VICTIMA D ' uma PAIXÃO Segunda edição LISBOA VENDE-se EM+A Livraria DE A. M. Pereira 50 -- Rua Augusta-52 CHRONICAS DE+O SÉCULO XVII BREVE PREFACIO Á NOVA EDICÇÃO Accolheu o favor publico as Aventuras de Mestre Marçal Estouro , n ' isto menos infaustas do que o indicava o titulo , e eil-as ahi vam outra vez correr mundo em nova edicção . Era intenção do author subjeitar ainda a obra a mais apertado estudo . Mas , pois que tal como sahiu logrou ventura , seria já intempestivo escrúpulo , e quasi desprimor para com tamanha e tam experimentada benevolência , o fazer-lhe profundas alteraçoens . Limitou-se pois agora o seu cuidado a corrigir uma ou outra imperfeição e obscuridade , de forma ou de idéa , que podesse destoar sensivelmente da intenção exposta no prologo da edicção de 1863 , ou por qualquer outro modo prejudicar o esmero indispensável na execução de um livro , que faz o possivel por ser consciencioso . Fevereiro 20 -- 1871 . J. da S. Mendes Leal . Prologo DE A EDICÇÃO DE 1863 Os pequenos trabalhos , que fazem parte da collecção agora encetada sob o titulo de chronicas do século XVII , viram originariamente a luz em diversos jornaes . viram-n* ' a , mas pouco e mal a podiam supportar . Uma publicação entrecortada nem consente ao escriptor a meditação intensa , necessária para corrigir , nem ao leitor a aturada attenção , indispensável para julgar . Colligiu aqui o auctor algumas obrinhas , acaso para o diante seguidas de outras análogas , no intuito de manifestar que , sob feições diversas , ha n ' ellas a unidade de um pensamento . Todas com effeito são , a bem dizer , membros até hoje dispersos de uma só familia . Tem todas o fito visível de descrever , com o sincero culto da pátria e da historia , uns tantos períodos da vida portugueza no século XVII , ainda mal conhecido e avaliado entre nós -- n ' aquelle século de grandes agitações e prodigiosa actividade , já na politica já na sciencia , que viu a invenção dos logarithmos por I. Neper e do barómetro por Torricelli ; o descobrimento da circulação do sangue por Marvey ; a publicação do calculo differencial por Leibniz ; a construcção da primeira machina de vapor por Papin e a descripçâo do primeiro telescópio de reflexão por Marsenne ; a fundação da Academia franceza e a creação do Banco de Inglaterra , como se n ' estas instituições se achara retratada a indole , e se estiverajá fadando o futuro influxo dos dois povos ; a expulsão dos mouros de Hespanha e a revogação do édito de Nantes ; Richelieu e Mazarin , o protectorado -- Cromwell e a omnipotência de Luiz XIV ; Locke e Descartes , Bossuet e Pascal , Moliere e Corneille , isto é , a philosophia , a eloquência , a poesia exalçando o facho á humanidade ; o supplicio de Cinq-Mars e a condemnação de Galileo , isto é , as trevas disputando a luz ; finalmente as revoluções de Inglaterra , de Hungria , de Nápoles , da Catalunha , de Portugal , isto é , as commoções da independência das nações presagiando a lucta da emancipação dos povos ! A feição especial da sociedade portugueza n ' este século fecundo , os seus infortúnios illustrados de gloria , são , crê o auctor , muito para enlevar , attrair , estremecer , exaltar , e acaso advertir ! Pareceu-lhe pois que um modesto conjuncto de estudos , esboços sequer , do crer , viver e sentir nacional em tal época -- de que não estamos ainda tão distantes como pensam , ou dizem alguns -- se elle conseguisse , á falta de outro mérito , dar-lhe seu tal ou qual geito e sabor caseiro , não seria absolutamente inútil , ao menos pelo que da terra natal tentou colher , e procura transmitlir . Isto só quer , e a isto só aspira , a collecção das CHRONICAS DE+O SÉCULO XVII . Bem suspirara o auctor limal- a e polil- a com mais remanso e esmero do que lhe é actualmente permittido . Nâo podendo porém escolher a occasiâo , subjeita- se-lhe . Sirva esta circumstancia de desculpa . Dezembro 25 -- 1862 . J. da S. Mendes Leal . De como Mestre Marrai tomou estado Mestre Marçal , que , mal apparecia , dava alegrão ao rapasío e vadiagem , desde as portas da Alfôfa até ao arco dos Escudeiros , era , em 1622 , um individuo esguio , sinuoso , engoiado , alluido e desengonçado , cujo esqueleto , mal cosido n ' uma rede de músculos por uns restos de membrana fibrosa , dançava desregrado e perpeluo bolero no amplo interior do corpete e calções de estamenha , que íluctuavam ironicamente pelos contornos angulosos d' aquella múmia ambulante . O arcabouço , equilibrado nos fusos a que elle por basofia chamava as suas pernas , linha por bases dois pés que davam quatro , todos recortados de promontórios , e por cúpula uma cara empastada em pergaminho , que poderá servir ás descripções analylicas do próprio Flourens e ás mais minuciosas observações de osteologia comparada . Por que successivas degradações chegara mestre Marçal a este extremo de tenuidade , de esvasiamento , de exhaustação , de quasi transparência ? Ensaiarei descrevel- o n ' este breve epitome das suas desgraças . Aprenderá o mundo o que faz uma sina fatal , o que pode um affeclo obstinado , e em que abysmos precipitam as cegueiras da paixão violenta e contrariada . Começarei por assentar um facto que atlesta ( sinto declaral- o , mas força-me o dever de verídico historiador ; que attesta , dizia , a pouca sensibilidade do século em que se passa esta instructiva historia , e a indifferença profunda com que o vulgo profano tractava as intimas dores e o coração inapreciado do meu heroe . Os gaiatos do sitio , afferrados à onomatopeia como todos os gaiatos de todas as épocas , tinham-lhe posto por alcunha : " mestre Estouro . " Não podia o mestre sair á rua que o não seguisse um coro turbulento , grunhindo , guinchando , latindo , chiando e ganindo-lhe uma acclamação burlesca e estrepitosa , com taes variedades imitativas , que abrangiam o diapasão completo do reino animal . -- " Lá vae mestre Estouro , lá vae mestre Estouro ! " -- vozeava a turba maltrapilha apenas o avistava . E logo de investida atraz d' elle , engrossando-lhe a cauda á popularidade alfamisla . Mestre Marçal porém ia seu caminho com a mageslade dos graves infortúnios , e só respondia com a silenciosa e magnânima superioridade , que dá o costume das calastrophes , deixando berrar a mó dos garotos , como hoje em dia um estadista impávido , que leu Horácio em pequeno , deixa trovejar as tempestades parlamentares . -- Mas por que motivo chamam os gaiatos a mestre Marçal " mestre Estouro ? " perguntará o leitor admirado . É justa a curiosidade , e para satisfazel- a principio a interessantissima narrativa , que é como se relata . Era mestre Marçal natural de Lisboa , onde exercera em tempos felizes a profissão de fogueteiro , com tamanho applauso , que não havia festa ou romaria , um par de léguas em redondo , na qual se não invocasse o seu valioso auxilio , como se diz na actualidade . Presumo que o leitor intelligente percebeu já a razão por que o fogueteiro entrara involuntariamente na posse do significativo cognome de " mestre Estouro . " Feita esta observação indispensável , prosigo e apuro os factos de que resa a chronica . Desgraçadamente para o mestre , o governo de Philippe III , na sua paternal solicitude , não gostára de ver os porluguezes brincando com pólvora , cerlamente por temer que se queimassem . A lei de 9 de janeiro de 1610 deitára a perder o officio , a que o mestre , duzentos annos adiantado ao século em que vivia , chamava já modestamente " a sua arte . " Como estivesse a corte de Caslella continuamente sonhando revoltas , e receiasse ver sair de cada província um novo prior do Crato , ordenava a ditta lei que se não uzasse de nenhuns fogos ou arteficios nas " festas de Santos , nem por outras- occasiões , e que " nenhuma pessoa , de qualquer qualidade , ( calidade " refere o texto ) que fosse , os podesse fazer , ou man " dar fazer , ou lançar , sob pena de tres annos de " degredo para Angola , com baraço e pregão , e vinte " cruzados em dinheiro , etc. etc . " N ' estas lastimosas circumstancias , já se vê , a sciencia pyrotechnica de mestre Marçal , longe de lhe ser proveitosa , dava-lhe causa a trances continuos . Para maior desventura , mestre Marçal não era só fogueteiro por necessidade de ganhar a vida ; era fogueteiro por índole , por gosto , por vocação , por espirito de artista . Nascera com aquelle feitio . A manipulação da pólvora , do carvão , do salitre , do enxofre e da limalha ; o fabrico das rodas e estopins ; o preparo de todas aquellas industrias era-lhe uma necessidade de organisação . Tinha a bossa ou protuberância da foguetividade , característico este que tinha de escapar ao mesmo Gall . Havia-o a natureza nos seus annos florescentes dotado de rotundidade satisfacloria . Os desgostos produzidos por aquella maldicta lei tinham-lhe porém mirrado e dessecado as carnes , exercendo de dia para dia uma depressão sensivel na sua espessura . Em compensação , parecia ir ganhando proporcionalmente em comprimento . Ao cabo de seis annos , não podia já mestre Marçal tolerar a privação imposta por Sua Magestade Catholica , e exordiava o descobrimento do spleen . Esticava a olhos visto , e alongava do mesmo modo . Os seus amigos , notando que passava da atrophia ao marasmo , aconselharam-lhe distracções . A Providencia , que vigia os Marçaes como qualquer outro mortal , proporcionou-lhe uma distracção . Para ultimar o litigio , que havia oito annos trazia sobre umas geiras de terra no Alemtejo e una alfarrobal no Algarve , de Olhão sua pátria viera a Lisboa a senhora||_Medéa_Brandoa Medéa|_Medéa_Brandoa Brandoa|_Medéa_Brandoa , viuva de um mercieiro e honrado commerciante de figos seccos . Tendo rematado com bom êxito a demanda , quiz a sua boa ou má estrella que um dia encontrasse em Chellas o nosso ex-fogueteiro , que andava então pelos seus vinte e cinco , e ainda não havia attingido a perfeição de diaphaneidade e longura a que estava predestinado . A viuva , conservando saudosas reminiscências do primeiro matrimonio ; pensava em deixar de o ser , e mestre Marçal , como dissemos , procurava distrahir-se . Para encurtar preâmbulos , a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa entrou em combustão . Fora o misero , depois da sua viuvez , o primeiro e único homem que se lembrara de lhe pôr os olhos . Quanto ao mestre , no estado de resequimento progressivo em que ia , uma scentelha bastava para o atear . Ao contacto desta chamma , desatou em labaredas o incêndio latente da tia||_Brandoa Brandoa|_Brandoa . Ficou logo evidente aos olhos menos perspicazes que o fogueteiro , aposentado por ordem superior , conquistara de um rasgo o coração , as geiras e o alfarrobal da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa . O mestre podia dizer como César : veni , vídi , vici . Não era a viuva affeiçoada ás moratórias e dilações : tinha-lhes tomado aversão declarada nos oito annos da demanda . Ao cabo de um mez offerecia a sua mão ao futuro martyr . Ao cabo de três semanas estavam cazados . Ao cabo de oito dias achava mestre Marçal que a lei dos Philippes era uma amostra do paraiso em comparação do seu novo estado ! A senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , que jurava frequentemente pela santa do seu nome com grave escândalo do Agiologio Romano , resumia e verificava todas as fúrias do mythologico homonymo com que a haviam prendado na pia baptismal . Aquelle nome , extravagante bem que prophetico , constituia uma singularidade , de que não pude achar explicação nas porfiosas investigações e numerosos códices d' onde extrahi e colligi esta mui veridica hisloria . Peço indulgência para o enxerto d' esla breve annotação , e ato o fio ao discurso . As mais sanhudas imprecações da Medéa grega de Euripides , da Medéa latina de Séneca , e das trez Medéas francezas de Corneille , de Legouvé e de Longepierre , eram amenidades bucólicas ao pé da phraseologia hirsuta e praguenta d' esta Medéa algarvia , que desbancava as suas predecessoras . Amestrada pela experiência do primeiro marido , colheu o infeliz Marçal por uma docilidade e submissão affectada , de que se indemnisou amplamente aos primeiros tres dias de consorcio . Mestre Marçal esteve a ponto de estalar como a sua mais atochada bomba . Não podendo estalar . continuou a emagrecer , coisa que assombrou toda a gente . Do como mestre Marçal buscou espairecer-se de seus pezares O desditoso fogueteiro , minado por novos dissabores , como vimos , fora apoucando , diminuindo e adelgaçando até chegar á perfeição , ao ideal , á esthetica do género . Não tendo achado no casamento o recreio e diversão de que tanto carecia , entrara de novo a scismar lembranças do passado . Mestre Marçal não comia , mestre Marçal não dormia , mestre Marçal esquivava-se á companhia de seus amigos , mestre Marçal finalmente ia-se tornando o spectro de si mesmo . Diziam a principio os não iniciados -- que haviam de ser os enlevos em segunda mão do que a civilisação gallicista chama hoje " lua de mel " , lua que para o triste era de fel . Mas o tempo decorria , e mestre Marçal a diluir-se , a rarefazer-se cada vez mais , prodígio que o fazia rivalisar com as sombras de Virgílio . Mestre Marçal , infeliz no consorcio , acoutava-se mentalmente , com desesperada saudade , ao sanctuario das suas recordações artisticas , aggravando magoas incuráveis . Pelas festas do anno , correndo todos os riscos ( e não eram poucos ! ) da objurgatoria conjugal , outhorgava-se o misero e innocente desafogo de fabricar o seu valverde , ou bicha de rabiar , symbolo dos attractivos da sua cara e bem cara metade . Quando todos no bairro dormiam o somno do justo , calafetadas hermeticamente portas e janellas , saboreava o vedado regalo de escorvar e accender estas puerilidades pyrotechnicas , no pavimento térreo da sua morada , que estava muito longe de ser um palácio . Mestre Marçal , ou antes a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , porque era ella quem figurava em casa , morava no becco , sitio que perfeitamente dizia com o seu estado , ao pé da rua de Jerusalém , como quem ia das portas da Alfôfa para a antiga freguezia de S. Bartholomeu intra-muros , ou Bertholameu , como pronunciavam os contemporâneos do mestre . Os habitantes d' aquella parte da cidade , que aproximadamente occupava a área agora comprehendida entre a Costa do Castello e a rua de santa Luzia , em geral homens de trabalho , recolhiam cedo e tinham o somno pesado . Por consequência pouco risco havia nesta infracção das ordenanças , que para o artista desherdado tinha a irritante e acre volupluosidade das fruicções defezas . Deus sabe todavia quantas exhortações , acompanhadas de gestos um tanto exaggerados , este momentâneo passatempo valia ao pobre do mestre . Que era porém um valverde e uma bicha de rabiar para o artista cubiçoso de gloria , que tão alto alçava as suas aspirações como ao diante veremos ? Os rudimentos e ingenuidades da arte na infância mal podiam contentar um homem da tempera e da estiva de mestre Marçal . Na occasião em que a desastrosa lei o colhera no melhor das suas manipulações e das suas esperanças , estava mestre Marçal em vésperas de fazer uma revolução completa no systema dos foguetes . Imagine-se o effeito d' aquelle embargo legal posto ás concepções de um grande ingenho em vésperas de parto . Quantos Marçaes , ainda hoje , não precipitam assim das alturas do poder as inconstancias politicas , justamente no instante em que iam salvar a pátria , depois de alguns annos de baldada incubação ! O tempo , em vez de mitigar a paixão do mestre , cada vez a exacerbava mais , exactamente como o génio da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa . O illustre pyrotechnico perdeu por fim de todo a paciência . A famosa lei , como todas as leis , tinha pouco a pouco degenerado dos seus rigores primitivos . Eram já conhecidos vários exemplos de pequenas transgressões , que haviam ficado impunes . Para dizer a verdade , motivara a desusada indulgência a falta de conhecimento cabal das clausulas prohibitivas , allegada e provada pelos involuntários transgressores . Indicava porém este accidente , que se não devia considerar absolutamente impossível esquivar-se o culpado á implacabilidade das justiças de Sua Magestade Catholica . Mestre Marçal deliberou insurrecionar-se também , sem pedir o beneplácito da consorte , já se sabe . No dia em que tomou esta resolução , mestre Marçal pensou que envergonhara em heroicidade os Doze de Inglaterra , como na pessoa envergonhava o nome do seu Magriço . Foi o primeiro cuidado do mestre comprar clandestinamente uma porção rasoavel de pólvora bombardeira , astutamente fraudada , que tratou de subtrahir á perspicaz vigilância da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , muito mais maliciosa que a dos corregedores do crime . Vencida esta difficuldade , que não era das somenos , começou com delicias a cogitar no que faria da sua pólvora . Mestre Marçal , como dissemos , presava sobretudo a especialidade do foguete , e esperava n ' ella alcançar uma reputação verdadeiramente estrondosa . Desde 1610 fora este o único período em que , na phrase do philosopho , " se sentira viver . " Notavam-lhe os visinhos um ar lépido e prasenteiro , que fez por momentos acreditar na sua viuvez . Até se lhe podiam descobrir tendências nascentes para arredondar de novo . A senhora||_Medéa Medéa|_Medéa scismava com esta súbita innovação ; mas como elle cumpria os seus deveres conjugaes com irreprehensivel orthodoxia , e até com certo addicionamento de boa vontade devido certamente á melhoria do estado moral , como não alludia sequer ao mais insignificante valverde , não se lhe podia pôr pecha . A digna esposa do fogueteiro , que nem por isso andava menos desconfiada , pela primeira vez na sua vida tragava em segredo as conjecturas suspeitosas , esperando colher assim o deliquente em flagrante , e desforrar-se por atacado . Entretanto ia mestre Marçal amadurecendo o seu plano , e preparando disfarçadamente os modos de executal- o , com astúcia digna das chancellarias em que se trata do equilibrio europeu . Depois de luminosas meditações , concluirá o mestre que os simples foguetes de respostas , e ainda os de lagrimas , eram a deshonra da arte , e que por tanto cumpria urgentemente dar impulso decisivo a este importante ramo dos conhecimentos humanos . Como todos os espiritos superiores , adivinhava elle outro século . Vivendo hoje , mestre Marçal seria uma victima da ingratidão publica , se não estivesse ao menos director de um instituto , ou presidente de um centro . Feitas cuidadosamente as suas ponderações , cálculos e combinações , mestre Marçal suppoz ter achado a pedra philosophal , o bezoar , a ultima ratio com tanta ancia procurada . A ambição do mestre fora sempre descobrir traças de fazer um foguete , que , não só estoirasse , mas se transformasse n ' alguma coisa . Ninguém pôde imaginar com que desvello e ardor se encerrava no seu sanctuario afumado , e , sacando de uma bolsa de coiro , que tinha escondida em sitio recatado , todos os ingredientes e petrechos necessários , se punha a trabalhar na complicada cabeça do seu foguete modelo . É a cabeça , como todos sabem , a parte essencial de um foguete . As horas de trabalho de mestre Marçal eram quando a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa se ia a tractar de suas compras , horas rendosas em que a afiada lingua da matrona se exercia á custa do próximo desde a visinhança até ao mercado . Preparado tudo , e chegada a occasião propicia , um dia de hynverno , pelos fins da tarde , pouco antes de Trindades , mestre Marçal levantou-se do canto do lume , deu umas voltas pela casa em ar de quem nâo sabia como havia de matar o tempo , poz-se em bicos de pés para examinar assim por de mais uma gaiola appensa á parede , pegou na sua coróça para encobrir a exuberância das algibeiras em que dissimulara o machinismo , e deu indícios de querer sair . -- " Aonde vaes ? " -- inquiriu a voz agra e strídula da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , que o seguira com os olhos , e observara com assombro aquelles desusados preparativos . Havia muito que estas objecções estavam previstas . Mestre Marçal respondeu com o ar mais cândido d' cste mundo : -- " Vou ao celleiro do tio||_Cosme Cosme|_Cosme buscar meio selamira de alpista para o pintarroxo . Coitado do animalinho " -- acrescentou para servir de peroração sentimental e reforço suasório . Tinha a senhora||_Mcdéa Mcdéa|_Mcdéa a mania das aves , talvez por gritarem tanto como ella ; e o honrado fogueteiro , que dispozera tudo com sagacidade satânica , atacava-a pelo fraco . Foi a carinhosa esposa do artista verificar immediatamente o fado ; e , não achando um bago no comedouro , porque o precatado consorte havia previamente despejado tudo na gamella do bácoro , respondeu em tom mais benigno e concessivo : -- " Nâo te demores . " Com a simpleza e boa fé de uma pastorinha de egloga caíra a prevista senhora||_Medéa Medéa|_Medéa na armadilha . Aproveitou sem embargo a opportunidade para desafogar a atrabilis inextinguível , soltando , na solicitude da sua gerência domestica , uma serie de exclamações admirativas e irritadas sobre a voracidade das aves caseiras . Mestre Marçal , que tinha prolixamente meditado a índole da esposa e as artes de logral-a , com invejável naturalidade retorquiu dando geitos de largar a coroca , como se não tivera o mínimo empenho de sair . -- " Nâo , se não queres ... " Tanto bastava para que a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa insistisse . -- " Pois não vês que o pobre do animal não tem nem um grão para a noite ! " -- " Também de noite para que ? " -- " Para que ? Não verão os fígados que tem este bruto ! Queres que morra á fome , desalmado ? " -- terminou a agastada matrona subindo uma oitava á ira . Mestre Marçal curvou a cabeça com a resignação do costume , conchegou a coroca como victima da obediência , levantou a aldrava , o saiu abafando nas abas do sombreiro um sorriso de Talleyrand ! Vencido este passo , que por boas razões reputara o mais árduo , parecia tudo o mais ao meu heroe empreza comparativamente fácil . Bem certo é o dictado : " o homem põe e Deus dispõe ! " Saindo de casa com a feição mortificada e submissa de quem vae fazer um recado por condescendência , mestre Marçal teve animo de seguir pelo becco sem appressar o passo , na altitude morosa que linha adoptado na ultima parte do seu papel : receiava ainda , e não sem motivo , que a espia conjugal o estivesse atalayando . Tanto que dobrou a esquina foi uma verdadeira transfiguração . Caminhava expedito e ágil como se a lei dos Philippes se tivera abrogado na véspera , ou o seu casamento houvera sido annullado com todas as solemnidades . De como mestre Marçal Estouro subiu ao calvário , julgando trepar ao capitólio O honrado mestre , livre de olheiros , e seguro de que por este lado o não estorvariam , tomou ás portas da Alfôfa , e não esqueceu ahi o religioso dever de se encommendar á devota imagem do senhor||_Santo_António Santo|_Santo_António António|_Santo_António , que ficava por cima das ditas portas , e representava o Santo no acto de livrar o pae da forca , pintura em azulejo de muito respeito e veneração , onde , por devoção particular do artista , se figurava o padroeiro de Lisboa rodeado de frades da Companhia , antecipando a bagatella de duzentos e oitenta annos a introducção dos jesuítas . O mestre , pouco versado em archeologias , não reparou no anachronismo , e desceu pela íngreme ladeira de S. Chrispim , que ficava quasi fronteira ás portas . Como chegasse abaixo , embrenhou-se n ' um verdadeiro labyrintho ou meada de viellas encruzilhadas , de alfurjas , e beccos immundos , e desfechou no Rocio pela rua da Bitesga , que era n ' aquelle tempo uma travessa enviusada toda em cotovellos e recantos . Tomou então pela rua á esquerda do hospital de Todos-os-Santos , edificio grandioso , assente em grande parte do terreno que hoje oceupa o mercado da Praça da Figueira , e dirigiu-se ao convento de S. Domingos , contíguo ao dito hospital , a fazer sua vénia e oração ao sancto do seu nome , que é , como todos sabem , especial advogado e protector dos que professam aquella arte peregrina , por cuja maior honra e explendor ia elle affrontar as penas dos contraventores , e a colera da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa que lhes não ficava a dever nada . Pelo caminho escurecera de todo , como era indispensável ás experiências do mestre . Os frades estavam a Vésperas . Só se tivera ensurdecido no paraiso , deixaria o sancto de ouvir a fervorosa oração do seu inspirado servo . Ao sahir de S. Domingos , ladeou mestre Marçal o palácio da Inquisição , que tantas vicissitudes passara , onde hoje se levanta o theatro de D. Maria II , e entrou na rua de Valverde , titulo que o bom do fogueteiro , por uma interpretação que sabia aos trocadilhos do seu tempo hoje chrismados em calamburgos , julgou do melhor agouro em tal empreza . Caminhando e fazendo eslas observações horoscopicas , enfiou o mestre pela rua , agora calçada , do Duque , e deu finalmente comsigo em S.