de autoridade . Ouvi-as do escudeiro que as trouxe acrescentou com sorriso de mistério disse-mo quem tão bem como ele o sabia , e acerca disso me perguntava : " Pois que faremos , D. Eicha ? " É lástima : é na verdade lástima ! Não me sofre o ânimo ver assim um jovem ambicioso e louco desacatar com armas rebeldes sua mãe , sua senhora . Largo campo à cobiça de honra e domínios , se pretende ganhar nome e poder , se lhe abre em terras de infiéis . Se tem sede de sangue , derrame o sangue dos malditos ismaelitas , moabitas e agarenos . Os campos do Sul aí estão patentes à ambição dos ousados . Que vão devastar as searas dos Mouros , derribar as suas povoações e castelos , incendiar-lhes as mesquitas , onde diariamente se repetem as blasfémias , torpezas e imundícies do abominável Alcorão . Deus há de puni-lo : o castigo é infalível , mas para isso a espada cristã encontrará-se-no ar com a espada cristã , e a lança romperá a cervilheira assinalada com a cruz de Jesus Cristo . O honrado cónego invetivava assim , todas as vezes que lhe caía a talho , contra os sectários de Mafamede , porque os conhecia de perto . -- Mas acudiu o abade se o infante traz esse número de cavaleiros e besteiros ; se o muito poderoso arcebispo de Braga o favorece tão claramente ; se os burgueses da Sé do Porto e os de Coimbra começam a agitar-se , como deixará a rainha de vir a concórdia com o seu filho ? -- É impossível interrompeu Martim Eicha . Ele pretende que o ilustre conde de Trava lhe entregue as honras e prestamos que tem da munificência real , e que saia destes paços . Não contente com isso , pretende também que a sua mãe lhe ceda o supremo poder : invoca o exemplo de Afonso Raimundes e o direito de suceder ao seu pai , sem se lembrar que jamais Henrique de Borgonha cingiria a coroa de conde se não houvera sido o esposo de uma filha de Afonso o Grande . Que herdou de feito o infante do seu pai ? Um nome glorioso ; mais nada . Portugal não é herança dos duques -- Borgonha , mas dos filhos dos reis da Espanha , e D. Teresa é filha do último deles . O Lidador sentiu subir-lhe Ãs faces o rubor da cólera ao ouvir estas palavras . -- É falso exclamou ele que a alguém devesse o conde de Portugal os senhorios que deixou a Afonso Henriques : a Afonso Henriques , direi-lo sem receio ! Se o rei leonês disse-lhe : " Vai e hasteia o teu pendão de conde nas fronteiras do Ocidente " , era que aos seus ouvidos tinham chegado os gemidos dos cavaleiros do conde||_Raimundo_de_Galiza Raimundo|_Raimundo_de_Galiza de|_Raimundo_de_Galiza Galiza|_Raimundo_de_Galiza , passados à espada pelos Sarracenos junto de Lisboa . Nunca depois disso , acaudelados por ele , voltaram costas aos infiéis os guerreiros da Cruz . Portugal era até aí um país devastado : era quase um deserto , por onde corriam à rédea solta os almogaures mouriscos ; hoje os campos estão cultivados , os castelos seguros , os burgos e cidades renascem das suas ruínas . Respeitai as cinzas do nobre conde : respeitai-as ao menos diante de mim , que dele recebi as armas de cavaleiro , e que ainda combati entre os seus homens de armas . Não sei se vos lembrais disso ? ! O Lidador talvez aludia à conquista de Lamego . Era acaso uma injúria que ele dirigia ao filho do váli e não uma pergunta . O certo É que Martim Eicha fitou os olhos no teto , e depois volveu-os lentamente para o chão , como quem oferecia a Deus a afronta e se resignava nela . Gonçalo Mendes prosseguiu : -- Chamais ao infante rebelde contra sua mãe . Não , vos digo eu ! , mil vezes não ! Por largo tempo o jovem generoso viveu nestes paços esquecido , desprezado , como um ínfimo homem de armas . O seu nome escrito nas cartas e doações , acima do nome do conde de Trava , era unicamente o que ainda recordava de quem ele era filho . Escárnio cruel na verdade ; porque esse que aí se chamava infante -- Portugal era obrigado a curvar a cabeça diante do senhor estranho . É a esse que ele vem arrancar o poder , porque o poder está nas suas mãos . Credes que aprovo o feito ? Não , por certo . Diante os barões e ricos-homens , na cúria , devera requerer o seu direito . Mas perdeu-o acaso porque , esgotado o sofrimento com o excesso da opressão , respondeu à violência com o brado de guerra ? Os senhores e infanções portugueses não o creem . Se o cressem não o teriam escutado : não o seguiriam aqueles que ora o seguem . O bom do capelão não se deu por vencido e com inflexível tenacidade replicou : -- A rainha||_D._Teresa D.|_D._Teresa Teresa|_D._Teresa domina em Portugal ; o conde de Trava é um conde , um rico-homem , um alcaide ; mais nada . Os barões portugueses juraram-lhe lealdade a ela , e é contra ela que se rebelam . Dizei-me vós , senhor cavaleiro , de quem tendes vossas honras , coutos e prestamos ? De quem , como vós , os têm eles ? -- A rainha é a viúva do conde||_Henrique Henrique|_Henrique . Não queirais obrigar-me a dizer-vos o que acerca dela tumultua nesta alma . Basta que responda à vossa pergunta . As honras que possuo herdei-as dos meus avós ; os prestamos ganhei-os à lança e à espada : foi preço de sangue o que dei por eles . Preito e lealdade ? ricos-homens de Portugal guardam-no a quem lhes guarda seus foros . Têm estes sido guardados ? Sabemos-lo nós : sabe-o Deus . Ele será o nosso juiz . -- O juízo de Deus -- disse Martim Eicha com mal disfarçada raiva profere-se em repto e combate , segundo foro dos bem-nascidos de Espanha . Porque não ides com os acostados que pelejam debaixo do vosso pendão , e vivem da vossa caldeira , ajuntar-vos com o infante ? Afirmo-vos que entre ele e a filha de Afonso de Leão há repto e haverá combate . Tereis aí o juízo de Deus . -- Porque eu atalhou o Lidador cravando nele os olhos indignados -- , homem afeito à vida de batalhas , trabalharei até ao fim , para que irmãos não derramem sangue de irmãos em luta de mãe e de filho ; porque eu , o homem que , ao abrir os olhos no mundo , a primeira luz que vi foi o reflexo brilhante de armas polidas , e que espero , ao cerrá-los para sempre , vê-las reluzir no volver derradeiro deles , tomei ao meu cargo o vosso trabalho , o trabalho dos clérigos e letrados da corte , dos homens de paz , dos prudentes , que saudais o dia em que lanças cristãs topem em escudos de cristãos ; que sorrides à imagem desse dia em que esperais ver satisfeitos ódios e vinganças mesquinhas . Tentarei frustrar o atroz pensamento dos maus , e se o meu tentar sair vão , ao menos a consciência há de ficar-me tranquila . O capelão , que sabia qual era o carácter violento de Gonçalo Mendes da Maia , julgou acertado não lhe responder : o abade , porém , que se havia conservado em silêncio durante a disputa , tomou nesse ponto a mão . -- Quanto a mim -- disse ele -- , não me perdoe o