A ERMIDA DE CASTROMINO ROMANCE POR A. A. Teixeira De VASCONCELLOS Socio effectivo da Academia Real das Sciencias de Lisboa 2.a EDIÇÃO Com o retrato do auctor e revista por elle LISBOA TYPOGRAPHIA PORTUGUEZA Rua da Paz, 7 1875 Ao insigne poeta e esmerado prosador Visconde de Castilho Incomparável tradutor de Ovídio e Virgílio Em testemunho da veneração e respeito devidos Ãs suas incessantes fadigas litterarias , á inquebrantavel assiduidade com que promoveu sempre o melhoramento do ensino popular , e ao desvellado carinho e leal amizade com que distingue e favorece os homens estudiosos e honrados , offerece O seu maior devedor , amigo e criado , A. A. Teixeira de Vasconcellos . Foi principiado este romance em Pariz , na rua de Moscow n.o 11 , a 2 de julho de 1861 , publicado logo na Revista Contemporânea até á pagina 242 , que era a 159 da 1.a edição , e depois reproduzido na Gazeta de Portugal em que não chegou a sair completo . Não pôde o auctor concluil- o senão a 17 de novembro de 1870 em Lisboa , na travessa da Queimada n.o 35 , e n ' esse anno foi posto em livro . Esgotou-se a 1.a edição em menos de três mezes por grande favor do público , e fraternal benevolência da imprensa . E porque já não havia desde muito tempo exemplares á venda nas lojas de livros , se fez agora na typographia do Jornal da Noite esta 2.a edição no formato de outros livros do mesmo auctor , em papel excellente , e com typos inteiramente novos , formando avultado volume de mais de 450 paginas , novamente revisto e correcto . Luziadas . C. III . Est. CXIX . Em píncaro dos mais elevados , na cordilheira que os antigos denominavam Montes Hermínios e que nós hoje intitulamos Serra da Estreita , divisava-se , haverá talvez vinte annos , uma pequena capella . O povo de Valezim que ficava próximo na raiz da montanha , chamava-lhe mui naturalmente a Ermida da Serra . Alguns homens discretos , moradores de S.||_Romão Romão|_Romão e de Longa e entendidos em tradicções históricas , sustentavam que se devia dizer Ermida de Castromino . Segundo a opinião d' estes doutos archeologos , Castromino era derivação e corruptela da expressão romana Castram Herminii , e affirmavam que tal fora sempre o nome do pico alcantilado em cujo cimo surgira inesperadamente a ermida . Consinta o leitor que para não desprazer aos sábios , nem desgostar o povo que tantas vezes sabe mais e diz melhor do que elles na candura e singeleza da expressão , eu use , ora duma , ora d' outra , d' estas duas denominações . A posição era altíssima . A subida em extremo dificultosa . Principiava o caminho no oiteiro que se encostava ao píncaro a meia altura pelo lado do oriente , e seguia em forma de espiral á volta da immensa pyramide truncada que as revoluções physicas do globo haviam erigido ali . Parecia ter sido cortado na rocha com intento de vedar passagem aos que não fossem práticos d' aquella senda estreitíssima . O atalho a que a profundidade medonha do abysmo accrescentava a cada passo novos perigos , ia-se apertando de modo que em alguns sítios mal se encontrava onde poisar o pé , e em outros era mister subir a pique , meio metro ou mais , para achar a continuação da estrada que levava ao cume da montanha , e que em outros tempos fora mais larga e segura . Quem tinha ânimo de emprehender ascenção tão arriscada , e a intrepidez de a levar ao cabo , avistava para o poente horisonte vasto e formosíssimo , e no alto do pico podia sentar-se nos restos de um derrocado castro romano , que ainda resistiam á invencivel força do tempo . Depois é que das pedras , talvez affeiçoadas pela mão do povo-rei , veiu a edificar-se a capellinha . Para descanço e conforto dos peregrinos havia , desde a base até ao cimo do píncaro , dois ou três logares nos quaes a vereda alargava , espraiando-se em terrados não mui espaçosos mas sufficientes para repoiso de três ou quatro pessoas . Ali desapparecia o resto do caminho , e só alguns pastores sabiam descobrir-lhe a continuação por entre as asperezas irregulares do granito e as urzes que brotavam das fendas . Corriam annos e annos sem que assomasse viandante na cumiada d' aquelles escabrosos precipícios em que a Serra da Estrella se despenha para o occidente , e dos forasteiros que passavam em alguma das quatro villas -- Valezim, Arouca da Serra , Loriga e S.||_Romão Romão|_Romão , poucos -- raríssimos -- se deliberavam a investir com subida tão agreste . Em 1860 já a ermida era , como fora o castro romano , inteiro montão de ruínas . Houvera ali um eremita que por suas mãos construirá o pequeno templo , e abrira diante da porta três sepulturas . Sobre duas assentara desde logo campas arrancadas aos muros da fortaleza , e compostas de pedras rijamente ligadas com cimento . Na pedra mais apparente de uma das sepulturas mão esmerada lavrara o nome de ANNA . No outro tumulo lia-se o nome de SALVADOR . A terceira cova não tinha campa . Ainda não chegara o hóspede que havia dormir n ' ella o somno eterno . O ermitão conservava-a sempre limpa ; despejava a agua da chuva ou da neve que a enchia às vezes , e em tudo a cuidava como se fora guarida destinada ao derradeiro agasalho de leal amigo . No princípio descia ao povoado a comprar provimentos e a procurar os utensis que lhe eram necessários , os quaes nem sempre se encontravam em paragem tão desviada . Ia a miúdo conferenciar com o parocho da freguezia , e era voz que ali escrevia algumas cartas . Afinal o vigário mandava-lhe sem falta , de dois em dois dias , o sustento . O creado do vigário aproximava-se á base da montanha pelo lado que a natureza talhara perpendicularmente , e punha o mantimento no cesto que o ermitão guindava vagarosamente para o espigão do píncaro . Desde então nunca mais desceu a Valezim , nem á residência parochial . Era homem ainda moço , de estatura meã , e de tez morena e descorada . A barba e os cabellos negros para logo alvejaram como as pontas d' aquellas serranias . Nos primeiros dias da sua apparição em Valezim notou-se que trajava á feição da gente da cidade , porém na próxima semana já vestia de burel ao uso da serra , e depois nunca mudou de trajo . Em quanto viveu em Castromino não adoptou hábito ecclesiástico . Os pastores queriam-lhe muito . Ensinava-lhes a tratarem-se em caso de enfermidade , e frequentemente lhes indicava como acudissem ao gado doente . Eram receitas de execução fácil , de custo módico , e de effeito quasi sempre excellente . O povo dizia que o homem da ermida era santo , e tinha as curas por milagrosas . Foi-se a fama espalhando pela serra , e quando elle descia de Castromino , já o estavam esperando os seus amigos para lhe pedirem o remédio dos achaques d' elles ou do gado . Escutava-os o ermitão com carinhosa benevolência , e parecia alegrar-se de ver aquella gente rústica que sinceramente o amava . Depois deixou de vir ao povoado , os pastores cançados de olhar saudosamente para o trilho por onde o viam d' antes baixar , iam ter com o vigário . Este mandava com os provimentos um bilhete , e recebia a resposta immediatamente . Qaando o cesto descia , vinha n ' lle a receita pedida pelo párocho , e os pastores bemdiziam o ermitão da serra . Um dia chegou o criado do vigário e viu o cesto no chão , e a corda também . Perto estava um papel que o vento levara para junto do penedo mais visinho . O criado deixou os mantimentos confiados á guarda dos pastores , e correu á residência a entregar ao amo o bilhete do eremita . No papel estavam escriptas a lápis as seguintes palavras em letra que custava a ler : " Sinto próximo o fim da vida , meu bom amigo . Nao " sei se terei forças para chegar até amanhã . O meu " testamento está sobre o altar . Rogue a Deus pelo descanso da minha alma . Henrique , " O sacerdote , apesar da idade avançada e d' estação invernosa , veiu logo ao sítio , e offereceu boa recompensa a quem subisse ao elevado pico de Castromino a saber do ermitão . -- Qual recompensa , senhor vigário , responderam os pastores . Se o santinho está enfermo , vae-se lá já . Aqui está o João que é lesto e sabe o caminho . -- Prompto , acudiu o João rompendo por entre os companheiros . Encommende-me a Deus , senhor vigário . Com a neve que ainda ha , ninguém sabe o que póde succeder . -- Vae , meu filho , replicou o padre . A confiança em Deus ha de levar-te e trazer-te a salvamento . Se encontrares vivo o ermitão , deita uma pedra lá de cima . Se estiver morto , deita duas . -- Morto ? Pois ha de estar morto aquelle santo homem que tão nosso amigo foi sempre ! clamaram os pastores todos . -- E porque não , meus filhos ? A todos nós chega a hora derradeira . Olha , João ; se por desgraça estiver morto , pega no corpo e mette-o na cova aberta , cobre-o com a terra que está ao lado , até que a sepultura fique cheia , e põe-lhe em cima a campa que has de encontrar encostada á parede da capella , e que é egual ás dos outros dois túmulos . -- Eu tenho fé que não ha de ser necessário . -- Oxalá ! Não deixes os papéis que vires em cima do altar . Na ermida ha cordas . Larga uma para este lado , NóS lhe ataremos o cesto , e n ' elle mandarás os papeis . É melhor descer com as mãos livres . -- Sim senhor , senhor vigário , mas eu não tenho medo de descer ainda que viesse carregado . O peor é a neve , porém cá levo a minha foice para abrir caminho . O carreiro não é tão mau como isso , e ainda não aconteceu desgraça . E mais não sou eu só que lá tenho ido . -- Enganas-te meu João . Já n ' esse mesmo píncaro houve um grande desastre . -- Isso foi ha muitos annos , senhor vigário . Encommende-me a Deus . Estas últimas palavras do pastor já foram pronunciadas ao entrar animosamente na vereda tortuosa do pico de Castromino . Grande foi a angústia em que ficaram os pastores e o vigário . Seguiram com os olhos a perigosa ascenção do animoso mancebo , e viram-n* ' o apparecer por differentes vezes e esconder-se de novo na espira da vereda até chegar ao alto da montanha . Finalmente caiu uma pedra rolando até á base do pico . A ancia dos amigos do ermitão redobrou . A segunda pedra veio após a primeira . -- Oremos ao Senhor pelo descanso eterno d' aquelle nosso irmão , exclamou o vigário caindo de joelhos . Os pastores prostaram-se por terra a respeitosa distância do parocho , e resaram , pela alma do seu querido ermitão a segunda parte da oração dominical , em resposta à primeira que o velho padre recitara . O vigário ainda permaneceu ajoelhado . Quem escutasse o que balbuciavam os beiços d' elle , ouviria versículos daquela sublime e sentida súpplica do psalmista , com que a Igreja pede ao Eterno que na hora extrema se compadeça de nós pela sua grande misericórdia , e que pela grandeza das suas commiserações perdoe as nossas iniquidades , e nos purifique . Os pastores repetiam em voz baixa , e trémula de sincero pranto , o Padre||_Nosso Nosso|_Nosso pela alma do fallecido . A corda baixando de Castromino interrompeu a reza . Os pastores ataram-a nas azas do cesto , o qual depois de breve espaço baixou , trazendo dentro um maço lacrado com sobrescripto ao vigário . Duas horas depois chegou o João . Tinha encontrado o eremita ajoelhado contra o parapeito por onde costumava receber os mantimentos , os braços sobre a pedra , a cabeça reclinada em um d' elles , e a phisionomía tão composta como se estivera dormindo . O corpo frio e hirto . O pastor quiz endireital- o , mas apesar de robusto não o conseguiu ou lhe impediu o respeito empregar maior esforço . Teve de sepultal- o assim na cova designada pelo vigário . O ermitão , depois que se affastára inteiramente do trato com os homens , fora perdendo insensivelmente as forças até chegar ao último grau de extenuação e de magreza , a que a phtysica pulmonar reduz as suas victimas . Dava ao parocho informações amiudadas e exactas acerca do estado da sua saúde , e instruído como parecia ser nas sciencias medicas , não se esquecia de indicar a probabilidade de que em breve lhe chegasse o termo das penas d' esta vida . O João trouxe de Castromino o lenço que o ermitão apertava na mão direita , no qual havia laivos de sangue . O pastor pediu ao vigário que lh'o deixasse rasgar e repartir os pedaços entre os homens da serra . -- É relíquia de santo , diziam elles . -- Não , meus filhos , não é reliquia de santo . Só Deus sabe quem são os santos . -- Pois se este não era santo , também ... -- Parece-me que era bom christão , interrompeu o vigário derramando lagrimas . Repartam o lenço , meus filhos , não para relíquia mas em lembrança do amigo , e façam por serem honrados e caritativos como elle era . Deus o tenha á sua vista . -- Amen , responderam os pastores rasgando o lenço e beijando devotamente os pedaços ! No outro dia e ainda