||_Roque Roque|_Roque , sahindo da cidade pelo postigo do Condestavel , e encaminhando-se Ãs terras da Cotovia e sitio da Valentona . Tudo isto se passava á prima noite de um dia húmido de septembro do citado anno de 1622 . Muito erraria quem n ' esta breve descripção procurasse a Lisboa moderna , tam mudada e tam diversa da Lisboa que ainda quasi se limitava à antiga cidade -- D. Fernando . Aquelle sitio da Valentona e Cotovia , cujos vestigios ha poucos annos sobreviviam , e cuja ultima designação se conserva , ficava então em descampado , e prolongava-se até ás immediações do ponto que actualmente se denomina Largo do Rato , onde , coisa de 80 annos depois , se fundou o convento de Nossa Senhora de os Remédios , da ordem trinitaria , theatro das proezas da celebre Madre Theresa de S. José . Ainda em 1755 , desde o alto da Cotovia até á travessa do Pombal , rua de S. Rento e Cardaes de Jesus , o terreno , por onde presentemente se inclina uma grande parte da cidade alta , era quasi um ermo , retalhado em terras de semeadura , e geralmente applicado á cultura dos cereaes , com poucas casas , posto que já entre ellas avultasse o edificio occupado agora pela Imprensa Nacional , as casas da Real Fabrica da seda concluídas em 1740 , e emfim o convénio dos Jesuitas , não ha muitos annos devorado pelas chammas , onde successivamenle se estabeleceu o Collegio dos Nobres , a Academia de Marinha , e ultimamente a Escola Polytechnica . Mestre Marçal , que se tinha previdentemente munido dos instrumentos necessários , absorto no seu projecto , internou-se pelas terras , alegrando-se d' aquella soledade que n ' outra qualquer occasião o houvera arripiado de terror . Para remate de precaução linha com antecedência visitado e examinado o sitio , e sabia com o que poderia contar . Sou aqui forçado a descer uns furos á gravidade oratória , para não prejudicar a escrupulosa fidelidade da chronica . Bem conheço a enorme temeridade e marea- se-me de remorso a audácia . Já agora , porém , impossível é fugir ás instancias da minuciosidade descriptiva a que me obriguei , e ás necessidades didácticas do meu assumpto . Apesar de todas estas precauções , não sei realmente como introduza na scena o termo , a idéa , o objecto por que me aperta a Clio investigadora . Indispensável ninguém dirá que não seja ; mas vai pôr n ' uma braza a fidalguia da dicção , vai cobrir de lucto a austera dignidade e a engomada emphase da rhelorica escholar . Perdoae-me , offendidos manes de Empédocles , de Longino , de Hermogenes , de Dionysio , de Halicarnasso , de Phocio e Quintillianno . Valei-me , reformadores do século XVIII , que não temestes o ódio da periphrase nem as revindictas do circumloquio , e principiastes a chamar as coisas pelos seus nomes . Inspirae-me , doutrinas de Jaucourt , desculpae-me exemplos de Boileau : Rien n ' est beau que le vrai ... J ' apelle un chat un chat ... Etc ... etc ... etc ... De tudo isto necessito para me escudar contra as maldições , que , d' além da Castallia improfanada , me vibram as coléricas sombras dos árcades magestosos , justamente irritadas d' este altentado , doesta trivialidade , d' este inaudito arrojo , d' esta plebeidade sem antecedentes , com que ouso apresentar aos olhos e ouvidos do leitor delicado ... um ... um caniço ! Quia se sub silentio ahscondit . Um caniço era com effeito o accessorio absolutamente preciso para completar o maravilhoso foguete , escrupulosamente acommodado , com todas as suas pertenças , no vasto bolço dos largos calções de rico , já calvo em partes . Se Marçal ousasse sahir de casa e atravessar a cidade com um caniço na mão , não só provocaria da parte da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa uma serie de perguntas a que lhe não seria fácil responder , mas attrahiria duplicadas vaias dos gaiatos do bairro , e seus consócios , já demasiadamente propensos , como vimos , a acclamar o mestre com um luxo de epithetos , que poderia admiravelmente enriquecer o vocabulário nacional . Tinha elle acautellado mais esta diíficuidade , e por aqui se verá como a sua previsão e prudência abrangia as intimas particularidades . A encosta , que leva á actual praça da Alegria , era quasi toda coberta de hortas . Aquella circumstancia , minima na apparencia , não escapara tambem á sagacidade do mestre , que os grandes ingenhos tudo aproveitam , e exercera influencia decisiva na sua escolha . Havendo hortas , necessariamente havia canaviaes . Tendo examinado minuciosamente aquelle apreciado individuo da illustre família das gramíneas , o qual ( ainda me lembra a tempo este incidente nobiliário ) teve já na antiguidade mais remota o singular privilegio de diffundir a orelhuda reputação do rei||_Mydas Mydas|_Mydas , o mestre cortou o que lhe pareceu mais acommodado ao seu intento : em poucos minutos , com perícia e destreza que attestavam a assiduidade e o costume , estava despojado das folhas , e perfeitamente adaptado ao uso a que era destinado . Mestre Marçal possuía a cauda do seu foguete . Voltando ás terras solitárias , terminou o apparelho , ajustando ao caniço já preparado o tubo conductor , e a cabeça do artificio onde se escondia ignorada a sua futura gloria . O barbante unctuoso e enresinado solidificou emi todas as suas partes o mechanismo externo . Com palpitaçoens que senão exprimem , o alvoroçado Marçal feriu lume e accendeu o morrão . Interrogou depois longamente a densidade das trevas , para verificar se algum curioso assistia aos seus ensaios , não porque fosse inimigo da publicidade , mas porque a fatal ordenança acompanhava invisível os vários actos do infractor , e a circumspecção , como temos observado , era um dos seus mais eminentes dotes . Foi satisfactorio o exame . Mestre Marçal podia julgar-se n ' uma thebaida . Disposto tudo , chegou ao tubo , cautelosamente escorvado , o lume do morrão com mão tremula de anciedade egual á do auctor , que vê aproximar-se o quinto acto do primeiro drama , com o quinto acto o desenlace tão esperado e tão temido , e com o desenlace uma paleada de metter os tampos dentro , ou uma roda de palmas que às vezes não vale mais . Subiu o foguete , descrevendo graciosa curva , como um cometa caudato , e estoirou com as suas onze respostas , conturbando os eccos da visinbança desavezados de tal estrondo . Mas -- oh ! desgraça ! -- o artificio interior , a nova transformação , o desíderatum , o X , a maravilha com tanto amor preparada , ou por precipitação no arranjo , ou por má disposição nos estopins , em vez de arder , foi ao longe sumir-se incógnita entre os cômoros de terra de um campo alqueivado para cevada . A estrella de mestre Marçal apagara-se nos adubos de um vegetal destinado a alimentar quadrúpedes ! N ' este ponto o estoiro das bombas no ar acordou todos os terrores que a paixão lhe adormecera na alma de artista . Mestre Marçal teve horror da sua audácia . O mallogro de tantas esperanças acabara o enleio e confusão do infeliz . Mestre Marçal infringira as leis para se certificar do seu descubrimento , para devassar novos mysterios , para glorificar a arte e o mundo , e nem sequer podia fixar o seu espirito sobre os effeitos e resultados de um invento que tanto lhe promettia . Que desfecho ! Tinha o honrado mestre perdido as azas de ícaro n ' umas leiras humílimas . A realidade appareciaIhe túmida de belleguins e com um cardume de esbirros . Immovel no logar em que havia commettido o crime , compromettido nos seus deveres de cidadão , e ferido nas suas aspirações artisticas , uma só coisa podia arrancar mestre Marçal ao turpor causado pelos pungentes remorsos da sua acção , e pelo desapontamento do seu fiasco : era a súbita lembrança das iras da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , accumuladas , só Deus sabia até onde , com tam prolongada demora . Quando esta idéa terrível surgiu no cérebro abalado de mestre Marçal , a immobilidade do terror desatou n ' uma fúria ambulatória , que lhe dava seus ares de família com a Atalanta de Scyros ou o Mazzepa de Byron . O amotinado bestunto de mestre Marçal , desencalçado da sua natural prudência , não reflectia que , apesar da solidão do sitio , o seu foguete illegal havia , de ter-se ouvido , -- excepto se uma surdez contagiosa calafetasse todos os ouvidos por aquellas cercanias , -- e que , por consequência , a precipitação da sua carreira , muito similhante a uma fuga , excitando as suspeitas , o denunciaria aos menos perspicazes . Mestre Marçal desorientado galgou ao acaso as terras de pão e as hortas que se encadeavam na direcção da cidade baixa . Não estava ainda bem em si do sobresalto , e do inesperado desenlace da sua obra . Com o dessocego e torvação que lhe infundia a perspectiva assustadora da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , endireitou pelas portas de santo Antão , scismando no modo mais fácil de conjurar a tempestade domestica . Como -- pensava o pobre delinquente ralado de cuidados -- como justificar a dilatada auzencia no tribunal inexorável da assanhada esposa ? Que pensaria ella ? Qual seria a ultima peripécia d' aquelle dia nefasto ? Nada d' isto lembrara a mestre Marçal em quanto o incitavam os alvoroços da esperança , e o enthusiasmo o inflammava . Com o desalento do frustrado tentame , na hora aziaga do crime , afluiamlhe em negro tropel ao cérebro escandecido todas as terrificas imagens , confirmando o bom senso do provérbio que diz : " um mal nunca vem só ! " A sagacidade e astúcia , de que dera tão exuberantes provas nos anteloquios e preâmbulos da melindrosa operação , haviam-lhe fugido com as suas illusões em debandada . Corria machinalmente , desamparado de força e de invenção . O grande homem infeliz vergava sob o pezo do infortúnio , e perdera até a consciência do próprio valor na derrota de tão altos sonhos . Moderando pouco a pouco o passo , não por calculo , mas por cançasso , ia chegando defronte da egreja de S.||_Luiz_dos_Francezes Luiz|_Luiz_dos_Francezes dos|_Luiz_dos_Francezes Francezes|_Luiz_dos_Francezes , quando sentiu que um punho alentado lhe comprimia o hombro esquerdo com vigor mais que ordinário . Mestre Marçal resfriou todo na sua consciência de criminoso , e deu um pulo desmesurado , procurando descortinar , por entre a cerração da noite , quem era o interruptor intempestivo do seu preoccupado regresso . Só poude perceber , por cima de um vulto embuçado até á barba em ampla capa escura , um largo sombreiro carregado até aos olhos , e levemente inclinado diante d' elle em signal de cortesia . O fogueteiro , mui urbano de seu natural , descarapuçou-se rasgadamente na presença d' esta afabilidade incógnita . -- Boas noites , mestre Marçal ! -- disse uma voz aflautada e meliflua , d' estas que o vulgo designa com o epitheto caracterislico de " voz de sovelão . " Mestre Marçal pasmou de encontrar conhecimentos em bairro tão distante do seu . Como porém nem a intonação nem a palavra inculcassem ameaça , correspondeu do melhor modo que poude , dizendo para o seu interlocutor : -- Muito boas noites . A quem tenho eu a honra ... ? No mesmo ponto uma palmada , não menos possante , no hombro direito fez dar a mestre Marçal segundo pulo , duas vezes maior que o primeiro , e coou-lhe um calafrio agudo pela espinha dorsal . Outro vulto , perfeitamente egual ao antecedente , com a única differença de parecer um tanto mais refeito e varonil , cortejava do lado opposto o altonito mestre , que se abysmava de surpreza em surpreza . Nova cortezia , ainda mais amável da parte do desconhecido , e ainda mais contricta da parte do mestre , foi permutada entre este e aquelle . -- " Boas noites , mestre ! " -- disse também segunda voz , como se fizesse ecco á primeira , salvo o ser o tom mais cheio , e a inflexão duplicamente benigna . De como mestre Marçal reconheceu que era o mais popular homem do reino Se já se tivesse inventado a Lâmpada maravilhosa e o seu auctor , cuidaria o mestre figurar nos contos phantasticos do bom mr. Galland . -- " Muito boas noites " -- retorquiu elle repetindo-se involuntariamente -- " A quem tenho a honra de ... ? " -- " Homem sois de préstimo e habilidade , mestre Marçal ! " -- acudiu o interlocutor da esquerda , sem se dar ao trabalho de responder á interrogação inquieta do honrado fogueteiro . -- " Mestre Marçal , sois um homem precioso " -- atalhou o da direita , encarecendo o elogio do seu companheiro . -- " Favores , favores , senhores meus " -- tornou o mestre , estúpido de admiração -- " Mas a quem tenho eu ... como tenho eu a honra . . , ? " Mestre Marçal balbuciava , tartamudeava , que nem saloyo vindo á cidade servir de testemunha em causa crime . -- " Sois mais conhecido do que pensaes , mestre Marçal -- redarguiu o primeiro interlocutor . -- " Quem é que não conhece mestre Marçal ! " -- observou o segundo . Esta popularidade inquietava cada vez mais o mestre . -- " Não vos demoreis em razão do nosso encontro " -- continuou o primeiro . -- " acompanhar-voshemos . " -- " Como ? " -- " Como se acompanha qualquer . Ao lado , atraz , adiante ... como quizerdes . " -- " É melhor ao lado " -- interrompeu o segundo . -- " Conversaremos . " Mestre Marçal não achou que responder . -- " Com que então , " -- proseguiu , depois de breve espaço de silencio , o ultimo que fallára ; -- " com que então , mestre Marçal , tinheis tão boas prendas e estáveis calado ! " Mestre Marçal procurou ler no rosto do seu forçado companheiro o sentido d' estas palavras . Era impossível . Primeiro a noite ; debaixo da noite o largo sombreiro ; debaixo do sombreiro a capa negra do embuçado . -- " Ides açodado , mestre ! " -- disse o vulto da voz aflautada . -- " Confesso que estão á minha espera " -- respondeu mestre Marçal moderando o passo que machinalmenle apressara . -- " Ai ! temos tempo ! " -- acudiu com ares de desfastio o mais encorpado . -- " Temos tempo ! De que ? " -- ponderou timidamente o fogueteiro , sem poder atinar com a plausibilidade d' esta ingerência dos dois desconhecidos na sua companhia , nem com os motivos d' aquella expressão de communidade , que os seus interlocutores insinuavam na conversação . -- " De que ! " -- retorquiu o da direita como admirado e quasi escandalisado . -- " É uma pergunta " -- acrescentou o mestre em modos de desculpa . -- " De que ? De acharmos o que procuramos . " -- " Mas que procuramos nós ? " -- exclamou o fogueteiro , tão completamente desnorteado , que já sem saber acceitava a locução collectiva . -- " Vindes de longe , e não nos heis dado pouco trabalho em seguir-vos , mestre " -- advertiu em forma de commentario o primeiro embuçado . -- " Ih ! " -- murmurou para si mestre Marçal com a voz estrangulada de funestos presentimentos . -- " Ha muito que estudaes os artifícios de fogo ? " -- acudiu