Crónica do século XIV António José Coelho Lousada A MENSAGEM DE+O MESTRE Era uma estranha romaria aquela , para quem não tivesse notícia dos alvoroços a que a morte de Fernando I e o casamento de Beatriz em Castela tinham dado causa , a que a meados de Maio de mil trezentos e oitenta e quatro , saía pelas portas da cidade do Porto que davam sobre o rio , e pela chamada Porta Nova . Se fosse fácil conduzir o leitor a ver do alto das torres que a defendiam aquela gente , acreditaria que ele tinha invadido algum arsenal a procurar disfarce entre o guerreiro e o burlesco . Um soldado cobria a cabeça com um elmo adamascado , e , mostrando os joelhos através do grosso estofo das calças , com pés descalços pisava a areia onde o montante que arrastava deixava um sulco ; um outro , parecendo ter em menos conta a cabeça do que o peito , abrigava o peito numa couraça mais que farta , e deixava a cabeça ao sol e ao vento ; este , vestindo apenas umas calças , se assim se podia chamar um cerzido de trapos , trazia suspenso de funda um escudo de couro , onde em tempos estivera pintada ou divisa ou brasão , pois não era já fácil adivinhar o que fora ; de um cinto leonado pendia de um lado um estoque , do outro um punhal , e , como se não bastassem estas armas de ofensivas , empunhava um chuço enorme ; aquele levava um bacinete amassado e um gorjal ferrugento , e tinha por cinto de grosseira jorneia uma funda , o provimento da qual , como se não fora uma arma fácil de encontrar a cada passo , pesava num saco lançado aos ombros : De tempos a tempos o bom povo , como lhe chamava o mestre de Avis , abria aqui lugar a um cavaleiro acobertado de ferro desde os pés à cabeça , seguido dos seus pajens , ou escudeiros , além a outros mais esquisitamente vestidos pelo antiquado das armas , ou pelo incompleto . Havia capacete que , se Cervantes o visse , não o deixaria ser original descrevendo o que deu ao seu herói no princípio das peregrinações ; peitos de aço polido , espelhando o sol , que disparatavam com umas grevas desconjuntadas , enegrecidas , remendo visível ; feixes de armas que desdiziam umas das outras pelo valor , casando-se a facha grosseira com um estoque cuja bainha acobertavam ornatos de prata , montantes de Toledo e adagas grosseiras . Os cavalos iam uns cobertos de ferro , outros apenas com os arreios necessários para se poder cavalgar , e não poucos dos cavaleiros , e aos pares até , montavam em mulas . Os cidadãos que assim sobrecarregavam os pobres animais , costume vulgar por esses tempos e por muitos outros , vestiam em geral a garnacha negra , distintivo dos doutores e físicos . Com este mesmo traje , porém arregaçado pela ponteira da espada , deixando ver a calça de duas cores e o borzeguim pontiagudo via-se três ou quatro aspirantes Ãquela distinta classe de médicos e letrados , e com eles alguns monges , que também se mostravam afeitos ás armas pelo modo como seguravam o punho da espada e cobriam a tonsura com o bacinete . Um dos cavaleiros mais bizarros da romaria era também um eclesiástico ; pelo menos assim o demonstrava um roquete , que sobre armas soberbas vestia em vez de brial : De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas , as torres , os eirados e soteias nada havia nesta procissão ; de marcial havia muito , tudo , a avaliar pelo entusiasmo com que a saudavam , e pelos vivas que se juntavam ás saudações : Tinha decorrido uma boa hora desde que correra na cidade que umas galés demandavam a barra , e , posto que tivesse quem afirmasse logo que eram portuguesas , como dos de casa havia tanto a recear como dos estranhos , todos se tinham prevenido para as receber . Um pajem levara já a Aires Gonçalves e ao bispo D. João a nova de que eram expedidas pelo mestre de Avis ; porém estes senhores eram então autoridades quase nominais , e deixavam por tanto , para não perderem o tempo , fazer a sua demonstração aos bons cidadãos e aos cavaleiros que não eram das suas casas , criação , ou serviço : Ideia de que no século décimo quarto era uma guerra civil , acompanhada de uma invasão estrangeira , nem todos os que passam os olhos por este capítulo farão . Hoje hasteiam-se duas ou três bandeiras , ou mais , se quiserem , mas , o primeiro ímpeto passado , a máquina civil lá vai funcionando pior ou melhor por conta dos governos provisórios ; naqueles tempos , porém , ninguém se entendia por vezes . Cada fidalgo levantava o seu troço de gente e vendia e revendia a espada ; hoje era ao serviço de um , amanhã ao de outro ; os alcaides dos castelos , a maior parte dominando as povoações principais , juravam preito e perjuravam todos os dias , e as municipalidades lançavam , bom ou mau grado , pela manhã um bando em favor de um monarca e à tarde aclamavam outro . No meio desta bela ordem havia caudilho que dava em ambos os partidos beligerantes , e sobretudo nos pacíficos , aventureiros que se batiam por si e para seu proveito . Na menoridade do pai do regedor , como modesta e arteiramente se apelidara o irmão bastardo de D. Fernando , e em quase todos os reinados antecedentes , a província -- Entre Douro e Minho tinha tido a sua amostra destas amabilidades ; mas o que a gente da ordem chama revolução e revolução politica não estalara em tempo algum como agora . Até aí o povo contentara-se , salvo um ou outro caso , com evitar a ponta da lança dos nobres senhores e o virote dos seus homens de armas , e ainda mais de lhe franquear as arcas e de correr os cordões da bolsa , o que raras vezes conseguia . Os burgueses do Porto , o mais desinquieto povo de toda a província e do reino , tinham já dado mostras da sua força aos bispos Martinho Rodrigues e Vasco Martins , porém , nestas revoltas se entrava política era acobertada : eles não davam por tal . Desta vez o exemplo da capital fora-lhes contagioso , e mesmo sem tão bons motores como Alvares pais , desempenharam a sua tarefa por tal arte , que se pode dizer , que a lei porque se governavam era a sua . Aires Gonçalves de Figueiredo , o governador de Gaia admirara da outra margem a valentia dos pulmões dos partidários do novo governo , e , posto que não estivesse bem seguro das suas ideias quanto à legalidade da regedoria , e preferência de direitos do mestre de Avis sobre os do infante , dos deste sobre a irmã , ou vice-versa , para não lhes avaliar as iras também , contemporizara , soltando as mesmas aclamações . Na cidade havia um caos . Os vereadores governavam ; governavam os juízes do povo e o juiz real ; governavam os chefes das corporações ; governava , porém menos , o bispo e os seus meirinhos ; governavam até , ou mandavam , os prisioneiros , ou tidos por tais , como era o conde||_D._Pedro_de_Trastâmara D.|_D._Pedro_de_Trastâmara Pedro|_D._Pedro_de_Trastâmara de|_D._Pedro_de_Trastâmara Trastâmara|_D._Pedro_de_Trastâmara , que no campo de Coimbra tivera as suas aspirações à coroa de Portugal , e a ser o terceiro marido legitimado de Leonor Teles ; finalmente , mandavam todos , se a mais ninguém fosse , cada um a si : Do pequeno povoado que ficava extramuros , composto de uma mescla de arménios , que nove anos antes tinham deixado cair o trono de Livónio , o seu último rei , aos golpes de espada do sultão do Egito ; de gregos da Asia , escapados à fúria dos soldados de Amurat ; de flamengos e genoveses aventureiros , de mouros , os cultivadores da encosta em que o bairro se abrigava ; da pequena povoação , do bairro Arménio , aumentado ainda depois da tomada de Constantinopla com os piedosos guardas de S.||_Pantaleão Pantaleão|_Pantaleão , juntava-se à procissão saída da Porta Nova uma multidão de curiosos , que pela variedade de vestuários , lhe vinha dar realce . Como em tais casos sucede , toda esta gente se embaraçava na marcha , peões a cavaleiros , cavaleiros a peões ; todos falavam , todos tomavam e davam concelho , e perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro encontrado uma versão correta e aumentada com reflexões de lavra própria e estranha . O espaço que se estendia desde os muros até onde a Arrábida deixava apenas um caminho de cabras , aberto na rocha para quem se quisesse dirigir à Foz do Douro , não foi pois transposto em menos de uma hora , pela vanguarda : uma grande parte do exército nem lá chegou . Os primeiros que encontraram uma das galés subindo o rio , gritaram para os tripulantes que lhes dissessem por quem vinham , e como estes respondessem que pelo Mestre , sem mais atenderem , voltaram atrás , dando vivas , como se fosse aquilo reforço inesperado , que os viesse tirar de apuros : Nas galés não vinha reforço algum para os do Porto , única terra de importância ao norte do reino , que não aceitara como rei o marido de Beatriz , e tinha a braços setecentas lanças e dois mil infantes do arcebispo de Santiago e de outros senhores castelhanos e portugueses , sem contar os aventureiros de Fernando Afonso , que não eram nem uma coisa nem outra : D. João de Castela , feita em Santarém a cessão dos direitos à coroa por D : Leonor , a troco de vinganças prometidas no povo de Lisboa , que a respeito dela e em rosto esgotara um vocabulário imenso de nomes , de que Fernão Lopes dá uma amostra , e a mimoseara com pedradas ; D. João , resolveu-se , senão a cumprir o ajuste , pois se malquistara com a ambiciosa sogra por causa de dois judeus , a destruir a rebelião , como ele lhe chamava , no foco , e avançara até o Bombarral , ao passo que aprestava uma armada que , fechado o assedio por terra , cerrasse também as comunicações por mar : Os arredores de Lisboa talados , as povoações saqueadas não podiam abastecer de víveres os sitiados ; entre eles e Coimbra estavam os exércitos inimigos , portanto recorria-se ao Porto , pedindo também um reforço de navios para impedir que o Tejo fosse bloqueado . D. Lourenço , arcebispo de Braga , azafamara-se para armar as galés que deviam levar estes socorros , e o mestre de Avis encarregara Rui Pereira de uma missiva , em que aos bons burgueses se prometia mil regalias ; pois D. João aceitara o conselho de dar tudo o que lhe fosse possível dar , e prometer até o impossível : Os vivas e o apêndice a todo o entusiasmo político de morras , naquela quadra aos castelhanos , aos traidores e aos loucos , prolongaram-se até que as galés em que vinham Rui Pereira e Gonçalo Rodrigues vararam perto dos muros da cidade e começou o desembarque destes e outros ilustres personagens , e ainda maior foi a algazarra quando o estandarte real apareceu : O conde de Trastâmara , como primo do rei -- Castela , não era dos coristas mais fracos deste grande coro desafinado , e fora dos primeiros cavaleiros que se apearam para receber os reais mensageiros , com toda a cortesania . O povo sem fé naquela conversão e pouco acatador nesse momento das esporas de ouro , das cotas bordadas e cimeiras historiadas ; o povo , deixando escapar desses epigramas de que ele possui o molde particular , em vez de lhe abrir caminho , cerrava-se na sua passagem , fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisonjeiro que tencionava pregar a Rui Pereira . Rui era uma notabilidade , como hoje se diz ; porque então ainda se não tinha inventado as notabilidades , nem muitas outras coisas . Desde que explicara ao mestre de Avis a opinião do povo a respeito da rainha||_Leonor Leonor|_Leonor , notando que quando andava para casar com a sua mulher , falavam todos em que se queria casar com Violante Lopes , e depois de casado ninguém mais de tal falara ; depois , sobretudo , que dera o golpe de mercê ao conde valido , abaixo do seu sobrinho , dos homens de espada com valimento na corte , era o primeiro , e para quem estava nas circunstâncias de D. Pedro , portanto , pessoa que era prudente lisonjear : Já então , como se verá no decurso desta narração , se atendia a conveniências : Em quanto os mesteirais e burgueses embaraçavam o conde , Martim Gil , abade de Paço de Sousa , substituía-o dignamente com duas rajadas de latim , a substancia do todo , que o mensageiro perdeu por não entender a língua de Cícero , e uma enfiada de períodos em português garrafal , que entenderia perfeitamente , se a algazarra tivesse cessado . Rui Pereira satisfez-se com ver abrir e fechar a boca ao reverendo , e respondeu a toda esta eloquência , fazendo-lhe um ponto no meio do recado , perguntando onde havia de pousar : Martim Gil indicou-lhe todas as boas casas da cidade desde os paços da Sé e o convento de S. Domingos , até algumas das vivendas particulares , e o tio de Nuno Alvares escolheu S. Domingos , mostrando mais pressa de descansar dos incómodos do mar , que de dar conta da sua missão . O abade tentou então dar à entrada na cidade dos passageiros e tripulantes da galé de Gonçalo Rodrigues , e das outras que iam aproando ao longo da praia , um todo processional , porém lutava em vão ; que era até dificultoso fazer desembaraçar os sítios de desembarque , onde o povo se apinhava , se acotovelava sem dar descanso ao pulmão . O Douro não tinha ainda , nas suas soberbas , arrojando as terras roubadas nas campinas de encontro à praia ; tornado esta tão larga como hoje ; nem os homens tinham com parapeitos avançado sobre o leito daquele . O espaço existente logo além de portas , onde havia povoado , era tão limitado , que , a distância , parecia que as edificações tinham para a água serventia , como os da cidade das lagunas , a rainha do Adriático ; o estado de exaltação , e ânimo revoltoso ou independente dos burgueses e vilões , porém , até em lugares mais espaçosos tornava difícil a empresa do abade : Rui Pereira , apesar de ter presenciado em Lisboa a revolta popular , fazendo parte dela ele mesmo , não o era tanto que levasse a bem aquela sem-cerimónia dos portuenses , e lançando sobre os mais próximos um olhar pouco amável , reprimindo a custo a vontade que tinha de mandar abrir caminho a prancha de espada e conto de lança , lamentava in mente os bons velhos tempos que já então havia bons velhos tempos em que a coisa " peão " descortinando a vontade no gesto de um rico homem , logo obedecia sem mais tugir ou mugir : Graças à intervenção dos juízes do povo e real , que , avisados da chegada dos navios e de quem eram as pessoas que eles conduziam , vinham para as acomodar em pousada decente e fazer todas as honrarias , que em tal caso competia , o embaraço terminou . As três autoridades , duas municipais , uma real , duas de muros a dentro , outra ribeirinha , foram felizes , deve-se confessar , naquela ocasião , por não haver conflito de poderes , nem recalcitração dos governados , o que era raro , e deveram esta felicidade a estar satisfeita a curiosidade dos burgueses , e não ser preciso empregar barqueiro ou pescador algum na amarração dos navios . A procissão começou pois a mover-se pelas estreitas ruas da cidade , e , em vez de parar em S. Domingos , seguiu até à casa da camara no meio sempre de grandes aclamações ao mestre de Avis , defensor e regedor do reino , e morras aos castelhanos hereges , loucos e traidores , o que fazia tragar sem réplica a Rui Pereira o cerimonial amofinador a que o submetiam os edis portuenses , e a pressa que tinham de saber em que podiam servir a sua senhoria , o futuro rei : Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente levado pela porta , que tempos depois deu a um poeta com o nome um trocadilho para um requerimento em verso , no marulhar de curiosos e patriotas que se empuxavam , forcejando por abrir caminho para aquele gargalo , um burguês que tornava respeitável o sisudo do traje , uma barriga proeminente , onde batia uma gorda bolsa de couro e um esguio punhal , cabelo branco , patrioticamente cortado , lutava para não ser levado na corrente , dando mostras pelo inquieto do olhar que procurava alguém . A força da corrente era grande , porém , e arrastou-o pouco a pouco até junto de uma das torres de defesa , onde a ressaca o fazia tomar todas as direções e posições possíveis no meio dos gritos das mulheres abafadas , das crianças trilhadas , do estalar das armaduras , que , permita-se a imagem , eram os crustáceos que as ondas daquele mar lançavam de encontro ás rochas . Mestre Gonçalo Domingues suava por todos os poros e formava com os cotovelos um amparo ao abdómen e quebra-mar à maré , receando ser litografado no muro , resmungando ao passo uma ladainha contra o causador daquele desastre , segundo se lhe afigurava , um sobrinho que o acompanhara momentos antes , e que perdera de vista . Resolvido já a deixa-lo pela sua conta , pois não estava já em idade de se perder , e a escapar-se daquele aperto , começava a recuar , servindo-se dos cotovelos como de uma alavanca , quando sentiu umas mãos calosas pousarem-lhe no ombro , sustendo-o na marcha . Sentindo aquela resistência , sem ver quem a opunha , pois lhe era impossível voltar o rosto , e receando de novo ser levado para o muro , empregou contra o individuo que assim lhe cortava a retirada um cotovelão , que estava na razão direta da força que o impelia : tudo isto acompanhado por uma praga : -- Más terçãs te colham , cabeça de bugalho ! A praga a meio , e uma das mãos a erguer-se a descer fechada em murro , estourando no costado de mestre Gonçalo Domingues , que soltou um regougo , cambaleou e perderia decerto o equilíbrio , se um mesteiral , que estava na frente , o não amparasse na queda . O burguês , incomodando com o peso o seu primeiro ponto de apoio , este o sacudiu para um dos vizinhos , que o recambiou sobre o homem do murro , apresentando-lhe&lhes+o de cara : -- Se te apanhara aqui , maldito ! disse a exclamar mestre Gonçalo , soltando outro gemido : punha-te as orelhas a fumegar . Tu mas pagarás ! Esta exclamação a meia voz , dirigida ao ausente sobrinho , foi intercetada a meio pelo homem de murro , um marinheiro , que , vendo o rosto aflito do bojudo cidadão , se contentou com dar-lhe um grande encontrão , resmungando , como gozo que vê em perigo o osso que esburga : -- Pois junte lá mais isso à conta , meu baleote : Mestre Gonçalo estava afeito a ser mais bem tratado intramuros : doeu-se da chufa dirigida ao seu físico pelo marítimo , e fez-se mais vermelho do que estava ; fez-se roxo , se pode dizer , desde a raiz do cabelo até aos queixos , mas não reagiu . A sua índole era pacífica , apesar do punhal que o acompanhava ; e para além disso , não via perto de si senão caras desconhecidas e rostos queimados pelo ar do mar , que podiam ser de vassalos da coroa , e estes , posto nessa ocasião estivessem em harmonia com os vassalos da mitra , e já um pouco apagadas as divisões antigas , era de crer que por ele não tomassem partido . Contudo , não se ficou , sem responder : -- Se não está bom , deite-se , ou vá travar razões com petintais , espadeleiros ou outra gente da sua igualha ; não se meta com quem não se mete consigo : -- Olhem o outro ! resmungou o marinheiro ; abalroou-me com os cotovelos pelos peitos , e diz que se não mete com a gente ; traz aquela cara que parece mesmo um odre a rever , e grita que um homem cá está toldado ! Gonçalo Domingues , doendo-se da nova zombaria , tornou mais apropriada a imagem do marinheiro , e cerrando os punhos exclamou : -- Veja como fala ! -- Graças a S. Pedro ; meu advogado , redarguiu o homem do mar , levando a mão ao barrete não é fácil de dizer se em atenção ao santo- apostolo , se em cortesia zombeteira , pelo esgar que fez , ao senhor||_Gonçalo Gonçalo|_Gonçalo graças a S : Pedro , falo sem trave . E não me faça biocos nem arremessos , acrescentou com ar mais carregado : que , se me sobe a maré aos cascos ? ! . . : -- Que é lá isso , mestre Gonçalo ? perguntou quase ao mesmo tempo um cidadão de pouco menos idade que o interrogado : -- É este excomungado , que se meteu onde não era chamado , e me pôs a paciência em maior apuro do que já a trazia : -- Excomungado é ele ! resmungou o marinheiro , recambiando o apodo que lhe fora dirigido , e fitando ora o novo , ora o antigo interlocutor : -- Olhe , mestre Gil , disse o burguês rubicundo , dirigindo-se ao recém-chegado ; ia eu amofinado por causa daquela cabeça de vento do meu sobrinho . . : -- E que tenho lá eu com o seu sobrinho ? disse o marinheiro : -- Isso mesmo queria eu que me dissesse ! acudiu o senhor||_Gonçalo Gonçalo|_Gonçalo : E , voltando-se para o seu colega , continuou : -- Ia eu , como lhe dizia , amofinado , porque o maldito do rapaz se me escapou ora sei eu lá para onde ! e não sei que digo de mim para mim , quando essa criaturinha , como se não tivesse da sua igualha mais com quem desenferrujar a língua , travou-se de razões . . : -- Isso nada vale , mestre Gonçalo ! atalhou o homem a quem vimos dar o nome de Gil , dirigindo-se para o galeote , que lhe voltou as costas , fazendo uma careta muito expressiva para um companheiro , que , com uma mão pousada no ombro dele , parecia , na posição que tomava , querer dizer que ali estava para ir ao seu auxilio , se preciso fosse , que não era : O gordo burguês , vendo o antagonista voltar-lhe as costas , desafogou contra ele , com o seu amigo , a cólera , que o ameaçava com uma apoplexia ; e em seguida desafogou também a respeito do causador , o estouvado sobrinho , que desaparecera . Apesar de ter escoado a multidão pela porta da cidade , de estar já desembaraçado o transito , à volta dos altercadores havia uma reunião de curiosos , como de costume , cujo núcleo era uma boa dúzia de garotos pertencentes , pelo que dos trapos vestidos se divisava , a três religiões ; pelo tipo , a três raças , e ao qual se juntavam por um segundo , que mais não fosse , os arrastados daquela procissão e todos os que por ali o acaso conduzia . Uma velha que regressava aos lares com os aviamentos para a ceia , comprados na tenda de ao pé da porta , soalheiro do bairro , não escapou , apesar de carregada , à força atraente das lamentações de mestre Gonçalo ; e , sabida a causa destas , se apressou em dar-lhe remedio : -- Quer saber do seu sobrinho que esteve no convento , mestre Gonçalo ? Bem se vê que o rapaz não tinha queda para os latins e o hábito ; aquilo é um levantado ! Tome sentido com ele , mestre ! Agora o vi eu a correr pela betesga que vai por pé da casa de João Ramalho . A modos que ele . . : A reflexão da velha , se na frase ficou incompleta , não o ficou no gesto . A tradução deste era que o rapaz começava a inclinar-se ás saias . ( Como demos a tradução , juntaremos , em nota intercalada no texto , que a boa santinha parecia , no ar malicioso que tomou , recordando-se dos seus tempos , ter deles saudade . ) Gonçalo Domingues , sem mais atender à mulher da alcofa , tomou a direção do sítio indicado como o seguido pelo sobrinho , resolvido a descarregar nele o mau humor excitado pelo seu desaparecimento , pelos apertões que levara , o cortejo que perdera , e , sobretudo , os ápodos e murros do galeote . enquanto para lá se dirige , ruminando aquelas passadas atribulações , saibamos o que fazia o travesso rapaz : Como já viu o leitor , no antecedente capitulo , no tempo em que estas coisas sucediam , as habitações , em Miragaia , estavam mais perto do rio , ou melhor , o rio corria mais perto das habitações . Entre S. Pedro e os muros , havia , no espaço que abre a montanha , algumas betesgas , de que ainda se conserva uma amostra , povoadas umas , outras correndo entre cercados e muros ; em outros sítios , um fraguedo deixava apenas o lugar preciso para algum carreiro não muito viável . A povoação cerrava-se , apinhava-se mais para o pé da velha igreja de S. Pedro , e rareava progressivamente para o oriente e poente . Perto dos muros , havia tão somente uma fieira de casas à beira de água ; depois o declive rude do monte onde se edificou o convento dos Agostinhos , coberto de silvados e mato , que vinha angustiar mais o passo para a cidade . Onde se tornava mais suave a encosta , subia um carreiro , que , depois de serpear por detrás de algumas das moradas do bairro do rei , se bifurcava , levando um braço a uma daquelas ruas , lançando outro pelo monte , serventia a casais que se comunicavam igualmente com a cidade pelo lado do Olival . Por este carreiro É que tomara Fernando , ou Fernão Vasques , o sobrinho do senhor||_Gonçalo_Domingues Gonçalo|_Gonçalo_Domingues Domingues|_Gonçalo_Domingues , mal viu absorvida a atenção deste nas galés reais e os seus passageiros . O rapaz correu por algum tempo sem tropeçar , para o que preciso era estar bem afeito a trilhar semelhante caminho , e só afrouxou o passo quando se aproximava de uma casa de boa aparência , cuja frente dava para a praia , habitação de uma das notabilidades do bairro , e que o foi depois , na história , do piloto e mercador João Ramalho : A casa para o lado do rio nada apresentava de notável na fachada : era um edifício de madeira como muitos dessa época ; para o lado do monte , porém , era bastante pitoresca . A parte inferior escondia-se num a moita de arbustos de um pequeno cercado , onde também se levantavam algumas árvores de fruto , uma das quais , rompendo , com um braço lançado à flor da terra o muro de pedra insossa , sacudia sobre o caminho a folha , a flor e mesmo o fruto , se a gula dos garotos esperava pelos efeitos do tempo . Acima do verde dos arbustos descortinava-se uma varanda de pau , onde , no parapeito , davam passagem ao ar e à luz aberturas simétricas , figurando folhas de trevo , e na parte superior , zelosias em xadrez , tudo pintado de encarnado vivo e verde esmeralda , com que realçava o branco que tingia o tabique . De ambos os lados da varanda descia uma escada , cujos mainéis se perdiam entre os arbustos , depois de se ligarem num patamar , ao centro , para de novo se separarem , formando da sorte um corpo saliente na fachada . Por cima da varanda abriam-se duas janelas , todas lavradas , ornadas de zelosias também , e tendo por baixo , sobre traves salientes , em cada uma das quais artista rude esculpira um animal sonhado , dois caixões com terra . num , apar do qual duas longas canas formavam um estendal , onde se via roupa a secar , a providência doméstica semeara salsa e a precaução contra feitiços dispusera um pé de arruda ; no outro , havia um pé de amores perfeitos e outro de madressilva marinhando por cordões passados para o guarda-chuva de madeira que os abrigava : Quando Fernando Vasques se aproximou da casa , depois de alguns assobios , entre a trepadeira e por cima dos amores , apareceu , aberta a zelosia , uma cabeça bem própria para encaixilhar entre aquelas flores . Imaginai um rosto oval , de uma carnação que se não podia dizer branca , mas a que se não podia chamar trigueira , porque o não era ; uma palidez , sem ser dessas que denunciam uma natureza enfezada , doentia ; uma palidez que lhe dava um todo de brandura , de carinho , que fazia por vezes realçar um carmim vivíssimo e traía um olhar travesso , de travessura infantil , inocente ; imaginai uma boca de um lindo desenho , formando em cada extremo uma covinha engraçada ; uma boca que parecia sorrir sempre , mesmo quando a cara pensava ou lágrimas desciam pelas faces ; imaginai que o nariz fora modelado pelo de uma estatua antiga , e imaginai , sobretudo , uns olhos castanhos rasgados , assombrados por uma franja de cileias tão cerrada , que pareciam negros como a baga do loureiro ; uns olhos , enfim , expressivos , verdadeiros espelhos de alma , como lhes chamam os poetas , e tereis uma ideia das feições de Irene : Esta encantadora cabeça enfeitava-se com o mais soberbo cabelo que se pode ter aos quinze anos ; negro , longo , sérico , ligeiramente ondeado . Para maior realce da cor , parecia feita à moda que vogava . As tranças , que vinham pousar no colo , alvo como marfim , eram intermediadas por fitas de lã de um vermelho vivo , que se cruzavam depois na cabeça e vinham cair soltas , dos lados , terminando em pingentes de metal dourado : As leis que faziam distinguir , pela cabeça , as solteiras das casadas e estas das viúvas caíam em desuso : A filha de João Ramalho , apesar da curta idade , era uma beleza . O sangue da sua mãe , uma dessas belas jovens da Asia , em que se confundiam dois tipos , o grego e o arménio , predominando , desenvolvera aquele corpo garboso ; dera-lhe na adolescência o acabado , a morbidez que só mais tarde , em geral , em outra idade se alcança . Com o corpo desenvolvera-se o espirito : desenvolvera-o a esmerada educação materna , que distava bem da vulgar entre a nossa burguesia naqueles tempos , e os carinhos da boa mulher , que o senhor||_João João|_João não compreendia bem , entretido sempre nas suas viagens e rude , voltados todos para aquela filha única , em que se embelezava cultivando-lhe o coração , aformosearam-lhe a alma . Uma bela alma faz um rosto , senão formoso , amável ; a inteligência reproduz-se nas feições como aureola que lhes dá realce ; a natureza , já o dissemos , fora madrinha e não madrasta para com Irene : a bela menina , reunindo , pois , todas as formosuras , despertava a admiração e o amor ao mesmo tempo . A impressão produzida no sobrinho de Gonçalo Domingues fora esta , e que o amor naquele peito tinha boas raízes , dizia-o a confusão em que ele ficou , mal à janela apareceu a gentil cabeça : Fernando , um rapaz jovial e resoluto , como o diziam uns olhos castanhos cheios de fogo , um nariz ligeiramente curvo , os lábios delgados , acentuados na extremidade por um ligeiro buço ; Fernando baixou os olhos , fez-se vermelho , sentiu que os joelhos se dobravam , enfraquecidos , e , sem se atrever a fitar de novo aquela aparição , bom tempo gastou em puxar o barrete de um para o outro lado da cabeça e amarrota-lo nas mãos , nem criança bisonha que se dispõe a abrir brecha na bolsa paterna , ou tem de responder por avaria feita , acabando por desafivelar o cinto da jorneia , como se carecesse de tomar largo folego para levar a cabo a sua empresa : Não era esta a vez primeira em que ali se encontrava em tais embaraços , porém nunca tão graves tinham sido as circunstâncias . A gravidade não provinha da escápula feita ao seu tio , que já nem de tal se lembrava , mas da resolução que tomara de realizar as suas ambições e sonhos , as combinações de tantas horas ; de passar além de alguns gestos e sorrisos e umas saudações feitas do cimo da encosta , não falando num a enfiada de sons , que palavras se não podiam dizer , pois nem ele lhes soubera o sentido , soltados à porta de S : Pedro entre uns como arrepios , que atribuiu ao modo porque o encarou a cultivadora da arruda , a criada a quem o senhor||_João_Ramalho João|_João_Ramalho Ramalho|_João_Ramalho , por morte da sua esposa , confiara o governo da casa e a guarda da filha : Quase igual à força da resolução fora o abalo , como nestas coisas é de costume , mas Fernando não estava resolvido a deixar perder mais uma ocasião : puxando o barrete sobre a nuca , subiu a um comoro , ao lado da quelha , ergueu os olhos e abriu a boca , porém a palavra engasgou-se-lhe a um gesto de Irene . O pobre não prevera que pregar a sua confidencia daquele sitio fora , querendo que ela a ouvisse , mete-la também nos ouvidos dos vizinhos , ou pelo menos das pessoas de casa , e a jovem , levando um dedo aos lábios e indicando-lhe com um gesto que descia à varanda para encurtar a distancia , se no enleio , no rubor se mostrava mal afeita Ãquelas artimanhas , professadas pelo amor , ou quem suas vezes faz , como do sexo a que pertencia , se mostrava mais prudente . Irene desceu , mas vencido a meio o inconveniente da distância , furtava-se , encoberta pelo cercado da horta , ás vistas de Fernando . Este eclipse , como diria um poeta , foi que deu ao namorado um ânimo de que ele próprio se espantou por muitos dias depois : atreveu-se a subir ao muro e marinhar pela árvore que se debruçava sobre a estrada , a esconder-se entre a ramagem : Os discursos naquele dia tinham má sorte : como o que fora destinado a Rui Pereira , o pensado e repensado do sobrinho de Gonçalo Domingues não vingou . A erudição do abade de Paço de Sousa achatara-se de encontro à paciência do fidalgo ; as flores escolhidas para ornar a declaração feita a Irene ( tão rico delas é o coração em que rebenta o amor ! ) as flores de estilo queimou-as um olhar lançado ao jovem , traduzindo tanta coisa , que só um desses olhares podia dar bons três capítulos como este em que se conta e comenta tanto sucesso . O olhar de uma donzela , como a filha do piloto , nestas confidências de um primeiro amor deixem dizer que o amor , o verdadeiro amor só vem muito mais tarde , deixem ; que eles treleiem , e julgam que o egoísmo aquilata a paixão ; o olhar de uma donzela assim , encerra um misto de afeto carinhoso , de volúpia indefinível , de pudor e inocência , de receio e ousadia , que , para dele dar uma ideia , a poesia mesmo é uma linguagem descolorida : Fernando , mal se viu frente a frente com a jovem namorada , sentiu um formigueiro nos pés , turbara-se-lhe a vista , e teve de se agarrar aos ramos da árvore , para não cair ; quis procurar o cabeçalho da sua declaração , porém nem uma só ideia lhe vinha à mente ; por mais de uma vez abriu a boca , e teve da fechar sem formular um único monossílabo . Irene , na varanda , com a aproximação também se acanhara , e ocultava o seu embaraço , ou , antes descobria-o , passando a mão pela cara , levantando uma trança para logo a abaixar , enrolando e desenrolando uma das fitas , afogando e desafogando o pescoço com o singelo coleirinho do corpete . Os minutos que assim passaram não foram poucos . Recuar depois de ter chegado até ali era desairoso e difícil : O sobrinho de Gonçalo Domingues fez o supremo esforço para não perder tudo : -- Irene , Irenesinha ! disse ele , amarrotando o barrete com a mão que tinha desembaraçada : A jovem fitou-o , sorriu-se , e ainda alguns minutos foram desperdiçados , se desperdiçado se pode dizer aquele tempo passado em enleio , rápido na passagem , mas que depois enche com a recordação tantas horas de vida : -- Irenesinha ! disse Fernando , continuando a procurar a musa no barrete : A jovem continuou a fitar o embaraçado rapaz , aguardando que alguma palavra mais seguisse à invocação . O barrete não absorvera , ao que parecia , os galanteios estudados , amimados por tanto tempo , pelo que , depois de larga pausa , Fernando desceu das regiões do amor a coisas mais terrestres , na linguagem ; procurou , se , o que é mais provável , se não agarrou à primeira ideia visada , um ponto de partida nos sucessos do dia , e titubeou : -- Não sabe que chegaram aí umas galés de Lisboa ? -- Sei ; respondeu a jovem , baixinho , depois de olhar para todos os lados a ver se alguém poderia ouvir aquela conversa amorosa . O meu pai para lá foi : -- Foi ? interrogou maquinalmente o jovem : -- Foi , repetiu Irene , debruçando-se pela varanda e fazendo com uma das mãos junto do ouvido uma concha para não perder uma só palavra : -- Pois veem nelas muitos fidalgos -- Lisboa . Não os viu desembarcar ? -- Vi : -- Disseram-me que iam em procissão à cidade , e que traziam um recado do senhor||_D._João D.|_D._João João|_D._João ! -- E não foi ver ? . . : -- Olhe , Irene , atalhou Fernando em voz mais baixa e entrecortada , por muito que tenham que ver , eu antes quero estar aqui . A menina é que não sei como não vai para o lado da praia : -- Para que ? Tão longe fica o lugar onde vararam as galés , e está um gentio . . : -- Então , se pudesse ver , não estava aí : -- Porque não ? disse Irene , corando : -- Porque ... porque , titubeou Fernando , baixando os olhos ; porque aqueles fidalgos com as jorneias bordadas , aquelas armas a espelhar são mais para se verem . . : -- Da janela , disse a jovem , encolhendo os ombros ; da janela não se podem admirar esses alindes : Fernando baixou a cabeça , desconcertado o seu intento . A jovem não vinha para o campo para que ele a queria trazer : não o entendia , pensava ele , e se o não entendia é porque o não amava . Se soubesse avaliar a entonação de certas palavras não pensaria daquela sorte ; porém todos os namorados assim são : não reparam nas rosas e colhem os espinhos : -- Oh ! Irenesinha , e se esses fidalgos viessem fazer uma leva para a guerra contra os loucos de Castela ? disse o jovem , procurando levar a conversa ao fim desejado : -- Para que pensar nessas coisas ! -- E se me levassem ? insistiu ele : -- Mas eles não veem para isso ; não , senhor||_Fernando Fernando|_Fernando ? disse a donzela com uma inflexão de voz , que pintava o receio de que uma afirmativa fosse a resposta : O sobrinho de Gonçalo Domingues não notou esta expressão e prosseguiu : -- Não se lhe dava que eu fosse ? -- Eu ? -- Sim ; parece que não teria pena alguma : -- Não diga essas coisas ! -- Pois deveras magoava-a a minha partida ? -- Deveras ; disse Irene , passando a mão pelo rosto , para ocultar as tintas do pejo , que a ele assomavam com esta confissão : -- Não diz o que pensa , acudiu o jovem , imprimindo , cheio de alegria , um tal abalo à árvore , que esta , oscilando o roçando de encontro ao muro , fez desprender algumas pedras : -- Jesus ! vai cair ! exclamou a donzela , tornando-se pálida : -- Ai ! Irenezinha , só para ver se o que diz é certo , de boa vontade quebrava a cabeça : A jovem , em vez de responder , com um gesto impôs silencio ao seu conversado . Do lado de baixo ouvia-se os passos de quem para ali se dirigia , e pouco depois apareceu Gonçalo Domingues : -- É meu tio , disse Fernando , com voz tão sumida , que para si tão só parecia falar , e no momento em que o rotundo burguês passava distraído junto do muro , querendo esconder as pernas que deixava pender de um e outro lado do galho em que cavalgava , de novo oscilou a árvore violentamente , mais arruinando o muro a que se encostava : -- Oh velhaco , que fazes aí empoleirado ? -- Eu , senhor tio ? acudiu o pobre rapaz , coçando na cabeça com toda a fúria : -- Sim , tu , Belzebut ! Salta cá para baixo , que te ensino a andar a roubar fruta pelos cerrados : -- Oh meu tio , a árvore não tem fruto ; olhe bem : -- Então que fazes aí ? -- Eu estava a ver . . : -- o que , rapaz de má morte , cabeça oca ? -- A ver se o via por algures , prosseguiu o desconcertado jovem : -- Levadigas te colham ! Procuraste atalaia bem longe do caminho . Ora , desce , que eu te vou ensinar chanças melhores : -- Cuidei que ia pela Aljama : -- Algemia é isso que tu estás a pregar . Desce , velhaco ! -- Lá vou , tio ; disse Fernando , descavalgando , porém deixando-se suspenso pelas mãos do seu poleiro . Mas . . : -- Mas o que ? pela tua causa em boas me vi , e tu mas pagarás juntas . Eu farei de modo que não tenhas mais vontade de ir devassar hortas e cercados : Se vais por esse caminho , acabas nas mãos da justiça ! exclamou o senhor||_Gonçalo_Domingues Gonçalo|_Gonçalo_Domingues Domingues|_Gonçalo_Domingues , com sobrecenho provocado pela recordação de desaguisado da praia : Fernando deitou à donzela , que toda trémula se conservava encostada à varanda , um olhar a furto , não se atrevendo , por envergonhado de ser assim , ali na presença dela , tratado como uma criança , a uma despedida ; com outro relance de olhos avaliou se as ameaças do tio não teriam , na execução , algum desconto , e lentamente , soltando um suspiro , desceu da árvore em que , ao modo das aves , tinha soltado as primeiras confidências do amor . Tão depressa sentiu nos pés o contato do pedregulho da betesga , como sentiu nas orelhas o da mão de mestre Gonçalo , que acompanhava cada puxão com um epiteto pouco amável , terminando pelo de " ladrão " : -- Ladrão não ! exclamou o rapaz dando um salto , ferido pela insistência do tio naquele mau conceito : -- Então que fazias ali , rapaz dos meus pecados ? Alguém , não o interrogado , se encarregou de responder . à janela onde vicejava a arruda assomou um rosto encarquilhado , meio oculto num a enorme touca de linho a feição das que usam as freiras , e gritou com uma voz de cana rachada , debruçando-se : -- Menina Irene ! menina Irene ! Gonçalo Domingues suspendeu as suas iras , e estendeu o lábio inferior com um gesto que queria dizer muita coisa , e , entre outras , que atinava com o motivo de ter o sobrinho trocado a procissão dos fidalgos por uma ascensão ás árvores do senhor||_João_Ramalho João|_João_Ramalho Ramalho|_João_Ramalho . Lembraram-lhe as palavras e os momos da velha da praia : -- Já agora vamos pela Aljama , e de passo falarei com o meu compadre ; disse em seguida , dando um encontrão ao jovem e indicando o carreiro que subia a montanha : Metendo-se a caminho , voltou a cabeça , como a voltara Fernando , para a casa do mercador , e viu na janela do andar superior , por entre a zelosia meia aberta , o rosto da gentil menina : -- Á fé , disse ele por entre dentes , que o rapaz não tem mau gosto ; e ela . . : A palavra foi terminada por um sorriso , olhando para Fernando , como desvanecido do seu sangue . Gonçalo Domingues era um excelente homem , apesar de toda a sua aspereza aparente : Uma cidade da península , no século XIV , não era um agregado de indivíduos vivendo , como hoje , debaixo da mesma lei -- segundo reza a lei , entenda-se . Afora as distinções de classes e senhorios diversos , havia a distinção de crenças , e a separação era visível nas grossas cadeias que tornavam ao cair das Ave-Marias incomunicáveis certos bairros . O Porto tinha de tudo : súbditos da coroa e súbditos da mitra , e no tempo em que sucedia o que narramos , moradores que nem reconheciam uma , nem outra ; havia cristãos , mouros e judeus . Sobre um monte alteavam-se as torres da Sé , e os paços fortificados do bispo ; sobre o outro mais humilde levantava-se a esnoga , ou sinagoga , e na encosta , entre um e outro , a pequena aljama apresentava-se , como o símbolo da religião do profeta de Iatreb , querendo aproximar-se do Evangelho e da Bíblia , e lançando depois pela encosta um ou outro casebre , como transição para alguma morada de heresiarca que se ocultasse entre os foragidos do Oriente . A aljama era a mais pobre : a esnoga era a mais rica ; a cruz , mais alta , dominando as duas , era a mais forte : Aljama , município , catedral , esnoga , tudo fora cintado pela mesma muralha , como para viver em boa fraternidade ; mas esta aguara entre os dois filhos de Adão , quanto mais entre tanta gente . O judeu desprezava o mouro ; o mouro desprezava o judeu ; o cristão desprezava a ambos , e , como fizera a lei , talhara para si mais regalias e para os outros mais tributos , reservando , para os que nada tivessem do seu , o direito de se lamentarem em particular de algum pescoção de burguês arrufado , gilvaz de cavaleiro , pedrada de garoto e praga de rascoa enraivecida , ou velha rabugenta . Era uma sorte bem agradável , feliz , contudo , aquela , em comparação à que lhes prepararam , aos judeus especialmente , uns beatos metidos em política , de que se serviam para ganhar o céu , supunham eles , e um bando de togas , garnachas e roupetas que se serviam do céu para apanhar dinheiro . Aquela animosidade era a regra geral , mas toda a regra tem exceção , e na mouraria era às vezes recebido com os braços abertos o mesteiral ; na judearia havia mão que se estendia ao burguês em prova de amizade sincera , e um ou outro filho de Israel achava agasalho não chorado na casa do cristão , mesmo quando aquele não tinha a arca cheia de boas dobras ; que em tal caso todas as portas se abriam , desde a do paço régio ou episcopal e a do solar do nobre , até à da cela do reverendo abade , e a do leigo , e sobre eles choviam honras e mercês ; como eram prova viva D : Judas e D. David , duas criaturas , que , fazendo grande arruído na corte , jogaram com os destinos do país , como bons ministros de finanças -- o nome , o titulo ainda não estava criado , mas a coisa já existia -- não se esquecendo de tirar dele todo o suco possível . Gonçalo Domingues vivia em boa harmonia com o arabi , ou arrabi menor , harmonia que o devia lisonjear , pois era até certo ponto uma notabilidade , como chefe dos judeus da cidade e como homem de teres , e por isso se resolvera a subir a encosta , pelo lado do Olival , para falar em certos negócios em que desejava servir um seu compadre , e tratar da compra de porção de gado . O velho Gonçalo , forçureiro , nos seus princípios , reunira o cabedal bastante para alargar a área do seu comércio : estendera-o ás carnes-verdes e ensacadas e a pelames de todo o género ; tornara-se enfim um negociante de consideração , como um seu colega de Coimbra , que salvou a pátria , emprestando a sua senhoria , o Mestre de Avis , alguns punhados de dobras , serviço que lhe rendeu a doação de alguns bens nacionais e a glória de ser o tronco de uma nobre família : A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos do século XIX , lançando-lhe em rosto o não ser com a espada que lavrassem os seus escudos ; mas é porque não têm paciência ou vagar de revolver os arquivos da família , senão deixaria de atirar pedra ao telhado dos vizinhos , vendo os seus de vidro : se por tal de vidro os podem considerar . Deixemos reflexões , porém , e retrogrademos ao bom tempo , que assim se chama sempre ao tempo passado , a apanhar o rico burguês e o sobrinho à porta do Olival : No campo , que , extramuros , por aqueles lados se estendia , ainda se viam alguns indivíduos , que , com os olhos postos no rio , pareciam analisar as galés chegadas ; mas era visível que , de todos os portuenses , estes , que assim ainda pasmavam , eram os menos curiosos , os mais indiferentes à luta travada . A boa parte , farrapos , que em bom tempo tinham formado uma aljuba , denunciavam como descendentes de Tarik ; a outros distinguia-os um círculo de lã amarela pregado nos grosseiros tabardos ; o resto não se distinguia por coisa alguma da roupa , porque naquele cerzido de trapos nada se podia distinguir . Os curiosos , os verdadeiros curiosos tinham , como vimos , descido à baixa da cidade , e mais crescera o número depois que se soubera que nada havia que recear das galés , e que Rui Pereira e os outros capitães desembarcaram e seguiram processionalmente para os paços municipais . Gonçalo Domingues , intercalando as combinações do seu negócio com reflexões sobre a descoberta feita dos amores do seu sobrinho , reflexões que faziam com que a este mostrasse gesto carregado , e interiormente se sorrisse , avivando na memória os seus verdes anos : medindo de tempos a tempos a altura do sol , que não eram depois de Ave-Marias seguras certas paragens , passeava de um para o outro lado do campo : Fernando acompanhava-o , voltando a todo o instante a cabeça para Miragaia ; procurando aproximar-se de sítio de onde pudesse ao menos ver a casa do mercador ; repreendendo-se por não ter aproveitado melhor o tempo que passara junto de Irene , dizendo uma fineza daquelas do livro de cavaleiras , que frei Gumeado lhe deixara ler ; descoroçoado por aquele final , que decerto o rebaixaria no conceito da linda jovem . O sobrinho andava tão embebido , que nem sentia os pés tocar no chão , e o campo não era jardim areado ; o tio cansava-se já de aguardar seu compadre , que não encontrara em casa , quando a aparição de um personagem veio pôr em movimento os frequentadores do campo : uns deslisaram-se , o mais sorrateiramente que lhes foi possível , pela encosta e por entre o arvoredo , outros perfilaram-se , e levaram as mãos aos barretes , os que os tinham , mostrando , contudo , pelo gesto , que não era a estima , mas o temor que os levava a esta delicadeza : O recém-chegado , personagem lhe chamamos , e mostrava-o ser de conta entre aquela gente , era uma figura notável . Um barrete de tela vermelha de forma esquisita rematava , sentado sobre um capirote , uma cara um pouco crescida e saliente , complemento de um rosto ossudo , moreno , em que dois olhos desesperados com a proeminência de um nariz , que se metia em tudo de permeio , tinham acabado por enviar as pupilas , cada uma para o seu lado , a tomar conhecimento com as orelhas ; o lábio superior era adornado por um bigode esfarrapado , de cor duvidosa , ou de todas as cores possíveis -- preto , branco , castanho , louro e ruivo -- e de igual mescla eram os pelos que deixava crescer no queixo . Da cabeça não desdiziam o resto do corpo e o vestuário : trajava um gibão bipartido preto e vermelho , e uma das longas pernas enfiava-se num a calça e borzeguim vermelho , a outra em calça e borzeguim preto ; do pescoço pendia-lhe uma medalha de metal amarelo , com as armas da cidade , da cinta um grande punhal e uma enorme bolsa de couro , e na mão sustinha um bastão , terminado por uma cabeça de metal cinzelada , ao que parecia , por artista que tomara a dele por modelo . Medalha e bastão apregoavam que Telo Rabaldo era o pai dos velhacos , cargo que não tem hoje correspondente , por não tolerarem as luzes do século absurdo . Telo superintendia , governava tão somente cidadãos que em noites serenas têm o dossel do leito recamado de estrelas , jejuam sem devoção , deixam crestar o corpo pelo sol de Agosto e gelar o sangue pelo frio de Janeiro , e chamar-lhes velhacos era alterar a significação das palavras , se não era malicia de legislador , que assim arrebanhava e batizava alguns centos de criaturas , para que se persuadissem as de boa fé que na terra não havia mais , como os hospitais de doidos lisonjeiam muita gente que não é forçada a não ter lá moradia . Os velhacos , os verdadeiros , então , como hoje , não se deixavam governar , sempre governavam também , e havia-os anafados , vestindo custosas telas e abrigados em paços soberbos : -- Eh ! boa gente ! exclamou Telo , dirigindo-se aos indivíduos que tratavam de lhe evitar a presença ; então assim querem fugir ao seu pai ! Vamos , venham receber a bênção , como bons filhos , e com a bênção uma boa nova . Olá , Pedro Choca ! acrescentou , depois de honrar com um sorriso a facecia que servira de exordio , dirigindo-se a um dos que se desbarretava ; que nenhum dos teus falte depois de amanhã na Ribeira . Onde está o João Bispo ? -- João Bispo , redarguiu o interrogado , há dias que desapareceu : -- O velhaco voltaria para o convento farto de estar deitado de barriga ao sol , ou se meteu outra vez com a filha do velho Humeia , e está a fazer penitência por ter pecado com moura ? -- Ou se foi lançar com os loucos . . : -- Para que ? Toma conta em ti ! Chegou-me aos ouvidos que te travaste com ele de razões por umas nonadas , e se me deste cabo do rapaz , em boa te meteste ! Se não me trouxeres em breve notícias dele , a tua pele mas dará . A polé do aljube está nova , e poderá bem contigo : Choca resmungou por entre dentes algumas palavras , e o pai dos velhacos prosseguiu : -- Avisa aos compadres para que ou vão contigo e mais a sua gente , ou a levem para as tercenas . Que não falte ninguém ! Quero duzentos homens , bons pulsos . . : -- Duzentos homens , bem sabe sua mercê que não podemos reunir . A melhoria da gente levou-a o senhor||_conde|_Gonçalo conde||_conde|_Gonçalo Gonçalo|_conde|_Gonçalo ; o senhor alcaide tem boa porção , e se crianças , mulheres e aleijados não servem . . : -- E esses cães de cabeça amarrada ! exclamou Telo , designando um mouro que a curiosidade trouxera para junto de Pedro Choca , capataz de uma turma de vadios . Quanto aos aleijados , sei de uma mesinha que os põe sãos como um pero , juntou , mostrando o seu bastão ; o manco da porta da Sé que o diga . Vamos : sua senhoria ( uma barretada ) apelidou os bons homens da sua boa cidade ( outra barretada ) para que o ajudassem a dar cabo dos cães de Castela , e os alvazires dão-vos honra metendo-vos na conta dos bons homens ... fazendo-vos trabalhar . Que ninguém falte , e viva sua senhoria ! -- Viva sua senhoria ! repetiram os vadios e com eles Gonçalo Domingues , que se aproximara da roda formada ao pai dos velhacos , roda desfeita a um sinal por este dado com a vara , deixando a importante , incansável e incorruptível autoridade , como lhe chamariam hoje , que todos os encargos têm um ou mais adjetivos anexos , face a face com o burguês , que abria a boca para indagar quais os serviços que o filho de Teresa Lourenço reclamava dos portuenses : A interrogação não foi formulada . Telo Rabaldo , cheio da sua importância , fez uma leve saudação , carregou o barrete sobre um dos olhos em rebeldia , e girou sobre os calcanhares ao mesmo tempo que um outro individuo assentava nos ombros do forçureiro uma grande palmada . Gonçalo Domingues voltou-se a ver quem segundava a amabilidade do marinheiro , e se não reconheceu logo o seu compadre , foi porque um abraço de meter costelas dentro o sufocou . O bom homem vinha lisonjeado com a carta de que Rui Pereira fora portador , lisonjeado em extremo no seu patriotismo de localidade , e expandia o seu contentamento daquela sorte e em exclamações , que fizeram suspeitar ao tio de Fernando , que não estava em bom arranjo aquela cabeça . D. João chamava aos portuenses o seu bom povo , mimoseara-o além disso com outros epítetos tais como -- leal , esforçado , etc. , e o portador , resolvido , apesar do seu enfado , a ser amável e popular , pintara a amizade e reconhecimento do Mestre , pela espontaneidade da sua aclamação na cidade da Virgem , com tais cores , descera da sua dignidade prodigalizando sorrisos ao corpo municipal , batendo no ombro de Luiz Giraldes de um modo , que o nosso homem esteve por um triz a deixar cair uma de comoção : Era uma alma cândida e entusiástica , apesar do involucro grosseiro , o compadre do senhor||_Gonçalo_Domingos Gonçalo|_Gonçalo_Domingos Domingos|_Gonçalo_Domingos ; tão cândida que acreditava no desinteresse do Mestre de Avis , supondo que defendia a coroa para a entregar ao filho de Ignez de Castro ; tão entusiástica e patriótica que , quando , à força de lhe perguntar o marchante se encontrara o arrabi , secas as goelas e já sem alento para descrever a reunião nos paços municipais e mais episódios da embaixada , se recordou do seu negócio , era tarde . O sol ia quase a mergulhar no oceano , e era provável não só que , na judearia estivessem fechadas as ruas , mas até que se lá fossem , encontrassem as portas da cidade cerradas no regresso . Os dois burgueses separaram-se , pois : o patriota , compadre -- Gonçalo Domingues , seguiu pelos campos em direção ao povoado de Cedofeita ; este outro , despertando o sobrinho de pensamentos em que não entravam nem compras , nem vendas , nem os direitos que os filhos de Henrique II de Castela e D. Pedro I de Portugal , podiam ter à terra que pisava , tomou com ele o caminho de casa : As nuvens , que o norte espalhara no ar , como flocos de algodão , ornadas pelas tintas que formam a gradação entre o rubro e o amarelo vivo , davam ao céu a aparência de um mármore , um todo que em pintura seria inverosímil ; os edifícios de Vila Nova e de Gaia cortavam com o perfil o horizonte , vestindo pouco a pouco uma cor uniforme , o cinzento-escuro . De um destes edifícios , o que mais se avantajava , do castelo de Gaia , as janelas esguias voltadas para o poente pareciam dar saída aos fogos de um incendio . De que não era , porém , este chamejar mais que um reflexo do sol no ocaso , se poderia desenganar quem , mesmo nunca tendo presenciado este fenómeno , se nos antecipasse na residência do tenente do conde||_D._Gonçalo D.