no seguinte celebrou o vigário missa de requiem pela alma do ermitão . No terceiro houve offício ao qual concorreram os padres todos daquela redondeza . Depois do funeral do capitão do Arnedo , que fora o mais rico proprietário da serra , ainda se nao vira tão numeroso ajuntamento . Os convites tinham sido assignados pelo vigário , e supplicavam a assistência aos ofícios fúnebres pela alma do eremita de Castromino sem declaração do nome do fallecido . Isto deu que fallar . Os padres antes da ceremonia religiosa reuniram-se em grupos no adro da egreja á porta da sachristia . Cada qual tinha curiosidade de saber o nome do ermitâo . Diziam uns que fora egresso , e que por affeiçoado á vida monástica se refugiara naquelle ermo . Outros affirmavam que era homem perseguido de morte pelos facinorosos da Beira . Alguém suspeitava que fosse criminoso arrependido . E a todos parecia na verdade muito censurável , que o vigário , sabendo de certo o segredo , nem depois da morte do eremita o quizesse revelar , sequer aos ecclesiásticos convidados para o offício ! -- É que lhe foi dito na confissão , replicou o vigário da vara , pessoa sizuda e amigo do parocho . -- Isso talvez , respondeu um dos padres . Mas sempre tenho por extraordinário que vivesse tantos annos no pico de Castromino sem vir a saber-se quem era ! -- Eu encontrei-o uma vez , volveu o vigário da vara . Foi logo ao principio quando andava a construir a ermida , e conversei com elle . Tinha boas fallas , aspecto sério , modos cortezes , e parecia homem de educação . Depois não o tornei a ver . A curiosidade dos padres subiu de ponto quando viram chegar Ayres de Mendonça e Albuquerque , vulgarmente chamado o Fidalgo do Serrado , com seu filho mais velho , ambos a cavallo , e acompanhados de dois criados de farda . Todos quatro traziam fumos nos chapeos . Era Ayres de Mendonça homem muito estimado na provincia da Beira , e pessoa de grande respeito por qualidade , riqueza e procedimento . Desde que fizera cincoenta annos , não tornou mais a enterros . Mandava sempre o filho , e nem a morte do capitão do Arnedo , que fôra official do regimento de milícias de que Ayres de Mendonça tinha sido coronel , o obrigou a sair de casa . Para vir da quinta do Serrado ali -- três boas legoas de caminho de serra e ainda na estação fria -- grande pessoa era o defuncto , diziam os padres , e de certo parente dos fidalgos ! Elles trazem fumos novos nos chapeos ! Apeou-se Ayres de Mendonça á porta da residência onde rematava o muro do adro pelo lado da sachristia , deixou os cavallos aos lacaios , e atravessando com pé firme a grade que impedia a entrada de animaes damninhos n ' aquelle recinto , aproximou-se dos padres . O vigário da vara e os sacerdotes mais conspícuos deram alguns passos para sair-lhe ao encontro . -- V. ex.a por aqui , sr.||_Ayres_de_Mendonça Ayres|_Ayres_de_Mendonça de|_Ayres_de_Mendonça Mendonça|_Ayres_de_Mendonça ! Caso raro ! Grande novidade ! -- Verdade é que a poucos enterros vou . Agora a nenhum . Estou velho e achacado , e já me custa bastante andar quatro ou cinco horas a cavallo . Mas este eremita era tão nomeado pelas suas virtudes , caridade e modéstia , que me resolvi a assistir-lhe ao funeral . Bastava ser convite do nosso honrado vigário e o defuncto amigo d' elle ha muitos annos . -- Então V. ex.a não conhecia o ermitão ? -- Nunca o encontrei na serra . Com esta resposta tiveram de callar-se os padres , e em seguida começou o ofício . No fim da solemnidade fúnebre foi Ayres de Mendonça descansar para casa do parocho em companhia de vários ecclesiasticos que acceitaram sóbria collação na residência . Quando se retiraram , disse Ayres de Mendonça para o vigário : -- Pobre Henrique ! Que vida ! Que martyrio ! -- É verdade , sr.||_Ayres_de_Mendonça Ayres|_Ayres_de_Mendonça de|_Ayres_de_Mendonça Mendonça|_Ayres_de_Mendonça . Se teve culpas , por largo espaço e duramente as expiou . -- Culpas , coitado ! Quaes podiam ser as culpas do meu bom Henrique , o homem mais honrado , e de coração mais nobre e leal que eu conheci n ' este mundo ? Já escreveu ao sobrinho ? -- Logo no mesmo dia . Amanhã chega aqui . O testamento ha de ser aberto na sua presença . -- Ah ! Tinha feito testamento ? -- Ha muito tempo , respondeu o parocho . Poucos mezes depois de se acolher ao ermo de Castromino , foi uma vez a casa do tabellião de Valezim e veiu de lá com testamento feito . -- Muito infeliz , exclamou Ayres de Mendonça limpando as lágrimas . Bem sabe quanto eu lhe queria . Além do parentesco próximo que ligava as nossas famílias , fomos sempre amigos desde o seminário em que nos educámos ambos , e sempre estivemos em correspondência até ao triste acontecimento que o affastou para tão longe . Conservo a carta que elle me escreveu então a contar-me tudo ... ! Não a posso ler sem chorar ! Bem desditoso foi ! -- Agora , volveu o vigário não menos commovido , está onde acabam todos os padecimentos d' este mundo . Deus ha de ter misericórdia da sua alma . Ayres de Mendonça despediu-se tristemente do parocho , e voltou com o filho para a quinta do Serrado . O vigário foi ajudar a dispor o aposento na sua modesta casa para o hospede que esperava . Com effeito no dia immediato pela tarde chegou á residência um cavalheiro moço com dois criados a cavallo , vários homens a pé , e uma espécie de liteira a que chamam andas . Na manhã seguinte abriu-se o testamento , no qual o ermitão nomeava herdeiro universal a seu sobrinho , de cujo bom coração e sentimentos briosos fiava quanto dizia respeito á sua pessoa e ás que mais prezara n ' este mundo , em conformidade com a carta fechada que estava no testamento . Pediu-lhe que em tudo ouvisse o vigário da freguezia , a quem legava a Bíblia do seu uso particular , encontrada sobre o altar com os papeis . Aos pastores mais desvalidos da serra deixava em legado perpétuo para cada anno um conto de réis cujo capital o herdeiro devia collocar segundo lhe parecesse melhor . A distribuição pertenceria ao parocho , então e para todo o sempre . Nesse mesmo dia o recem-chegado e o vigário foram com os criados ao sopé do pico de Gastromino . Encontraram lá os pastores e entre elles João , o que enterrara o eremita e repartira o lenço para relíquia . Quando souberam quem era o mancebo que acompanhava o parocho , cada pastor começou a narrar os favores que recebera do tio , e os remédios e as receitas que a todos ensinara , e o amor e carinho que a lhes tinha , como se na serra fora nascido e creado . Mal sabiam elles que se tratava de levar d' ali o corpo do santo eremita . Afinal foi necessário dizer-lhes a verdade . Pois apesar do respeito que tributavam ao vigário , não quizeram estar por isso . Homens e mulheres , velhos e creanças , gritavam que lhes queriam tirar o corpo do santo , o qual viria a ser o patrono da serra e do valle , para o levarem para a cidade onde não faltavam santos nos altares . Que se elle houvesse querido ser enterrado n ' outra parte , não teria aberto por suas próprias mãos a sepultura no pico de Castromino . E que ninguém havia de subir lá acima para tirar o corpo do santo . Estas allegações dos pastores não eram submissas , antes manifestavam firmeza de resolução e vigor inabalável para impedir a ascenção da montanha . Ao ouvir os gritos coléricos d' aquella boa gente , o parocho olhava para o mancebo como quem esperava d' elle a decisão , porém os pastores cada vez vociferavam tumultuosamente com maior audácia . -- Ó sr. vigário , dizia o João que , por ter prestado os derradeiros offícios ao cadáver do ermitão , já adquirira certa auctoridade entre os pastores , pois vossa mercê deixa ir d' ali os ossos do seu amigo ? -- Eu queria-os antes no cemitério da nossa freguezia . Desejava , como vós outros , que ficassem na serra mas enterrados em sagrado , respondeu o vigário no intuito de enfraquecer a fúria popular . -- Pois lá em cima também é sagrado . Lá está a capella , e é bastante . Nada . O corpo do santo não sae dali , exclamou o João . -- Isso não sae , gritaram os pastores todos . Ó sr. vigário , pelo amor de Deusl -- Eu não governo n ' estas coisas meus filhos . Aqui está o sobrinho do ermitão . Elle é quem manda . -- Mande quanto quizer , mas não venha tirar-nos o nosso santo . Ali ninguém bole , gritou o João acompanhado pelas vozes estridentes dos mais conspícuos ou atrevidos do bando . Nós vamos quebrar todos os degraus e todas as pedras do caminho , e depois vá lá alguém , se fôr capaz ! A manifestação popular tão pronunciada e enérgica fòra desacerto e crueza resistir . O sobrinho estava commovido de ver quanto a seu tio queriam aquelles pastores singelos . O vigário aconselhava-lhe em voz baixa que cedesse . Deixar os restos mortaes do tio , entregues á guarda affectuosa dos serranos , era boa acção , digna da venerável memória do defuncto , e dos sentimentos nobres do herdeiro . Por fim o sobrinho cedeu ás reflexões do parocho , e este disse aos pastores : -- Ora bem , meus queridos filhos . O corpo do ermitão ahi fica para sempre , no pico de Castromino . Cada um de vós lhe encommendará a alma a Deus nas suas orações . -- Viva o sr. vigário que não deixa levar da serra o nosso santinho ! Viva ! gritaram todos os pastores . O João voltando-se para o sobrinho accrescentou : Vá descançado que ninguém sobre mais á ermida até ao dia de juizo . E logo os pastores quebraram as pedras que abriam passagem para o cimo do píncaro , e ninguém lá pode subir depois . A ermida desamparada foi caindo com o tempo , e já mal se divisam hoje as ruínas que se confundem com as do crasto romano . Quando ha doenças no valle , acodem os enfermos á montanha , e fazem ali oração . Crêem que por intercessão do santo da ermida , como elles lhe chamam , sentirão allívio nas suas enfermidades . Também levam o gado doente a pastar a relva que nasce no oiteiro mais acercado do píncaro , e dizem que é medicinal por influição do santo . Quem era o virtuoso eremita , e como resolvera acoutar-se n ' aquella paragem agreste e alcantilada , ninguém hoje o sabe na terra . Os pastores dizem ter ouvido aos paes que era um santo . A gente mais culta que é pouca e espalhada pelas villas e logares , vive affastada da serra e esquecida ou ignorante d' estes successos . O vigário falleceu três annos depois da morte do ermitão . Ayres de Mendonça também já não é vivo . Ambos teriam levado para a sepultura o segredo , se a carta de Henrique ao fidalgo do Serrado não tivesse apparecido entre os papéis de Ayres de Mendonça , assim como a correspondência desde o seminário , em que se criaram , até á fundação da ermida . N ' estes documentos originaes foi colhida a história que vae ler-se . Era Manuel de Oliveira dos mais abastados negociantes de Coimbra e do reino . Consistia o seu tráfego na exportaçSo de vinhos da Beira e da Bairrada , de azeite e de laranja ; porém a importância dos capitaes reunidos na mão d' elle era tal , que não havia empreza avultada em Lisboa ou nas províncias , para a qual o não convidassem . A casa de Oliveira e C.a começara modestamente na villa da Figueira . Com o tempo o desenvolvimento das transacções mercantis exigiu que o chefe de tão complicadas negociações escolhesse a cidade -- Coimbra para residência pessoal , e que estabelecesse agências especiaes nos portos de mar , e em differentes sítios das províncias . Da casa de Coimbra , dirigida sempre por Manuel de Oliveira , partia o impulso a que obedeciam as outras . A centralisação , de cuja utilidade tanto duvidam hoje os políticos nos assumptos de administração pública , era para o commerciante coimbrão de vantagem incontestável na direcção dos negócios mercantis . Tão certo é que por mui differentes princípios se governam os Estados e se administram os bens dos particulares , e que nem sempre sabe dirigir os negócios da republica o homem que discretamente provê os próprios ! Tinha immenso crédito a firma Oliveira e C.a . As lettras da sua casa corriam por oiro no reino inteiro , e valiam em Inglaterra , em Allemanha e na America , como as libras esterlinas , os marcos de banco , e os dollars cuja somma a penna traçara no papel . Não havia em Portugal memória de negociante que tivesse chegado , como Manuel de Oliveira , a tão inalterável reputação no velho , e novo mundo . Chamavam-lhe o Quintella de Coimbra . Nas terras estrangeiras appelidavam-o O Rothschild Portuguez . Avultava grande riqueza na importância e numero das transacções que intentava e proseguia , e igualmente no fausto de casa e nas magníficas funcções que dava todos os annos desde que sua filha D. Anna recolhera do convento de Pereira , onde fôra receber os derradeiros elementos da educação superior . A