o segundo vulto . Mestre Marçal nem se atreveu a negar . Evidente era que estava descoberto o seu segredo . Passado o lance , custou-lhe a perceber como escapara d' elle . -- " Por quem sois , meus senhores " -- exclamou tranzido -- " por quem sois , nâo me deiteis a perder ! " -- " Perder-vos " -- respondeu jogueteando com as palavras o primeiro embuçado , que parecia extremamenle faceiro e propenso ao molejo . -- " Perdervos ! Pelo contrario : queremos ... aproveitar-vos . " O arrevesado e cruel trocadilho , que desafiara uma gargalhada em duello , arripiou o mestre . Depois de caminharem silenciosamente alguns passos , parou de repente o fogueteiro , e , dirigindo-se aos dois n ' um tom plangente capaz de derreter penedos , disse-lhes juntando as mãos : -- " Pelo amor de Deus , deixae-me ir para minha casa ! Minha mulher espera-me , e ... " Não poude acabar . A imagem terrível da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , erguendo-se novamente do meio de tantas angustias , rematara ao infeliz a torvação com a lembrança do que seria a catastrophe caseira na presença d' esta ausência illimitada . " Vossa mulher ! " -- tornou o segundo embuçado . -- " Devíeis agradecer a Deus a demora que vos trouxesse distante de tal Eva ... " -- " Que pôde pedir meças á serpente " -- atalhou o outro viilio epigrammatico , versado como se ve nos estudos da historia sacra . Mestre Marçal reflectiu que os dois incógnitos não só tinham seguido os seus passos , mas conheciam intimamente a sua vida . -- " lsso nâo , mestre Marçal " -- continuou o que primeiro lhe retorquira . -- " Pedi o que quizerdes . Tudo vos faremos . Menos largar-vos . " Como o honrado mestre em taes apuros lhes não podia sollicitar coisa que mais agradável lhe fosse , nâo teve remédio senão conformar-se . -- " Muito de appetecer é a vossa companhia , mestre Marçal " -- proseguiu o outro embuçado , como para o consolar , não ficando atraz do companheiro em attenções . -- " Não vos deixaremos , não . Ninguém sabe para o que está guardado , e acertadamente se diz que é cega a fortuna . Hoje na fama , amanhã na lama . Vá lá um homem fugir á sua sina ! Assim , mestre , é vir com+nós , e o futuro a Deus pertence . Estaes com gente que sabe tractar , e fio-vos que ninguém vos molestará , nem vos heis de dar mal em nossa companhia . O vosso foguete via-se que era peça acabada . Pelo dedo se conhece o gigante . Jurara que se ouviu a meia légua , e bofe que me alegrei de ouvil- o ! Ha tanto que anda a gente desacostumada d' isto ! " Mestre Marçal não sabia o que pensasse . As ponderações philosophicas do seu ultimo interlocutor pareciam envolver um sentido duvidosamente significativo , que ora o ameaçava pavoroso como um auto do Santo Officio , ora lhe sorria aprasivel como esperança mysteriosa . Conhecia que estava nas mãos d' aquelles homens . Estes modos lhanos e cortezes começavam porém a dissipar-lhe as tremendas suspeitas do primeiro sobresalto . As observações finaes do embuçado que ultimamente fallára , lisongeando o seu amor próprio de artista , haviam-n* ' o singularmente impressionado . Dizia-lhe de um lado a consciência que o recente desbarato das suas ambições não merecia os mal empregados e inopportunos elogios . Segredava-lhe de outro lado a vaidade que os profanos , não podendo adivinhar os mysterios da sua ingenhosa concepção , e vendo n ' aquella composição vulgar um foguete como todos os foguetes , podiam assim mesmo admirar a perfeição relativa do artefacto . -- " Quem sabe " -- dizia comsigo , -- " quem sabe se alguns fidalgos tiveram noticia do meu préstimo , e o desejam aproveitar para seus divertimentos e folgares ? ... Oh ! lá isso não ... a lei é ... A lei ! ... Eues hão-de saber a lei , e se assim mesmo querem , é porque lá terão modos de compôr-se com as justiças de Sua Magestade ... Com tanto que paguem bem , e me dêem um bom terreiro , mestre Marçal não seja eu se lhes não armo uns artifícios de fogo tam novos e vistosos , como nenhum castelhano era capaz de fazer , nem o melhor bombardeiro de Flandes idear . Tanto que se arremeçava a taes alturas , a imaginação do mestre , principiando a tingir-se de côr de rosa , não punha freio Ãs conjecturas . -- " E como elles me conhecem ! -- continuou nas divagações do solilóquio mental -- " O que é um homem ser nomeado nas artes do seu officio ! Não ha ninguém que não saiba . " Mestre Marçal lamentava seriamente os inconvenientes da celebridade , dando-se por victima da gloria . -- " Pois não tenho a mais pequena idéa d' estas vozes " -- foi proseguindo como que a namorar-se mais e mais nas próprias cogitações . -- " Não admira . Um homem não pôde conhecer toda a gente , que se praz em serpes volantes , e rodas floridas , e as mais fabricas admiráveis que se podem apurar n ' esta arte peregrina . N ' este arrojo da complacente phantasia do mestre , iam chegando á testada do terreiro de S. Domingos . Mestre Marçal quiz enfiar pela Bitesga que era o seu caminho . -- " Por aqui " -- disse o vulto mais robusto , tomando-lhe o braço e guiando-o para o lado de Valverde . -- " Mas para onde vamos nós , senhores meus ? " -- perguntou mestre Marçal , renascendo-lhe instinctivos os terrores ainda mal esquecidos . -- " Vamos a casa de uma pessoa , que muito deseja travar conhecimento comvosco , mestre " -- respondeu em tom quasi confidencial o embuçado que primeiro o saudara . Mestre Marçal tornou com isto ás anteriores conclusões , e deu promoção geral ás suas esperanças . Corrigindo as supposições com uma observação mais altenta e plácida , assentou lá comsigo que os seus dois adjuntos eram escudeiros , e que os escudeiros o levavam a casa de um titular pelo menos . Os receios da ordenança com todos os seus rigores , se não lhe despareciam de todo , iam progressivamente declinando . Mais socegado e desopprimido depois d' esta decisão , mestre Marçal deu a andar com desembaraço e confiança . A poucos passos olhava já para os companheiros com certo ar de protecção . O mestre era d' aquelles caracteres , muito frequentes e notavelmente afortunados , que transformam sem hesitação em absolutas certezas as suggestões do seu bestunto , e convertem n ' outros tantos infalliveis dogmas todos os disparates , que tiveram o privilegio e a fortuna de lhes abrolhar no cérebro . Atravessando o Rocio , subiram os três homens ao Bairro alto , e pararam á porta d' umas casas de boa apparencia , que faziam frente para a travessa da Cruz e esquina para a do Arcebispo , a qual corria parallela com a de Estevão Galhardo , ainda hoje existente , posto que mui diversa do que então era . Não viu mestre Marçal apparato de serviçaes e pagens ; mas , como lhe custasse o demolir tanto do pé para a mão o phantasioso edifício architectado pelos seus incuráveis desvanecimentos , pensou que naturalmente o queriam receber com recato e se-gredo , pois que , em todo o caso , o fim para que o buscavam sempre era melindroso . O vulto mais baixo bateu , e uma velha escrava moura veiu abrir resmoneando . Mestre Marçal e o outro embuçado ficaram fora . Passados instantes de breve conferencia , saiu o embuçado que entrara e disse para o companheiro : -- " Vamos ao Pateo de as Comedias . " Sem mais observações , este ultimo travou novamente do braço ao fogueteiro , que nem idéa fazia do que era o Pateo de as Comedias , e todos juntos desandaram o que tinham andado . De como mestre Marcai continuou a sua peregrinação nocturna O honrado mestre , cujas faculdades se iam de mais em mais conturbando com estas complicações , fluctuava entre apprehensões nebulosas e risonhas esperanças . O Pateo das Comedias , onde se achava estabelecido o theatro publico , ficava para a rua dos Arcos , que desembocava na da Bitesga . Pertencia este theatro ao hospital de Todos os Santos , que era o seu empresário , em virtude de privilegio especial , confirmado em 1595 por alvará de Philipe II . Mal chegaram , o embuçado , que entrara antecedentemente nas casas da travessa da Cruz , separou-se do companheiro e sumiu-se n ' um corredor tortuoso , que abria uma bocca de Adamastor ao canto do quadrilátero , cortado de algares e de charcos pouco odoríferos , que se chamava o Pateo . A luz mortiça e vesga de dois candis afumados , appensos ao lado anterior das humbreiras do portal estreito e baixo , como que ainda mais realçava as trevas interiores d' aquelle mysterioso sorvedouro . Fora , no âmbito do pateo , a escuridão era completa . Mestre Marçal , inteiramente noviço n ' estas regiões , e de todo ignorante dos seus costumes , não sabia o que pensasse de um borburinho de vozes , que ouvia próximas . As vozes chilravam , riam e chacoteavam , n ' umas pinhas inviziveis de gente galhofeira , com tal desenfado e petulância , que até a seriedade do mestre sentia as cócegas do riso contagioso . De vez em quando saiam de um ou outro dos pequenos ajuntamentos alguns exploradores , práticos nas difficuldades do piso , e , orientando o rumo pelas immediações dos recemchegados , passavam , por elles com uns : " olâs ! ... " e uns " olés ! ... " extraordinariamente joviaes . Estas exclamações , um tanto á queima roupa , em vez de offenderem o vulto que ficara em companhia de mestre Marçal , provocavam-lhe malicioso sorriso , que este felizmente não podia ver . O mestre , cada vez mais captivo das conjecturas , attribuia com toda a modéstia á sua incomparável popularidade as admirativas exclamaçoens , que lhe zumbiam aos ouvidos . Era comtudo evidente que só a presença do seu accessor , pelos modos respeitável e respeitada , impedia esta hilaridade vaga de se converter em applicação directa ao desditoso heroe . O physico de mestre Marçal produzia o seu costumado effeito . Se os curiosos podessem n ' aquelle momento adivinhar , entrando no mysterio das suas meditações , nao teriam menos que rir . De repente , uma voz esganiçada em falsete , rebentando de uma fresta sobre o mestre como estilhaço lascado e cortante , despertou-o no melhor das suas chimeras . -- " Olá ! olá ! ... Ole ! olé ! " -- dizia a voz resumindo as diversas intonações de cómico pasmo , que sussurravam cá em baixo . -- " Voto a Belzebuth que lobrigo ahi um entremez de carne e osso ... de osso principalmente . Boas noites , tio||_Longuinhos Longuinhos|_Longuinhos , ou como é vossa graça ... Tio||_Longuinhos Longuinhos|_Longuinhos heis de ser ... Para aqui , tio . Bofe que nos estaes fazendo falta . Upa ! Alçae- me cá uma d' essas ripas , e estaes em cima . Precisamos d' uns espeques assim para representar o cavallo de Troya ... ao natural . Upa , tio||_Longuinhos Longuinhos|_Longuinhos ! Uma pernada , vamos . Sereis dos nossos . Talhado andaes para isso . Por Gil Vicente , e sua filha Paula Vicente , que dera eu todas as comedias novas , e até os autos e chacotas da moda antiga , que eram de bem melhor sabor , para vos ter comigo nas taboas ! Farieis á maravilha o papel de Polyphemo entisicando de ciúmes . Pois o D. Lançarote ! ... Temos cá também um manto de Plutão presidindo aos infernos , que vos irá á maravilha . Eh ! eh ! ... Trepa , tio||_Longuinhos Longuinhos|_Longuinhos . Upa ! ... Tu tambien , insigne palma , Eres aqui forastera ! Cantarolou para remate o interlocutor acreo , applicando em romance castelhano , lingua vulgar no palco , á esguia pessoa do mestre , com visivel intenção de parodia , o popular moteto da palmeira , das velhas trovas do rei||_Abd-er-rahman Abd-er-rahman|_Abd-er-rahman . Tudo isto fôra emphaticamente recitado , com tal volubilidade de palavras e tal variedade de inílexões , que não dava quasi logar á reflexão . Mestre Marçal , posto já familiarisado com todos os apodos plebeus , como nunca em sua vida tivesse ouvido , disparado d' um jacto , tal aggregado de coisas desusadas , esdrúxulas , e absolutamente inintelligiveis para elle , ás primeiras palavras levantou a cabeça com o assombro de um homem que ouvisse um pintasilgo desfechar-lhe um discurso , e com o gesto attonito que provavelmente faria o propheta Balaão ao escutar as primeiras phrases da jumenta palreira . Resultou d' este movimento receber em cheio a saraivada da extravagante apostrophe . Ficou aturdido . Um coro de gargalhadas acolheu a eloquência exuberante e luxuosa do orador inesperado . -- " Cala-te lá , farçante " -- grilou debaixo o embuçado , que ficara com o fogueteiro , em tom mais complacente que iroso . No mesmo ponto as gargalhadas emudeceram . Quem já houvesse costumado os olhos á obscuridade , teria visto mergulhar uma cara travessa e vadia por traz da apertada adufa que lhe servira de tribuna . Era o Gracioso da companhia . Passado um quarto de hora , voltou o outro embuçado , e veio ao encontro do camarada . Como transpozesse a tarja vermelha e tremula , que a luz dos candis projectava á entrada do corredor , notou mestre Marçal , apezar da sua turbação , que a ponta de uma comprida espada arregaçava a orla inferior da capa ao desconhecido . -- " Escudeiros são " -- concluiu para si , consolado de tudo , admirando tanto a perspicácia do seu espirito de observação , como a sagacidade de sua previdência . Mestre Marçal , como se ve , estava disposto a olhar para as coisas com bons olhos . Não poderia tirar outras inferências sem confessar a si mesmo a ridicula jactância das suas imaginações , e a inópia dos seus juízos ; e n ' isto não concordava elle facilmente . Quanto a perceber aquella enfiada de mysterios , era coisa de que nem já tractava . Duas horas de pratica haviam-n* ' o familiarisado com os enigmas . Com pouco mais , seria capaz de decifrar á primeira vista , como Oedipo , todas as subtilezas dos gryphos thebanos , e de tractar intimidades com a álea das seiscentas sphinges do " rei||_Amenophis Amenophis|_Amenophis . -- " Voltemos a casa " -- disse o embuçado que descera do corredor . -- " Saiu ha pouco de cá , e estará quando chegarmos . " -- Abalaram todos do pateo . -- " Até á vista , tio||_Longuinhos Longuinhos|_Longuinhos " -- gritou da sua adufa a mesma voz , que pouco antes pozera em perigo a razão vacillante do mestre . -- " Maldito ! Tem pilhas de graça ! " -- observou sorrindo confidencialmente o vulto , que ainda não largara o braço ao fogueteiro . -- " Sabeis o que houve ? " -- disse para aquelle o seu companheiro . -- " Que houve ? " -- " O Barbas pregou dois murros na Lacaia , que lhe pôz um inchaço em cada face , e a Lacaia rachou a cabeça ao Imperador com um pedaço de gruta dos jardins de Babylonia que apanhou á mão . -- " Arrufos ! Nada que dê de si , vereis " -- ponderou sentenciosamente o outro . -- " Foi por isso que mandaram chamar sua mercê . " -- " E então ? " -- " Está tudo acommodado . Não passou a mais . " -- " Não vol-o disse eu ? Nunca isto rende coisa de maior . " Não perdera tempo o embuçado que entrara . Esmiuçara em poucos minutos as mais recentes occorrencias do tablado , que ainda hoje não é isempto de casos análogos . Mestre Marçal , para quem tudo aquillo era de todo o ponto novo e indecifrável , julgava-se n ' um mundo phantastico ouvindo contar , com tal naturalidade como se fora coisa trivial , a historia d' estas altercaçoens entre lacaias e imperadores . Todas as suas idéas hierarchicas se abysmavam diante da narração d' aquellas anedoctas , que , pela forma por que eram contadas , pareciam usuaes e correntes . Pensou o mestre que o mundo podia muito bem ter dado uma volta desde o seu casamento com a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa . Quiz certificar-se . -- " Perdoao " -- observou cortezmente ao que referira o facto -- " Pelo que oiço teremos brevemente execução " -- " Uma execução " -- " Certamente . " -- " Que execução ? " -- " A execução da Lacaia " -- " A execução da Lacaia ! Mas como entendeis a execução da Lacaia , mestre Marçal ? " -- " Com baraço e pregão , e tudo o mais do costume , coisa muito para se ver e admirar , e para servir de exemplo e escarmento aos perversos . " A honrada indignação do mestre varrera-lhe a memoria do delicio recente , que bem podia arrumal- o n ' esta cathegoria reprovada . Abrindo os diques à facúndia da sua virtude , proseguiu : -- " Presumo que não a esquartejarão por decen- cia . Como é pessoa do povo lambem não morrerá de garrote . " -- " Mas para que hâo de executar a Lacaia ? Os dois intorloculores estavam em pólos oppos- tos : não podiam entender-se . O segundo embuçado ria maliciosamente nas dobras da capa traçada . -- " Por que hâo de executar a Lacaia ! " -- ponderou mestre Marçal , estupefacto da pergunta e dos ares de duvida que a acompanhavam . -- " Porque hâo de execulal-a , sim ? " -- retorquiu já impaciente o companheiro . -- " Perguntaes- me por que hão de justiçar e executar a Lacaia ! " -- insistiu o mestre exconjurando-se . -- " Porque ? Polo que fez " -- " Mas o que fez nâo é caso de forca . " -- " Pois não é caso de forca um atrevimento d' aquelles ? um crime de lesa magestade pelo menos ? Em que tempos estamos ! " Insurgia-se a orthodoxia dos seus escrúpulos contra esta indifferença do incógnito companheiro , pouco mais ou menos como um confidente ministerial deplora o septicismo , que hesita em acreditar a absoluta e incomparável superioridade dos seus amigos . O embuçado replicou procurando o sentido das palavras do fogueteiro , á feição de quem quer forçar o espirito a resolver um problema complicado . -- " Crime de lesa magestade ! Qual crime ? " -- " Pois ainda achaes pouco atrever-se uma lacaia , uma cuvilheira , penso ... nem açafatule certo ... a levantar mão para um imperador ... que eu não sei que imperador esteja agora cá na cidade ... não ouvi ainda fallar ... mas , como ainda ha pouco dissestes , foi aggravo a um imperador ... -- " Oh ! oh ! oh ! ... ) -- atalhou o embuçado menos prompto na comprehensão , percebendo a final , e fazendo a segunda á risada do companheiro . -- Oh ! oh ! oh ! ... Homem sois como não ha outro , mestre Marçal . " -- " Sou um homem como não ha outro ! Porque ? " -- " Sois . Descançae . Não haverá justiçados nem execução . Sinto dizer-vol-o: teremos de passar sem esse desenfado . O Imperador e a Lacaia lá se entendem . " Esta conclusão extravagante derrotou de todo mestre Marçal . Suppõe-se , com bons fundamentos , que o illustre e desditoso pyrotechnico finalisou os seus dias , sem apreciar bem aquella intelligencia e camaradagem entre tão humilde oíficio e tão excelsa jerarchia . Feliz ignorância , que seria hoje um enorme anachronismo ! N ' isto chegavam de novo todos trez á casa da travessa da Cruz . A escrava moura veio logo abrir , como se já os esperasse . Os dois embuçados entraram fazendo passar diante o mestre , cortezia que este julgou o mais favorável presagio . De como mestre Marçal veiu a achar nas casas da rua da Cruz a explicação d' aquelles mysterios Entrou o mestre , guiado pelos seus companheiros , n ' uma espécie de ante-sala . Havia ao canto uma pequena meza forrada toda de baeta verde usada , com guarnições de galão amarello . No topo , entre rumas de papeis , estava assentado um homem trajando de preto . Dava-lhe em cheio no rosto a luz posta sobre a meza , deixando na penumbra o resto do aposento , e realçando-lhe com o escuro da casa e o negror das vestes o semblante florido e prazenteiro . Mestre Marçal chegou-se entre os dois embuçados , obedecendo ás prescripções doestes . O homem , que estava á meza , fitou no fogueteiro uns olhos claros e vivos . Depois de folhear um quaderno , perguntou-lhe : -- " Sois vós mestre Marçal ? " -- " Marçal sou para vos servir . Mestre não me permitte a minha modéstia dizel- o ; mas , com a ajuda de Deus e do meu santo padroeiro , muitos vol-o dirão . -- " Sei , sei . " O homem escreveu o que quer que fosse , e continuou : -- " Natural ? " -- " Natural ... como ? " -- " Natural ... d' onde ? " -- " Ah ! ... natural d' esta cidade , meu senhor . " Mestre Marçal nâo via a precisão de lhe averiguarem a naturalidade . -- " Edade ? " -- " Trinta e dois annos . Hei-de fazel- os para o S. João que vem . " -- " De vossa profissão , fogueteiro ? " -- " Quando havia fogueteiros " -- observou malignamente o mestre . O homem sorriu . -- E de vosso estado , casado ? -- Casado , é verdade . Suspirou mestre Marçal este " é verdade " como quem diz : " desgraçadamente . " O homem tornou a sorrir . -- " Prompto " -- murmurou para si , terminando expeditamente a escripta . Depois , abrindo a porta que lhe ficava ao lado , foi para dentro . Passados momentos voltou , e disse a mestre Marçal : -- " Podeis entrar . " Mestre Marçal tinha tomado a prudente resolução de já se não admirar de nenhuma occorrencia , por mais disparatada que lhe parecesse . A sala que se seguia , e onde o mestre foi introduzido pelo individuo das perizunlas , ficando fora os dois homens de capa , desdizia pouco da mobília da outra , e pouco se lhe avantajava . As janellas sem colgaduras . De friso a friso das humbreiras , nas paredes lateraes , longos renques de prateleiras de pinho da terra , vergando ao peso de grossos manuscriptos , atados com guitas ou nastros vermelhos . De rosto para a porta de entrada , e corrida com o fundo da casa , uma estante de guaiáco torneada , arrebentando de fólios veneráveis . A outra meza , mais vasta e mais aceadamente coberta do que a antecedente , outro homem , de escuro como o primeiro , estava como elle sentado á meza . Uma cadeira de espaldas , de couro de Flandes , com ornatos em relevo e pregaria amarella , indicava a preeminência da pessoa . Era este novo personagem , creaturinha de seus sessenta annos , homem ainda fresco e bem disposto . Todo elle viveza e movimento . Nem nos modos nem no aspecto a menor apparencia de severidade . O olhar impenetrável , porém , tão frio e tão agudo , que parecia cortar . Tinha a cabeça já branca , o rosto vermelho , as mãos femininas . -- " Chegae-vos , mestre Marçal -- disse ao fogueteiro num tom benigno e paternal , que mais dilatou a este as esperanças e deveras lhe restaurou as alegrias . Depois , dirigindo a palavra ao introductor , acrescentou : -- " Verificastes ser o próprio ? " -- " Verifiquei " -- tornou o interpellado com toda a proxilidade das locuções formalistas . -- " O próprio é por sua mesma declaração e confissão . " -- " Sou , sim , meu senhor " -- confirmou o mestre , que já se via festejado e favorecido ; -- " eu sou . Sou mestre Marçal , fogueteiro ... no meu tempo ... para tudo o que poder servir a sua mercê . " -- " Já por vezes heis fabricado em vossa casa alguns artificies de fogo , que tendes lá mesmo deitado , não ? " Mestre Marçal , vendo nesta pergunta , antes verdadeira affirmativa , a razão da sua popularidade , e talvez a origem da sua fortuna , respondeu com o desdém da superioridade : -- " Aquillo nada foi . Um desenfado apenas . Se vísseis ... " Franziu o homunculo o sobrolho espesso e grisalho , e atalhou : -- " Ah ! nada foi ! " Esta interrupção fez reflectir mestre Marçal . Como se podia ter sabido um segredo , que elle julgava tão recatado e occulto ? Estando porém convencido plenamente da inutilidade de dissimular com pessoa em quem via , mais que um protector , um admirador , quiz somente esclarecer as duvidas : -- " Como soube sua mercê ? " -- inquiriu entre a curiosidade e o mysterio . -- " Sabemos tudo " -- acudiu laconicamenle o homunculo . Depois continuou : -- " Esta noite , depois de Trindades , fostes ás terras da Cotovia ... " -- " Experimentar um foguete " -- respondeu mestre Marçal , sem deixar concluir a phrase , e já a cem léguas das ordenanças -- " É certo . Mas nâo pense sua mercê que era um foguete como os outros . " -- " Com que então , não era ! " -- " Não era , posto que o parecesse ... Sua mercê assim mesmo gostou ? " -- " Pois não havia de gostar ! Digo-vos que estou maravilhado . " Mestre Marçal esfregou as mãos . -- " Se soubésseis , meu senhor , que artificio novo e estupendo eu tinha ali preparado ! Havia de assombrar tudo . " -- " Dizeis , mestre ? " -- " Digo que assombraria toda a gente . " -- " Com que então havieis preparado um artificio , que havia de assombrar tudo ! Mas , vamos : que quereis dizer nisso de assombrar ? " -- ponderou o ho- munculo ; recostando-so , cruzando os braços n ' uma attitude de apparente indolência , o por entre as palpebras meio cerradas vibrando dois raios sobre o fogueteiro desprevenido . Este respondeu candidamente : -- " Assombrar ... de admiração ! " -- " Ah ! " -- articulou o interrogante com inflexão lenta e meditativa . -- " Falhou " -- redarguiu o mestre . -- " Toda a gente se póde enganar uma vez ! " -- acrescentou philosophicamente . -- " Não só uma vez , mas duas vezes , mestre Marçal . " -- " Duas não seria facil " -- tornou este como perfeitamente seguro de si . -- " Estaes então disposto a tentar de novo o lance ? " Mestre Marçal , cuidando ver n ' esta provocação um indirecto convite a maior franqueza , olhou em torno com ar de precaução , aproximou-se da meza , e disse em voz baixa : -- " Se achasse alguém de vulto que se quizesse utilisar do meu préstimo assim para coisa de maior , veria , veria então sua mercê , ou sua ... que eu não sei com quem estou fallando ... " -- " Vejo que vos achaes em boas disposições , mestre Marçal . E com effeito não vos disseram ainda em presença de quem estaes ? " Mestre Marçal olhou interrogativamente para o individuo que o introduzira ; e , como este não respondesse , replicou balbuciando : -- " Não , senhor meu : nada me disseram pelo caminho . Mas eu penso ... creio ... Em todo o caso , aqui estou prompto para o que me ordenarem . " -- " Sinto vol-o , mestre Marçal , estaes prompto para entrar na cadêa do Tronco , aonde vos mando já conduzir . " -- " É o senhor corregedor do crime " -- observou officiosamente o outro sujeito de negro , que era o escrivão da correição , com uma obsequiosidade de modos , que n ' outro occasião teria penhorado infinitamente o mestre . Em tal momento porém todos os lenitivos se tornavam inúteis e todas as civilidades absolutamente supérfluas . O desmaio das suas phantasias era completo , e o desengano da sua situação terrível . -- " Misericórdia ! " -- bradou o mísero , vergadas as pernas como dois parenthesis . E caiu em joelhos , fechando as mãos na cabeça , como se um raio lhe houvesse estoirado em cima ! Da influencia que exerceu a língua da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa no destino de mestre Marçal Quando , defronte de S. Luiz dos francezes , fora interceptado pelos dois embuçados , mestre Marçal tivera suas suspeitas do que podia ser , e deve-se dizer que uns longes d' ellas lhe haviam visitado por vezes a imaginação nos vários incidentes d' aquella noite funesta . Dissipara-lhe