Senhor na hora extrema do passamento , se mentem minhas palavras . Sempre e em toda a parte clamei pela paz , e ainda hoje clamo por ela . Também eu como vós quisera que o infante na cúria dos barões requeresse direito ; mas como vós também quisera que não lhe&lhes+o negasse a rainha , posto que o demande armado . A tal façanha o incitou o orgulho do conde de Trava , e o generoso e nobre sangue que corre nas veias do nobre jovem . Com a mão sobre o coração vos juro que me horroriza esta guerra desnatural . Mas como evitá-la ? Como ousareis vós tentá-lo ; vós , talvez o único rico-homem da corte de Guimarães que ousa ser francamente inimigo do conde de Trava ? -- Tentarei-lo replicou o Lidador como leal cavaleiro . Antes que as notícias da vinda de D. Afonso , para acometer sua mãe e o seu mortal inimigo , tivessem corrido de boca em boca ; antes que os mais íntimos conselheiros do nobre Fernando Peres dizendo isto Gonçalo Mendes olhava para Martim Eicha nos pudessem asseverar que o sangue se havia de verter , já eu o sabia : sabia-o porque esses valos alevantados à pressa em volta do burgo ; essa couraça que os prende ao castelo ; os engenhos postos a ponto nos eirados e torres , me diziam sobramente que nos ameaçava guerra . Guerra de Sarracenos ? Não vêm tão longe as suas arrancadas . Guerra do imperador ? Não quebrámos até hoje nosso preito com ele . A causa do temor existia , pois , em Portugal . O infante não há três meses que saiu daqui , e já muitos castelos o receberam por senhor . Vi , soube e calei . Mas a cúria dos barões e ricos-homens da corte está convocada para se ajuntar amanhã . Lá , no meio dos que servem e temem , eu , que não temo nem sirvo , falarei bem alto . Mostrarei à rainha que se perde ; que D. Afonso tem por si filhos de algo , bispos , burgueses e vilões de beetrias . Direi ao conde : " Nobre conde de Galiza , é necessário ceder ao infante -- Portugal . " Então , se não for escutado ... -- Então ? ... interrompeu Martim Eicha . -- Então aceitarei vossos conselhos . No campo do infante ainda cabem dez tendas para mais cem homens de armas , besteiros e fundibulários ; ainda lá se pode soltar mais um pendão ao vento assolador das batalhas . O abade ia de novo falar , pensando talvez como abrandaria a cólera que se acumulava no gesto carregado do Lidador . Mas uma risada que restrugiu por cima das cabeças dos três lhe&lhes+as fez involuntariamente erguer . A cara de Gonçalo Mendes desenrugou-se repentinamente . Quase ao mesmo tempo ele e o abade soltaram uma gargalhada . Só Martim Eicha não ria . Tinha razão que sobre . No calor da disputa , nenhum dos três reparara em Dom||_Bibas Bibas|_Bibas , que se acercara da coluna junto da qual conversavam . O bobo aplicara por algum tempo o ouvido Ãs palavras violentas do Lidador ; mas o burburinho dos passos e do falar contínuo , dos sons retumbantes dos instrumentos naquela imensidão da sala o não deixavam perceber senão algumas vozes soltas que muito lhe excitavam a curiosidade . Rodeando o feixe de colunelos , que , segundo o gosto árabe , unidos só pela base e pelo cimo formavam a coluna ou pilastra em que vinham repousar os artesões do teto , trepara manso e manso firmando-se nos lavores da pedra , e se assentara sobre as grandes folhas de lódão entressachadas de figuras extravagantes de centauros , harpias , demónios e górgonas , em que o arquiteto mostrara ceder Ãs influências da arte normanda , que começava a expulsar a arquitetura sarracena dos edifícios de Espanha . Visto naquela altura , assentado no capitel , com os braços lançados sobre os pescoços de duas figuras horrendas , em que se assegurava , Dom||_Bibas Bibas|_Bibas pareceria também uma criação desvairada da mente do escultor , se , fitando os olhos brilhantes no reverendo cónego e fazendo-lhe uma visagem truanesca , não começasse a cantarolar com um acompanhamento de risadas estrondosas : Dom||_Bibas Bibas|_Bibas fez uma segunda visagem ao reverendo||_Martim_Eicha Martim|_Martim_Eicha Eicha|_Martim_Eicha , rodeou o capitel , e desceu rapidamente por entre os colunelos . Daí a pouco a sua voz esganiçada ouvia-se no outro extremo da sala de armas . O inesperado da jogralidade do bufão tinha feito desatar a rir o Lidador e o abade . Não assim o honrado cónego de Lamego , a quem as alusões insolentes espalhadas naquela trova satírica tinham mortificado ao vivo . A cólera fugira da alma do cavaleiro ; mas fora reconcentrar-se na do sacerdote . Nunca Dom||_Bibas Bibas|_Bibas ousara tanto : o fogo da revolta lavrava já no espírito de um vil bobo ! O bom do capelão agarrou-se a este pensamento para cerrar os ouvidos à voz da consciência que lhe dizia terem batido no alvo os motejos cruéis do chocarreiro . Assim , com meneios entre hipócritas e altivos , afastou-se dos dois sem os saudar , e desapareceu no meio da turba dos cavaleiros , jurando pela pele a Dom||_Bibas Bibas|_Bibas , e prometendo relatar ao conde de Trava , nessa mesma noite se pudesse , todas as circunstâncias daquela conversação . A hora , porém , a que o sarau devia acabar soou . A bela infanta estremeceu ao ouvi-la bater na campa da torre albarrã . Sentiu alargar-se a mão de ferro que lhe apertava o coração ; a íntima agonia , que a política do conde lhe obrigava a velar sob o aspeto mentido do contentamento , poderia afinal dilatar-se na soledade em torrentes de lágrimas . Encostada ao braço de Fernando Peres , e seguida das suas donzelas , D. Teresa atravessou os aposentos imediatos e recolheu-se à sua câmara . Os ricos-homens e filhos de algo começaram a sair , e pouco a pouco a sala ficou deserta . Apenas um cavaleiro com os braços cruzados e encostado a uma das colunas imediatas ao estrado das donzelas , imóvel , e com os olhos cravados na colgadura da porta por onde D. Teresa saíra , parecia entregue a profunda meditação . Uma voz veio tirá-lo daquele torpor : era a de Dom||_Bibas Bibas|_Bibas , que , repotreado na cadeira da rainha , olhava para ele fito , e lhe salmeava em tom soturno , pela solfa do canto gregoriano , bastas injúrias : O cavaleiro pôs-se a ouvi-lo sorrindo ; mas aqueles derradeiros fragmentos das preces pelos extintos , entoados lugubremente e reboando no aposento sonoro , assemelhavam-se-lhe aos ecos das orações por finado repercutidas por abóbada de igreja em trintário cerrado . Sentiu correr-lhe os membros um calefrio não de temor , porque não o conhecia o seu coração ; mas de terror desse religioso terror que na crédula Idade Média , às vezes , e por mil motivos vãos , vergava os ânimos mais esforçados . Era singular o efeito que nele produzia a voz roufenha de Dom||_Bibas Bibas|_Bibas ; mas é certo que essa voz despertava na sua alma lembranças de morte e uma indizível tristeza . Revoou-lhe então