cidade -- Coimbra nomeára- o por differentes vezes presidente da camará municipal . Em duas legislaturas mandára- o a cortes para defender os interesses da terra e a pugnar pela conversação da universidade . Dizia-se então que o governo tencionava dissolver a célebre academia portugueza , transferindo algumas faculdades para Lisboa , e outras para o Porto , boato que trazia assustados e receiosos os habitantes de batina de lila , e os que vestiam sobrecasaca ou jaqueta . O cargo de provedor da Misericórdia andava por consenso unânime na pessoa do honrado negociante desde tempos mui afestados . Manuel de Oliveira não gostava da vida pública . A sua paixão fora sempre o commercio em que se creára . Tinha outra . Era o amor á única filha que lhe ficara por morte de sua mulher . Deixar a D. Anna a máxima riqueza possivel , e còllocal- a em situação izenta de qualquer eventualidade perigosa , era a principal ambição do velho commerciante . Os cargos públicos desviavam-o dos seus intuitos , e tiravam-lhe o tempo . Nas cortes , onde se mostrara orador fácil , claro e dotado de grande juízo prático , tinha tratado com esmero e conhecimento de causa as questões económicas e financeiras , e o nome dele fora desde logo inscripto na lista pouco numerosa dos homens aptos para serem ministros da fazenda ; porém Manuel de Oliveira não podia acostumar-se ao andamento vagaroso das discussões , nem assistir com paciência ao espectáculo das tramas astuciosas com que os partidos conseguem accelerar ou adiar a resolução das questões , segundo as próprias conveniências e muitas vezes sem attenção ás dos povos . Cansado das lutas partidárias , de que todavia só fora testemunha , renunciou todos os cargos no reino e na cidade . Conservou , porém , a instâncias dos mesários a provedoria da Misericórdia , cujos valores , muitos annos havia , se guardavam nos cofres da casa Oliveira e C.a por deliberação especial da mesa a requerimento do thesoureiro . A responsabilidade do depósito e guarda do cofre da Misericórdia , amedrontava os thesoureiros . Não havia quem tal encargo acceitasse . O último nomeado declarou que o não recusaria , se Manuel de Oliveira quizesse incumbir-se de conservar em seu poder os valores e de mandar fazer a escripturação . A confiança que todos tinham na casa de Oliveira e C.a , era igual á que merecem os bancos acreditados . Assim se fez . O sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira cedeu aos rogos da mesa ; o thesoureiro ficou sendo nominal ; e o exercício d' este cargo veiu de facto a juntar-se com o de provedor , como o de ministro das obras públicas já andou reunido ao de ministro da fazenda com acalorado despeito da opposição , e ainda maís afogueada teima dos ministeriaes . O Quintella de Coimbra orçava pelos sessenta annos . Era de estatura pequena que a obesidade adquirida na vida sedentária fazia parecer menos elevada . As feições , regulares e finas . Os olhos , pequenos e vivos . Os cabellos que lhe cercavam a calva , inteiramente brancos . O aspecto , bondoso e paternal . O porte , grave sem affectação nem severidade . D. Anna ainda não completara vinte annos . Era menina de compleição débil , mas com certa firmeza no olhar e em toda a physionomia que revelava immensa força nervosa , vontade inabalável , e grande superioridade moral . Tinha branquíssima a tez , e os cabellos loiros como os de sua mãe , respeitável senhora , filha de um antigo negociante inglez , vindo para a Figueira , e que nunca mais quiz voltar á Grã Bretanha . Também de ingleza era o que mostrava . O oval do rosto , o ar do corpo , a flexibilidade dos movimentos , a indolência natural da postura , eram portuguesas de lei . Nos olhos que o antagonismo das duas raças fizera verde-negros e rasgados , transluzia a procedência árabe a que ninguém escapa na península . A senhora -- Stonehouse , que assim se chamava do nome paterno a mulher de Manuel de Oliveira , começara a educação da filha com summo cuidado , e consagrara a tão nobre empenho a vida inteira . Recebeu D. Anna as primeiras noções do saber humano sob as vistas e direcção da mãe , que mesmo na quadra dos estudos secundários tomara a seu cargo ensinar-lhe o latim , o inglez e o allemão . A filha de Manuel de Oliveira amava o estudo . A curiosidade do espírito juvenil augmentava com o allimento que lhe davam os professores , porém o gosto da cultura intellectual não prejudicava a applicação aos encargos domésticos , próprios do seu sexo . A senhora||_Stonehouse Stonehouse|_Stonehouse queria que a filha fosse instruída e bem educada , porém que ficasse mulher . Rapariga masculina , dizia ella , nunca pôde ser boa mãe de familia , e ha de querer ter marido de carácter feminino ! Para evitar este escolho das educações mal dirigidas , a mulher de Manoel de Oliveira esmerou-se em convencer a filha de que o cumprimento dos nossos deveres é a primeira obrigação da vida , máxima em que se basea o ensino moral em Inglaterra . N ' este ponto a educação de D. Anna foi inteiramente ingleza . A senhora||_Stonehouse Stonehouse|_Stonehouse morreu de cholera , deixando a querida filha já cerca dos dezesete annos . Partiu d' este mundo a virtuosa mulher de Manuel de Oliveira com a esperança consoladora de que D. Anna seria filha submissa , esposa desvelada , mãe de família exemplar e carinhosa , e em tudo digna do affecto e das bênçãos de seos paes . Pouco tempo depois foi a menina para o convento de Pereira , cuja fama em matéria de criação feminina era mui antiga em Portugal , e anterior ás experiências de irmãs da caridade estrangeiras ou nacionaes . Ali esteve um anno , findo o qual , veiu viver para Coimbra em companhia do pae . Desde que D. Anna chegou do convento não cessaram as festas em casa . Foram primorosos os bailes do inverno . Os jantares patentearam a rara habilidade do cosinheiro italiano , que Manuel de Oliveira mandara vir de Milão . O velho exportador de vinhos gostava de ter cheias de gente as salas da sua casa , cuja riqueza não era desprovida de gosto , antes rivalisavam com as melhores da corte no custo dos moveis e ornatos , e no acerto da disposição . A casa de Manuel de Oliveira concorriam as famílias principaes da cidade , os lentes de maior consideração , os estudantes mais distinctos , e já se sabe , todas as auctoridades civis , militares e ecclesiasticas . Não vinha cavalheiro a Coimbra que o não fosse procurar , ou porque já o conhecia , ou porque trazia carta de recommendação para elle . D. Anna ajudada por uma tia idosa , que ora fazia de dona de honor , ora parecia querer exercer as funcções de mãe , acolhia a todos com graça e agrado natural , e encantava quantos iam a sua casa . As senhoras mais severas admiravam-lhe a gravidade do porte . Os professores não se cansavam á busca de assumpto para conversarem com elia , porque em todos a encontravam sufficientemente instruída sem affectação nem vaidade . Os ecclesiásticos notavam a exactidão com que se desempenhava dos deveres religiosos , e a sua affectuosa caridade em soccorrer os pobres . E todos eram testemunhas do carinho filial com que adoçava as magoas da viuvez paterna . Na cidade , e nos arredores não se fallava em outra cousa , e já cada um andava a querer descobrir quem viria a casar com tão portentosa menina . Belleza , graça , instrucção , bom caracter , innocência e grande riqueza , raras vezes se reúnem como em D. Anna se juntavam . Os pertendentes de intenção eram numerosos . Alguns que não ousavam pôr os olhos tão alto , diziam que o pae a destinava a certo conde de Lisboa , de cujas commendas elle fora arrendatário , quando havia commendas para arrendar , e fidalgos que consumissem os dízimos de Siam nos tripúdios de Babylonia . Em quanto o pensamento inquieto dos ociosos de Coimbra lhe andava buscando noivo de uma a outra extremidade do reino , D. Anna vivia no lar paterno , mui affastada de taes intentos em que Manuel de Oliveira ainda não pensara maduramente . Saía de manha a cavallo acompanhada por dois creados , e às vezes por alguma das pessoas que frequentavam com maior intimidade as reuniões da família . Recolhia para almoçar . Depois tocava piano ou harpa , bordava ou lia , e á noite vinha da sala do jantar pelo braço do pae para a sala chamada das visitas , onde quasi sempre já estavam os parceiros do whist de Manuel de Oliveira , e alguns rapazes e pessoas da terra . Eram únicos em Coimbra estes serões de conversação prazenteira e innocente . Outras famílias convidavam para casa em certos dias do anno os amigos e visitas , mas nenhuma abria as portas das suas salas quotidiamente para reunir as pessoas conhecidas em companhia amigável , e sem cerimónia . A indifferença política de Manoel de Oliveira mantinha ali campo neutro onde se encontravam sem repugnância nem rancor os indivíduos mais desavindos entre si . As qualidades de D. Anna attraíam muitos . O ar alegre d' aquellas reuniões convidava grande número . O costume determinava alguns , e obrigava os restantes a auctoridade incontestável do honrado negociante . Ainda se recordam com saudade da casa de Manuel de Oliveira as pessoas d' esse tempo ; nem passam no sitio d' ella sem lamentarem que tão cedo se desmoronassem aquellas salas , onde o bom velho ralhava com o parceiro por não lhe vir ao naipe que elle jogara , e em que D. Anna e a própria tia , apesar dos esgares de velha e do azedume de solteirona involuntária , a todos manifestavam sincero affecto , despedindo-os contentes de si próprios e de quem os recebera . Ver como aquella familia se queria mutuamente , e como de tão íntimo affecto se derivavam sentimentos de benevolência para com todos , era exemplo e prazer para quantos se reuniam nos serões de Manuel de Oliveira . O velho commercíante observava da mesa do whisth com júbilo orgulhoso a roda de pessoas escolhidas que se deleitavam conversando com a filha . D. Anna attribuindo aquella concorrência numerosa á geral homenagem ás virtudes do pae , reforçava o amor filial com sentimentos de respeito e de admiração . N ' esta inquebrantada satisfação doméstica até a própria velha esquecia as tristezas do celibato , e folgava com a ventura da sobrinha e com o justificado orgulho do irmão . A pessoa que frequentava com maior intimidade a casa do respeitável negociante coimbrão , era Henrique de Mello , filho único do mais antigo fidalgo -- Coimbra , e parente mui próximo dos Osórios , dos Abreus , dos Coutinhos , dos Britos , e da nobreza toda da cidade . Ninguém estranhava a assiduidade das suas visitas . Estavam no costume de o verem entrar ali como se fosse da família Oliveira . Não proviera de união abençoada pela igreja o nascimento de Henrique . Seu pae , freire da ordem de Aviz , succedera na casa por morte de dois irmãos mais velhos . Era antigamente usual nas famílias nobres da província deixarem dois filhos para assegurar a successão , e repartirem os outros pelas ordens militares ou monachaes , onde os noviços iam encontrar tios veneráveis pela idade e pelos cargos que exerciam , e reunir-se com outros jovens fidalgos de diversas procedências , mais ou menos parentes seus . Tinha o pae de Henrique preferido a ordem de Aviz á de Christo e á de Santiago por tradicção de família . Os Mellos de Coimbra presavam-se de descender de el-rei||_D._João_I D.