porém o terror e afugentara-lhe as imagens tétricas uma grave circumstancia , confirmando-o successivamente na commoda novella , que havia forjado para seu uso . Fora esta circumstancia a perfeita urbanidade , que , por um acaso feliz e sempre raro , achara nos quatro individuos com quem tivera de lidar . Por ignorante do mundo , fazia mestre Marçal do trcto social das justiças de el-rei a idéa mais pavo- rosa e menos favorável que era possível conceber-se . Como nunca tivera dares nem tomares com ellas , até ao dia malfadado em que a paixão da arte o levara a commetter o primeiro delicto , o honrado fogueteiro figurava-as lá comsigo de um desenho medonho , e pintava-as com as mais negras cores . No seu conceito um beleguim era inevitavelmente um ogre , um meirinho uma harpia , e um juiz a cabeça de Medusa . Sendo difficil que o mestre citasse a propósito os mythos gregos , por não possuir na interpretação d' elles , segundo todas as probabilidades , a sagacidade erudita do abbade Banier , e não podendo também suppor- se sufficienlemente versado nas chronicas de Jornandes e Amiano-Marcellino para tractar familiaridades com a origem e sentido das temerosas ficções da edade-media , não se tenham litteralmente estas comparações por partos do seu bestunto , ou , como vulgarmente se diz , productos da sua lavra : são apenas uma traçado auclor para exprimir a ascendente intensidade do horror , que o bom do mestre ingenuamente media e graduava pelas differenles espheras da jerarchia judicial . Eram aos seus olhos a affabilidade e os bons termos qualidades absolutamente incompatíveis com os homens daquela classe . Não podia imaginal- os senão arripiados de modos , hirsutos de figura , e ferozes de instinctos . A fallar a verdade , mestre Marçal não errava de todo . As relações ordinárias da justiça com as pessoas da sua condição tinham com effeito muito pouco de benévolas e aprazíveis . Não passava o carinho por ser o fraco dos homens de lei , e menos ainda na sequella dos honrados malsins de todas as ordens . Se ainda hoje as conjecturas do mestre não vão muito longe da realidade , póde suppor- se o que seria n ' aquella época . Toda a regra porém tem excepção . Tinha tido mestre Marçal a phenomenal ventura de acertar com quatro excepções , ou antes com a excepção de um corregedor do crime , systematicamente obsequioso de palavras , que á sua imagem e similhança affizera , como é costume , todos os subordinados . É verdade que não estava mais adiantado por isso . Era o corregedor polido como o aço , mas duro como elle . Desde que o mestre , illudido pelas apparencias , assentara de si para si que os dois mysteriosos desconhecidos não podiam pertencer á justiça , peitado de outras idéas , e vencido do demónio da ambição e vaidade , esquecera de todo , não só a usual circumspecção , mas ainda as mais triviaes suggestões da prudência . Serenado o sobresalto do primeiro surprehendimento pela blandícia dos diversos interlocutores , haviam-lhe estes naturalmente parecido outros tantos confidentes . Imagine-se pois qual seria o seu aturdimento e stupefacção ao ouvir estas palavras , bem pouco esperadas : -- " É o sr. corregedor do crime ! " Quanto ao modo porque o digno corregedor fora tão bem informado a seu respeito , era a coisa mais simples d' este mundo . Tendo por aquelles tempos , como já se relatou , occorrido contra as ordenanças prohibitivas algumas infracções , cujos auctores haviam ficado desconhecidos e impunes , temendo o governo de Castella que do resfriamento da lei se seguisse o seu descrédito , e do descrédito resultassem abusos perigosos , havia com grande urgência recommendado para Lisboa a maior vigilância e rigor . Em consequência d' estas recommendaçôes , o regedor das justiças passara as ordens competentes aos tribunaes , e aos dois corregedores do crime , que então possuia Lisboa , os quaes corregedores tinham jurisdicção e alçada para prender e processar no recinto da cidade , e cinco léguas em redondo , que era o termo . Dos corregedores passara o apertado aviso ao meirinho , e aos onze alcaides , que faziam a policia da cidade . Descendo na escala , cada alcaide tinha-o egualmente transmittido aos doze homens , oito de chuça , e quatro de capa e espada , que a lei e o uso lhe attribuiam para exercício de suas funcções . Um dos últimos era visinho de mestre Marçal , que , vivendo retirado e desgostoso , não só ignorava o tracto d' elle , mas nem se quer uma vez lhe fallára , e portanto mal podia conhecel- o . Tivera a mulher d' este homem , a propósito de certa franga pedrez , grandes desavenças e ralhos com a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , a qual , na forma do seu louvável costume , a brindara com um diluvio de sotaques e impropérios , dignos do artigo de fundo de um oráculo de moralidade n ' estes tempos de civilisação . Entre outras injurias grossas , chamara-lhe : " velha desdentada . " Como a respeitável matrona passava com effeito dos sessenta , e , em consequência de um ar nos queixos , conservava apenas seis dentes , em mau estado de servir , e em peior de se apresentar , dera em cheio o tiro , e a digna esposa do beleguim nunca mais perdoara tão desabrida affronla . Não contente com aquella imprudência , que a indispunha com as justiças , a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa tivera a notável inconsideração de ir contar a outra visinha , -- em segredo já se vê : -- Que o seu Marçal queimara uma dúzia de valverdes em dia de Anno Bom ! " Isto com muitos queixumes do perigo de um incêndio , e dos desperdícios d' aquelle homem , que era a sua desgraça . Affectando receios , que davam ao marido ares de verdugo e a prendavam com os méritos da resignação mais exemplar , rematou pedindo encarecidamente : -- Que não boquejasse no caso a ninguém ! Cousa que a discreta creatura lhe affiançou com um sem numero de juras , muito parecidas com pragas . Temendo porém crear bolor na lingua , julgou a visinha que novidade d' este calibre seria consciência ficar monopolisada . E foi-se em continente segredar a uma sua comadre , paredes meias : -- Que mestre Marçal fazia o despropósito de deitar todos os mezes duas dúzias de morteiros em casa , e era um bargante que dava cabo de quanto tinha e não tinha a pobre da mulher . Quando a nova se aproximou ao fim do beco , dizia-se ao ouvido : -- Que o dissoluto e valdevinos do visinho Marçal punha por portas aquella boa alma da tia||_Medéa Medéa|_Medéa , porque tinha o sestro extravagante de deitar todas as semanas um fogo de vistas no pateo ! Ao sol posto d' esse dia , o honrado pyrotechnico , sem o saber , gosava no sitio a reputação de uma índole intractavel e de um perdulário insigne , em quanto a amoravel consorte , tida por modelo de mansidão e virtudes , era chorada como victima da sua abnegação conjugal . Parecendo ter feito a sua educação com algum artigueiro habilidoso , a ex-viuva Brandoa adivinhava por este modo a arte peregrina , hoje primorosamente cultivada , de insinuar calumnias , e de encarecer os sacriticios que não fazia , caritativo empenho em que efficazmente a auxiliava o espi-rito palreiro da respeitável corporação das mexeriqueiras , que em todos os tempos , e em todas as classes , teve sempre os seus valores entendidos . De visinha em visinha , e de porta em poria , chegara a noticia á mulher do beleguim . A mulher do beleguim foi logo communical- a ao marido . O marido , homem prudente , ponderou que se não devia acreditar senão metade do que se dizia , e preveniu immediatamente o seu alcaide . D ' ahi por diante mestre Marçal tornara-se alvo de uma vigilância activa e persistente . A saida do mestre a horas desusadas , e para longe do bairro , dera nos olhos ao visinho beleguim , que o espreitava quotidianamente . Seguiu-o por tanto com as precauções do officio . Ao Rocio , encontrara um confrade da mesma esquadra , e aggregara-o a si communicando-lhe a empreza . Isto feito , não lhe escapara o menor movimento do desditoso Marçal , que nem no seu estado normal poderia competir em astúcia com os experimentados agarradores , quanto mais precaver-se d' elles quando tamanhas preoccupaçoens o turbavam . O mestre , seguido com obstinação e recato , nem dera por isso . O que os dois beleguins tinham visto constituia prova suíTiciente para se apoderarem da pessoa do contraventor . A ingenuidade das suas confissões confirmara tudo sem trabalho . O corregedor do crime , em cujas mãos mes-tre Marçal caíra , apezar dos modos affaveis e adocicados , tinha um masso de processos no logar em que os outros costumam ter o coração . Trazia elle o fito ambicioso em chegar , o mais depressa que podesse , a Desembargador dos Agravos com assento na Casada Supplicação , logar eminente e pingue , que era a terra da promissão para a magistratura da época . Não são os indivíduos d' esta tempera inclinados a escrúpulos . Anhelando lograr aquelle fim , tão desejado como árduo , nada lhe custava , e todo o seu empenho era assignalar-se por algum serviço importante . O corregedor conhecia o espirito suspeitoso e desconfiado da governança de Caslella . Se alcançasse pôr o dedo n ' alguma boa conspiração , ou sequer n ' um simulacro d' ella , tinha como certo o abreviar consideravelmente a distancia , que ainda o afastava do termo das suas aspirações . Quasi exclusivamente costumado a lidar com as manhas e subterfúgios dos criminosos endurecidos e matreiros , não podéra elle acreditar que a milagrosa simpleza de mestre Marçal fosse causa natural , e proviesse unicamente do acanhamento da sua penetração . Comprazia-se em architectar sobre a vulgar occorrencia , que tivera lugar com o fogueteiro , um problema judicial , cuja solução lhe daria créditos de sagaz e zeloso , e o poria em bons termos com o conde-duque , ministro omnipotente . Quando a mais não chegasse , attestava o seu des- velo pela integridade d' aquella lei , que tal attenção estava merecendo à corte . O juiz , sem querer , egualava-se ao réo pela secreta inspiração do desejo , análogo em ambos ; salvos os differentes graus da respectiva cobiça . Nesta disposição resolveu-se a continuar o interrogatório , fitando no pobre de mestre Marçal uns olhos , que pareciam trespassal- o . Mal tornara um pouco a si , o primeiro impulso do fogueteiro , ébrio ainda de terror , fora abraçar o corregedor pelos pés , exclamando em tom de angustia tão pathetica e tão verdadeira , que lhe apagava o ridículo da figura , e commoveria o mais duro coração . -- " Senhor corregedor , não me desgraceis ! Senhor corregedor , era uma experiência , não era mais do que uma experiência ! Como não desculpareis , senhor corregedor , se com isto nasci e com isto me creei ! Era já a profissão de meu pae . Nunca tive outra . Era a minha enxada , e estava tão costumado que não podia passar sem ella . Foi o demónio que me cegou . Mas eu protesto-vos que nunca mais , nunca por nunca ser , tornarei a bulir n ' um bago de pólvora . Senhor corregedor , amerceae-vos de um pobre , que é a primeira vez que passa por esta desgraça e por estas vergonhas ! Senhor corregedor ! . . " Mestre Marçal não sabia que era mais fácil mudar os celebres paços de Corte Real para a Trafaria do que abalar aquella alma petrificada . Um tigre perdoaria : elle regosijava-se . De como mestre Marçal , Ycriflcando o segredo do seu artificio , descobriu a final que um foguete se podia transformar n ' um galeão O corregedor , se não tinha a conjuração , possuía o infractor . Não o ilera pela melhor moradia em palácio . Por única resposta , estendeu o braço e entregou a lei fatal ao escrivão da correição . -- " Lede " -- disse em tom imperioso e terminante . O escrivão leu da primeira até á ultima syllaba . Era escusado : mestre Marçal sabia-a de cór . -- " Mas , senhor corregedor , se não foi por mal ! " -- murmurou o fogueteiro com um abafador na garganta entaboada . -- " Tendes modo de evitar maior pena " -- proseguiu o inflexível magistrado . -- " Que modo , senhor corregedor ? ? -- tornou ancioso o infeliz , erguendo-se e respirando como o naufrago que deita mão á ultima prancha . -- " Confessar quem são os outros . " -- " Sua mercê diz ... ? " -- " Digo que reveleis o nome de vossos cúmplices . " -- " Cúmplices ! De que ? " Mestre Marçal não podia acreditar que fossem necessários cúmplices para fabricar os seus productos . -- " Com que fim vos fostes a lançar aquelle foguete ás terras da Cotovia ? " -- " Com o fim de experimentar um novo artificio de minha invenção . " -- " E que artifício era ? -- " Uma transformação . Nâo saiu bem doesta vez ; mas ... " Mestre Marçal , nas incorrigiveis cegueiras da paixão dominante , ia a dizer : -- " Mas para a outra melhor será . " Um gesto expressivo do corregedor embainhoulhe a palavra imprudente , seccando-lhe a bocca . -- " Ou este homem é mentecapto " -- pensou o magistrado -- " ou é o mais fino conspirador , que jamais caiu era mãos da justiça . " Custando-lhe porém a desistir das complicações , que os homens de lei se prazem em enredar na phantasia , e não se resolvendo a perder ainda totalmente a esperança de um tenebroso processo , como aquelles em que o amoi-da argúcia enleva a meude as predilecções forenses , continuou em voz alta : -- " Assim , persistis em vossas negativas e absurdas desculpas ? Não tendes cúmplices ! " Mestre Marçal daria tudo , até a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa -- principalmente a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa -- para ter um cúmplice ; mas , por mais que fizesse , não podia achar senão a cumplicidade da ponta de barbante , que do bolso lhe pendia accusadora , resto do que lhe servira para dispor a malavenlurada machina . Uma denegação muda foi a sua única replica . -- " A prisão o fará fallar , se é o que supponho " -- reflectiu comsigo o corregedor . -- " Se é só o que parece , já temos em quem punir a infracção . " O bom do jurisconsulto , com a mira nos seus particulares intentos , o que prova como a desalmada sordidez do interesse não é de agora , pouco se lhe dava de averiguar a importância do crime : o tudo era colher uma entidade criminosa . -- " Bem ! " -- proseguiu , dirigindo-se ao escrivão . -- " levem-m ' o á cadêa do Tronco : ficará incom municavel . " -- " Senhor corregedor ' ... " -- bradou o triste , pondo as mãos e erguendo-as ao céo no derradeiro e supremo esforço . O corregedor inexorável fez um signal . O escrivão abriu a porta , e entregou o preso aos dois homens de capa , que esperavam na ante-sala . Mais morto que vivo , mestre Marçal saiu machinalmente com elles . Estavam já desertas as ruas . Os habitantes da cidade recolhiam cedo n ' aquella época . O transito nocturno era subjeito aos mais graves inconvenientes . Apenas algumas raras andas , ou liteiras , de damas principaes , precedidas de um escravo que alumiava o caminho , e ladeadas dos pagens e homens de cavalio correspondentes á sua qualidade e jerarchia , segundo as regias provisões , atravessavam a passo lento as ladeiras tortuosas que iam dar à cidade baixa . Apenas algum embuçado bem precavido , escondendo egualmente o rosto e as tenções , perpassava preoccupado e rápido , ou se cozia com as esquinas topando os capas do alcaide . Este silencio e estes vultos lobregos apertavam ainda mais o coração de mestre Marçal . Torneando a rua dos Escudeiros , e passando a freguezia de S. Nicolau , os companheiros do mestre , que já a este pareciam de muito menos agradável convivência , entraram com o preso no Terreiro do Paço pela porta do Arco dos Barrotes , e seguiram costeando o palácio real pela porta do Arco das Pazes . Os motejos dos arcabuzeiros da guarda do paço acompanharam o pobre fogueteiro até quasi ao torreão novo da Casa da Índia , d' onde os capas o levaram ao outro lado pela porta dos Armazéns , dirigindo-se depois à Tanoaria , e enfiando pela porta dos Ciibcrlos até o encerrarem na prisão do Tronco , enxovia destinada aos malfeitores , situada na rua denominada tambem dos Cuberlos , que ficava , pouco mais ou menos , fronteira ao local onde existe o Arsenal da Marinha . Quando mestre Marçal sentiu ranger os quicios de ferro , correr os pesados ferrolhos , e cerrar sobre elle as grades grossissimas , pensou que o fechavam n ' um sepulchro . Quando ouviu as pragas , os brados , as vociferações , os alaridos , as blasphemias , que lá iam por dentro , cuidou que dava a sua entrada no inferno . Felizmente o espirito móbil do mestre não conservava por muito tempo a intensidade das sensações . Pela madrugada conseguiu adormecer , dizendo comsigo : -- Que , a final , inferno por inferno , o de sua casa não era muito preferível . Como o bom de mestre Marçal seguia a pbilosophia , muito catholica e discreta , de que tudo quanto Deus faz é pelo melhor , consolava-se com a idéa de ter assim evitado as verrinas conjugaes , que elle via erguerem-se ameaçadoras , com um " continuarse-ha " eterno . Ao outro dia , mal acordou , o primeiro " Deus te os salve " , que de longe lhe soou na masmorra , foi a voz stridente dá senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , a quem a mulher do beleguim fôra officiosamente prevenir , com apparente esquecimento das passadas affrontas , para saborear pessoalmente a vingança , que é o prazer dos deuses ... e das visinhas tarameleiras . A senhora||_Medéa Medéa|_Medéa , da banda de fora das grades , desfazia-se em imprecações contra o parvo do marido : -- Oue por culpa sua -- dizia ella -- estava entre ferros de el-rei ! Sobre isto regalava com uma furibunda aposlrophe os guardas incivis , pois que , sob o pretexto de se achar incommunicavel o preso , nâo a deixavam passar ávante para despejar na própria cara ao mestre o mais que lhe sobrava para dizer ! -- " Então por que não hei de entrar ? " -- " Já se vos disse , mulher . " -- " Mulher ! ... Mulher , assim por de mais ! ... Não verão aqui o D.||_Escudeiro Escudeiro|_Escudeiro , aprezilhado de prata e vestido de chamalote ! Quem vos talha o gibão , meu senhor amo ? Sois freguez da Rua Nova ou passeaes em S. Domingos ? ... Mulher ! Olha e lá como fallaes ! " -- " Mulher ou diabo . Ca para nós o mesmo é . " -- " Atrevidos ! Villões desbragados ! Almas de chinello ! Perros judeus ! " Um dos guardas , que se divertia particularmente com a torrente inexhaurivel dos impropérios da matrona , tornou-lhe com todo o serio de uma contricçâo sincera : -- " Perdoae ... Diabo não : era levantar-lhe um f ^^ . l.c , ^^ pobre do diabo ! " Bocca que tal disseste ! A conclusão acabou de assanhar a Medea algarvia . -- " Sempre quero ver " -- clamava ella com esgares tremendos , roxa de cólera , n ' um falsete que dava idéas de hydrophobia , -- " sempre quero ver se uma mulher honesta não hade fallar a seu marido ... para desafogar ao menos ! Ai ! que homem , santa do meu nome ! que homem ! Os meus peccados ! Eu sempre o disse . Mal haja a hora em que tive a desgraça de consentir em dar-lhe o " sim " . Que leis são estas que separam os casados e mettem uma rolha na bocca á gente ? ... Nossa Senhora||_de|_os de||_de|_os os|_de|_os Remédios , que remédio lerá a minha triste vida ! Quem me havia de a mim dizer no tempo do meu Malaquias , que sempre me trouxe tão estimada , que ainda havia de chegar a estes vexames ' . " ... Este chorado Malaquias era o defunto mercieiro , o primeiro marido , que lhe dava uma sova todos os oito dias . No paroxismo da desesperação , a senhora||_Medéa Medéa|_Medéa fincava o punho no lado com gesto provocador , fiando-se na impunidade do sexo . Terminou o dialogo da forma por que unicamente podia terminar , pegando-lhe os guardas por um braço -- se não foi pelos dois braços -- com mais vigor do que amabilidade , e pondo-a na rua sem maior cortezia . Na rua a berraria foi tal , que os habitantes do bairro chegaram todos á janella . Mestre Marçal , n ' esla conjunctura temerosa , beradisse a invenção dos segredos , e glorificou os rigores da justiça , que lhe pareceram então o cumulo da benevolência ! Terminam aqui as primeiras aventuras do mestre . A paixão pyrolechnica , paixão original entre todas ellas , sendo a verdadeira origem dos seus dissabores domésticos , levara-o , como se vê , aonde o podia levar . Dizem que os superiores affectos tem todos o seu calvário . Mestre Marçal , em prova da grandeza infeliz da sua bemquerença , teve dois calvários -- o ninho da esposa ; o ergástulo dos facinorosos . Pensando bem não sabia qual era peior ! O empenho do Corregedor do crime , incansável em esmiuçar a sua conspiração , fez jazer o mestre mais de um anno encarcerado . A custo desenganada de que o fogueie perturbador não fora signal de perigosos attenlados , e reconhecendo por fim que o supposto conjurado era , quando muito , um monomaniaco , resolveu a justiça de Castella dar-lhe destino . Dignando-se attender á prisão que já padecera , teve a benignidade de lhe commutar a pena de degredo para Angola na pena de degredo para o Brazil . Como acontecesse partir o capitão-mór de Per- nambuco , aproveitou-se a opportunidade de enviar para ali alguns degredados , entre os quaes mestre Marçal leve a honra de figurar ! Mal poz pé no convez do navio , como á claridade de um novo e súbito fiat lux , terminaram todas as suas duvidas acerca do desgraçado artificio , que , um anno antes , fora perder-se sem baptismo n ' umas leivas de cevada . Estava emfim sufficientemente esclarecido . Tinha o famoso foguete effectuado a problemática metamorphose : achava-se convertido no galeão , em que ia contra vontade , demandar as torras de Santa Cruz . N ' esta extremidade , uma coisa consolava mestre Marçal de todos os transtornos e infortúnios . Era a sua providencial separação da senhora||_Medéa Medéa|_Medéa . O mestre tinha a malicia de pensar que , só por si , esta circumstancia compensava , e , feitas bem as contas , excedia muito os desastres , que lhe grangeara aquelle amor da arte , não comprehendido no seu tempo . Se chego a conseguir alguns ócios , talvez me tente ainda a ordenar os inauditos e prodigiosos casos , que no novo mundo illustraram os méritos e o nome do mestre desterrado . Esses sim , que foram lances de contar . Mais dia menos dia não resisto ao desejo , dado que as singularidades physicas e moraes do meu chão e sincero Marçal Estouro não tenham demasiadamente enfadado o leitor . o FORTE DE S.||_JORGE JORGE|_JORGE SEGUNDA PARTE DE+AS AVENTURAS DE MESTRE MARÇAL o forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge PRELIMINARES Nos ultimos dias de fevereiro do anno de 1630 , uma poderosa armada dos Estados de Hollanda aproara ao Recife de Pernambuco , e desembarcara na enseada de pau-amarello o corpo de tropas da expedição , que a companhia hollandeza , para ensaio commercial , enviara a conquistar a provincia . Tanto que tal aggressão constou , a população de Olinda , capital da capitania , fugiu espavorida para os mattos . O melhor da força expedicionária dos Estados , atravessando em breve o rio Doce , e vencendo a insufficiente resistência das poucas tropas que poderam oppôr- se-lhe , entrou na cidade sem o trabalho de expugnal-a . O capitão-mór , Mathias d'Albuquerque , depois de reconhecer a impossibilidade de suster o pânico , percorria o campo a fim de organisar a resistência , e tentava bloquear os invasores na sua conquista . Para se entenderem as scenas , que vâo passar-se , convirá , antes de tudo , dar idea das localidades em que ellas succederam . No século , de que escrevo , a povoação do Recife , ou Arrecife como então lhe chamavam , estava longe de ser o que é actualmente . Gozava ella já todavia de grande importância commercial em consequência da sua situação . O burgo , que ainda por outra coisa se não podia ter , quasi fronteiro á barra principal do porto , era com effeito admiravelmente accommodado aos armazéns e tercenas , que ali tinham em grande copia os commerciantes . Ficava-lhe a um lado o surgidouro dos navios mercantes , na confluência dos dois rios , Capibaribe e Biberibe , que bracejavam para o sertão em sentido divergente . Ficava-lhe ao outro lado o ancoradouro das embarcações de maior porte , que ordinariamente fundeavam ao norte do Picão , defronte do logar onde os hollandezes levantaram depois o forte , que se ficou denominando de Bruma . Olinda era a sede permanente do governo da capitania . Muitas e singulares excellencias tinham originariamente determinado a escolha . Fora edificada esta cidade no século anterior . A lenda do seu nome é graciosa como o paiz que domina . Ao tempo da occupação , era aquella parte do littoral infestada pelos terríveis Caretés , ou índios do matto , aos quaes se haviam successivamente aggregado nâo poucos desertores , assim portuguezes da feitoria como francezes dos navios corsários então frequentes em taes paragens . D ' esta região , nas jangadas que rapidamente fabricavam , fácil era áquelles ousados salteadores levar a distancias consideráveis a devastação e o extermínio . Vieram novas colónias de Portugal . Por muito tempo , na zona marítima , theatro de luctas porfiadas e sanguinolentas , se achou a pequena povoação europea exposta Ãs improvisas excursões de similhantes aggressores . Tiveram estes porém de recuar ante a civilisação que avançava . Retirando-se em diversas direcções para o norte , não falta quem lhes atribua a origem das tribus ou hordas , ulteriormente denominadas taboyares e pilyagoares , que missionários zelosos , na época desta historia , começavam a doutrinar com vario successo . Principiava apenas a colonisação regular , quando o primeiro donatário da capitania , o valente Duarte Coelho , entranhando-se um dia pela enseada , e subindo até ao sitio onde se levantou depois a cidade , ao aportar na margem , e ao dar com os olhos na formosa disposição dos terrenos , exclamou : -- " Oh ! linda situação para se fundar uma villa ! " Olinda , dizem , ficou por isto o logar . A exclamação fora um baptismo . Subsequentemente , como crescesse o tracto e negocio , e o porto , pelas razões indicadas , se tornasse um dos mais frequentados e opulentos , formou-se o núcleo da povoação do Recife , que , nos tempos a que me retiro , era , como disse , um burgo de cento e ciucoenta moradores , quando muito , em parte pescadores , em parte homens de trabalho ou empi-egados no porto . Tempos atrás fallara-se vagamente nos armamentos dos hollandezes . O governador gera ! do Bi ' azil , Diogo Luiz d ^ Oliveira , chegara a mandar a Pernambuco o sargenlo-mór do estado , Pedro Corrêa da Gama , que , olhando á conveniência da povoação do Recife , como poude a fortificou circumdando-a de robustas estacas das ricas madeiras da terra . A este entrincheiramento , por um abuso de locução que rapidamente degenerara em geral costume , chamavam a praça . Adiante da praça , dependência d' ella , ficava outra pequena fortificação , a que se dava o nome de forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge . Para que se possa comprehender a importância d' este forte , em que vamos encerrar-nos , será indispensável entrar em mais algumas particularidades . É o porto -- Pernambuco fechado por um continuo recife natural , d' onde deriva o nome . O recife estende-se de sul a norte , desde a bahia de Todosos-Santos até ao cabo de S.