|_D._Gonçalo Gonçalo|_D._Gonçalo , onde uma hora depois lhe provaríamos que a reflexão , ao apresentar Telo Rabaldo , não fora de leve feita : velhacos não eram só os que não tinham nem leira nem beira : Numa das salas que no castelo serviam de aposento ao alcaide , revestida de apainelados de carvalho , em que a luz do dia , coada pelos miúdos vidros de cor , formando losangos , embaçava , e embaçava igualmente a que davam as tochas sustentadas por braços de ferro , passeava de um para outro lado um homem de alguma idade já , magro e de estatura mediana . No peito de uma espécie de camisola de pano de curtas fraldas , cujas mangas , farpadas nas orlas , pendiam até ao joelho , viam-se bordadas a verde com nervuras de ouro três folhas de figueira ; o mesmo distintivo se reproduzia num a bolsa de couro , que , do lado contrário ao estoque , acompanhava um punhal , nos fartos reposteiros das duas portas , que para a sala davam serventia , e na manga da jorneia de um pajem , criança de dez anos , que cabeceava com sono a um canto . O barrete adornava-se com duas penas de aguia , presas em fecho de ouro , e os borzeguins apresentavam uns longos bicos , moda que um episódio da guerra travada deixou assinalada na história . Encostados , no vão de uma janela , conversavam , em voz baixa , uma dama e um individuo que se tornava notável por usar crescido o cabelo , raro e de cor avermelhada , e por uma longa espada , de que afagava o punho . Do lado oposto havia seis indivíduos , um dos quais vestia hábito monástico , e outro se acobertava com uma velha armadura de malha : O homem que passeava era Aires Gonçalves de Figueiredo ; a dama era a esposa deste , D. Catarina ; o individuo , que lhe fazia companhia , o irlandês Guilherme Down-Patrick ; os restantes eram quatro cavaleiros , homens de solar de Entre-Douro-e-Minho , o capitão de besteiros , Pero Beduido , e frei||_Garcia Garcia|_Garcia : As passadas do alcaide soavam mais alto do que as poucas palavras que toda aquela gente trocava entre si , e visivelmente preocupava-o negócio , que não era para os outros estranho , a não enganar o modo porque de tempos a tempos se fitavam e a meditação que se seguia . Duas pessoas se subtraíam à influência geral , a castelã e o irlandês : se se calavam era , ela para amimar uma galga branca , que se enroscava sobre um banco , ele para com a vista percorrer a laçaria e penduróis do teto : Segredos e silêncio , aqueles olhares e gestos tinham um todo misterioso , que houve por bem quebrar Aires Gonçalves : -- Que me dizeis , senhores ? exclamou , estacando no meio do passeio , como a procurar alvitre que viesse pôr termo à sua irresolução , parecer que se conformasse com o que tinha na mente : Ninguém respondeu , porém , e o castelão , lançando à volta de si um olhar de quem queria ler nas fisionomias dos hóspedes as suas intenções , prosseguiu : -- Sua senhoria quer em volta de si todas as lanças do reino , e não se lembra , ou não se quer lembrar de que fica desguarnecida uma terra tão importante como esta , e cercada por tantos senhores que levantaram voz pela rainha||_D._Beatriz D.|_D._Beatriz Beatriz|_D._Beatriz . Deixa a cidade aos peões , aos peões , que trata como a gente de prol ? ! -- Em boa confusão vai pondo as coisas ! Um dia , veremos , senão lhes puser cobro ás ousadias , vir o povo tomar-nos os solares ; atalhou , abanando a cabeça com ar sentencioso , um velho fidalgo -- Riba-Tua . Bem altaneiros andam já burgueses e mesteirais ! -- Deixai , acudiu Afonso Darga , as encamisadas dos peões , que terão o seu cabo . O Mestre precisa de sustentar a guerra , e lisonjeia por isso quanto o mercador tem a arca bem provida de boas dobras , torneses , gentis , florins e pilartes . Aos do Porto pede ele agora uma armada , mantimentos e dinheiro : -- Armada que nos levará a ver o rosto ás hostes de Castela ; disse Aires Gonçalves : -- Se se fizer : -- O povo do Messias de Lisboa a arranjará . Não viram como os alvazires propuseram logo uma derrama , e juraram a Rui Pereira que teriam antes de um mês a nado algumas naus e outras se armariam dos melhores navios do comércio com Flandres ? ! Estão inchados com o valimento que lhes dão : -- Por aí se conhecem os vilões . . : -- É que dão eles ao Mestre ? Grande coisa ! Em campo se verá de que servem , e no campo é que a contenda tem de se decidir . Irão com bestas , virotes e azevéns fazer frente ás lanças de Castela ? Língua têm eles ; mas honra é que nem toda a algaravia desses mestres em leis e clérigos , que o regedor tomou para seus conselhos , esses faladores de Pisa e Bolonha , poderá meter nessa gente : -- Mas nela se estriba D. João , disse , abanando a cabeça , um dos cavaleiros : -- Para eles apela com boas palavras ; a nós manda-nos , não recado , mas ordem ! exclamou o alcaide . É dessas garnachas saídas do nada que vem a desconsideração em que nos tem : -- Tempos do rei||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando ! suspirou Down-Patrick , recordando-se talvez de quando as hostes do duque de Lencastre faziam , entre os aliados portugueses e os inimigos de Castela , de tudo roupa de francês : -- Era um bom rei o que Deus tem ! juntou frei||_Garcia Garcia|_Garcia , fazendo uma momice de piedade : -- Rei , e criado como rei , bem sabia ele onde estava a força e grandeza do reino e sua : -- E melhor agasalho não nos fazem sempre no campo do marido da rainha||_D._Beatriz D.|_D._Beatriz Beatriz|_D._Beatriz . Aos da sua casa aconselhou D. Leonor que fossem para o Mestre , que ao menos não era sôfrego : -- Com isso perdeu D. João : perdeu-o a altivez : -- E ao Mestre não aproveitarão as mercês rastejadas : -- Ele não precisa de nós , disse o velho , o mais desapontado dos hóspedes do alcaide , ao que perecia ; faz cavaleiros ao seu capricho do primeiro peão que se lhe antolha : -- Bons cavaleiros ! observou , rindo , o mais jovem da reunião . Por lá andam montados em mulas fazendo rir com os seus ares de importância . Não será preciso , para os derribar , erguer clava ou montante : andam tão mal a jeito com arnês e grevas , tão abafados pelos elmos , os que os têm , que ao primeiro arranco das azes vão ao chão : -- Em se tratando de lançadas é com+nós que se haverão , bem o vedes , disse Aires de Sá : -- E ireis , senhor alcaide ? interrogou Afonso Darga : -- Eu , senhores , respondeu Aires depois de alguma hesitação , levantei voz pelo Mestre , mas recebi o castelo do conde||_D._Gonçalo D.|_D._Gonçalo Gonçalo|_D._Gonçalo : obedecerei a sua senhoria em tudo , mas só abandonarei o castelo . . : A frase do alcaide não terminou . D. Catarina , aproximando-se do seu marido , e impondo-lhe com um relance de olhos a conveniência de não prosseguir , atalhou : -- Largos dias tendes para tomar conselho , cavaleiros ; alegrai o sarau com outros contos . coisas de tanta importância não se devem tratar de salto : o tempo que se leva a pensar em casos tais não é perdido . Tomai exemplo de D : Gonçalo Teles , juntou mais baixo , dirigindo-se ao esposo : D. Catarina de Figueiredo era , até certo ponto , uma dona prudente , como chama um historiador , por igual conselho fabiano , a Beatriz Gonçalves de Moura , aia depois da excelente rainha||_D._Filipa D.|_D._Filipa Filipa|_D._Filipa . O exemplo do conde era um grande exemplo , pois era de homem que sabia , ou parecia ter de memória o Sic vos non vobis de Virgílio , e dar-lhe o valor devido nas coisas do mundo : D. Gonçalo fechara-se em Coimbra , jogara com a sua irmã um jogo pouco leal e parecia aguardar que a sorte decidisse qual dos pretendentes à coroa tinha razão e direito , ou força e jeito para a segurar na cabeça . O alcaide aproveitou o conselho e abandonou o tema em que o lançara o mau humor causado pela mensagem de Rui Pereira : Palestra sobre outro assunto era naquela ocasião difícil de sustentar . Os cavalheiros pouco a pouco deixaram a sala , e quando só restavam o aventureiro , Henrique Fafes , o mais jovem dos da reunião , e frei||_Garcia Garcia|_Garcia , indicou este último com o olhar o pajem quase adormecido , tirando ao mesmo tempo da manga uma tira de pergaminho dobrada . Aires de Figueiredo , sacudindo com violência a criança de quem o reverendo parecia recear a indiscrição , a pôs , estremunhada , fora da porta , ordenando-lhe que se recolhesse , e em seguida percorreu com os olhos o manuscrito , que lhe apresentaram : -- O alcaide de Monsaraz veio ? disse ele terminando a leitura e dirigindo-se ao frade : -- Senhor , sim , veio : -- E não desconfiaram de nada ? -- Penso que de nada . As galés castelhanas não apareceram : -- E de boa fonte houvestes esta proposta ? -- Do irmão do arrabi-mor , esse judeu a quem sua real senhoria acaba de fazer mercê : -- Mister Guilherme , senhor||_Henrique Henrique|_Henrique , disse o alcaide depois de fitar os dois por um momento , se pouco caso se faz de nós em Lisboa , no campo dos que a sitiam têm-nos em apreço . D. João não é tão sôfrego como o pintavam , e a prova é este pergaminho : Down-Patrick fez uma visagem e soltou um " oh " gutural , que expressava a pouca admiração que lhe causava o apreço em que o poderiam ter , como certo dos seus muitos merecimentos : -- Gonçalo Rodrigues vos falará depois de amanhã em S. Domingos , disse frei||_Garcia Garcia|_Garcia , atraindo o alcaide para junto de uma das portas , a oposta Ãquela por onde saíra o pajem . E depois , acrescentando algumas palavras em voz baixa , saiu pelo outro lado : Aires de Sá , chamando Henrique Fafes e o irlandês , seguiu-o : Quando a sala ficou deserta , o reposteiro , junto do qual frei||_Garcia Garcia|_Garcia falara com o alcaide de Gaia , oscilou e apareceu entre ele e a ombreira da porta um rosto , onde a curiosidade e a malicia se pintavam : -- A mulher tem razão , disse , referindo-se ás palavras de D. Catarina , o curioso , depois de ter o ouvido à escuta por alguns segundos ; o tempo que se gasta em certas coisas não se perde , e eu não perdi o meu . Ah ! Garifa , minha pobre Garifa ! exclamou em seguida , mudando de expressão e juntando à exclamação um suspiro , de ti é que não apanho notícias : Fernando , chegando a casa , o melhor prédio da rua dos Pelames , ao toque de Ângelus , viu seu tio devorar com todo o apetite uma grande posta de carneiro e um tassalho de toucinho , capaz do pôr em debandada um exército maometano , regado tudo com o sumo da uva . Gonçalo Domingues , se dava descanso aos dentes , não o dava à língua , pois encetou , ao benedicite , um sermão , que , ao gratias , ainda não estava concluído . O velho falou na criação do seu tempo , na obediência da gente jovem à mais idosa em geral , e em especial Ãquela de quem se recebe o pão do corpo e o pão do espirito ; discorreu sobre as passadas travessuras do sobrinho , e foi cair na última , terminando pela ameaça de um severo castigo , em caso de reincidência : Fernando , ao inverso do tio , não tocava sequer num a mealha do pão alvo , que a criada com um prato de figos passos servira por mimo , e , com os olhos fixos na toalha , não soltava uma palavra de desculpa . O bom velho , notando aquele extraordinário fastio e sisudez , tomou tudo por efeito da sua eloquência , conversão e compunção do rapaz , e por um triz esteve , no final , a adicionar ao sermão um paliativo , tirando o exemplo de casa , pois que o podia fazer ; mas a necessidade da disciplina , de conservar sempre perante o sobrinho um todo de soberania , um sobrecenho , que julgava indispensável , embora não quadrasse com a afeição que lhe tinha , o detiveram . Fernando era , segundo ele , um estouvado , um leviano como seu pai , do que dera já provas exuberantes , abandonando , depois dos estudos , o convento de S. Francisco , então extramuros , para onde um outro parente o chamara , a fim de o meter na estrada do céu e do mundo pela clausura . O que nisto amofinava mais o forçureiro era a boa disposição que mostrava o jovem para as letras , a inteligência desenvolvida , que nos primeiros tempos fizera dizer a frei Gumeado , grande sabedor para aquelas épocas , que bem podia vir a aspirar a grandes dignidades da igreja e do seculo , a ser geral , bispo , ou chanceler . Todo o rigor , pois , que empregasse era pouco , e despediu-se do jovem com toda a solenidade , para dizer à cuvilheira que , como pelo seu voto e lembrança , lhe levasse ao quarto alguma coisa para comer : Se Gonçalo Domingues soubera qual a atenção que lhe dava o sobrinho , decerto não fizera semelhante recomendação . É bem certo que os anos