lá dentro o pensamento de que no cantar do truão havia o que quer que fosse fatídico , e no seu olhar brilhante o que quer que fosse diabólico . Sentia baterem-lhe com força as artérias frontais , e sussurrar-lhe nos ouvidos um zumbido intolerável . Esqueceu-se de quem era o homem que assim se assentara na cadeira real , para dali lhe repartir as últimas injúrias que naquela noite distribuíra com mão larga . A imaginação lhe transformou o gesto jovial do bobo no aspeto tétrico de um enliçador , e o seu cantarolar ridículo nos acentos sinistros de uma velha estriga . Esta espécie de delírio em que havia caído Garcia Bermudes era ele o cavaleiro o obrigou a sair precipitadamente da vasta e já mal iluminada sala , e a descer ao pátio interior , sem olhar para trás , sem encarar o bobo , cujo canto soturno findou numa destas gargalhadas , que não parecem vir da alma , e que contristam , porque , naquele que as solta , revelam alienação mental . Garcia Bermudes parou : o pátio estava deserto : um cavalariço estirado a um canto dormia profundamente , com as rédeas da mula possante enfiadas no braço . O frescor da noite e a serenidade do céu cintilante de estrelas acalmaram o ânimo agitado do cavaleiro ; mas o pulso batia-lhe violento e febril . O extravagante pesadelo de homem acordado , que tivera , não procedera do bobo : procedera do lance doloroso porque pouco antes passara . No meio do sarau , na ebriedade da festa , ele ousara finalmente o que até aí não havia ousado . Tudo quanto uma paixão sincera tinha veemente , enérgico , tempestuoso , tudo dissera a Dulce : esse amor , que com tanta arte ela soubera conter nos limites de mistério , deixara de o ser . Mas aquela alma , que parecia tão meiga , tão branda , tão fácil a todos os contentamentos , a todos os afetos , achou-a ele indomável e esquiva a tanto amor . Esta repulsa esmagara o coração de Garcia Bermudes e a sua imaginação delirou . O raio fulminara o cedro : que muito era que ele balouçasse pendido ? O cavalariço despertou , gemendo , a um rijo pontapé do cavaleiro . Este montou de salto na mula , cravando-lhe os acicates no ventre , galgou pelo portal da torre albarrã , e , correndo ao longo da couraça , sem saber como , achou-se à porta da sua pousada , no bairro coutado e honrado do burgo . No meio de desesperação profunda , uma luz ténue lhe bruxuleava na alma . Dulce prometera explicar-lhe o motivo porque refucava tanto amor . Esta revelação seria feita no dia imediato . A hora aprazada fora a do pôr do Sol ; o lugar , a galilé contígua à sala de armas , que dava sobre os adarves do norte , e que a esse tempo devia estar erma . Era uma noite e um dia eternos , que tinha de viver entretanto ; mas a esperança mais débil arrosta com a eternidade , e bem que frouxamente o cavaleiro esperava ainda , posto que não ousasse dizê-lo a si mesmo , e talvez nem sequer o cresse . Daí a pouco tudo parecia dormir no castelo e no burgo . Não era assim : neste velava Garcia Bermudes ; naquele o conde||_Fernando_de_Trava Fernando|_Fernando_de_Trava de|_Fernando_de_Trava Trava|_Fernando_de_Trava , a bela infanta e Dulce . Eram quatro agonias , tremendas todas ; mas todas elas diferentes . A variedade é o que mais ama na vida o coração humano . A Providência não se esqueceu de conceder-lhe em grau infinito a variedade na dor . A MADRUGADA O céu oriental começava a dourar-se com os primeiros raios de sol que surgiam na vermelhidão da madrugada . Iluminando com serena e ainda frouxa claridade o burgo assentado na baixa , iam refletir-se trémulos no orvalho pendurado nas folhinhas da relva pelas veigas circunvizinhas ; e batendo de soslaio nas muralhas e torres do castelo tingiam as pedras alvas e lisas de cor pálida . Era um alvorecer de manhã de estio no Minho , tão suave , tão poético e pinturesco , que talvez por isso aí colocaram os antigos pagãos o Letes , esse rio cujas águas faziam esquecer as penas e os deleites da vida . Esta virtude , porém , do clima , este deleite que se encontra no aspeto daquelas lindas paisagens , no murmurar dos arroios perenes , nas sombras dos arvoredos frondentes e na risonha verdura dos prados , não tinha podido fazer esquecer ao conde de Trava os riscos da sua situação . Atormentado pelos receios do desfecho da luta em que lhe era forçoso entrar , tinha-se revolvido toda a noite no seu leito , sem poder dormir , ora arrependendo-se de haver tratado tão duramente o jovem Afonso Henriques , ora fervendo-lhe na alma desejos de vingança atroz contra o jovem e contra os barões -- Portugal , que sucessivamente se declaravam pelo bando do infante . A ideia de se ver cercado em Guimarães por aquele mesmo a quem meses antes fazia esgotar até Ãs fezes o cálix da humilhação acendia-lhe o orgulho e a cólera a ponto indizível . Então punha-se a calcular as probabilidades de uma batalha campal . Tinha consigo mil lanças entre cavaleiros de Galiza e de Aragão : muitos ricos-homens de Portugal parecia conservarem-se fiéis , não a ele , mas a D. Teresa ; e os borgonheses , companheiros do conde||_Henrique Henrique|_Henrique , educados nas ideias da absoluta lealdade , e investidos pela maior parte em tenências de terras e em alcaidarias de castelos , davam-lhe toda a certeza de que não abandonariam aquela de quem as tinham recebido . Com estes elementos diversos ele podia ir em arrancada contra a hoste de D. Afonso , superior talvez em peonagem e besteiros , mas assaz inferior à sua em homens de armas . Se , porém , os barões portugueses que ainda se não tinham declarado contra a rainha a abandonassem , a vitória não seria tão fácil de obter : e posto que o conde tentasse minguar o valor e perícia dos cavaleiros de aquém-Minho para se esforçar a si próprio , a lembrança de que um tal acontecimento seria possível era , entre todas as que o assaltavam , a mais importuna , e a que principalmente não o deixara repousar durante as curtas horas de uma noite de Junho , a qual para ele fora uma das mais longas da sua vida . Assim , apenas a luz duvidosa da aurora raiava no oriente , já a ponte levadiça do Castelo de Guimarães descia à voz impaciente de Fernando Peres , montado no seu ginete andaluz . Os atalaias viram-no sumir entre a casaria do burgo , e daí a pouco tornar a aparecer além dos valos alevantados à roda da povoação . Acompanhava-o já outro cavaleiro , cujas feições a escassa luz da madrugada não deixava bem divisar , mas que alguns dos esculcas apostavam ser Garcia Bermudes , o íntimo amigo do conde ; o único homem que sabia moderar o seu carácter violento e altivo e que parecia senhor de todos os segredos daquela alma dissimulada e ambiciosa . Fosse quem fosse o cavaleiro , o conde rodeou com ele os valos e , passando perto outra vez do castelo , os