||_Roque Roque|_Roque . Ergue-se por grande extensão á flor d' agua esta longa aresta de rocha , immenso diadema de alguma vasta serrania , cujas raizes assentou Deus no fundo do Oceano . N ' aquelle ponto da costa , o recife mais parece molhe artificial , e intelligente obra de gigantes , do que accidente da natureza . Por espaço de uma légua , pouco mais ou menos , corre em linha recta a cem braças da praia , em forma de larga muralha , quasi ao nivel das ondas na preamar , coisa de seis pés sobranceiro na vasante . Se o mar está liso e chão , quebra-se-lhe aos pés , franjando-o de uma extensa e formosa orla de espumas . Á mais leve agitação investem-no de toda a parte as vagas irritadas . Nos dias de temporal o escarcéo é medonho , a arrebentação tremenda , o expectaculo maravilhoso . Galgando e rugindo , como turba ciosa de leões titânicos , mares sobre mares sacodem ao ar as jubas arripiadas de neve , transpõem o eterno obstáculo opposto á sua cólera , precipitam-se , desabam além do molhe , e vão ainda turbar profundamente as aguas do porto . A pouca distancia da povoação interrompe-se esta longa e natural muralha , como se o Eterno quizera abrir uma porta áquella terra fecunda . A interrupção , ou abertura , forma a barra principal , defendida por um forte denominado da Lage , ou de S. Francisco , assente da banda do sul sobre um rochedo solitário . No interior do porto , entre este e o rio Biberibe , corre uma restinga de área , ou cabedello , de uns cincoenta passos de largura , proximamente , á feição de comprida e estreita peninsula , que , partindo de Olinda , se prolonga uma légua para o sul . Na extremidade d' esta peninsula ficava o burgo do Recife , fronteiriço á ilha de Santo António , mas separado d' esta pelas aguas combinadas dos dois rios affluentes . Além da ilha , estendiam-se as vastas planícies alagadiças , que o Biberibe inundava , e que por isso eram chamadas " Terra dos Afogados . " Quem já no século XVIII percorresse os três bairros da povoação engrossada e feita principal , -- o moderno Recife , que ainda occupa o logar do antigo burgo , é pela maior parte é devido aos hollandezes -- Santo António , que se alarga pela ilha desde o palácio das duas torres até ao forte das cinco pontas -- a Boa-Vista , que mais além , do outro lado , dissemina as suas formosas cazarias pelas veigas do continente -- quem , dizemos , já por fins do século XVIII , visitasse os três bairros da povoação , mutuamente ligados pelas duas pontes que a ilha estende como dois braços abertos , de um lado para a peninsula do Recife , e de outro para a várzea do rio , difficilmente poderia fazer idea do que Mathias de Albuquerque denominava praça , mais por ampliação philologica , do que por consciência militar . As pontes não existiam , e a ilha de Santo António estava ainda na maior parte coberta da sua vegetação primitiva . Por consequência o burgo isolado só pela restinga da área , a que era remate , se com-municava com o territorio , que Olinda , occupada pelos hollandezes , fechava no extremo opposto da estreita península . O forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge , situado quasi a tiro do Recife , entre este e Olinda , servia pois de interceptar o accesso ao inimigo , e protegia as communicações que pelo rio se mantinham entre o burgo e as terras interiores . Os hollandezes , tendo desembarcado , como se disse , no porto de pau-amarello , quatro léguas acima , haviam entrado pelo norte . O sul , e portanto o porto , estavam livres ainda . Pelo que toca á sua armada , emquanto o forte da barra se defendesse nâo podia ella senhorear os rios , porque a chamada barreta , outra fenda no dique de rocha , a meia légua da barra grande , não só era tambem defendida por um fortim , mas apenas dava entrada a lanchas . Da península , sobre a linha longitudinal do molhe , alongava-se também um banco de arêa , submergido nas marés cheias , mas ordinariamente vadiavel na baixa mar , quando nâo havia aguas vivas . Era a communicação entre a cidade e o forte da barra , e só por ella poderiam os hollandezes vir assallal-a a íim de abrirem caminho aos seus navios . Por aqui se pôde ver quanto importava conservar o forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge , pois que por um lado protegia o da barra e impedia que se lhe podesse formar assedio , e pelo outro defendia o burgo das suas relações com o interior , onde o capitâo-mór , como fica indicado , com os mais influentes da terra e algumas partidas de milicia , cubria o território , sem perder occasiâo de saltear os inimigos , que se aventurassem fora da cidade . Mathias de Albuquerque chamava ao forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge a chave da posição . Esta posição , entendia elle essencial sustental-a , -- alguns dias só que fosse -- para dar tempo a armar-se a província . Eífectivamente , a perda do forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge , tornava impossivel conservar o Recife . Do forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge passariam immediatamente os hollandezes a investir o de S.||_Francisco-da-Barra Francisco-da-Barra|_Francisco-da-Barra , que era , como fica dito , muito menos defensável do lado de terra do que do lado do mar . Rendido este ultimo , a denominada praça ver-sehia simultaneamente assaltada pela armada no porto e pelo exercito na península . A armada dos hollandezes compunha-se de mais de setenta velas , e subiam a sete mil homens regulares as suas tropas de desembarque , -- seis mil dos quaes estavam já em Olinda -- todas estas forças commandadas por Henrique Lonck , por Theodoro Weerdenburgh e pelo almirante PieterAdriens , illustre nos mares da Ásia . Mathias de Albuquerque não tinha ainda , para oppôr a todo este poder , senão as estacadas de Pedro Corrêa , dois mil homens da milicia com poucos soldados regulares , e cem cavallos , em parte a mesma gente que se havia dispersado na passagem do rio Doce e que elle agora tratava de reunir , reanimar , e reforçar . Impossivel era encerrar e manter esta força na estreita lingua de arêa , bloqueada de lodos os lados . Quando fosse possivel , nâo conseguiria com isso senão fazel- a infallivelmenle cair nas mãos dos hollandezes , logo que estes vencessem os pequenos obstáculos que ainda os detinham . Limitar-se pois a permanecer ali seria uma imprudência , que desde o principio entregaria a capitania inteira ao inimigo , sem mais trabalho do que tomar uma pequena e mal defesa povoação . Como capitão experimentado , havia Mathias de Albuquerque acertadamente evacuado com o grosso da sua gente o littoral , onde corria o gravissimo perigo de comprometter n ' um lance toda a província , e talvez as demais possessões . , Tratava porém de defender o burgo em quanto podesse . Metteu- lhe para isso de guarnição alguns homens de esforço , que não o tinham desamparado no primeiro terror , e os soldados regulares que estavam de presidio na capitania . £stabeleceu-se depois em posições , que lhe permittiam abastecer e soccorrer o forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge até á ultima . Bem via elle que era este o derradeiro baluarte do porto . Sendo impossível preserval- o , não se empenhava menos em disputal- o . Ganhava assim , como fica dito , alguns dias para levantar os ânimos abatidos , aguerrir as milícias bisonhas , e pôr em defensão as populações sobresaltadas , tanto mais attonitas da invasão , quanto mais se tinham recusado a acredital-a . O bom engenho militar não aproveita só a victoria : muitas vezes utilisa também os desastres . E Mathias de Albuquerque era um verdadeiro cabo de guerra ! Como todos conheciam a valia do posto ameaçado , tamanho devia de ser o ardor do inimigo em apoderar-se d' elle , como o cuidado do capitão jovem guardal- o . Vejamos agora o que era o famoso forte . Afastar-se-hia da verdade quem imaginasse que n ' aquelle século a arte , illustrada por Vauban , tinha feito na America os progressos que fazia na Europa . N ' esse tempo o principal da táctica , modificada pelo grande Frederico , revolucionada por Napoleão I , agora novamente reformada pela escolla prussiana , consistia principalmente em assédios e investidas de praças . As mais feridas batalhas davam-se ordinariamente para soccorrer os sitiados ou impedir soccorros . Os hollandezes e flamengos , instigados das suas longas lutas com poderosas nações , haviam aperfeiçoado consideravelmente as artes da fortificação . A sciencia porém tinha ainda muito que andar , e as construcções americanas d' este género , destinadas na origem a defender das invasões do gentio as nossas colónias , conservavam em grande parte as suas feições primitivas , e por consequência os seus insanáveis defeitos . Estava n ' este caso o forte de S.||_Jorge Jorge|_Jorge . Fora uma espécie de feitoria fortificada , como as que os primeiros navegadores do reino usualmente levantavam para segurança e protecção do seu commercio . O especioso nome de forte vinha-lhe d' uma tal ou qual muralha quadrangular , com dois baluartes , sem escarpas , nem fossos , nem revelins , nem obras exteriores . Muito mais se aproximava aos nossos paços acastellados , ou honras dos primeiros séculos de Portugal , do que a modernos reductos . Pouca resistência poderia pois offerecer a forças regulares e experimentadas , como eram as hollandezas . As cortinas , além d' isso , já gastas dos annos , ameaçavam mina . Os mais sérios obstáculos contra uma tentativa de assalto eram as grossas estacadas e tranqueiras que havia pouco se lhe tinham addicionado . Consistia toda a artilheria d' esta fortificação informe em três peças , uma de bronze e duas de ferro , montadas em fortes madeiros de vinhalico . António de Lima estava por governador n ' aquella singular fortaleza . Passemos a averiguar que soldado era António de Lima , capitão de bandeira , incumbido da árdua empreza pelo próprio Mathias d'Albuquérque , bom conhecedor e pratico de homens de guerra . O governador Acompanhado dos cabos da milícia , proprietários grados da provincia , n ' uma das habitações do campo mais próximas ao burgo , um dia aguardava impaciente o capitâo-mór que lhe trouxessem novas do forte , pois que de momento para momento se esperava que os hollandezes o atacassem . Com effeito , no fim de algum tempo , annunciaram a Mathias d'Albuquerque a chegada de um individuo , que trazia as suspiradas noticias . Inútil será dizer se o individuo esperou . Era este messageiro homem de estatura colossal . Acobreado o rosto ; a possante musculação em relevo nos braços nus ; sobre uns hombros de Hercules Farnesio uma cabeça esculpida em bronze . Denunciavam para logo as feições d' aquelle homem o mixto do sangue africano e do sangue índio , visível nos typos combinados , bem que mo dificados e melhorados , das duas castas . Aos mestiços nascidos d' esla alliança dava-se vulgarmente o nome de mamelucos . Attestava o trajo desordenado do mameluco violento esforço , e por consequência extrema urgência . Pingava-lhe , lançado ao hombro , o gibão redondo , de um leve tecido de lã em riscas , a que chamavam argelado . Escorriam em agua as calças do mesmo estofo , largas , curtas e soltas , quasi como bragas . Deixavam rasto no pavimento os borzeguins de pelle de nandú , ou avestruz , para resguardo dos rijos espinhos do matto , accessorio precioso que naturalmente lhe vinha dos estabelecimentos do sul . Por ultimo , os grossos sapatos , de vacca mal curtida , imprimiam no sobrado uma sombra húmida . Ao mesmo passo pendia-lhe em bagas o suor de cada annel da densa cana , rente e crespa . Os limos , adherentes ainda ao vestuário , indicavam que o athleta americano , no arremeço d' uma longa carreira , não torcera caminho ante os obstáculos do transito . Eífectivamente viera elle direito , investindo as cachoeiras , rompendo os matlos , vadeando ribeiros e paúes . Malhias de Albuquerque fitou-o , e , lendo n ' estes indícios a apertada instancia , disse-lhe laconicamente : -- Conta , e breve . -- O inimigo -- respondeu de prompto o mameluco sem acanhamento nem irreverência -- o inimigo mandou parlamentario ao forte . -- Que mais ? -- Intimou-lhe que se rendesse , ou iria logo investil- o com tal poder que não deixaria pedra sobre pedra . -- Esperava isso . -- A guarnição , acobardada com as ameaças que os hollandezes fazem correr , desertou quasi toda . Só ficaram sete homens com o senhor||_capitão|_António_de_Lima capitão||_capitão|_António_de_Lima António|_capitão|_António_de_Lima de|_capitão|_António_de_Lima Lima|_capitão|_António_de_Lima . -- Mais deserções ! -- exclamou o capitão-mór para os circumstantes . --