|_D._João_I João|_D._João_I I|_D._João_I , e em memória do mestre de Aviz não professavam em outra ordem . Depois que succedeu nos morgados e mais bens de seus paes , esteve inclinado a cedel- os a José de Mello , seu irmão mais novo , casado com uma rica herdeira do Espinhal . Veiu porém a namorar-se de certa senhora , ainda parenta sua , e resolveu pedir ao Papa dispensa dos votos religiosos para poder casar com ella . De amor e da esperança da dispensa nasceu Henrique . No princípio ninguém sabia da existência d' este menino , mas afinal o pae não pôde viver separado dele , e mandou-o vir para casa . Ahi começaram os rumores , e Roma sem conceder a bulla . O pae de Henrique foi a Itália , porém encontrou grandes difficuldades , até que a final , depois de ter dispendido sommas avultadas , obteve a dispensa mais facilmente por intercessão do bispo de Coimbra . Andava então Henrique nos seus desoito aunos . O breve pontifício veiu encontrar o fidalgo -- Coimbra no leito da morte , e seu irmão José de Mello a querer-se-lhe estabelecer em casa , como herdeiro e immediato successor . Apesar d' estas duas circumstancias realisou-se o casamento , dispensando o bispo nos pregões , e D. Barbara Coutinho , mãe de Henrique , assistiu aos últimos instantes de vida do amante , já esposa legítima . José de Mello intentou demanda para annullar o matrimónio , conseguiu entrar de posse dos bens situados nas províncias , e requereu embargo judicial nos dinheiros depositados no Banco . Ficou Henrique no goso da casa onde morrera o pae , e disfructando a pensão alimentícia arbitrada pelo juiz . Os jornaes ralharam muito de José de Mello , aggrediram o juiz com inaudita violência , e clamaram justiça em favor do orphão e da viúva , mas o vento levou pelos ares as folhas , e o que estava feito , ficou feito . Assim devia ser , que não tem ingerência nos tribunaes a imprensa , nem lhe é decente prevenir e illaquear o animo dos julgadores . Henrique tinha pensamentos nobres e grande energia . A perseguição desenvolveu ainda mais tão excellentes qualidades . Aconteceu-lhe como succedêra ao autor do Génio do Christianismo . Adormeceu rapaz e acordou homem . Aos desoito annos procedeu com a madureza dos quarenta . Vendo quão parcos meios lhe restavam para sustentar a D. Barbara , deliberou seguir carreira que lhe desse emprego constante e útil em qualquer parte . Escolheu a profissão de médico para a qual só tinha os estudos preparatórios ; porém como o curso era longo e dispendioso , foi procurar o sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira , e offerecer-se-lhe para secretário nas horas que as aulas lhe deixassem livres . O negociante gostou da deliberação do rapaz e , ou porque descobrisse n ' elle o gérmen de energia incansável , egual á sua , ou porque se lembrasse da amisade que tivera com o pae de Henrique , acceitou a proposta , dizendo-lhe que o reservava para as cartas mais particulares , e que só carecia do seu trabalho ás 4 horas da tarde , e até ás 6. Desde esse dia Henrique de Mello teve entrada franca no gabinete de Manuel de Oliveira , convite permanente para jantar aos domingos , e cincoenta mil réis por mez . Não era nenhum o trabalho . O negociante acceitára o pretexto para ajudar Henrique a formar-se , sem parecer dar-lhe esmola . O ordenado pago pela mão do próprio Oliveira lançava-se nos livros como dinheiro para gastos particulares do dono da casa . Envergonhava-se o bom velho de ter por escrevente um dos primeiros fidalgos -- Coimbra , e o que mais pedia a Henrique era que não revellasse o caso a pessoa alguma . O rapaz sorria , mas principiava a sentir repugnância em receber cincoenta mil réis mensaes sem trabalhar . Por fim tao combatido se viu d' este sentimento de justa delicadeza , que se despediu do sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira , declarando-lhe os motivos . Da nobreza de tal proceder ficou encantado o negociante e para evitar que Henrique renunciasse o ordenado , deu-lhe cinco ou seis cartas para responder conforme a apostilla escripta , á moda de Filippe II , na parte superior da margem . O theor das respostas maravilhou o velho exportador de vinho . Não só era ajustado ao assumpto e na linguagem concisa e clara que os negócios commerciaes requerem , mas indicava que Henrique não tinha perdido o tempo que passara no gabinete de Manuel de Oliveira a tomar conhecimento , quasi casual , dos negócios da casa . Parecia que nunca haviam corrido por outras mãos . E d' ahi por diante Manuel de Oliveira e Henrique de Mello foram como dois sócios . O ordenado subiu a cem mil réis , e o secretário particular foi respeitado pelos empregados do escriptorio sem differença do patrão . O negociante não resolvia negócio em que o não tivesse consultado . Era voz geral que o ia educando commercialmente para casal- o depois com a filha . Entretanto passaram annos ; o mancebo formou-se e tomou o grau de doutor em medicina . Manuel de 01 iveira foi padrinho do capello e correu com todos os gastos da funeção . A esse tempo a demanda com José de Mello chegara ao supremo tribunal de justiça . Ali nao foi concedida revista ; e tendo a relação confirmado a sentença da primeira instancia favorável a D. Barbara Coutinho , seguiu-se restituição inteira da herança paterna a Henrique . Assim , quasi simultaneamente , o sobrinho de José de Mello , depois de ter provido com trabalho próprio á sustentação decente da mãe , de ter completado com distincção a carreira scientfica , e de se ter iniciado nos negócios mercantiz , achava-se possuidor pacífico da casa de seu pae , senhor de grandes capitaes accumulados no Banco , e credor do tio pelo rendimento das propriedades ruraes durante oito ou nove annos , que montava a algumas dezenas de contos de rèeis . Vinha a ser incontestavelmente o proprietário mais abastado do districto -- Coimbra . Aqui é necessário dizer para esclarecimento e ensino de leitores poucos experimentados nas misérias da vida humana , que os primos mais chegados e os mais affastados , quando o viram fazer-se médico contra o ridículo preconceito da nobreza velha , viver com Manuel de Oliveira , escrever no escriptorio como se tosse caixeiro d' elle , e correr risco de não succeder na casa , gritaram que bem se via que era bastardo , e que teria que ver se a casa dos Mellos , senhores donatários de Alpalhão , ia a um doutor sangrado . É inútil accrescentar que nunca mais lhe tiraram o chapéo ; e quando fallavam dele , chamavam-lhe : O tal senhor que se intitula Henrique de Mello . Desde que a demanda esteve em caminho de se decidir a favor de Henrique , o sangue começou a cumprir o seu dever ! Dos parentes , muitos já o saudavam na rua . Alguns paravam para lhe fallar . Primo , chamavam-lhe mesmo os que o não eram , e todos caprichavam em apregoar os dotes de Henrique nos logares mais públicos d' onde a noticia pudesse chegar ao conhecimento do mancebo . Excellentes primos ! Não se agastara com o despreso dos parentes ; também não exultou com a mudança . Áquelles que na occasião de vencimento da demanda lhe deixaram bilhetes para elle e para a mãe , foi em tempo competente deixar o seu que dizia : Doutor na Faculdade de Medicina título que ainda fez arrefecer a algumas tias velhas o precioso sangue wisigothico que lhes girava nas veias . Foi por este tempo que D. Anna de Oliveira veiu para a cidade . Henrique foi-lhe apresentado pelo pae logo no primeiro dia . " Aqui tens o meu amigo mais fiel , disse o velho negociante á filha , e o meu companheiro de trabalho nos negócios da casa . Tem cabeça de commerciante e coração de príncipe . " O mancebo curvou-se com respeito diante de D. Anna , apertando com affecto a mão que Manuel de Oliveira lhe dera no acto da apresentação . Henrique , desde que se doutorara , não quiz mais receber ordenado ; e agora , com o vencimento da demanda , a administração dos bens paternos dava-lhe larga occupação durante muitos mezes de cada anno . Todavia o velho aproveitava as occasiões todas para o instruir acerca do que ia succedendo , e para consultal- o a respeito dos negócios mais importantes . " Este rapaz , " dizia elle á filha " è que pôde chamar-se verdadeiro negociante . Se não fosse o que elle sabe de " economia politica e sciencia do crédito , eu nunca havia de levar ao cabo muitas operações , nem os negócios da casa teriam subido a ponto de se poder dizer " sem mentira que a Annica de Oliveira é o melhor " casamento das províncias . " As ausências prolongadas a que a successão paterna obrigava Henrique , foram espaçando as conferências , até então diárias , e a final Manuel de Oliveira mal ousava fállar de commercio ao senhor donatário de Alpalhão . Quando este saía da sala , no fim de cada serão que alli ia passar , sempre o velho exclamava : " Grande " homem de negócio se perde n ' este mancebo ! É lástima " que seja tão fidalgo e tão rico ! " E acabava em prolongado suspiro . Henrique ouvia-o com respeito de filho ; estimava-o como quem conhecia bem a alma honrada e nobre d' aquelle bom velho ; e inspirado pela gratidão devida aos benefícios recebidos de Manuel de Oliveira , aconselhava-o com prudência , dedicação e lizura . Quando a gerência dos bens próprios entrou em andamento regular e lhe permittiu demorar-se mais tempo em Coimbra , era Henrique que provocava as confidências mercantiz do seu antigo protector , delicadeza que affastava de Manuel de Oliveira os receios com que se acanhava , e lhe enchia o coração de júbilo . A intimidade entre D. Anna e Henrique estabeleceu-se rapidamente . Ministrara a ambos intermináveis assumptos de conversação curiosa e agradável a variada instrucção do jovem doutor . A veneração filial para com o velho era commum . Idênticas as idéas acerca do cumprimento fiel dos deveres domésticos e sociaes . Demais Henrique era bom cavalleiro , e D. Anna não podia escolher melhor conpanhia para os passeios de manhã . Circumstâncias tão apropriadas para crear quasi de repente grande confiança , teriam produzído de certo , por serem tão absolutamente uniformes , mútuo aborrecimento e cansaço -- que é a peior entre todas as situações da alma nas relações dos dois sexos -- se o génio e o temperamento de cada um não fosse inteiramente opposto . Henrique , à força de occultar a própria tristeza e de estudar o modo mais agradável de distrair a mãe , adquirira hábitos de jovialidade discreta mas constante , e certo desapego das coisas d' este mundo , que parecia velhice antecipada e era unicamente superioridade de razão . A mathematica , a sciencia medica , e a prática dos negócios commerciaes , acostumaram-lhe o espírito a procurar e a acceitar a verdade , e as suas consequências rigorosas . A desventura não lhe azedou o ânimo , mas ensinou-lhe a conhecer os homens . Alegre no trato ordinário , circumspecto e inflexivelmente lógico nos assumptos sérios , inabalável nas resoluções , sem desprezar a occasião de se esclarecer , e em idade tão pouco adiantada largamente enriquecido com as lições da experiência , era todavia de sensibilidade extrema , e dotado de excellente coração . A filha de Manuel de Oliveira nunca se consolara completamente da perda da sua querida mãe . Sem manifestar dôr eterna que a sociedade tem direito de limitar , conservara tendências melancóllicas em que o sentimentalismo inglez se robustecia com a paixão árabe . A sua postura habitual era lânguida e triste . Os olhos serenos e transparentes , como as águas do Mondego , miravam com doçura e carinho saudoso . A alma que d' elles reflectia , como atravez da corrente scintillam as areias doiradas no fundo do rio , era innocente , sincera e angelicamente amorável . Os cabellos loiros davam á suave pbysionomia de D. Anna o tom celestial dos cherubins de Murillo . A conversação frívola e alegre perturbava cruelmente os extasis involuntários da filha de Manuel de Oliveira , e causava-lhe a sensação que produz qualquer instrumento desafinado por entre os sons harmónicos e concertados da melhor orchestra . Pelo contrário os assumptos sérios despertavam-a agradavelmente , e convidando-lhe o espirito a cogitações sisudas , affugentavam e substituíam a tristeza quasi natural do seu génio . Desapparecia então a languidez . A phisionomia animava-se . Os olhos reviviam , e até os cabellos pareciam obedecer mais gratamente á delicada mão que os affastava das faces , como se quizessem deixar ver na plenitude de manifestação sincera os sentimentos que o rosto revelava sem disfarce . E a alma ardia no mais intenso fogo de dedicação filial , de pensamentos affectuosos , de desejos nobres , de benevolência permanente , e do amor da humanidade que as desditas e a experiência do mundo quasi sempre vem a transformar em egoísmo odioso . Henrique era quem melhor sabia attrair a attenção de D. Anna . Procedia gradualmente , como se desejasse ser cúmplice da tristeza que ella manifestava , e insensivelmente lhe ia excitando na alma sensações vehementes de contentamento e de enthusiasmo . Se casualmente se affastava d' este systema para dar largas aos hábitos de jovialidade , o espirito da donzela contraía-se como a sensitiva e patenteava signaes visíveis de mortificação e desgosto . O antagonismo de dois caracteres tão differentes estreitou mais a intimidade entre D. Anna e Henrique . Em breve foram como irmãos . A affeição que a uniformidade de certos dotes creára , e que a diversidade de génio desenvolvera , era já amor e profundo , sem que nenhum d' elles o tivesse ainda suspeitado . Sâo as índoles oppostas as que mutuamente se ligam em mais apertado laço . Obedecendo ao instincto natural do aperfeiçoamento talvez nos parece completarmo-nos , fundindo a nossa existência n ' aquella em que se nos deparam as qualidades que nos faltam . É como as revoluções o amor ; como ellas , nasce de causas que os interessados quasi desconhecem , prepara-se e desenvolve-se em silêncio , e manifesta-se na hora em que a área da sua actividade por acanhada e estreita o não pode conter . Então servem-lhe de pretexto o motivo menos rasoável , a mais insignificante