dois se embrenharam numa selva profunda , que se estendia a pouca distância deste para a parte do norte . O cavaleiro era de feito o valido de Fernando Peres . A amizade dos dois se travara e crescera na Palestina . Garcia salvara o conde em certo recontro no qual o filho de Pedro Froilaz , a pé e coberto de feridas , mal se defendia já com um troço de espada partida , da multidão dos sarracenos , que o cercavam . Desde então , companheiros de perigos e deleites , nunca mais se tinham separado . Era uma destas fraternidades de armas de que os tempos bárbaros nos oferecem tantos exemplos , porque ainda então existia a individualidade do homem de guerra , hoje completamente anulada pelo valor fictício a que chamamos disciplina . Ao passar pelo burgo , o conde avistara o cavaleiro , de cujos olhos também fugira nessa noite o sono , posto que por bem diverso motivo . Pela primeira vez Fernando Peres de Trava desejou esconder ao seu amigo os pensamentos que lhe vagueavam no espírito . Todos eles se resolviam num sentimento único o temor . Envergonhava-se de si mesmo , e não ousava confessar a fraqueza do seu coração Ãquele cujas faces nunca vira demudadas no meio dos maiores riscos . Procurando dar ao rosto carregado uma expressão de alegria , bradou de longe ao cavaleiro , que , embebido num cismar profundo , nem sequer sentira o tropear do ginete : -- Madrugador sois , Garcia Bermudes . Já vejo que ainda vos lembram as alvoradas de ultramar . Garcia sofreou a mula de corpo em que ia montado , e volveu para trás os olhos . No seu gesto estava impressa a mais profunda melancolia . O conde esporeou o ginete até emparelhar com o cavaleiro , e estendeu a mão para ele . Garcia Bermudes apertou-a na sua , e Fernando Peres sentiu que esta estava trémula e febril . -- À fé que mal te foi a noite passada : a tua mão é ardente ; tens no rosto pintado o padecimento . -- Verdade é , nobre conde -- respondeu tristemente o cavaleiro -- ; duas noites semelhantes à que passei , e estes cabelos estarão brancos , e este braço vergará como o de um velho ao sopesar a lança . -- Mas porque assim padecendo te diriges para a campina , húmida com o rocio da noite , quando talvez pudesses repousar agora no sono da madrugada ? -- É porque busco o ar e a luz do céu como um refrigério ; é porque sinto cá dentro um fogo que me devora , e preciso de respirar livre na solidão . O conde viu duas lágrimas bailarem sob as pálpebras do cavaleiro . Parou espantado . Era inaudito , monstruoso , impossível o que via . Nunca a dor de feridas , a sede nos desertos , a fome nos castelos sitiados , e até a morte de amigos queridos no campo de batalha lhe&lhes+as tinham arrancado . Ocorreu-lhe então um pensamento súbito , porque Fernando Peres era hábil em conhecer os afetos humanos . Parou , e , cravando a vista de lince no rosto de Garcia Bermudes , disse-lhe no tom firme e positivo de quem descobrira um segredo : -- Garcia , tu és infeliz pelo amor ! O cavaleiro corou levemente e , com a voz afogada , respondeu : -- É verdade ! O conde sabia que ele amava Dulce : toda a corte o sabia . Fernando Peres folgava com a ideia de prender por laços mais fortes que os da amizade aquele esforçado homem de guerra à fortuna de D. Teresa e à sua . Dulce seria disso um penhor , e a afeição particular que ela mostrava ao cavaleiro persuadira o conde e a infanta de que os seus intentos e desejos seriam brevemente cumpridos . A tristeza de Garcia , a que não achava outra razão possível depois de um sarau a que tinham assistido tantos cavaleiros jovens e gentis-homens , lhe fez crer que entre os dois amantes se alevantara alguma destas procelas com que o suão mirrador do ciúme costuma entenebrecer às vezes o céu risonho desta quadra da vida tão bela e tão passageira . A resposta de Garcia o confirmou nesta ideia . -- Dulce traiu-te , pois ? prosseguiu o conde sem tirar dele os olhos . -- Não replicou o cavaleiro -- , porque nunca fui amado por ela ! Estas palavras eram uma fria e morta expressão , como para representar paixões violentas o é sempre a linguagem dos homens ; e todavia no acento com que tinham sido proferidas revelava-se bem o martírio atroz do orgulho ofendido e do amor desprezado que ralava o coração de Garcia . -- Nunca ! ? interrompeu Fernando Peres . Cria eu contrário : tinha talvez razão para o crer . Se , porém , não é Dulce a dama dos teus afetos , ousarei eu perguntar a Garcia Bermudes o nome da sua amada e a causa do seu padecer ? No tom destas palavras havia o que quer que era de ironia e motejo . -- Conde de Trava -- replicou o cavaleiro -- , só disse que jamais fui amado por Dulce : não que eu não a amava . Nunca o encobri a ninguém , e vós sabeis que muitos segredos meus , que todos ignoram , nunca de vós os escondi . O modo sentido e de amarga repreensão com que Garcia respondera fizeram conhecer a Fernando Peres que a ferida aberta naquele coração era dolorosa e profunda . Então , estendendo de novo para ele o braço , disse-lhe sorrindo : -- Vamos : falemos sério e perdoa o meu gracejar . Se amas Dulce , ela será tua . Cóleras de amantes passam como a nuvem varrida do norte ; e que não fosse assim , seria eu o tufão que a afugentasse . Sabes que Dulce é a filha adotiva da rainha . Será tua esposa a um aceno do conde de Trava ; e não é o conde de Trava o teu mais verdadeiro amigo ? Oh , abre-me o teu coração ! E apertava entre as suas a mão do cavaleiro . Garcia Bermudes alevantou para ele os olhos húmidos e tristes . Por algum tempo ficou em silêncio , e por fim exclamou : -- Não sabes o mal que me fizeste ; não sabes o bem que ora me fazes ! Sufocava-me o peso da minha agonia : deixá-la , enfim , dilatar-se ! Então , seguindo por meio da selva , narrou ao conde tudo o que se passara na véspera , e a larga história do seu desditoso amor , que o mundo cria retribuído e feliz . Aquela narração eloquente , como a paixão lhe&lhes+a ensinava , chegou a comover o ânimo de Fernando Peres , que , distraído a princípio , escutara pacientemente essa larga confidência , com o único intuito de tornar mais íntimos pela gratidão os laços que prendiam à sua sorte um homem , de cujo esforço tanto carecia na dificultosa situação em que se achava . E assim , apenas Garcia cessara de falar , o conde bradou e desta vez as suas palavras vinham da alma : -- Cavaleiro , Dulce será tua mulher : juro-o pelas cinzas de meu pai ! Era o mais grave juramento de Fernando Peres . Poucas vezes o ouvira Garcia Bermudes jurar pelas cinzas de Pedro Froilaz . -- Dulce prosseguiu o conde é órfã e nobre : por foro de Portugal à sua mãe adotiva , senhora dos prestamos de que ela é herdeira , pertence escolher aquele que há de desposá-la . Tu serás o escolhido , e serás-lo talvez hoje mesmo . Afirma-to o conde de Trava . O cavaleiro ficou por largo espaço pensativo . Reflexões encontradas tumultuavam no seu espírito . Nestas eras civilizadas em que a ideia do amor é mais pura nos corações que o compreendem , nenhum ânimo generoso deixaria de recusar com horror esse meio violento de satisfazer seus desejos . Naqueles rudes tempos , porém , a generosidade e a delicadeza dos afetos morais era mais um instinto confuso que uma doutrina definida , gravada na alma pela educação e pelas crenças sociais . Era por isso que Garcia hesitava entre o íntimo aconselhar de uma nobre consciência e o cego desejo de paixão ardente . A tenuíssima esperança que ainda lhe restava fez triunfar , enfim , a sua natural generosidade . -- Não -- disse ele -- , não quero dever à obediência o que só quisera merecer pelo amor . -- Que importa ? interrompeu Fernando Peres . Deixa , Garcia , aos trovadores essas afeições que se pagam de submissão e suspiros . Juramento feito pelas cinzas do meu pai nunca deixei de cumpri-lo . Poderia agora fazê- lo ? O cavaleiro pareceu meditar um momento ; depois acrescentou : -- Bem o sei ; mas promete-me uma só coisa . -- Qual é ? atalhou vivamente o conde . -- Que não será hoje que o cumpras . -- Oh , quanto a isso -- respondeu Fernando Peres sorrindo -- , não o jurei eu . Nem poderia jurá-lo . O conselho dos barões , que vai daqui a pouco ajuntar-se nos paços de Guimarães , deve ser demorado e tempestuoso . Conheces o que lá há de tratar-se ; e que não conto com todos os ricos-homens de Portugal como conto contigo . Teremos brava batalha . -- Enquanto este braço puder menear uma acha de armas ; enquanto nestas veias houver uma gota de sangue , aquela ferirá sem piedade os teus inimigos , este será derramado para te defender a ti . O conde caíra naturalmente na realidade da vida , e voltara ao habitual egoísmo de que por momentos Garcia Bermudes o fizera sair . Quando o avistara , ao atravessar o burgo , tinha-lhe ocorrido consultar o cavaleiro , cuja mestria de guerra ele conhecia , sobre o sistema que devia seguir ao começar a luta com Afonso Henriques , luta que bem conhecia ser inevitável . Aproveitando o ponto em que tocava quase imprevistamente , foi , sem revelar nunca os receios que o assaltavam , conduzindo a conversação de modo que , depois de haverem rodeado o bosque , ao entrarem no castelo , os dois tinham calculado e disposto todas as traças que julgavam oportunas para chegarem naquela guerra iminente a um desenlace feliz para a bela infanta de Portugal e por consequência para o ambicioso filho de Pedro Froilaz . COMO DE UM HOMENZINHO SE FAZ UM HOMENZARRÃO O conde de Trava acertara nas suas previsões : o ajuntamento da cúria fora longo e tempestuoso . Os parciais da rainha , isto é , aqueles cujo poder e ambição se estribavam na influência do conde , patentearam aí , com toda a energia e afeto , a sua inabalável fidelidade à filha de Afonso VI , à qual eles não podiam quebrar seu preito sem se cobrirem de opróbrio ; por outra parte , aqueles que tinham já posto a mira em alcançarem do jovem infante as alcaidarias , os meirinhados , as tenências e os cargos da corte , acesos no santo amor da justiça , pugnavam para que a ele se entregasse a herança paterna . Era a luta da consciência de uns contra a consciência dos outros , combate desgraçadamente trivial em todas as épocas de dissensões civis , e de que só é culpada a Providência por assim colocar os bandos sob o jugo de persuasões opostas , e estreitá-los entre o desejo da salvação das suas almas e a cruel necessidade de serem inimigos e perseguidores de compatrícios e irmãos , com grande e interior mágoa sua , como nós e o leitor perfeitamente sabemos costuma acontecer em tais casos ! Dos ricos-homens , cavaleiros e clérigos , portugueses por nascimento , que ainda não seguiam abertamente o pendão de Afonso Henriques , alguns neste momento decisivo mostraram a sua resolução firme de confiar na fortuna de D. Teresa ; mas a maior parte voltava-se para o sol que nascia , tudo por amor da boa terra de Portugal . Entre os primeiros , nas violentas altercações da cúria , se tinham distinguido os dois infanções , Aires Mendes e Pedro Pais , entre os segundos o Lidador , que cumpriu o que prometera a Martim Eicha . Fernando Peres viu muitas vezes vacilantes as suas esperanças , porque os nobres companheiros do conde||_Henrique Henrique|_Henrique , vivendo havia tanto tempo na Espanha , começavam a confundir nos seus instintos políticos a ideia das instituições francas com a índole das tradições sociais visigodas , que sempre preponderaram na Península . A rainha expusera as pretensões do seu filho perante os barões : Veremudo Peres , irmão do conde de Trava , genro da rainha , e senhor -- Viseu , que viera assistir Ãquela espécie de parlamento , tomando a mão , invetivara furioso contra o infante , seu cunhado , e não poupara feros e ameaças contra os parciais dele . A cólera do Lidador não precisava de tanto para ser excitada , e palavras igualmente violentas saíram da sua boca em resposta Ãs de Veremudo Peres . Acusou o conde de vexames de todo o género e ameaçou também aqueles que o ameaçavam . Pouco a pouco o tumulto , começado pelos dois , dilatou-se e cresceu . As injúrias voaram de parte a parte , os ferros polidos dos punhais começaram a reluzir meio arrancados dos cintos , e a sala do conselho ia converter-se num campo de batalha , quando dois homens , talvez os únicos que pelo seu carácter público e ainda mais pela sua condição moral o podiam alcançar , atalharam as cenas de sangue de que os paços de Guimarães estavam a ponto de serem teatro . Quase ao mesmo tempo dois sacerdotes se alevantaram a pedir tréguas em nome de Deus . Era D. Telo , arcediago de Coimbra , um deles ; o outro , Fr. Hilarião , o bom velho abade do Mosteiro de D. Muma , que já o leitor conhece . Àquele dissera muitas vezes D. Teresa que assaz grato lhe seria vê-lo bispo da sua sé , a qual então se achava órfã de pastor ; a este , a predileção que sempre mostrara ao seu mosteiro e a ele em especial o jovem príncipe fazia crer com bom fundamento que não eram vãs de todo várias palavras que uma vez lhe ouvira soltar acerca não sabemos de que doação ao santo ascetério de Guimarães , de certa vila ou herdade , com cinquenta homens de criação , e os seus montes e pastos , fontes e lagoas , êxitos e regressos . Não os moviam na verdade estas circunstâncias que apontámos casualmente , a serem , D. Telo inclinado a favorecer a justiça da bela infanta , e Fr. Hilarião a justiça de Afonso Henriques . Pregoava-os o mundo por virtuosos : nós ajuntamos o nosso brado ao do mundo . Mas é indubitável que ambos eles estavam persuadidos de que o outro seguia uma causa má , e