trazem , às vezes , experiencia e algum saber ; mas não é menos certo que à proporção que vão passando se esquece muita coisa igualmente : aos sessenta perde-se a memória dos vinte , senão das ações praticadas , dos pensamentos havidos ; um jovem pode muito bem avaliar o que não apreciará , não conseguirá distinguir um homem a quem o inverno da vida tenha gelado o coração . A prédica entrava tanto na absorção de Fernando , como entrava a mensagem do Defensor : as palavras do tio ecoavam-lhe aos ouvidos como sons vagos , que se não reproduziam no maquinismo regulador chamado inteligência e outros nomes , segundo a face por onde é visto , porque sons diversos o impressionavam . As falas de Irene , as inflexões , os mais leves gestos preocupavam-no : de uns e outros tirava esperanças agora , logo motivos de amofinação ; traduzia agora uma frase , das poucas obtidas de Irene , por um modo que o coração trasbordava de alegria , e logo parecia-lhe que o timbre de voz , um nada sonhado lhe dava bem diverso valor ; assinalava aquele dia como o mais feliz da vida , e recordando-se do desfecho do coloquio , em seguida ; entristecia-se e amaldiçoava o tio , que o fizera descer do galho da árvore e dos braços da felicidade . O puxão de orelhas , sobretudo , doía-lhe , quando o recordava , mais do que lhe doera em Miragaia , julgando-se aos olhos da sua namorada desonrado ... mais que desonrado , ridículo . Este combate entre o desejo e o receio , durou , trazendo a insónia , até altas horas da noite ; mas , a final , venceu o desejo , e a alegria espelhou-se-lhe no rosto . Fernando , nas azas da imaginação ; voava do passado ao futuro , e deste aquele , amontoando as pedras do seu castelo de felicidade . Deitando-se e apagando a luz sorria a todos os sonhos criados ; sentia como nova vida a inflar-se no peito , e parecia querer afogar-se em ar , tanto era o que respirava de momentos a momentos : Junto com a imagem da linda filha de João Ramalho toda a natureza era risonha naquela miragem : as árvores reproduziam-se mais verdes , mais cheias de perfumes e mais belas as flores ; as aves nos cantos diziam todas -- alegria ; o céu transparente deixava adivinhar além do manto azul uma segunda vida toda amor . O jovem vira , bem o podem acreditar , bastantes vezes o céu , as árvores e as flores , mas nunca se lhe tinham afigurado assim : como à estátua de Pigmalião , faltava-lhe o fogo no peito . A lavareda ateara-se naquele dia , posto que incubasse havia muito : Fernando Vasques amava Irene desde que a vira , e vira-a nessa idade em que se sente um vácuo no coração ; a si mesmo confessara já esse amor ; mas definido , claro , só então rebentara : o vácuo enchera-se , e a trasbordar , e para o encher talvez o amaldiçoado puxão de orelhas , a primeira grande contrariedade , entrasse por muito : " talvez " dizemos , e podíamos dizer " certamente . " O amor vive de contrariedades , de lutas , diz um fisiologista ; e como um malicioso acrescentou que por isso só ele nas mulheres se criava , saibam , acreditem as leitoras que todo o homem tem no coração o seu tanto ou quanto de mulher , na juventude sobretudo , e por isso não perde . As mulheres lucram menos com o que recebem do homem em geral : não as compensamos . Como dizíamos , porém , deixando reflexões , a correção de Gonçalo Domingues , e ainda , se quiserem , as poucas palavras trocadas entre os dois namorados , tinham ateado a lavareda no peito do jovem , e um dos efeitos dela fora , de fazer acordar homem quase quem se deitara criança : Fernando , no dia seguinte , não era o mesmo rapaz ; o tio notou aquela diferença e atribuiu-a ao jejum da véspera , com a mesma perspicácia com que atribuíra a causa dele à sua prédica ; e para contentar o rapaz , levou-o de manhã , depois de tratar dos seus negócios e da política do dia , a visitar frei||_Gumeado Gumeado|_Gumeado , que o costumava regalar , apesar da sua deserção , com gulodices , em que não tocou dessa vez , e de tarde , a passeio até aos Carvalhos do monte , que assim se chamava o local onde o cabeçudo parodiador do marquês de Pombal no Porto , o corregedor Almada , edificou um teatro . O efeito destas amabilidades é fácil de adivinhar . O namorado de Irene , que , voltando com a luz da madrugada à luta de esperanças e receios , ansiava por ocasião de ir buscar um desengano nos olhos da donzela , preso assim todo o dia , revoltou-se interiormente contra a tutela do tio e desapontou-o com desabrimentos . O velho pasmou , benzeu-se , e da compaixão , do arrependimento da aspereza da véspera caiu com um mau humor verdadeiro , tomando aquele procedimento por ingratidão , protestou que a severidade , que até aí lhe ficava nos lábios , ia ser posta em ação , e como assim se revoltara pelo leve castigo de uma travessura , ele trataria em primeiro lugar das impedir , não lhe deixando uma hora para folias , nem arredar pé da loja de pelames ; em segundo , se se furtasse à sua vigilância , de passar além do puxão de orelhas , dando causa verdadeira a amuos : No outro dia , um domingo , não se esqueceu do seu protesto o velho forçureiro , e o desespero do sobrinho aumentou , tanto quanto aumentava o receio de perder o amor da linda jovem ; que , se até ao dia em que conseguira trocar algumas palavras com Irene , muitos se passaram em que não descera a Miragaia , sem que tanto se amofinasse , aquela meia declaração e o desfecho mudara as circunstâncias : daquelas em que se encontrava bem podem fazer ideia as leitoras e os leitores , aos quais a memória ainda conserva vivas as páginas da juventude : Depois de jantar , porém -- refeição que se tomava nessas épocas , mesmo entre aristocratas , desde as onze ao meio dia , exatamente à hora em que hoje almoça muita gente -- quando Gonçalo Domingues executava , dormindo a sesta , uma música que se assemelhava a tempestade em chaminé na combinação de assobios e notas de contrabasso , apareceu Luiz Geraldes , o mais respeitável individuo da burguesia , a procura-lo para irem a S : Domingos , onde se devia tratar do meio de corresponder à confiança que o mestre de Avis depositara nos bons cidadãos da terra , assunto em que o conselho do forçureiro era valioso , por se poder traduzir na linguagem sonora das boas dobras de el-rei||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro ; apareceu Luiz Geraldes e com ele a ocasião que desde madrugada esperava e provocara à sombra de todos os pretextos . Mestre Gonçalo , pois , a sair , e Fernando a procurar na arca o seu melhor gibão e o barrete , a alindar-se , e a bater com a porta da rua na cara da velha criada , que lhe recordava as ordens dadas pelo tio , avivadas segundos antes , e a trovoada que sobre ele e sobre ela descarregaria se ou o encontrasse na rua , ou o não achasse em casa , regressando : O namorado jovem deitou a correr ; mas , como em certo apólogo , a pressa foi causa de vagares . Tal era o estado daquela cabeça que tomou o caminho seguido pelo seu tio e o grande amigo do Mestre , e ao cabo da rua da Bainharia esbarrava com eles se um encontrão de um homem de armas o não obrigasse a uma pausa , e na pausa a um espadeiro , que se sentava num desses balcões ou mostradores que fechavam uma das portas das estreitas e escuras lojas , conservando nas ruas mais estreitas e não menos escuras os fregueses , não ouvisse dizer para um vizinho que deitava a cabeça por uma adufa : -- Lá vai em cata de mestre Gonçalo , que dobrou agora mesmo para o terreiro , o sobrinho ... O filho de Vasco , que Deus haja : Fernando , quis retroceder ; porém , como o bom do espadeiro lhe gritasse que perto ia Gonçalo Domingues , se o procurava , não teve remedio senão responder que ia a recado para as Aldas , e enfiar pelo arco de Sant'Ana , tomar caminho pelo lado da judearia e descer aos Banhos , onde lhe tolheu o passo o personagem que no capítulo antecedente vimos no castelo de Gaia , surdir por entre o reposteiro : -- Vindes de S.||_Domingos Domingos|_Domingos ? interrogou ele , pondo-se diante do jovem : -- Oh ! és tu João Bispo ! exclamou Fernando , depois de examinar o rosto do individuo , assombrado por um farto capuz . há muitos dias que te não vejo : -- É verdade , redarguiu o recém-chegado , dando pelo nome , que ouvimos já da boca do pai dos velhacos . É verdade , repetiu ; e à palavra juntou um profundo suspiro : -- Que tens , tu ? Estás tão triste como quando nos tinham no convento : -- De onde nunca devera ter saído ! disse João , soltando outro suspiro : -- Bem mudado estás , meu folião , ou é isso momice nova ? -- Antes fora , Fernando ! antes fora ! mas finaram-se as alegrias : -- Mas , ao que parece , a vida não te vai pior . Gibão novo de barregana . . : boa adaga ! disse o jovem , medindo-o de alto a baixo : -- Vesti isto ; mas em almáfega respirava melhor : o saio e as calças riam-se por todas as costuras , mas eu também ria , e agora bem vedes ... : -- Vejo que estás sisudo como eremitão , ou mestre em leis , é verdade . . : Mas onde assim te puseram ? de onde vens ? -- Do castelo : -- Do castelo ? Tomaste lá moradia e serviço ? -- Ou coisa parecida ... que não se pode assim dizer de praça . . : -- Segredo ! Ora vejam João Bispo feito escrivão da puridade do alcaide ! exclamou o jovem , sorrindo e dando alguns passos para seguir seu caminho : João segurou-o por um dos braços , e encolhendo os ombros respondeu à zombaria : -- Mofai , que a vez a todos chega . Algum dia haveis de querer bem a alguém ... : -- E por isso te amofinas , quando não tens quem te empeça da ver a todo o momento ! redarguiu Fernando , que se não recordou naquele instante de outro contratempo em amores , senão do que com ele se dava : -- Vê-la ! ... vê-la ! exclamou , tornando a suspirar o vadio . Oh ! minha pobre Garifa ! -- Garifa , repetiu Fernando ; Garifa ... Ora espera ... Garifa não era aquela rapariga moura que vinha ao terreiro vender fruta ? João Bispo fez com a cabeça um aceno afirmativo : -- Uma rapariga sempre alegre , que na procissão de Corpus tangia pandeiro e dançava com tanta desenvoltura , trazendo o vestido cheio de cascavéis ? -- Sim : -- Que tão bem cantava umas cantigas castelhanas ? -- Sim : -- Pois bonita era ... pena que fosse moura ! E tu , João . . : -- Eu quero-lhe , quero-lhe como se em noite de S. João me fizessem feitiço . . : -- E feitiço foi decerto ; porque uma moura . . : -- Não sei se é grande pecado o querer-lhe bem ; mas cá para mim tenho que não . Ela é moura , é ; mas . . : -- É por isso que tão magoado te vejo ? Queria-la cristã , e casavas : -- Não é , não ; é porque ma roubaram ! -- Roubaram-ta ? -- Roubaram . há uma semana , no sábado , estava eu na encosta do Olival , ao pé do regato , à espera dela , e eis que vejo o pai , o velho Humeia , vir direito a mim . O pobre homem chorava como uma criança ; lágrimas eram como punhos pela cara abaixo e os soluços pareciam afogá-lo ; cortava o coração ! disse João Bispo , limpando com a manga do gibão os olhos , sensibilizado ou pela recordação da cena , que narrava , ou pela desaparição de Garifa . O velho prosseguiu , quando pôde começar a falar , a pedir-me a filha , dizendo que lhe&lhes+a entregasse ; que bem tinha visto andar-lhe no seguimento , e na véspera a encontrara ainda ali mesmo a falar comigo . Olha , Fernando , fiquei como quando me vieram dizer que o meu Pai|-Deus o tenha -- era finado , e jurei aquele pobre homem que não fora eu que lhe tirara a filha ... e comigo pela hóstia consagrada jurei também descobrir-lhe a rapariga . O velho acreditou-me , e disse-me coisas , que não poderei repetir ; que não sei bem o que foram ; mas que pelo modo das dizer me deram um nó na garganta : parecia que tinha engolido uma maçã inteira . Procurei Garifa . dois homens foram vistos a passar o rio nessa noite com uma mulher , me disse um petintal , e corri tudo em Gaia ; alistei-me no troço de Pero Beduido , para ter ocasião de esquadrinhar todos os cantos do castelo ; mas vê-la ... vê-la ... ainda a não vi ! Desconfio , porém , que lá esteja , e se lá estiver , ai do rausador ! Olhai , eles deram-me esta adaga , e eu trago-a bem afiada , os ouvidos atentos e os olhos abertos ! João Bispo , ao soltar estas últimas palavras , baixou a voz e um véu sinistro lhe assombrou a cara ; por alguns instantes permaneceu calado , e prosseguiu depois , vendo que o sobrinho de Gonçalo Domingues parecia aterrado com semelhante confidência : -- A alegria não pode durar sempre . Desde que , morto meu pai , que por força me queria ver tonsurado , fiz uma reverência ao guardião , dei um cascudo no porteiro e me fiz velhaco , visto que no convento não aprendi ofício e de sujeição estava farto , bem vestido , mal vestido , mais trapo , menos trapo , barriga mais cheia ou menos , tinha quase todo o santo dia os dentes à amostra ; agora veio um revês . . : -- Não és só tu , João , que os tens ; eu . . : -- Que lhe fizeram , atalhou o vadio ; diga , que eu dou uma ensinadela , e . . : -- É negócio em que nada podes . Não sabes , João , disse o jovem , pondo a mão no ombro do seu antigo companheiro , e chegando-lhe a boca perto do ouvido , como em segredo ; não sabes ... eu também quero a uma rapariga como ás meninas dos meus olhos . Oh ! é mais bonita que a tua ! -- É , disse João Bispo , com um meio sorriso : -- Muito mais ; porém , meu tio , tenho eu para mim . . : -- Não quer ? -- Parece-me que não : -- É pobre ? -- Pobre ! ... repetiu Fernando Vasques , encolhendo os ombros : -- Mestre Gonçalo Domingues é rico , e . . : O namorado de Irene , ouvindo o nome