casualidade , e expende-se com força proporcional á compressão anterior . Assim aconteceu aos nossos dois jovens . Uma noite em que o espírito jocoso de Henrique , ainda mais vivo e brilhante que de costume , ferira o ânimo de D. Anna , a filha de Manuel de Oliveira deixou a cadeira em que estava perto de Henrique e foi sentar-se quasi lacrimosa junto da mesa onde o pae jogava o whisth . Estes despeitos , estas pequenas grosserias , são sempre penhores de affecto . Quem as pratica , já sabe as suaves compensações a que se obriga . Henrique abriu um grande livro com estampas que rodeado de álbuns e de pequenos volumes ricamente encadernados , sobresaía aos outros todos , e ficou a folheal- o sem saber o que fazia . Era o volume dos Quadros Históricos do nosso grande poeta e não menos insigne prosador António Feliciano de Castilho , livro que todas as casas portuguezas deviam ter no logar mais honrado d' ellas , como na casa do christão deve estar o Evangelho . A partida do ancião já tinha acabado ; a contagem dos tentos e as pagas iam concluir , e ainda Henrique folheava . A final teve de accordar d' este agitado lethargo para se ir embora . Era tarde , e pela manhã cedo havia de ir acompanhar D. Anna no passeio pela margem direita do Mondego . -- Então sempre passeiamos a cavallo , disse Henrique com voz pouco firme ao despedir-se da filha de Manuel de Oliveira . -- De certo , se me quer acompanhar , respondeu D. Anna com sorriso mal aberto que parecia pedir perdão com receio de o não obter . -- V. ex.a bem sabe que eu estou sempre ás suas ordens . -- Pois então ás oito horas aqui sem falta . -- Serei exacto . Até amanhã . O aperto de mão com que D. Anna correspondeu á despedida de Henrique , foi mais affectuoso e mais cerrado do que nunca . Valera por dois annos o arrufo de um quarto de hora . D. Anna já obedecia á lei fatal das compensações amorosas . São bellas as margens do Rheno desde Mogúncia até Colónia , as do Sena , as do Garona e as do Rhodano ostentam maravilhas com que a natureza e a arte em competência as enriqueceram , porém nenhumas tão encantadoras e tão opulentamente viçosas como as do Mondego ali perto de Coimbra . Em nenhuma outra parte da terra a natureza brilha com tamanha suavidade e sorri com tanto amor . Aprendem os portugueses nas viagens a estimar a belleza dos nossos horisontes , a qualidade ubérrima do terreno , a constante amenidade do clima , a límpida transparência de alguns dos nossos rios , a vigorosa e túmida corrente de outros , a riqueza e variedade da vegetação , e a luz que inunda de claridade a serra , o valle , a várzea e a collina . De mim digo , com verdade , que ainda não vi na Europa cidade , rio e campo , que fizessem esquecer aquelle pedaço de terra portugueza que o Mondego banha de suas aguas cristalinas , desde a quinta da Boavista , á qual fica fronteira na margem opposta a quinta das Cannas com a sua lapa dos poetas , até á Memoria onde o rio voltando-se , como para se despedir de Coimbra , muda de rumo para o occidente . A cidade -- Ataces reclinada na encosta de montanha , tendo na cabeça por diadema o velho palácio dos reis -- Portugal onde os bons estudos foram abrigar-se , e estendendo os membros inferiores pela magestosa rua da Sophia , parece estar contemplando affectuosamente as águas do formoso rio , em cuja margem direita repousa . Nos montes e outeiros visinhos a côr melancholica dos olivaes alterna com a verdura e viço dos pântanos . Dos valles sobe o perfume da flor da larangeira que a brisa espalha pressurosa , escoando-se ora por entre os olivêdos da serra , ora por entre os álamos , choupos e salgueiros que bordam as duas margens da corrente . As quintas e casas em que gradualmente vae acabando a povoação , mais aformoseam o quadro e constituem a corte e séquito da esplêndida rainha do Mondego . O rio é de inverno alteroso e revolto . Comprimidas pelas serranias que desde a origem as apertam e estreitam , aquellas águas insoffridas -- como portuguezas que são , e miticamente portuguezas -- mal avistam a cidade , alargam-se no alveo buscando ponto mais distante donde melhor a contemplem , ao que nem sempre basta o espaçoso leito que lhes preparara ali a natureza . A sua cólera insensata aggride às vezes com fúria desmedida a cidade e o campo , e ameaça com estrépito iroso soverter para sempre a magnífica e extensa ponte que se atreve a disputar-lhe o passo . Terríveis são as fúrias do Mondego , mas duram pouco . Mal os rebentões das árvores annunciam a primavera , e a natureza , restaurada dos aspérrimos combates do inverno , ordena ás plantas e aos animaes que amem e continuem a obra do Creador , o rio envergonha-se de tamanha cólera , despede para o mar os alliados que lhe acudiram da serra , e abraça Coimbra pelos pés para que lhe perdoe benignamente as demasias da aggressão insensata . De verão , já esquecida e indultada a insânia com que se houvera na estação invernosa , vel- o-heis passar meigamente junto da cidade a sussurrar-lhe segredos de amor , e a offerecer a água saborosa que de mui longe viera filtrando flor entre as áreas doiradas só para lhe&lhes+a dar em tributo e homenagem . Contemplavam outrora , da margem opposta á cidade , tão deliciosa perspectiva os seraphicos filhos de S.||_Francisco_de_Assiz Francisco|_Francisco_de_Assiz de|_Francisco_de_Assiz Assiz|_Francisco_de_Assiz que ali possuíam um convento , e as monjas de Santa Clara que ainda hoje guardam no novo mosteiro , fundado pelo primeiro rei da dynastia bragantina , os venerandos restos da bemaventurada esposa do senhor||_rei rei|_rei D. Diniz . Quão vehemente e pura devia ser a adoração do Creador naquelles dois cenóbios ! Um assentado contra a escarpa da montanha , e o outro surgindo quasi no ponto mais elevado d' ella , mas ambos avistando completo e grandiozo o panorama fronteiro ! Magnífica e encantadora perspectiva ! Quem não ajoelharia perante a magestade divina , só de ver a cidade , o rio , a vegetação e as flores , e de respirar a fragância deliciosa d' aquelles admiráveis campos ? Em Coimbra , e nas suas cercanias esmerou-se a natureza no esplendor das galas , e tomou os melhores enfeites para disputar belleza ás mais formosas . Tudo respira amor na terra fadada por Deus , a que os homens puzeram por limites de um lado a Fonte dos Amores , e do outro o Penedo da Saudade , como se d' estes dois sentimentos -- Amor e Saudade -- tivera de permanecer captivo quem viesse a passar ali . E todavia aquelle ar suavemente perfumado não quebranta , nem enfraquece . Agita mais o coração do que os sentidos . As asperezas das serras próximas olham para o valle com severidade e parecem recordar-lhe os deveres da virtude . O manto escuro dos olivaes na sua tristeza lobrega não deixa esquecer a morte . Atè o nome da quinta das Lágrimas é junto á Fonte dos Amores salutar advertência ! Nas margens do Mondego o amor deve ser elevado e nobre como a cidade , puro como a água da corrente , e duradoiro como a folha dos loureiros e das larangeiras que verdejam perennemente na campina . A athmosphera affectuosà de Coimbra encantava a alma sentimental de D. Anna . Alvoroçava-se-lhe o coração á voz da natureza . O espírito deleitava-se na contemplação das riquezas naturaes d' aquelles sítios formosíssimos , e lia no livro universal da creação segredos que só entes superiores sabem decifrar n ' elle . A árvore que obedecendo ao zephyro saudava com repetidas inclinações de cabeça o arrebol da manhã , ensinava-lhe a oração ao Creador que em língua desconhecida do vulgo estavam ciciando as folhas . O girasol revelava-lhe extremos de affectuosa constância para com o astro do dia . O arroio que se desviava da corrente e que , serpeando na área em multiplicados requebros , vinha confundir-se outra vez no manancial que lhe dera origem , não tinha segredos com ella . Aquellas vozes em que outros não attentavam , e que tão distinctas e vibrantes eram para D. Anna , quando nas frescas manhãs da primavera saía a passeiar no campo , soavam-lhe nos ouvidos com o encanto da mais deliciosa symphonia de Beethoven . Os primeiros raios do sol que as vidraças do convento de Santa Clara reflectiam vigorosamente , pareciam-lhe benção do Eterno enviada do céo ao começar do movimento mais amiudado da população , e transmittida á cidade pelas mãos innocentes e puras das filhas do Senhor . Henrique de Mello , que acompanhava frequentes vezes a filha de Manuel de Oliveira nos passeios de manhã , não era esquivo ao influxo d' estes sentimentos . Iniciado pelo estudo nos segredos mais íntimos da natureza e dotado de grande sensibilidade , gosava delícia igual á que subjugava o coração de D. Anna ; porém a concentração do espírito nas lides da vida activa e trabalhosa diminuíam-lhe a vehemência das sensações . A final o amor transformou-o inteiramente . Já attendia ao cicio das arvores , já traduzia o murmúrio das águas , já escutava o segredo das plantas , já seguia o vôo caprichoso da borboleta , e já procurava entender o vozear confuso da campina e do monte . A innocencia infantil de D. Anna ouvia os louvores do Creador na agitação espontânea da natureza . Henrique fazia da creaçâo inteira o throno em que a assentava rainha , e em volta da qual soavam em louvor d' ella todos os cânticos da terra . Ás vezes passeiavam duas horas quasi sem proferirem palavra , e só acordavam de cogitações tão diversas ao entrarem na cidade , quando o soar das ferraduras dos cavallos na calçada os advertia de que já eram no povoado . Então olhavam um para o outro , e como que se envergonhavam de tamanha abstracção e de similhante fraqueza sentimental ! Sorriam ambos e recolhiam a casa apressadamente . O sorriso que parecia entendido mutuamente , em que nenhum dos dois pensou durante muito tempo , mas que variava cada dia as contracções por forma mais affectuosa e íntima , tinha de acabar em explicação recíproca . D. Anna já corava quando sorria , mas sem procurar encobrir o rubor . Henrique abaixava involuntariamente os olhos , ainda entre-aberto o sorriso . Perguntava D. Anna a si própria a rasão d' aquelle inexplicável pejo , mas não acreditava que fosse amor . Tinha lido e ouvido dizer que o amor perturbava a alma , porém não sentia nenhuma perturbação violenta Sorria sem saber a causa , corava ignorando o motivo , mettia o cavallo a trote largo sem rasão conhecida ao aproximarem-se da cidade ; e chegando a casa nem de tal se lembrava mais de modo que lhe roubasse o socego . Não era pois amor . o que seria ? Não podia adivinhar . Henrique também fazia exame de consciência . Na sua idade de vinte e oito annos não lhe acontecia como a D. Anna . A questão era resolver , se a paixão que visivelmente o agitava , era sentimento digno de si próprio e da filha do seu protector , ou se era allucinação momentânea d' aquellas com que os sentidos enganam traiçoeiramente o coração mais nobre e mais leal . A constância do affecto e a timidez respeitosa com que o occultava , persuadiam-o de que era amor . A experiência advertia-o de que podia illudir-se . No dia seguinte ao do arrufo de D. Anna por causa das innocentes jovialidades de Henrique , saíram de casa de Manuel de Oliveira que era perto do Jardim Botânico , passaram o arco da Traição , desceram a Couraça de Lisboa até á Portagem , seguiram pela Calçada até á Sophia , e de lá em direitura á ponte de Agua de Maias , sempre a meio trote dos cavallos , e no mais teimoso silêncio . Ali D. Anna a quem Henrique deixara adiantar para lhe contemplar á vontade o garbo do busto e a nobreza dos movimentos , susteve o cavallo , e esperou pelo companheiro . -- Quer que voltemos pelo campo ? Agora já ãao deve haver água , disse D. Anna com inflexão de quem perguntava , apesar que a estação já adiantada da primavera indicava certeza de se atravessar o campo sem perigo . -- Eu creio que já não ha água nestes sitios , respondeu Henrique , e se ainda houver alguma , de certo nos ha de franquear melhor passagem do que a dos israelitas no Mar Vermelho . -- É singular , volveu D. Anna , o costume que tem de gracejar de tudo , e com todos . -- Com todos não , minha senhora , replicou Henrique em tom submisso . -- Ah ! Então é só para mim ? Pois olhe que não lhe agradeço a distincção . Já hontem ... -- Se enfadou comigo ? Não é verdade ? Eu não tive intenção de a offender , e se pudesse ... -- Bem sei . Bem sei , interrompeu D. Anna . Não me dê desculpas . Eu é que peço que não leve a mal que me levantasse , mas realmente quando o oiço gracejar com o que eu digo , julgo que me tem por creança , e ... -- Pois não gracejarei mais . Serei sério como o governador civil . -- Mas porque rasão não é assim jovial com as outras senhoras . Ainda no domingo passado o accusavam de estar cabisbaixo e de responder a todas as pessoas com monosyllabos . -- Eu não gracejo senão com minha mãe e com a sr.a||_D._Anna D.