afligiam-se profundamente de verem assim a virtude desvairada e perdida no meio do campo contrário . Alguém que subitamente entrasse no lugar em que se ajuntara aquela espécie de parlamento e visse os dois sacerdotes , pálidos e trémulos , proferirem palavras de razão e de paz no meio do tumultuar e vozear dos ricos-homens e infanções , cujos olhos chamejavam de cólera , cujas mãos confrangidas apertavam os punhos dos bulhões que reluziam já meioarrancados , atribuiria forçosamente a sua linguagem melíflua e cheia de unção ao temor de serem vítimas indefensas dos brutais homens de guerra , se porventura o sangue começasse a correr , visto que nem a cogula do beneditino , nem a garnacha do arcediago eram apertadas com o cinto de couro recamado , que cingia os briais dos cavaleiros , e com que eles apertavam ao peito , da esquerda a espada , e da direita o punhal . Enganar-se-ia-, contudo , quanto a nós , quem a tais motivos atribuísse as palavras dos dois homens de Deus . Ainda cremos na virtude dos cultores da política : sabemos por experiência que a maior parte das vezes as suas expressões são singelas , e nascem de crenças muito fundas ; sabemos também que as suas opiniões são em geral desinteressadas , e que jamais é o medo que os incita a pregarem a concórdia e a paz . E se isto é assim nestes tempos de perversão moral , com bom fundamento afirmamos que eram puras e generosas as intenções daqueles dois ministros do Senhor , num século em que as doutrinas do cristianismo estavam vivas e a caridade era fervorosa e sincera . É certo , porém , que apesar das diligências que fazia cada um deles para aquietar o furor da respetiva parcialidade , por muito tempo o alarido dos cavaleiros , que se doestavam com bastas e grosseiras injúrias , cobriu as débeis vozes dos varões apostólicos . Finalmente foram ouvidos . A reputação de santidade de que ambos gozavam no seu bando , já se entende -- , porque em épocas de ódios civis as reputações facilmente tocam o extremo da profundeza , mas na extensão ficam sempre em metade ; essa reputação , dizemos , mais ainda que a força das suas ponderações , fizeram pouco a pouco asserenar a tempestade . Os ricos-homens , infanções e cavaleiros vieram enfim a uma conclusão razoável ; isto é , saíram dali cada vez mais aferrados Ãs suas opiniões , e sem concluírem nada . Um resultado importante produzira , todavia , aquela assembleia : as máscaras tinham caído de todas as faces : todas as equações políticas estavam resolvidas . Cada rico-homem sabia em qual das hostes havia de hastear seu pendão , e cada simples cavaleiro a que pendão se havia de unir . A sorte de Portugal ficava escrita nas pontas das lanças e nas puas das maças de armas . A cúria ia traçar a derradeira sentença à luz do céu no campo de batalha . como se fosse alheio aos acontecimentos daquele dia , o dissimulado e manhoso Fernando Peres saíra da cúria dos barões com o sorriso nos lábios e a raiva no coração . Ficara sabendo que o poder da rainha , ou antes o seu , quase exclusivamente se estribava no braço dos cavaleiros estranhos , e que a fidalguia dos dois condados -- Portugal e Coimbra , que ainda não erguera o estandarte da revolta , não tardaria a seguir o exemplo dos que já se tinham declarado pelo infante . Atribuía à influência de Gonçalo Mendes da Maia este sucesso , e o seu ódio contra ele tinha subido de ponto . O Lidador foi , portanto , aquele a quem neste dia mostrou mais prazenteiro rosto . Um banquete esplêndido havia de terminar a convocação da cúria ou cortes . As graves preocupações , que durante a manhã tinham ocupado oscortesãos e ricos-homens vindos Ãquela assembleia , deviam dissipar-se no meio das delicadas iguarias e das taças de vinho escumante . Na mesma sala de armas , onde na véspera ressoara o tripudiar do sarau , ia restrugir naquela noite o folgar do banquete , mais ruidoso ainda , porque nesse dia havia chegado a Guimarães grande número de fidalgos -- Galiza , que em Portugal tinham prestamos e alcaidarias da bela infanta , ou antes do conde de Trava . Os vastos aposentos do paço brilhavam com toda a pompa de um dia de festa na Idade Média . As calças de muitas cores , as plumas das toucas dos senhores , os ricos briais e cotas , onde já a armaria , que as guerras de ultramar começavam a converter em moda , estreara as suas divisas e bordaduras fantásticas , davam um aspeto de alegria Ãquele concurso , que debalde se buscaria nas reuniões modernas , monótonas e tristes em trajos como em quase tudo . Pelos eirados e miradouros , pelos adarves e torres do castelo , pelas frestas e balcões do palácio viam-se olhar , gesticular , correr , sumir-se , aparecer de novo , centenares de cavaleiros . As escadas , os pátios , referviam de escudeiros e pajens , que subiam , desciam , apinhavam-se e dividiam-se em agitação contínua . E o ruído e confusão não se limitavam ao castelo : as ruas e quelhas tortuosas do burgo sussurravam com o perpassar dos homens de armas , dos besteiros e da peonagem , que seguiam para toda a parte os ricos-homens e infanções , em maior ou menor número , segundo a graduação e poder de cada um deles . Era este um distintivo de nobreza que raras vezes o fidalgo daquelas eras esquecia , e muito menos quando era , como então se dizia , chamado a casa d' el-rei . Assim nestas assembleias políticas , donde nasceram as antigas cortes , mais frequentes do que geralmente se crê , a povoação destinada para elas oferecia um espetáculo de desordem e de motim impossíveis de descrever ; por tal arte que se inimigos tivessem tomado de assalto a cidade ou vila , onde tais cenas se passavam , a alarida não seria maior nem a confusão mais completa ; e a única diferença seria que neste último caso o sangue jorraria em tanta quantidade , como naquele jorrava o vinho , e os gritos de dor e angústia substituiriam os brados e risadas convulsas da embriaguez . No meio deste burburinho , por toda a parte atroador , mas infernal nas salas principais do paço , era notável o cuidado com que o conde de Trava procurava não perder de vista o Lidador . Se a alguém fosse possível reparar nisso , fácil lhe fora adivinhar os motivos de semelhante procedimento , depois do que se passara na cúria , e atento o carácter dissimulado , mas cauteloso , do conde . Era um inimigo que devia causar-lhe sérios receios , e , apesar das diligências que fazia para os encobrir sob um gesto festivo , lá se divisava no seu olhar inquieto o susto e a cólera que lhe ralavam o coração . Assim vigiando os passos de Gonçalo Mendes , Fernando Peres o tinha seguido de sala em sala , procurando escutar o que ele dizia nos diversos grupos de cavaleiros a que se ajuntava . mais de uma hora havia que o conselho se afastara , e ainda o conde