do tio , lançou em torno de si os olhos , como se receasse que ali aparecesse ; lembrou-se que passava o tempo e ele podia , de volta a casa , não o encontrar , se fosse grande a demora ; recordou a causa do seu passeio , e fazendo um gesto de despedida , deu alguns passos em direção à porta da cidade : -- Se for necessário o antigo companheiro das folias , não o poupeis . Os meus trapos nunca vos fizeram voltar o rosto , quando nos encontramos , e hei de mostrar que não tendes feito mal , Fernando , disse o ex-noviço , estendendo ao jovem um pulso que não era fraco . Ah ! exclamou em seguida ; não vindes do lado de S. Domingos ? -- Não : -- Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaia ? -- Não : -- E que tens a ver com o senhor alcaide , meu velhaco ? disse uma voz , que logo João Bispo reconheceu por ser de Telo Rabaldo : -- Ah ! sois vós ! murmurou o interpelado , visivelmente contrariado por aquela aparição , enquanto Fernando deitava a correr pela rua abaixo : -- Vosso servo , disse o pai dos velhacos , tirando com ar zombeteiro o seu barrete e segurando pelo capuz a João Bispo . O fidalgo decerto que só com fidalgos tem trato e por eles procura ; porém como está em beetria , para não haver desaguisado , pondo-o fora , dou-lhe companhia mais chã ; mas que lhe fará bom agasalho . Vamos ! exclamou mudando de tom ; para as tercenas já ! -- Senhor||_Telo Telo|_Telo , porém . . : -- Vais secar a goela sem proveito : -- Senhor||_Telo Telo|_Telo , quisera falar a Rui Pereira : -- Agora é com Rui Pereira ! Grandes são os negócios ! Bravo ! continuou o pai dos velhacos , medindo João Bispo de cima abaixo , como minutos antes fizera o sobrinho de Gonçalo Domingues , e como ele admirando a mudança que na roupa havia ; bravo ! Parece que vamos ter contas graves a ajustar ! Cortaste bolsa , ou arrombaste a porta a mercador ou algibebe para vires assim garrido ? -- Sou besteiro do rei : -- Besteiro do rei desde quando , velhaco ? desde que fugiste com a filha do velho Humeia ? -- Está excomungado ! credo ! gritou uma velha do pequeno juntamento que se fizera à volta dos dois interlocutores . Ter contratos com aquela condenada moura , aquela ... ! A mulher disse nome que lhe valeu de João Bispo um murro , que levava a força proporcional à raiva que lhe causara a abelhuda comadre , insultando Garifa : -- Olhem o maldito ! gritaram duas companheiras da agredida . Onde está a justiça ? Que faz o senhor bispo que o não manda açoutar bem açoutado ? E atreve-se em rosto do senhor||_Telo Telo|_Telo . . : -- Calem a boca , serpentes ! berrou o pai dos velhacos , fazendo um gesto e abanando o seu bastão : -- Serpentes ? grunhiu a velha , segurando com a mão os dentes que o soco pusera em vésperas de despedida : -- Serpentes ? pipilou uma das novas , esganiçando-se : -- Serpentes ? resmungou a outra , ferrando os pulsos nas ancas : -- Serpentes ! gritaram , grunhiram e pipitaram entre gargalhadas e em todos os tons os garotos que já embaraçavam o trânsito : Telo Rabaldo viu a sua dignidade comprometida , o que não poucas vezes acontecia , e tratou da salvar pelos meios usados ainda hoje em embaraços -- pela força ; e como à mão não tivesse se não a sua , foi dessa que se serviu : Segurando sempre o namorado da moura pela extremidade do capirote , fez rodízio com o seu bastão ; tomando-o pela parte superior , e uma escala salteada de " ais " e " uis " saiu dentre a roda de curiosos e curiosas , que aumentava : -- O senhor alcaide ! aí vem Aires Gonçalves ! gritaram duas vozes quase ao mesmo tempo : -- Tolhido sejas tu , maldito ! resmungou João Bispo , lançado em apuros com semelhante aparição : -- Senhor||_Pero Pero|_Pero ! senhor||_Pero_Beduido Pero|_Pero_Beduido Beduido|_Pero_Beduido ! berrou o pai dos velhacos , para o capitão de besteiros , que , seguindo o alcaide de Gaia , se dispunha a embarcar para o castelo , e desaparecia por um dos postigos : -- Já nada faço , disse consigo o ex-noviço deitando o olho a ver se o capitão acudia ao chamamento . A pele corre-me agora grande risco , se desconfiam de mim . Com a boca no pixel não os apanho já ! -- Olé , senhor||_Pero Pero|_Pero ! sua mercê não me diz se este velhaco tomou serviço ? prosseguiu Telo , querendo arrastar consigo João Bispo , mais talvez para à sombra do capitão dos besteiros se fazer acatar , do que pela curiosidade de saber se o namorado de Garifa lhe mentira , ao que estava bastante afeito , para regular a sua justiça pelo humor em que o apanhavam e não por depoimentos e confissões . Em matéria de confissões dava fé ás feitas em potro , ou de borzeguins , quando estava de boa feição , e felizmente não era isto raro : -- Grande velhaco ! continuou , dirigindo a palavra ao seu prisioneiro ; ainda há pouco não tinhas que dizer a todos os fidalgos ? Mais depressa se pilha um mentiroso do que um coxo : pero Beduido , ouvindo a voz do pai dos velhacos , parara junto do postigo , que dava sobre a margem do rio , e retorcendo o bigode piscava os olhos para concentrar os raios visuais afim de melhor reconhecer quem o chamava . Aires de Figueiredo parara igualmente : Quem não deve não teme . João Bispo sentia os seus arrepios pelos lombos , porque um pensamento , que o leitor experto , e que decerto se recorda do diálogo apanhado atrás do reposteiro , adivinhará , o punha , na consciência , em hostilidade com o nobre alcaide , e se na presença dele Telo Rabaldo de novo se referisse à entrevista que pretendia ter com o tio de Nuno Alvares , a vida corria-lhe grave risco . João não tinha , porém , cursado em vão os estudos em S. Francisco e a escola prática de velhacarias dos terreiros , praças e betesgas da cidade da Virgem , para não achar um expediente bom ou mau com que se saísse de apuros , momentaneamente que fosse . Telo segurava-o , tendo-o quase esganado pela extremidade do capirote , e o cabeção deste fechava no peito e garganta por meio de quatro grossos botões . Desabotoado estava livre : -- Senhor||_Telo Telo|_Telo , senhor||_D._Telo D.|_D._Telo Telo|_D._Telo ? ! murmurou o rapaz , levando as mãos já aos botões , e esgotando no submisso , no plangente da voz , e naquele " dom " , o último recurso oratório : -- Ah ! cão , velhaco ! Eu te . . : O pai dos velhacos não concluiu a frase : um cascudo que preparava como paga da nobilitação dada ao seu nome , deu-o no ar , e com o costado no mesmo momento apalpou o chão , depois de abalroar com as canelas de alguns curiosos : Um coro formado de um uníssono de gargalhadas e de gritos ensurdeceu os vizinhos que enchiam as janelas e atulhavam as portas . As gargalhadas provocara-as o desastre de Telo ; os gritos soltaram-nos os que abriam caminho a João Bispo . O amante de Garifa deixando o capirote na mão do pai dos velhacos , que perdera o equilíbrio , metera mãos à adaga e corria na direção da Ferraria : Ao passar em frente do postigo um acontiado da beetria tomou um virote para lhe embargar o passo : Aires Gonçalves , ao mesmo tempo que Pero Beduido , reconhecendo no fugitivo um dos seus homens , lhe sustava o arremesso , gritou em voz bem alta para chegar aos ouvidos de João : -- Cão , vilão , se tocas num dos meus homens ! . . : E a mão do fidalgo pousou como complemento de frase no punho do estoque : O acontiado fez uma careta de despeito , baixou o virote , e quando o fidalgo voltou costas , deu com ele com uma força tal de encontro à parede , que o fez voar em hastilhas , resmungando : -- Cães e vilões ... cães e vilões ! A nossa vez há de chegar , traidores , loucos ! E a linda Irene , a filha de João Ramalho ? Irene , das primeiras falas trocadas com Fernando , colheu um resultado quase igual ao que este obtivera . A impressão primeira foi a da alegria : Deslembrada da aparição de mestre Gonçalo , quando foi ao encontro da cuvilheira , que a chamara , a fisionomia iluminara-se , reproduzindo toda a felicidade que lá ia por dentro naquele coração . à pergunta que lhe fizeram , mas não ouviu , respondeu com um abraço na velha , que , mal afeita , pela sua rabuje , a tais carinhos , abriu grandes olhos , e o espanto desta subiu ainda , levando-a a benzer-se , quando viu que , sem lhe prestar atenção , a jovem começou a entoar uma copla de amores , desses cavalheirescos amores da época . Aquela alma de virgem saudava o enfloramento da nobre paixão que no seio lhe germinara , e a velha , como Gonçalo Domingues a respeito de Fernando , nem se quer pensou que nessa exaltação entrasse por alguma coisa o jovem , de quem já havia notado os passeios em frente da casa -- o que a levara a fazer-lhe carrancas de sobrecenho capazes de afugentar qualquer outro que não fosse um namorado : -- A menina Irene namorar ! a menina que depois da morte da nossa ama tenho criado com todos os cuidados ? ! pensava ela com os seus botões , quando lhe vinham desconfianças , ou as vizinhas , pela sesta , no cavaco quotidiano que tinha depois de arranjados pratéis , agomias , sartã , púcaros e mais aprestes de cozinha , notavam o volver de olhos de um ou outro alindado da terra : A tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva tinha de si para si que o coração de Irene se abriria só quando ela , ou o senhor João Ramalho muito bem quisessem : As tias Genovevas ainda hoje não são raras : A linda jovem , quando a deixou a cuvilheira , insensivelmente começou a refletir nas palavras de Fernando , e pouco a pouco no rosto e no coração começou a tristeza a vencer . A pobre não sabia que o amor se não traduz bem em palavras , e esmorecera pensando que podia não ser amada , ao passo que bem sentia definir-se-lhe no seio a paixão ; e quando , noite cabida , a velha trouxe para o quarto de trabalho um velador do qual pendia um graúdo candil , não respondeu ás " boas noites " dadas , possuída de sentimento bem diverso do que horas antes a distraíra . Ainda mais : a tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , ao espiar a roca e terminar a última ave-maria da coroa que todas as noites rezava à Senhora||_da|_Silva da||_da|_Silva Silva|_da|_Silva , para a ter pela sua intercessora ; a tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva notou uma a balouçar-se nas cileias da linda jovem , como aljofre matutino nos estames de uma flor : -- Porque chora , menina ? perguntou a velha criada tomando-lhe o rosto entre as mãos , para melhor se certificar de que não era ilusão sua aquele choro : -- Chorar ... eu ? murmurou Irene , limpando os olhos : -- Sim , a menina . Então não veem o espanto que faz ? -- É que eu não choro ... Porque havia de chorar ? -- Porque ? Ora sei eu o porque ? -- Nem eu . . : -- Credo ! Anjo bento da minha guarda ! Feitiço por certo lhe fizeram ! De tarde a rir e a cantar como uma louquinha , e a fazer-me momices carendeiras ; agora a choramingar sem que nem para que ! É quebranto , menina ... é feitiçaria ; e bem fará em pôr esta noite debaixo da almadraquexa um ramo de arruda : A velha atinava : que maior feitiçaria que a do amor não pode haver . Só ele tem o privilégio de dar a uma palavra eco que , por vezes , dura até com ele se casar já bem fraco o das últimas preces : de perpetuar uma imagem perante os olhos até que os cerre o frio osculo da morte : Pranto e risos , sucedendo-se rapidamente sem explicação para quem os vê , sem explicação mesmo para quem os sente humedecer as faces , ou descerrar os lábios , são em geral o resultado vulgar do toque da vara do grande feiticeiro : enquanto o feitiço conserva toda a força , o choro é como os chuveiros de Maio , que veem como para fazer ressaltar o sol que lhes sucede , ou como os orvalhos de Junho , que refrigeram as flores ; quando o feiticeiro se ausenta , o riso é como o luar em noites de Fevereiro , quando tudo é silêncio : contrista como ele , · traz melancolia . lágrimas da linda filha de João Ramalho eram chuveiros de Maio . Correndo à vontade sobre o travesseiro , em que não pusera a arruda , não lhe imprimiam nas faces a aridez ; regavam , permita-se mais esta imagem entre tantas , o amor que , como no sobrinho de Gonçalo Domingues , repetimos , se definira naquela tarde : O amor na juventude , no sexo que chamamos frágil , porque nós , que nos dobramos a todo o momento aos seus pés , lhe esmigalhamos o coração num círculo de ferro chamado positivismo , realidade e conveniência , quase sempre nasce entres as lágrimas das que chorava Irene quando repetia baixinho , consigo , o nome de Fernando ; as lágrimas que rebentam espaçadas , demoram-se nas pálpebras , e descem lentas pelo rosto : No outro dia muitas vezes correu a jovem namorada à janela da praia , muitas à que dava para o lado do monte , e impacientou-se e entristeceu-se quando viu cair a tarde sem aparecer o sobrinho do forçureiro ; no domingo , durante a missa do dia , na velha igreja de S. Pedro , fez cochichar umas poucas de comadres , que lhe ficavam na retaguarda , tantas foram as vezes que voltou , durante o ofício , a cabeça para o lado da porta , e ainda mais se impacientou e entristeceu quando , feitas perante todas as imagens as estações que eram da devoção da senhora||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , regressou a casa sem ver uma sombra rastejando ao lado dela ( que olhar face a face , de perto , para Fernando , nunca a gentil menina olhara ) sem ouvir certas passadas , que distinguia de todas as outras e lhe causavam uma impressão nervosa agradável : Neste descontentamento , sentada na varanda , que tentamos já descrever , prestava atenção a todos os ruídos , quando a velha criada com quem João Ramalho havia