|_D._Anna Anna|_D._Anna . Com os outros gracejo por dentro que é peior . -- Então comigo está sério por dentro e risonho por fora . Confesso que não entendo . -- Nem queira entender , retrucou Henrique mettendo o cavallo a galope para o lado do rio . -- Tanto quero que até exijo que m ' o explique , ajuntou D. Anna obrigando também o cavallo a galopar . -- São cousas que se não dizem senão a quem já as sabe . Veja como vae galhardo , continuou Henrique mudando de conversação , aquelle barco que desce o rio á vella . -- Que me importa a mim o barco ? Não tente distrair-me , nem me tenha por creança . Diga-me em que consiste a tal seriedade interna a meu respeito . -- Consiste ... Neste tempo os dois namorados olharam um para o outro e viram o sorriso de todos os dias , mas radiante de paixão affectuosa . Henrique estendeu o braço direito para o lado de D. Anna , e encontrou a mão da esbelta amazona , que vinha ao encontro da sua . Os sorrisos não careciam de explicação mais cabal . D. Anna sentiu affoguearem-se-lhe as faces , apertar-se-lhe o coração , perturbar-se-lhe a cabeça e fugir-lhe a vista . Se Henrique a não sustivera aproximando o cavallo , teria caído . Os criados viram de longe que succedera algum caso e metterara a galope , porém antes de chegarem junto dos dois cavalleiros , já D. Anna tinha recobrado inteiramente os sentidos . -- Não foi nada , disse ella olhando amorosamente para Henrique . Agora já pode fallar porque sei tudo . Mas para que me queria obrigar a adivinhar . -- Porque o dever está primeiro que as paixões , e seu pae , Annica , pode não approvar o nosso amor . -- Não seja injusto , Henrique ; meu pae estima-o muito e ha de regosijar-se de me ver casada com homem da minha escolha e que já é de casa . -- Se me auctorisa , vou hoje mesmo rogar a minha mãe que a peça ao sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira . Não quero que me accusem de deslealdade . -- Não o auctoriso porque sei que meu pae diria logo que sim , apesar de ser contra o seu voto que eu case antes dos vinte annos . Cuida que é necessário conhecer a sociedade , acostumar-me ás exigências d' ella , boas e más , deixar vir os pretendentes em núnero sufficiente , c escolher o que tiver melhores qualidades . Ora eu quero-lhe fazer a vontade . Auctoriso- o pois a dizer-me que me ama , a proval- o , a saber que é correspondido e a verifical- o , e a examinarmos se n ' esta posição nova encontramos o mesmo prazer que na anterior . -- Mas o disfarce é martyrío para mim e falta de respeito para com seu pae . -- Pois não disfarce . Eu nunca pretendi occultar a preferencia amigável com que sempre o distingui e de que só agora sei o nome , respondeu D. Ânna corando de novo . Mas não queira obrigar meu pae ao sacrifício de se separar de mim antes de findar o tempo que me pediu lhe concedesse . Henrique , elle ama-o como se fosse seu pae . Amêmol- o nós ambos como filhos . A placidez ingleza d' esta conversação encobria agitação extraordinária na filha de Manuel de Oliveira . O aperto de mão de Henrique causára- lhe effeitos de choque eléctrico , e a perturbação que sentira em seguida revellára á rica herdeira coimbrã o segredo do primeiro accesso febril da paixão nascente . O prazer de amar , o desvanecimento de ser amada , o goso ineffável de passar de menina a mulher , o inesperado da manifestação e a novidade do caso , produziam n ' aquella alma innocente e sincera tempestade desconhecida cuja violência era augmentada por mil outras sensações que melhor se experimentam do que podem explicar-se . Henrique espreitava esta transformação do ser feminino , passagem rápida de um a outro período da vida humana , e saboreava em estasi delicioso as primícias de tão deliciosa affeição . À entrada em casa os namorados datavam de mui longe o sentimento que só então se declarara . Cada attenção recíproca , cada communicação mais íntima , cada prova de confiança , cada testemunho de estima , que até ali haviam sido attribuidos á amisade , passaram para a conta do amor , buscando origem na mútua sympathia da primeira entrevista . A paixão è assim . D ' ali por diante Henrique e D. Anna viveram só para se amarem extremosamente . O pae sem adivinhar a verdade , mas sem parecer ignoral-a inteiramente , via com gosto a possibilidade de consórcio que satisfazia as exigências do amor paternal , os planos do negociante , os desejos e ambição do chefe de família , e que até lisonjeava a vaidade do burguez . Dois annos foram assim correndo insensivelmente , e já faltavam poucos mezes para se completarem . Henrique não augmentára nem diminuira a frequência das visitas . D. Barbara já adiantada em annos é que vinha mais a miúdo a casa de Manuel de Oliveira , onde a futura nora a tratava como quem já lhe queria com amor de filha . Foram estes dois annos os melhores da vida de Henrique de Mello , de D. Anna , de D. Barbara e de Manuel de Oliveira ! A própria irmã do velho negociante agradecia nas suas orações a Deus a ventura de que todos participavam e para a qual todos contribuíam ! Ficava perto do Jardim Botânico o magnífico palácio de Manuel de Oliveira ; porém os armazéns e o escriptorio do rico exportador de vinho e azeite da Beira permaneciam ainda na rua da Sophia desde o tempo em que transferira da Figueira para Coimbra a própria residência e a sede commercíal dos negócios . Saía Manuel de Oliveira de casa todas as manhãs cerca das sete horas e meia , e dando volta pelo Penedo da Saudade vinha entrar do lado do Seminário Episcopal no esplêndido terraço superior do jardim , sumptuoso monumento em que o reitor da Universidade D. Francisco de Lemos deixou memória duradoira dos pensamentos grandiosos que então havia em Portugal , e que de todo em todo vieram a transformar-se nas misérias que por ahi vemos hoje . Não as vejo eu agora cá de tão longe , mas ainda ha pouco as vi , e corei de vergonha de tão embrutecida decadência ! Ah ! Se el-rei||_D._José_I D.|_D._José_I José|_D._José_I I|_D._José_I do alto do monumento , onde a mão de bronze do marquez do Pombal lhe foi collocar a estátua , pudesse volver a cabeça , e avistar por sobre o hombro a ridiculíssima peanha sobre a qual intentavam expor ao escárneo das edades futuras seu real bisneto o senhor||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro IV ... estou que dava de esporas ao cavallo e ia lançar-se no Tejo onde nunca mais pudessem velo olhos portuguezes . Deixemos em paz a primorosa estátua da Praça do Commercio de Lisboa , não passemos diante do retrato de Sebastião José de Carvalho e Mello para não abaixarmos a vista corridos de pejo , e voltemos a Coimbra a accompanhar o sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira no passeio matutino no Jardim Botânico até áquelle aqueducto de elrei D. Sebastião , que tão em secco deixara a fonte e os tanques dos cónegos regrantes , e a famosa crasta que D. João III lhes riscara de seus reaes dedos na manga do roupão . Ali junto dos arcos o esperava a traquitana puchada por dois possantes machos , que todos os dias o levava ao escriptorio . Das cinco ou seis carruagens que então havia em Coimbra , era a de Manuel de Oliveira das mais aprimoradamente acabadas e cómmodas , e o ruído que faziam as rodas nas pedras das calçadas tão conhecido na cidade , que sem saírem ás portas das casas , e sem correrem á janella , já todos sabiam quem passava na rua . Trabalhava até ás onze horas o velho negociante . Apenas soavam , saía do gabinete , e vinha para uma sala na qual tinha livre entrada , sem necessidade de mandar dizer o nome , quem precisava fallar-lhe . Chasqueavam os murmuradores de quasito das as boticas de Coimbra notando que s . ex.a dava audiência ás onze da manhã . E com effeito quasi sempre áquella hora algum amigo ou importuno vinha procural- o . Serviam-lhe então o almoço que constava inalteravelmente de uma costeleta , dois ovos quentes e um copo de excellente vinho do Porto ao qual Manuel de Oliveira consagrava especial affeição desde que á força de provar o Bairrada e o Beirão chegara a não lhes achar gosto . Concluída a refeição , o pae de D. Anna recolhia ao gabinete por numerosa que fosse a sociedade . A quem quizesse ficar na sala , não faltavam livros e periódicos . Elle é que não ficava , porque as horas commerciaes eram tão exactamente empregadas pelo honrado negociante , como no rigor da primitiva disciplina fora devidamente guardada dos cónegos a impreterível hora do coro . Em um dia do mez de março -- 1839 assistia ao almoço de Manuel de Oliveira um cavalheiro de Coimbra , ainda moço , geralmente conhecido por curioso das vidas alheias , espreitador de todos e de tudo , gazeta permanente da rua Larga , da Calçada , do Jardim , e do Ponte , e possesso dos espíritos malignos da vaidade e da inveja , demónios a que a mão justiceira do Eterno deu maior liberdade entre o Guadiana e o Minho do que em qualquer outra região da terra . E sobre tamanhos dotes , com que se poderiam abastar largamente dois ou três tolos maus , tinha uns modos feminiz e voz tão de sovelão que nem os nervos do mais paxorrento frade bernardo lhes teriam supportado pacificamente a sensação irritante . -- Eu não conheço pessoa mais feliz do que o sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira . Realmente não sei o que lhe falta ! dizia o menino com certa ironia , cujo monopólio os homens de esphera superior e os parvos repartem entre si , ficando os primeiros com a ironia delicada e espirituosa , e deixando para os outros a ironia grosseira e material . -- Ás vezes falta-me saúde , respondeu melancholicamente o velho . -- Também só se fôr isso . Ainda hontem á mesa dizíamos nós lá em casa , a mana Christina e eu , que não havia outro homem como v. ex.a . Muita riqueza , grande respeito , filha encantadora , e a amisade de toda a gente ? E então o bem que faz aos pobres ? Pensa que não se sabe ? -- Olhe que não é tanto assim . Muitas esmolas que eu dou , são da Misericórdia . O público vê que se distribuem á minha porta , e cuida que me saem da algibeira , mas engana-se . Eu não acredito na utilidade das esmolas repartidas entre cegos fingidos , aleijados escorreitos e pobres remediados . Porém o compromisso da Santa Casa determina que se dêem , e dão-se . -- Nada ; nada de modéstia . Nós bem sabemos a verdade ; e o proveito que a cidade colhe só da sua despeza ? V. ex.a ha de gastar muito cada anno ? -- Gasto o rendimento das minhas propriedades , retrucou o Oliveira com certo constrangimento . -- Essa bagatella ! Alguns vinte e cinco ou trinta contos ! Se Coimbra tivesse três ou quatro Manueis de Oliveira , nem Lisboa nos deitava agua ás mãos ! -- Quaes vinte e cinco ou trinta contos ! acudiu o velho . Menos , menos , muito menos . Não sou tão rico como cuidam . -- O que eu vejo é que talvez seja ainda mais modesto do que rico . Ora vamos . Quero suppòr que não gasta mais de dez contos ; em dez annos são cem contos . É o haver de muitas famílias reunidas ! -- Ainda bem , volveu o negociante sempre triste , ao menos também a muitas famílias vae ter esse dinheiro . -- Pois é o que eu digo . Andam por ahi a ralhar dos capitalistas . Eu cá sempre sustentei que são melhores para o povo do que os proprietários . Nós recebemos de nossos paes por transmissão legitima os poucos bens que disfructámos , e vivemos na idéa de que não é necessário socegar com actos de caridade excessiva os ânimos invejosos . Os capitalistas andam sempre a repartir com os pobres para que elles não murmurem , e fazem muito bem . O povo é muito ciumento ! Sorriu quasi imperceptivelmente Manuel de Oliveira a tão grosseiro insulto , sem se dar por offendido da manifestação atrevida com que n ' aquellas palavras viera a lume o odiento antagonismo da propriedade contra o capital ! Sentimento fratricida e insensato entre duas forças que não podem ser inimigas nem rivaes , e de cuja cooperação depende a prosperidade pública , mas paixão muito natural nos povos para os quaes os princípios económicos não prepararam a reforma , antes foi esta que se incumbiu de os introduzir e vulgarisar . -- Pobre povo ! respondeu Manuel de Oliveira continuando o almoço . Deixe dizer . O povo não é ciumento nem invejoso . É justo , e muitas vezes mais justo do que as classes superiores que veneram e respeitam muito tratante , conhecendo-lhe as más qualidades . O povoo não . Pôde proteger e seguir gaiatos , mas é em quanto os não conhece . -- Tem V. ex.a muita rasão . É o que eu afirmo sempre . Porque não ha de haver grande accumulaçâo de capitaes sem ladroeira nem deshonra ? Acaba sempre em quebra a riqueza que provém de origem illícita . A outra é trigo sem joio , e o próprio governo a deve honrar e proteger . E a propósito : dizem por ahi que V. ex.a está commendador da Conceição . Posso perguntar-lhe se é verdade e dar-lhe os meus parabéns ? Olhe que todos approvam . Lá em casa , tanto eu como a mana Christina , achamos que veiu tarde , muito tarde . -- O ministro mandou-me hontem esse presente em remuneração do último empréstimo , mas eu nem a regeito , nem a ponho na casaca . Acceitei a carta de conselho quando deixei de ser deputado para escapar a barão , e já foi de mais . -- E então por que não ha de acceitar ? Não se dá a toda a gente a commenda da Conceição ! D ' antes era só para os que tinham foro grande de fidalgo cavalleiro ; agora serve de pretexto para o ter . Ahi está v. ex.a de um dia para o outro tão fidalgo como eu ou como o primo Lobo Coutinho , sem que a sua família tivesse que andar pelas fortalezas da Índia ou ás lançadas aos mouros nos logares de Africa . E com moita rasão . Todos devem ter o seu S.