não tinha deixado um instante de o ver e ouvir , quando um escudeiro do Lidador , rompendo pela turba dos fidalgos , se chegou ao seu amo e disse-lhe em voz baixa : -- Senhor , um peão , que afirma ser chegado há pouco da Terra Santa , pretende falar-vos e ao muito reverendo Fr. Hilarião . Diz que vos traz mensagens de amigos vossos , que ora andam em demanda do Santo Sepulcro . Um homem da sua reverência o busca por toda a parte , e eu vim entretanto avisar-vos . -- Um peão vindo da Palestina com mensagem a mim ? replicou o Lidador em voz alta . À fé que me parece estranho caso ! Não disse quem o mandava ? -- Não , meu nobre senhor -- respondeu o escudeiro -- , nem eu me esqueci de lhe&lhes+o perguntar : a sua resposta única foi que a vós , e só a vós , o diria . -- Bem ! Talvez assim lhe&lhes+o ordenassem . Proferindo estas palavras , o Lidador saiu , encaminhando-se para as largas escadas que davam para o grande pátio do castelo em frente dos paços . O conde de Trava percebera , posto que imperfeitamente , este diálogo . Um pensamento de desconfiança lhe passou pelo espírito , e o seu primeiro impulso foi continuar a seguir Gonçalo Mendes . Mas esta insistência era já demasiada e podia excitar as suspeitas do cavaleiro . Hesitava ainda entre o ir e o ficar , quando viu perto de si Tructesindo , seu sobrinho e o seu pajem , filho de Veremudo , e que muito lhe queria . Deus ou o demónio era quem ali- lhe&lhes+o enviava . Uma ideia lhe ocorrera subitamente ao ver o jovem . -- Ouve cá , Tructesindo -- disse ele ao gentil pajem , acenando-lhe com a mão e sorrindo . -- Que ordenais , meu senhor e o meu tio ? perguntou Tructesindo , chegando ao conde e cravando nele os olhos , em que se pintava toda a malícia possível num rapaz da sua idade . Fernando Peres afagou-o pondo-lhe a mão sobre a cabeça , donde se lhe esparziam em ondas sobre os ombros os louros e anelados cabelos . -- Apraz-te , meu sobrinho , o ver esta grão-peça de cavaleiros , que muitas vezes se acharam já em lides de mouros , e que outras tantas têm ganhado o preço de justas e torneios , e sido proclamados vencedores por formosas damas , ao som de címbalos e trombetas , nos jogos da argolinha e do tavolado ? Que me deras tu por ser um deles , e cingires uma espada e adaga ? -- Dera , meu bom tio -- respondeu o pajem -- , dez ou vinte anos de vida para se acrescentarem à vossa , e não vos daria nada . Bem podíeis vós , se quisésseis , armar-me já cavaleiro , como me prometestes para daqui a um ano . Tenho dezassete e os dezoito vêm tão tarde ! -- Por minha alma que respondeste avisado ! replicou o conde . Não quisera eu anos da tua vida para ajuntar aos meus , que de ora avante me vêm aborridos e trabalhados . Brevemente eu te armarei cavaleiro : talvez em poucos dias ao som do tinir de golpes em fera arrancada . Basta que a paga da minha mercê seja cumprires afincadamente o feito de que vou encarregar-te . -- E farei-lo de bom grado -- disse Tructesindo . Mandai , meu tio , que eu vos obedecerei . -- Um peão , vindo de longes terras , buscava há um momento Gonçalo Mendes da Maia e o abade de D. Muma . O cavaleiro e o monge devem ora estar com esse mensageiro lá em baixo . Acerca-te deles por meio do tropel que flutua apinhado por toda a parte , e procura saber quem é , o que quer , donde veio . Escuta também , se puderes , suas palavras . -- E depois ? perguntou o gentil pajem . -- Vem prestes dizer-me o que lá se há passado . Ligeiro como um gamo , Tructesindo desapareceu . O conde , chegando daí a pouco a um dos balcões da imensa sala de armas , viu ainda o Lidador e o abade que , encaminhando-se para uma viela , que corria entre os paços e o lanço ocidental da muralha , pareciam atentos Ãs palavras de um homem , cujo rosto ele não pôde bem divisar , porque o levava meio escondido no capuz de um amplo zorame de lã parda e grosseira , que quase até aos pés o cobria . Perto porém dos três viu Tructesindo , que fingia retouçar com os outros pajens , ora travando-se a braços com eles , ora fugindo com grandes apupos e risadas , mas girando sempre , como a borboleta ao redor da fogueira , em volta de Gonçalo Mendes , do desconhecido e do abade . Satisfeito da habilidade com que o seu pajem parecia desempenhar a comissão que lhe dera , Fernando Peres voltou-se para dentro sorrindo de contentamento . Achou-se então face a face com Garcia Bermudes tão triste no aspeto como nessa manhã o encontrara . Além disso , porém , no carrancudo do gesto dava mostras de que ideias muito graves o preocupavam . No seu ar o conde percebeu que ocorrera algum acontecimento extraordinário . -- Preciso de falar-vos à puridade -- disse Garcia Bermudes , procurando não ser ouvido dos cortesãos que perpassavam . -- Vinde comigo -- respondeu o conde de Trava no mesmo tom e travando-lhe do braço . À esquerda da sala de armas uma pequena porta dava passagem para extenso e escuro corredor , em cujo topo havia outra porta fechada : o conde tirou uma chave , abriu-a e , cerrando-a após si , os dois cavaleiros se acharam num a espécie de jardinzinho pênsil , assentado sobre uma alta arcaria , que ligava uma das torres do castelo com os paços da bela infanta . As câmaras desta , e os aposentos habitados pelas suas damas e donzelas , cercavam por dois lados este pequeno terrado coberto de flores e arbustos viçosos . Um desses engenhos árabes , que ainda hoje cobrem o solo da Península e fertilizam as nossas veigas e pomares , ministrava constantemente Ãquele ameno horto , de um poço profundíssimo talhado no rochedo em que repousavam os fundamentos do castelo , água cristalina , que ao cair num tanque de mármore sussurrava brandamente . Junto dele um salgueiro copado formava uma espécie de caramanchão sobre um banco de pedra . Foi para aquele sítio que o conde conduziu Garcia Bermudes , dizendo-lhe : -- Aqui podes seguro falar . -- Acaba de chegar um dos esculcas , que andam disfarçados em besteiros da beetria de Gontingem no arraial do infante -- disse o cavaleiro -- dá rebate de que a hoste rebelde caminha para estes sítios . O velho Egas Moniz de Riba de Douro veio a ela com cem lanças . São já perto de mil homens de armas os que D. Afonso capitaneia . Segundo se diz , ele pretende dar-vos batalha , e conta com alguns dos senhores da corte que espera tomem sua voz : o muito reverendo||_Martim_Eicha Martim|_Martim_Eicha Eicha|_Martim_Eicha a quem incumbistes juntamente comigo de introduzir aforradamente o mensageiro ao postigo de labrego , foi dar conta destas notícias à muito excelente rainha , enquanto eu vos buscava . -- Que esse louco jovem venha , e achará meus pendões tendidos no campo . Aí receberá o preço da sua ousadia insensata . Mas engana-se contando com os falsos que nos cercam . Conheço-os , e aos leais ! Eu deceparei o colo da serpente ... Gonçalo Mendes ! Gonçalo Mendes ! em hora aziaga vieste à corte , em hora aziaga te demoraste ! Garcia Bermudes , a infanta de Portugal , a filha dos reis -- Leão , acaba de escolher-te para seu alferes : a ti pertence o governo de todos os seus homens de armas . Ao acabar do banquete devem estar levantadas as pontes das barbacãs , estas guarnecidas de vigias , e em cada lanço uma rolda e sobrerrolda . A ninguém é permitido sair do recinto do burgo : nem a mim próprio . Alferes-mor de Portugal , são estes os mandados da rainha||_D._Teresa D.