conferenciado depois de jantar , arrastando um tamborete de pau e umas contas com que se entretinha todas as vezes que não trabalhava ou dava à língua , lhe veio fazer companhia . Genoveva engorolou um pater e tossiu ; engorolou outro pater e tossiu outra vez ; terceiro pater a meio e mais prolongada foi a tosse , e , ao findar , a esta juntou um arrastar de tamborete e um suspiro . Era evidente que rebentava por falar ; porém a sua jovem ama estava bastante distraída para notar todos aqueles preparativos oratórios . A velha ainda se resignou a fazer passar mais algumas contas , a mudar o tamborete da direita para a esquerda e a passar na tosse do piano ao forte , do moderato ao vivace e até à fúria ; mas vendo que era trabalho perdido , pousou o rosário , puxou a touca , cruzou os braços sobre a barriga e exclamou : -- A menina que tem ? -- Nada , respondeu Irene , olhando pela abertura da zelosia para o céu , que mostrava um azul soberbo : -- Nada ! Então eu estou cega ; há dias que não sei o que tem ... anda triste ! . . : -- Triste ? atalhou Irene , com um desses sorrisos , que se denunciam como contrafeitos . Ainda esta manhã me disse que andava com a cabeça no ar , e achou que ria como louca ... não sei quando . . : -- Sim , sim : veja se me engana com esses risinhos secos , menina . Por mais que faça não me faz acreditar que não está magoada . Eu desconfio que . . : -- De que ? interrogou Irene , fazendo-se vermelha , julgando ser do sentimento dominante no seu coração que lhe iam falar : -- Nada , nada . O senhor seu pai não lhe falou ... não lhe deu a entender . . : -- Meu pai , disse a jovem sobressaltada , não me disse coisa alguma . . : -- É que ... pensei . . : -- o que , Genoveva ? Que tinha meu pai a dizer-me ? -- Nada , nada ; respondeu a velha , recomeçando de novo o rosário : -- Não , alguma coisa era ! Diga , diga , Genoveva ; meu pai está de mal comigo ? -- De mal ! ele que não vê outra coisa , que a traz nas palminhas das mãos , apesar daquele modo assim de poucas palavras ? ! Se se amofina é . . : -- Acabe ! suplicou a jovem : -- Triste já está a menina ; para que a entristecer mais ? disse a criada mastigando . -- Não me quer entristecer mais ? Pois que há ? exclamou a filha de João Ramalho , erguendo-se com a ansiedade pintada no rosto : -- É ... nada , nada , redarguiu a velha . E baixo acrescentou , tornando a carregar a roca : -- Cala-te , boca . Ora , não ia eu já dizer tudo ? O aparte da cuvilheira , por uma mania que tinha de sempre dar à língua para que a ouvissem , pareceu-se com todos os apartes do teatro , e mais ansiosa ficou Irene : -- Jesus , Genoveva ! Sucedeu alguma coisa ? -- Nada : é que . . : -- Acabe por uma vez : -- Como tem de ser ... porém , olhe , triste já a menina está , e quanto mais tarde . . : -- Está a fazer-me mal , minha boa Genoveva ! exclamou Irene , juntando e erguendo as mãos em ação de súplica : -- Ora vejam ! mal é que eu lhe não queria fazer ; mas visto que teima . . : sempre lhe digo : o seu pai embarca por estes dias : -- Embarca ... disse a jovem tornando a sentar-se . Julguei que fosse outra coisa . Não estou já afeita a ver partir meu pai , todos os anos , uma , duas e três vezes para essas terras de cristo ? Se pudesse fazer com que não andasse sobre águas do mar , exposto ; porém . . : -- Ao mar , atalhou Genoveva , já o senhor||_João_Ramalho João|_João_Ramalho Ramalho|_João_Ramalho está afeito : Parece que tem todos os santos e santas por ele ... e merece-o , que não há tempestade que mal lhe faça ; e mais dizem que são bem más as da Inglaterra e Flandres ! Mas não é agora só o mar . . : -- Então que mais é , Genoveva ? -- É ... que ... que volta a Lisboa ... e . . : -- Jesus ! agora ... que anda a guerra por lá ! . . : -- Deus há de querer que nenhum mal lhe venha , e eu hei de recomenda-lo muito à Senhora||_da|_Silva da||_da|_Silva Silva|_da|_Silva e à Senhora||_do|_Amparo do||_do|_Amparo Amparo|_do|_Amparo , as duas santas de mais valimento que há no céu ... de maiores milagres pelo menos ... ao Senhor||_S S|_S : Pedro , advogado da gente do mar , e ás almas milagrosas ! redarguiu a senhora||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , fazendo uma espécie de mesura a cada nome dos beatos patronos que proferia : -- Bem me dizia o coração que destas naus e galés chegadas me viria mal , disse Irene recordando-se naquele instante das palavras de Fernando : -- Mal ... mal ? Tenha fé em Deus , que é grande pecado descoroçoar assim : O senhor||_João_Ramalho João|_João_Ramalho Ramalho|_João_Ramalho , seu pai , se anda cuidadoso é por si , menina Irene : como está já uma jovem ... eu cá me entendo ... quer deixá-la bem amparada , em lugar seguro ; que nestes tempos revoltos , e nos que o não são , todo o cuidado é pouco . Como não vai lobo a redil nem raposa a galinheiro senão quando acha a porta mal cerrada e não há mastins para açular , queria deixa-la em abrigo seguro , e lembrou-se de um convento . Já dei recado para uma prima , que tenho , sergente em Entre-Rios , a ver como poderei ir fazer companhia à menina . . : -- Então , Genoveva , vamos para tão longe ! exclamou a linda jovem com voz magoada : -- Ainda não é decerto . É precisa licença do senhor||_D._João_Afonso D.|_D._João_Afonso João|_D._João_Afonso Afonso|_D._João_Afonso , e não sei que outras requestas ... e como não é para já o caso ... por estes dias . . : -- Genoveva ! Genoveva ! gritou do andar térreo o senhor||_João_Ramalho João|_João_Ramalho Ramalho|_João_Ramalho , fazendo estacar a faladora cuvilheira , que encetando um Padre-nosso num tom de voz que , sem ofensa da boa da beata , se podia comparar ao rosnar de um cão , desceu as escadas : -- Virgem santa , valei-me ! murmurou a jovem fechando uma na outra as mãos , brancas e delicadas , e deixando sobre o seio pender o rosto , que não desfeavam os assomos de tristeza : Irene assim permaneceu longo tempo , e quando ergueu os olhos orlava-lhe as pálpebras uma cor mais rosada que de costume , e lágrimas borbulhavam mais intensas do que as trazidas pela desconfiança de que Fernando Vasques não correspondesse ao afeto por ela consagrado . Eram mais intensas , porque junto com as arrancadas pelo amor filial -- pois bem-queria a jovem ao seu pai , com um extremo inexplicável , atenta a rudeza aparente do piloto , se é que uma força oculta a não fazia corresponder ao sentimento por ele votado ao único ente que na terra lhe restava , à imagem de uma esposa adorada com o fogo que empregam essas almas reconcentradas , os homens que jogam a vida sobre o mais terrível dos elementos , e passam dias e noites seguidas a soletrar no livro da natureza a página do infinito , em circulo fechado por céu e mar ; -- junto com as saudades e receios pelo seu pai , se ligavam penas avultadas pela sua imaginação , supondo-se já separada , longe de Fernando , clausurada para a vida talvez ; que no amor tudo é coado por um prisma que engrandece e multiplica os objetos : Ás lágrimas do travesso jovem sucedera a resolução : Fernando fizera-se homem ; ás lágrimas de Irene sucedia o aniquilamento : pode-se dizer também que se fizera mulher a pobre menina porque : a coroa do seu sexo é formada por essas perolas nascidas no coração , perolas que resgatam a própria culpa e a alheia . Para o resgate da humanidade Deus , tornado homem , deu o seu sangue ; para completar essa regeneração , para abrir ás mulheres as portas da vida , inflar-lhe no seio uma alma , verteu uma virgem : Irene chorava pela segunda vez , depois que se apoderara do seu coração a imagem de Fernando , quando lhe veio ferir os ouvidos um som distante e confuso ; confuso porque era grande o arruído que petintais , espadeleiros e galeotes faziam na praia , santificando o dia do descanso com libações frequentes de verde e maduro , cidra e outras bebidas . Era o som de um toque de caça , assobiado por um valente folego . A jovem estremeceu , quando se lhe afigurou reconhece-lo ; estremeceu e a alegria repeliu naquela cara as nuvens de tristeza com tanta ou mais rapidez de que nos leva a dar uma ideia dessa mudança . Ergueu-se e correu ao extremo da varanda , encostou à adufa o ouvido atento a linda namorada ; mas calara-se a marcha , e os berros da multidão iam num rinforzando prodigioso . Alguns minutos de ansiedade assim passou , com o seio a arfar , os lábios meio-abertos , deixando ver uma enfiada de dentes alvos como o fruto das camarinhas , com os olhos brilhantes , fixos , até que com novo sibilo rompeu um grito da jovem , um grito de alegria , e deixando a varanda subiu a assomar a cabeça por aquela história da janela das flores , onde com ela travamos conhecimento : A cabeça apareceu e desapareceu logo : Irene soltou outro grito , porque os seus olhos encontraram os do seu pai , irados , em vez de outros que decerto procurava carinhosos : Junto com o sibilo , com os gritos , com o bater das adufas da varanda e portadas da janela -- junto , se pode dizer , tal foi a rapidez da sucessão -- ouviu-se um grande fragor : A árvore do cercado oscilara e o muro da quelha fora a terra : A filha de João Ramalho deixou-se cair no estrado em que costumava costurar ; o piloto soltou uma praga , e a cabeça da tia||_Genoveva Genoveva|_Genoveva , que da cozinha presenciara parte desta cena , apareceu de boca aberta no quarto da donzela , persignando-se e abanando a cabeça como um manequim , pintando em toda esta gesticulação o seu pasmo , e terminando por entre dentes com esta frase , que havia de ser , como já fora , repetida milhares de vezes : -- Ora fiem-se lá nas inocências deste tempo ! O mundo vai perdido ! Em quanto Irene soluçava , Telo Rabaldo vociferava , sacudindo a poeira do gibão , e João Bispo evitava na rede de becos e escadas do bairro a sanha do besteiro e de alguns mesteirais , que o supunham réu de crime grave , ou queriam nele desacatar o alcaide , que viam , como a grande parte dos nobres , com maus olhos , no terreiro de S. Domingos havia grande juntamento de povo , e na portaria do convento e claustro da igreja se reuniam os homens bons da cidade , burgueses e cavaleiros ; que a ordenação de D. Diniz era desatendida durante aqueles transtornos , como o tinha sido por vezes , e depois havia de ser : Rui Pereira e a edilidade portuense combinavam os meios , já o sabemos por via de Luiz Giraldes , de corresponder ao apelo do Mestre , e corriam as coisas ás mil maravilhas . Afonso Eanes Pateiro e Álvaro da Veiga , bastante comprometidos com a aclamação do novo governo , juntamente com o rico mercador que fora despertar Gonçalo Domingues sopravam em pequenos conciliábulos o entusiasmo de amigos e conhecidos , e não perdiam o tempo : Os períodos mais ou menos bombásticos , mais ou menos curtos , tinham , depois de um ou outro comento , como ponto , a deslocação de dois ou três indivíduos , que se dirigiam a uma mesa cercada de tamboretes e cadeiras , onde dois homens vestidos de negro , um redondo , de nariz globuloso e vermelho , outro cor de pergaminho e de feições angulares , se viam ao par de alguns vereadores , afagando este com a rama da pena os lábios ressequidos , abanando-se aquele com um caderno de papel . Um dos patriotas segredava três palavras ou quatro ao ouvido de um dos alvazires ; os burgueses diziam outras tantas ; os homens negros traçavam algumas letras e algarismos , que liam em voz alta , e de tudo isto saía , pode-se dizer , a Milheira , a Estrela e a Sangrenta , o levantamento do cerco e bloqueio de Lisboa , a dinastia de Avis e -- quem sabe ? -- a salvação e civilização da Europa . Se julgam paradoxal a última parte , provem como sem os donativos daqueles bons homens se acudiria ao Mestre ; se este não se veria obrigado a tornar real o fingido embarque para Inglaterra ; se , simples João Pires , casaria com a exemplar filha de João de Ghaunt ; se haveria quem formasse um viveiro de navegantes tão destemidos , arrojados , para devassar a costa de Africa e penetrar na Ásia pelo Oceano , como o infante||_D._Henrique D.|_D._Henrique Henrique|_D._Henrique ; como sem o corte dado naquelas paragens ao poder otomano , se lhe sustaria a carreira vitoriosa dos seus estandartes , que chegaram a tremular junto dos muros de Viena , na costa da Itália , na Hungria e na Bohemia , que pendiam bafejados pelas tépidas aragens de Aldjesireh , da Arabia , e açoutavam os ares impelidos pelos ventos gelados na Polonia , se espalhavam nas águas do Mediterrâneo , no mar-Negro , no golfo Pérsico e no Oceano , e acobertavam os recebedores de páreas até ao Dekan : Se algumas circunstâncias concorreram também para este gigante resultado foram as narradas nos antecedentes capítulos , desde as dos namoros de Irene com Fernando e de Garifa com João Bispo , até à daquele virote quebrado : Não pensem que um escritor consciencioso escreva uma linha só com o fim de encher papel ; que invente um episódio pelo seu alto recreio : tudo aqui vem a pelo desde o mais somenos fato ao de mais vulto , e os leitores filósofos , que esquadrinham os fins morais , procuram o suco de todo o livro e folheto , farejam uma ideia em cada letra impressa , acharão neste romance demonstrações de que grandes sucessos , que pasmam do mundo , são como os nevões : um floco de neve , que rola do cimo dos Alpes , ao chegar ás fraldas destrói casas e plantios ; uns bigodes cortados em 1152 , ainda no século em que viviam estes nossos heróis , destruía cidades , assim como as bagatelas acima apontadas salvavam este canto da terra de ser hoje em dia ... um pachalik ou coisa pior :