||_Martinho Martinho|_Martinho . A nobreza e o clero já o tiveram . Agora é a vez do commércio e da industria . -- Eu não quero ser fidalgo , e lastimo os negociantes que padecem de tal achaque . O tráfico d' elles não é fim , é meio . Não é profissão , é aprendizado de nobreza . Por isso saem tão bons nobres como foram commerciantes honrados . Porém agora dê-me licença , ajuntou Manuel de Oliveira levantando-se da mesa e saboreando o resto do doirado vinho do Porto , que lhe ficara no copo . Ahi tem os jornaes de Lisboa e alguns livros . Até outra vez . -- Sempre ás ordens de v. ex.a . Eu sou dos amigos fiéis , concluiu o rapazito quando o velho Oliveira já entrava para o gabinete . Era com effeito verdade que o ministro do reino mandara a commenda da Conceição ao Rothschild de Coimbra . Mil vezes a merecera por serviços prestados ao Estado em conjuncturas apertadas , porém nunca houvera secretário de Estado que se lembrasse de propor á soberana a mais pequena recompensa para o capitalista das margens do Mondego . Quando elle praticava acção útil ou digna , dava-se o prémio a quem nada fizera ! Grandes philosophos e grandes ministros ! A rainha resolveu de moto próprio dar-lhe o titulo de barão do Bussaco . Manuel de Oliveira tanto supplicou a sua magestade e aos ministros , que em transacção amigável conseguiu descer para conselheiro . Agora o caso era differente . A graça não fora do ministro . Sollicitára-a com empenho certo homem valido do governo , d' estes sumilheres da cortina ministerial que duram o espaço de cada ministério , no fim do qual voltam a passeiar os tamancos e a commenda nas lamas da Palhaça ou nas fragosidades da serra do Gerez . O cyreneu ministerial trazia demanda rija em Coimbra , e tratava de pôr do seu lado os homens influentes da cidade . Pareceram-lhe mais eficazes as mercês reaes do que um ou dois faqueiros , e três ou quatro salvas de prata em que se lhe iriam muitos carros de milho . Por isso com manifesto prejuízo dos ourives se deu a commenda a Manuel de Oliveira , e se mandaram com igual motivo de interesse público distincções inesperadas a outras pessoas respeitáveis da Athenas portugueza . O ministro cuidou premiar serviços ! Coitados dos ministros ! Ausentou-se o menino tendo cofirmada a notícia da commenda , contra a qual meia hora depois blasfemava nas lojas da Calçada , dizendo com certo chiste aristocrático que maior acerto houvera sido darem a Manuel de Oliveira a ordem de S.||_Thiago Thiago|_Thiago porque ao menos a fita roxa não desdizia da côr dos vinhos beirões . Ali foi contando logo dos remoques que dera ao novo commendador a respeito dos ricos feitos á pressa , e de como o encontrara tristonho sem que todavia tivesse podido descobrir a causa . Corria então em Coimbra o boato de que a casa Oliveira se achava envolvida na fallencia de Bergenstein e C.a , de Hamburgo , banqueiros dos mais ricos da famosa cidade allemã e correspondentes do nosso honrado velho . -- O homem não estava satisfeito ! terminava o jovem irmão de D. Christina , esfregando as mãos com júbilo e passeiando apressadamente de um ao outro lado da loja . Elle ... ha coisa ! Manuel de Oliveira entrou no gabinete com phisionomia descontente , e achou ali Henrique de Mello , a quem mandara pedir de manhã que passasse pelo escriptorio antes do meio dia , se lhe fosse possível . Henrique não podia aturar Álvaro de Araújo , que assim se chamava o menino da voz de sovelão . Por isso quando lhe disseram quem estava na sala , passou pelo corredor para o gabinete . -- Aquelle pateta pôl- o de mau humor , disse Henrique vendo a cara do velho . -- Eu já não estava contente , mas o tal biltre apurou-me a paciência . Que atrevido ! E que voz ! -- Não faça caso , sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira . Aquelles garotos são as serpentes da Europa . Para differença das outras acolhem-se aos povoados e grandes cidades ; no resto são similhantes . Dá-se-lhes com o pé , e vae a gente proseguindo no seu aminho . Que noticias ha de Hamburgo ? -- Péssimas . A liquidação talvez não produza três por cento . Bergenstein fugiu para a America . Parece incrível ! Um homem que merecia geral conceito , e chefe da casa que passava por ser mais sólida em Allemanha ! Eu estou á espera do correio para escrever a Smith e Davis de Londres . Vou sacar sobre elles por cem contos em letras inferiores a dois contos de réis cada uma . Descontar-se-hão em Lisboa , no Porto e na Figueira : aqui a administração do contrato do tabaco toma de certo algumas . Nós temos em Londres ... continuou o velho buscando sobre a meza a nota dada pelo guarda livros . -- Smith e Davis , interrompeu Henrique , têem na mão , ha um mez , exactamente cem contos que se lhes mandaram pôr no banco . V. ex. * disse-me que já recebera aviso d' esta operação . -- É verdade . Veiu pelo paquete passado . -- Ora além dos cem contos , de certo receberam remessas de New York , da Terra Nova e de Buenos Ayres , que forçosamente devem montar a outro tanto , se bem me recordo . -- É incrível , meu caro Henrique , como se lembra de tudo apesar de só ter informação dos negócios alguma vez por acaso ! Realmente , Deus tinha-o talhado para negociante ! -- Bem sabe quanto interesse tomo nas coisas que pertencem á sua casa . Tudo isto me correu pela mâo tanto tempo ! -- E que bem correu ! Desde que venceu a demanda com seu tio e fiquei só , tudo me sae contrário . -- Vamos . O caso não é tão feio como parece . São duzentos contos perdidos em Hamburgo , com cento e tantos das letras que vão chegar recambiadas . Vem a ser trezentos e tantos contos . Ora estão em Inglaterra cem em deposito , e talvez outros cem apurados . O vinho e o azeite que tem nas docas pode empenhar-se por cem contos . Já dispomos de trezentos . O que falta não deve causar receios a quem possue trezentos contos de propriedades no reino , mercadorias em depósito nos portos de mar , numerosas dívidas activas , e algum dinheiro em caixa . -- Isso é verdade . Com os trezentos contos de Londres , pagam-se as letras de Hamburgo , e ainda fica para ... murmurou Manuel de Oliveira sem concluir a phrase . N ' este momento chegou o correio . As cartas particulares vindas pelo paquete inglez não diziam nada . Á saída do vapor era pouco procurado o vinho , porém subira de preço o azeite . Não era má nova porque no depósito de Londres havia maior porção de azeite que de vinho . Manuel de Oliveira e Henrique estavam combinando mandar vender o azeite , e examinavam se nova remessa chegaria a tempo de aproveitar o preço do mercado , quando o guarda livros entrou espavorido no gabinete . -- Que ha de novo , sr.||_Caetano_da_Silva Caetano|_Caetano_da_Silva da|_Caetano_da_Silva Silva|_Caetano_da_Silva ? exclamou Oliveira admirado d' aqulla entrada quasi theatral e funebre . -- Que ha de haver , sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira . A casa Smith e Davis , de Londres , suspendeu pagamentos por causa das quebras de Bergenstein e de duas casas de New York . O aviso diz que os nossos cem contos ainda não estavam no Banco ... ! -- Mais nada , sr.||_Caetano Caetano|_Caetano ? Respondeu socegadamente Henrique de Mello . -- E que mais queria v. ex.a que acontecesse ? Volveu o guarda livros espantado . Olhe que esta casa tem na mão de Smith e Davis ... -- Duzentos contos . Bem o sei . Com os duzentos que se perdem em Hamburgo , faz quatrocentos ; com cento e tantos contos das letras recambiadas temos quinhentos e ... -- E cincoenta e cinco , acudiu o sr.||_Caetano_da_Silva Caetano|_Caetano_da_Silva da|_Caetano_da_Silva Silva|_Caetano_da_Silva . -- Pois bem , continuou Henrique . São quinhentos e cincoenta e cinco contos . À questão é pagar o que se deve , e supprir a falta do capital perdido . Não é negócio do outro mundo . Eu desejava ver o balanço do estado actual da casa . -- Em duas horas posso dal- o prompto . -- Muito bem . O sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira está afflicto , como vê , pela amisade e parentesco que tem com o sr.||_Davis Davis|_Davis , sócio de Smith , porém a casa de Oliveira e C.a não cae assim . Cá estamos todos para nos revesármos ao leme . Tenha ânimo , sr.||_Caetano Caetano|_Caetano . -- Quem o não ha de ter ? respondeu o guarda livros ainda desorientado . Basta ver o sr.||_Henrique_de_Mello Henrique|_Henrique_de_Mello de|_Henrique_de_Mello Mello|_Henrique_de_Mello tão sereno como se o prejuízo fosse de dez ou de doze contos ! -- Talvez ainda venha a ser de menos . Manuel de Oliveira quasi caíra sobre a mesa em que costumava escrever , e ali ficara com os cotovellos ambos apoiados n ' ella , e o rosto descançado sobre as mãos . Caetano da Silva que durante a conversação espreitara os movimentos de Henrique e de Oliveira para descobrir se haveria naufrágio ou só tormenta , saiu do gabinete sem poder descobrir onde iria Henrique de Mello realisar de repente os meios de salvar o patrão . -- Estou perdido , meu querido Henrique , exclamou o velho Oliveira apenas o guarda-livros fechou a porta . Estou perdido e a minha Annica ficará sem ter que comer . E eu que só cuidava em deixal- a rica e independente ! Que desgraça ! Que desgraça ! Agora hão de accusar-me das minhas despezas ordinárias e de mil outras cousas . Que terrível catastroffe ! -- Sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira nada de perder a cabeça , e fique baixo . As paredes têm ouvidos , e nas horas de desventura têem quatro ouvidos , em vez de dois . Vamos , nunca se dar por vencido , sempre é tempo . Ninguém cae tendo tantos meios de resistência ? -- Eu tenho com que resistir a prejuizos de quinhentos contos ? Tenho com que acudir ao pagamento das letras recambiadas ? Pode ser , Henrique . O seu talento é capaz de tudo , mas eu não avisto senão quebra immediata , deshonra , e morte ... E a minha filha , coitadinha , orphã e sem pão ... ! -- Pois eu vejo melhor . Não contemos com o perdido . A dificuldade presente é o pagamento das letras recambiadas e das que temos nas praças de cá . Para isso dispomos do activo inteiro da casa , que é superior a quinhentos contos . -- Talvez , se tudo pudesse ser vendido em occasião opportuna , respondeu Oliveira a quem o sangue frio do Henrique ia inspirando confiança . -- Pois nós faremos que seja opportuna . O sr.