|_D._Teresa Teresa|_D._Teresa : vós fareis que sejam cumpridos à risca ! Ao proferir estas palavras , todas as paixões cruéis , tençoeiras , furiosas , que ferviam comprimidas no coração do conde , se lhe pintavam no demudado das faces , no trémulo dos lábios brancos , nas rugas profundas da cara carregada . Depois de um momento de silêncio , saindo arrebatadamente do caramanchão , prosseguiu : -- Se tendes mais que dizer , dizei-o . No momento do perigo nunca hesitei . Tereis uma resolução pronta . -- Só que obedecerei pontualmente ao que ordena minha senhora e rainha -- respondeu o novo alferes . Neste momento um vulto apareceu no limiar da porta entreaberta por onde os dois tinham entrado . Era o bufão , que olhava fito para o Sol que se punha , fazendo-lhe visagens e cantarolando sem reparar nos cavaleiros : Diabo ! ... Engolfado na sua trova , Dom||_Bibas Bibas|_Bibas , a quem algum génio avesso impelira a escoar-se pelo corredor escuro e a entrar no jardim , voltara de repente a cara e dera ao pé de si com os dois cavaleiros que o escutavam . -- Que dizias tu de Dulce , bufão ? perguntou o conde com gesto severo e lançando de relance os olhos para Garcia Bermudes . O bobo leu no aspeto de Fernando Peres que se achava num daqueles trances arriscados , em que as suas injúrias em vez de aplausos só lhe acarretavam maus tratos . Todavia o dito estava dito . Pôs-se a mirar os balegões dos cavaleiros : eram de pele de gamo e de sola delgada , revirados na ponta em compridos bicos , segundo a moda do tempo . Fez rapidamente o seguinte dilema : ou a extrema ousadia me salva , ou o que já disse me perde . Em todo o caso , preso por mil , preso por mil e quinhentas . Avante ! E fazendo uma profunda cortesia respondeu : -- Dizia esta humilde criatura que vós , muito nobre D. Garcia , sois parvo em perseguir com os vossos ridículos amores a minha boa Dulce ; e que vós , senhor conde de Galiza , nos faríeis especial mercê em irdes visitar as corujas do vosso castelo de Faro ... -- Dom||_Bibas Bibas|_Bibas ! interrompeu o conde . O bobo continuou : -- Deixando , com os vossos galegos brutais e com os vossos aragoneses estúpidos , os nobres paços de Guimarães Ãquele que os herdou do seu pai , o tio||_D._Henrique D.|_D._Henrique Henrique|_D._Henrique , antigo truão da minha corte ... -- Dom||_Bibas Bibas|_Bibas ! atalhou de novo o conde , cuja cólera tinha chegado ao seu auge , sorrindo ferozmente os que te enviaram para me dizeres o que eles guardam nos corações covardes esqueceram-se de vestir-te um saio de malha bem estofado ! ... Neste momento abriu-se uma das portas dos aposentos da bela infanta , e o capelão Martim Eicha , acompanhado de dois donzéis de D. Teresa , dirigiu-se para o conde : -- Senhor de Trava -- disse o reverendo cónego -- , a rainha quer imediatamente falar-vos . -- Eu ia pedir isso mesmo -- respondeu o conde . Mas antes de partir quero mostrar a traidores , na punição do seu mensageiro , que também saberei puni-los . Donzéis , arrastai este miserável daqui , e entregai-o ao vílico do castelo , que o mande açoutar pelo mais robusto dos meus cavalariços , até que o sangue lhe brote das costas , como da língua vilíssima lhe brotam insolências alheias . O pobre Dom||_Bibas Bibas|_Bibas tinha errado completamente o dilema , por não meter nele os tagantes ou tiras de couro cru com que se castigavam os homens de criação , e que ele nunca provara . Posto que já com voz trémula , tentou ainda uma bufonaria , e atirando ao chão aquele seu vulto de pipa pôs-se a gritar : -- Não , que eu não vou ! -- Donzéis , obedecei ! bradou o conde , encaminhando-se para os aposentos da infanta . Dom||_Bibas Bibas|_Bibas desenganou-se então de que o caso era sério . Dando largas ao temor , arrastou-se após Fernando Peres , exclamando com todos os sinais de viva aflição : -- Piedade , senhor conde ! Prometo . O conde desaparecera . -- Levai-o , donzéis ! -- disse o novo alferes-mor . -- Também vós , Garcia Bermudes ? Não ! não ! vós me-destes ... Garcia saíra pela porta fatal do corredor escuro , que fora a perdição do bobo . Só ficara ali o cónego de Lamego , que parecia observar como os donzéis executavam as ordens do conde . Estes , de feito , tinham posto mãos violentas no roliço vulto do respeitável Dom||_Bibas Bibas|_Bibas e , travando-lhe cada qual do seu braço , se assemelhavam a dois mastins pouco dispostos a largar a preia . O bufão com voz truncada de soluços acorreu-se então à ténue e última esperança que lhe restava . -- Assassinos malditos , deixai-me ! gritou ele dando um empuxão aos dois jovens que levou após si . E , agarrando-se à garnacha de Martim Eicha com toda a ânsia do susto e da desesperação , começou uma ladainha de súplicas : -- Boníssimo e reverendíssimo senhor capelão-mor , que a vossa virtuosa reverência valha a um miserável jogral , que a terra diante os vossos pés beija ! É dos caridosos e de grande coração perdoar aos que os ofenderam . Eu tenho pecado contra vós . Peccavi ! Estou contrito . Contritus sum ! Pedi por mim , santíssimo e venerabilíssimo padre . Ninguém me incitou para dizer o que disse . Foi o diabo que me tentou . Abrenuntio ! ... Podeis asseverá-lo ao meu ilustre senhor , o nobre conde de Trava ! ... -- Filho -- respondeu Martim Eicha , fazendo um ademã entre hipócrita e de escárnio -- , o castigo é muitas vezes caminho para o arrependimento . Resigna-te , meu filho . Se nisso não houvera vanglória , te-que no sofrimento de injúrias podias aprender de mim a ser resignado . Proferindo estas palavras , Martim Eicha alcançara soltar o vestido das mãos do bobo , e com um sorriso de vingança satisfeita , seguira os vestígios do conde . Dom||_Bibas Bibas|_Bibas perdeu a derradeira esperança . Então o excesso do terror e da desesperação produziu naquele espírito , onde por anos se desenvolvera e alimentara constante irritação , uma destas revoluções morais em que , no meio de tormentosa crise , o homem se transmuda em outro homem . Ergueu-se , e com gesto desvairado bradou : -- Está bom ! Ninguém se compadece de mim ! Serei açoutado como um vil servo judeu ! O bobo receberá essa afrontosa pena ;