||_Manuel_Oliveira Manuel|_Manuel_Oliveira Oliveira|_Manuel_Oliveira na sua afflicção esqueceu-se de que também sou capitalista , e que , não sendo negociante , posso hypothecar os meus bens sem perder crédito cuja falta venha a estorvar as minhas transacções . Parece-me , accrescentou Henrique com voz commovida , que não devia receiar que á sua filha viesse a faltar pão ... -- Basta , Henrique . Perdoe-me , exclamou o bom velho já nos braços do amigo nos quaes viera lançar-se debulhado em lágrimas . A sua alma é única no mundo ! -- Vejo que está agitado em demasia . E é necessário não se mostrar assim , quando o Caetano vier com os papéis . Agora cumpre sustentar o crédito . -- Mas então que quer que eu faça ? -- Quero que não desanime , e que salvemos a casa que é o futuro de sua filha . O amor paternal deve alentar-lhe os brios . -- E alenta sim , disse Manuel de Oliveira limpando as lágrimas e indo sentar-se na cadeira . Aqui me tem prompto para tudo , excepto para dirigir . Tenho a cabeça perdida . Caí de mui alto , meu caro amigo ! Ainda não caiu , nem ha de cair , espero em Deus . Eu dirigirei , mas escreva a Salvador Lopes . É o primeiro capitalista do Rio Janeiro e não o seria por certo sem o auxílio que v. ex.a lhe prestou tanto em Angola como no Brazil . Conte-lhe que a sua casa está em crise , mas que se pode salvar com diligência e boa direcção . Não lhe peça nada . Eu é que na minha carta lhe hei de Poucos minutos depois da partida de Manuel de Oliveira voltou o guarda-livros com o balanço . Era ainda avultado o activo da casa , porém a realisação forçada podia diminuil- o consideravelmente , e faltava dinheiro para o giro ordinário que apesar do crédito exigia grossos capitaes . Chegariam brevemente protestadas as letras de Hamburgo . O dinheiro de Londres parecia perdido . De que valia ter propriedades e depósitos de géneros , não se podendo liquidar e vender sem revelar grande mingua ? Em caixa havia apenas vinte e cinco contos em metal , e cinco em acções que dariam perda . As letras por cobrar no reino inteiro não excediam a sessenta contos , e algumas deviam ser reformadas , se os acceitantes exigisissem , porque fora assim o ajuste . Caetano da Silva expondo a Henrique a situação da casa julgava infallível a quebra , mas dizia que o sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira não estava preparado para ella , e que a posição era perigosa ; muito perigosa para a honra do fallido . Não sei se accusava o velho por não ter seguido os seus cônscios . É costume de quantos assistem a grandes desastres que não saberiam ter evitado , e para os quaes às vezes contribuiram , darem o coice do asno no leão moribundo ! Objectava- lhe Henrique que , obtido o dinheiro para as letras de Hamburgo , tudo se poderia conpor e que até estas letras , tendo sido passadas a favor do Contrato do Tabaco e do Banco , talvez se pudessem reformar . Caetano da Silva abanava a cabeça , dava á physionomia apparencia severa , e repetia que Manoel de Oliveira não estava preparado para a catástrophe . Conhecia Henrique o carácter sizudo de Caetano e o costume que tinha de não dizer as cousas senão depois de largos rodeios . Instou pois com elle para que revelasse tudo , indicando-lhe que era impossível dirigir bem a casa , em similhante crise , não sabendo a fundo o estado de todos os negocios d' ella . Caetano da Silva abaixava os olhos ; callava-se ; ia até á janella ; suspirava ; mas não dizia palavra . A final Henrique apertou tanto com o homem que alcançou saber que em outra escripturação de que não rezava o balanço , havia irregularidades de grande monta . -- Mas no balanço deve estar tudo , volveu Henrique , ou não é verdadeiro e leal . -- É que , sr.||_Henrique_de_Mello Henrique|_Henrique_de_Mello de|_Henrique_de_Mello Mello|_Henrique_de_Mello , aqui ha ... N ' este ponto um criado annunciou que estava ali o sr.||_José_de_Gouveia José|_José_de_Gouveia de|_José_de_Gouveia Gouveia|_José_de_Gouveia , thesoureiro da Misericórdia . Em quanto ó creado voltou a pedir ao novo visitante que se dignasse esperar alguns minutos na sala onde o introduzira , Caetano revelou a Henrique que na caixa da Misericórdia faltavam sommas consideráveis que o sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira tencionava inteirar com os fundos de Londres , e que taes sommas não figuravam no balanço com declaração da sua procedência , porque a escripturação da Santa Casa era separada . " Ahi n ' esse papel , accrescentou Caetano da Silva apontando para o balanço , estão creditadas ao sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira porque foi dinheiro dado por elle . " Empallideceu Henrique ao ouvir tal declaração . Até ahi só vira necessidade de energia e de trabalho . Não o assustava . Mais longe avistara a possibilidade de salvamento ou a pobresa honrada . Também o não abalára o receio de tal porvir . Agora porém já era a deshonra , o crime de depositário infiel , o desvio dos bens dos pobres , o abuso de confiança , a prisão sem fiança , o processo crime , e as penas severissimas do terrível livro V das Ordenações do Reino . Conheceu Henrique o perigo em que estava Manuel de Oliveira , e na hora infausta lembrou-se unicamente dos benefícios que lhe devia , e do amor que tinha a D. Anna . Resolveu arriscar tudo para salval-os . Já nao duvidava do sentimento amoroso que lhe inspirara a filha do negociante . Se duvidasse , este era o melhor ensejo de medir a profundidade da paixão . Quem se não affasta da desgraça , virtuosamente procede . Quem não desampara a deshonra , imita a misericórdia divina e pratica acto de heroicidade que a religião inspira , mas que não se realisa sem que o amor dê força necessária para tão ousado commettimento . Foi rápida a resolução de Henrique . Seguiu a primeira inspiração de alma , aquella de que o príncipe -- Talleyrand mandava acautellar por ser sempre boa ! Voltando-se para Caetano da Silva , Henrique reprehendeu-o por ter consentido em similhante abuso , não lhe admittindo por desculpa a obediência ás ordens do patrão , porque n ' esses casos o empregado honesto , para não ser cúmplice , despede-se . Observou-lhe que os livros dos negociantes devem estar sempre em estado de irem do escriptorio para o tribunal , como a consciencia do homem virtuoso ha de andar sempre precatada , e pronta a comparecer diante do Supremo Juiz , e terminou notando que o guarda-livros não é machina de escripturação e de conta , é também fiador moral da lisura das transacções para com o público . Depois d' esta admoestação honesta mas sagaz , que incutindo no pobre Caetano da Siiva o terror da cumplicidade o obrigaria a trabalhar vigorosamente por interesse próprio na salvação commum , deu-lhe ordem de regressar ao escriptorio para mandar entrar o thesoureiro da Misericórdia . O sr.||_José_de_Gouvea José|_José_de_Gouvea de|_José_de_Gouvea Gouvea|_José_de_Gouvea era proprietário na cidade , rico e avarento , mas egoísta e preguiçoso . Por força das duas últimas qualidades puzera nas mãos de Manuel de Oliveira o cofre da Misericórdia , pelo modo que fica narrado , e nunca mais viera saber do dinheiro legalmente confiado á sua guarda e vigilância . Entrou com bastante precipitação , e encontrou Henrique passeando no gabinete . Olhou para todos os lados buscando o velho negociante , e não o descobrindo estacou no meio do quarto exclamando com certa ansiedade : -- O sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira ? Cuidei que estava aqui . -- O sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira está doente . Teve más notícias pelo paquete . N ' estes ultimos dias perdeu em duas quebras 500 contos . -- Senhor||_Deus Deus|_Deus , misericórdia ! E então agora ? -- Então agora , respondeu Henrique sorrindo e sentando-se em um sofá , estão perdidos . É tratar de não perder outros . Sente-se , sr.||_Gouvéa Gouvéa|_Gouvéa . -- Muito obrigado . Estou muito bem . Mas outros quinhentos contos , volveu José de Gouvêa sentando-se e limpando o rosto onde o susto de ter de repor o cofre da Santa Casa se transformava em bagas de suor , outros quinhentos contos não se perdem assim . -- É mister têl-os . Não é vaidade , sr.||_Gouvêa Gouvêa|_Gouvêa ? -- Justamente , meu senhor . -- Pois o sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira está n ' esse caso , graças a Deus . -- Pode ser , retrucou o thesoureiro com voz duvidosa . Passava por um dos homens mais ricos de Portagal , e assim devia ser ás despezas exorbitantes que fazia ; mas , sr.||_Henrique_de_Mello Henrique|_Henrique_de_Mello de|_Henrique_de_Mello Mello|_Henrique_de_Mello , aqui para nós , 500 contos é muito dinheiro . Então depois de ter perdido outros 500 ! ! Em fim isso é lá com elle . Deus queira que lhe não aconteça mal , porém eu preciso falar-lhe hoje por força . -- Hoje é impossivel . Se está de cama ... -- Pois irei fallar-lhe á cama . É que posso ficar perdido , sr.||_Henrique_de_Mello Henrique|_Henrique_de_Mello de|_Henrique_de_Mello Mello|_Henrique_de_Mello . Sou responsável pelo cofre da Misericórdia , e o cofre está aqui . De uma hora para a outra cae a casa , e eu não quero ficar debaixo . Nunca fiz mal a ninguém , mas não tenho passado privações para a final morrer pobre como Job . Isto não è duvidar da probidade do nosso provedor ; emfim como aquelle que diz ... -- Mas então , interrompeu Henrique , é escusado incommodar o sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira . Quanto deve estar na caixa da Santa Casa ? -- Eu nem sei . Ando agora n ' este desassocego pela confiança que tinha no sr.||_Manuel_de_Oliveira Manuel|_Manuel_de_Oliveira de|_Manuel_de_Oliveira Oliveira|_Manuel_de_Oliveira . Elle punha e dispunha , e eu assignava de cruz . A meza da Misericórdia assim o quiz ... ! -- Pois eu lhe digo já a somma que tem de receber . -- E quando poderei recebera ? -- Já mesmo , se quizer . -- Já , não senhor ; mas amanhã ... -- Amanhã é domingo . -- E na segunda-feira de manhã ? Bem vê que andam na cidade uns rumores ... -- Hoje ou segunda-feira , quando quizer , respondeu Henrique . O dinheiro está prompto e não faça caso aos rumores . Viva socegado . Cá estou eu dentro da nau , e não tenho medo da tormenta . Henrique tocou a campainha . Veiu um criado e recebeu ordem de ir chamar Caetano da Silva que appareceu logo prevenido para o negócio de que sabia todos os promenores , por ser quem depois da saída de Henrique de Mello dirigia os negócios e transacções da casa . -- Que somma deve estar no cofre da Misericórdia ? perguntou Henrique . -- Noventa e dois contos seiscentos e setenta e nove mil réis , parte em notas , parte em metal , respondeu o guarda livros . -- E ainda se conservam em caixa particular ? -- Como sempre . Estão n ' esse cofre de ferro ahi ao pé da mesa do sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira . Elle é quem tem a chave . -- Bem . O sr. thesoureiro quer receber o dinheiro pelo qual é responsável . Para não ter de ir buscar a chave á cidade alta , talvez possa tirar da caixa da casa a somma necessária para o pagamento . -- Ha na minha caixa vinte e tantos contos disponíveis , porém se é necessário completar a somma , tenho onde mandar buscar o resto . O peior trabalho será contar tanto dinheiro por ser a maior parte em metal . Se o sr. thesoureiro quizesse vir ajudar-me , em poucas horas arranjávamos isso ... -- Deus me livre ! acudiu o thesoureiro espantado de que apesar das quebras o sr.||_Oliveira Oliveira|_Oliveira tivesse dinheiro para fazer face a tudo . Isto em mim não foi desconfiança . Foi satisfação ao público . Eu disse cá para mim que se o nosso bom Manoel de Oliveira estivesse perdido , era justo tomar eu conta do dinheiro da Santa Casa , e aqui o havia de encontrar intacto . Se tudo era mentira , iria d' esta casa desenganado , e ajudaria a restaurar-lhe o crédito que ha dias anda bem abocanhado d' esses patifes da baixa . Invejas de gente ruim ! Agora que sei tudo , vou socegado . -- Não senhor . Queremos que venha segunda feira receber . O sr.||_Caetano Caetano|_Caetano já tinha ordem para o avisar , porque o nosso Oliveira está velho e não quer complicações estranhas nas suas contas . -- Mas , sr.||_Henrique Henrique|_Henrique , porque não ha de continuar tudo como estava ? Olhe que eu não sou desconfiado ; isto foi uma aquella ... -- Fosse o que fosse , sr.||_Gouvéa Gouvéa|_Gouvéa . Venha segunda feira receber . -- Pois então virei na segunda feira de manhã . Valha-me Deus ! Onde hei de ir agora pôr este dinheiro ? Mal se ausentara o thesoureiro mandou Henrique de Mello pedir pelo telegrapho ao presidente do Banco de Lisboa , seu amigo particular , que pelo mesmo telegrapho puzesse em Coimbra á disposição de Manuel de Oliveira o dinheiro que , desde o princípio da demanda e desde o ajuste de contas com José de Mello , se conservava no Banco á sua ordem . Era mais de cem contos . Escreveu depois a Salvador Lopes de Sousa , do Rio de Janeiro , expondo-lhe francamente o estado da casa , excepto na parte que dizia respeito á Misericórdia , e accrescentando que era inevitável a ruina do velho por causa das quotas de Bergenstein e de Smith e Davis , se mão poderosa o não auxiliasse . " Sou rico , " concluía Henrique , " mas tenho mãe . O que não fôr necessário para ella , entrará na caixa de Manuel de Oliveira , porém não basta . Eu devo a esta casa tantos favores como v. s.a de cujo brio tenho noticia por fama . " Antes de fechar o gabinete para ir consolar o desafortunado pae de D. Anna , Henrique chamou o guarda-livros , e disse-lhe : -- Sr.||_Caetano_da_Silva Caetano|_Caetano_da_Silva da|_Caetano_da_Silva Silva|_Caetano_da_Silva . Segunda feira começa a nossa batalha para salvar esta casa . Sente-se com ânimo para a empreza ? -- Sinto-me com ânimo de lhe obedecer em tudo , apesar de não vêr modo de evitar a fallência . Nós enganámos o thesoureiro da Misericórdia , mas é engano de 48 horas .