D. Bruno DE A SILVA O Ultimo Cartuxo DE+A SCALA CAELI DE EVORA ROMANCE HISTORICO ( 1808-1865 ) LISBOA Editor-Y JOSÉ ANTONIO RODRIGUES 186 -- Rua Aurea-188 1891 " ... Os livros até isso teem de filhos , honrarem uns e deshonrarem outros a quem os gerou . D. Francisco Manoel de Mello , Cartas , cent. 5.a c. 83 . Os leitores illustrados e prudentes dirão , no fim da leitura , que tal saiu este . Adolpho , Modesto & C.a -- Impr . -- R. Nova do Loureiro , 25 a 48 Ao Excellentissimo Senhor VISCONDE DE+A ESPERANÇA ( José Bernardo de Barabona Fragoso Cordovil da Gama Lobo ) A vossa excellencia que , desde estudante em Coimbra , sempre amou os livros e o estudo proficuo , que lhe grangeou solida e variada instrucção ; a vossa excellencia que possue a primeira livraria particular de Evora em numero e em preciosidades ; a vossa excellencia que me incitou a concluir este livrinho quando o desanimo se apoderara de meu espirito ao perder-se parte do manuscripto ; a vossa excellencia que é meu antigo e prestimoso amigo ; a vossa excellencia este fugitivo trabalho , este passatempo necessário de minha existência no poente . O. D. e C. Gratissimo Em Évora , aos 31 de janeiro de 1891 . A. F. B. A la merced es propria la gratitud . D. Francisco Manoel de Mello , Cartas , cent. 2.a c. 20 BREVE PREFACIO " Dos grandes mestres mais quero o castigo que a emenda . Digam depois do livro impresso o que quizerem , como não digam que me ajudaram antes ... " D. Francisco Manoel de Mello , Cartas , cent. 4.a c. 99 . Nem é vangloria nem orgulho a citação que faço do meu querido D. Francisco Manoel . É o começo do que devo expor ao leitor d' este livro . Escripto por mim , e só por mim , ao correr da penna sobre cadernos de papel almaço ; apenas retocado ' nesse único original , e depois nas provas typographicas , este livro leva muitos defeitos e mesmo erros . Tem-me a experiência mostrado a verdade da epigraphe , como parece o mostrára áquelle vulto das nossas letras , e por isso é que sae a lume sem emendas estranhas . Sei que muito lucrára elle com ellas e em ser de novo copiado após demorada obra de lima nas saliencias e asperezas que tem ; mas que ! se me foi sempre impossivel copiar o que escrevo ! Superior ás forças do meu espirito é semelhante trabalho ; não o posso fazer . Não é por fugir ao castigo ' que isto escrevo : acceito o dos entendidos , porque em nada o sou , e , como o mesmo sentencioso perseguido de um rei diz , que o erro dos entendidos tem menos desculpa , desculpado me julgo eu logo dos mestres da arte , dos sabedores da lingua vernacula , dos eruditos . Não primando nem este livro nem outro escripto algum de minha penna pelo conceituoso da essencia , pelo attrahente da forma , por copia de conhecimentos , tenho , comtudo , para mim que algum me sobreviverá , salvo da destruição das tendas , das lojas de capella , dos estancos do simonte , por uma certa facilidade no dizer o que sinto , que , a não me illudir , existe em meus escriptos , e porque fujo sempre , quanto posso , de mascavar a lingua portugueza com estranhas phrases ou dicções abstrusas . A segunda parte da epigraphe é para uns certos que duvidam , que não creem de modo nenhum que seja meu o que só meu é , o que resulta naturalmente de uma vida passada a ler os nossos bons modelos , a estudal-os , a querer seguil- os . Poderão esses taes acreditar que por graça do Espirito Santo escrevo o que escrevo ; mas o que não poderão nunca é dizer que me ajudaram a escrever . Vou sendo velho , não sei se mais escreverei e por isso é que me apraz deixar aqui ficar estas ideias , estas verdades aos que depois de mim possam querer ou negar ou conceder-me alguma . D. Bruno da Silva . DECLARAÇÃO PREVIA Não pense o leitor da novella , que vae ler , que o ultimo cartuxo seja para ahi , com outra orthographia , o ultimo que se queime a favor ou contra alguém , alguma instituição , ou contra alguma ideia , escola ou seita . Nada d' isso . É a historia , muito historia , romantisada do derradeiro frade ou monge da Scala caeli d' Evora , ainda conhecido de muitos vivos ' nesta cidade . Nasceu a ideia de escrever tal livro de ser o auctor , talvez o ultimo homem que na Cartuxa de Evora passou noites invernosas , escrevendo um livro prestes a sair a lume em Lisboa com o titulo de Beata de Evora , e , como succedeu aos professos em 1834 , ser como elles expulso d' ali em 1889 por um decreto autocratico , um ukase d' um tzar pequenino . O ultimo frade pintado escreve a vida do ultimo frade verdadeiro , realissimo , por não poder nem dever escrever a vida do novo mata frades . Só isto previamente . Leia quem quizer . In principio No livro do registro de nascimentos para a eternidade do cemiterio publico de Evora lê-se um assento de baptismo do theor seguinte : " Gertrudes de Jesus d'Amaral , viuva , de 72 annos de idade , filha de paes incognitos , moradora que foi na rua do Espirito Santo , falleceu em 28 de março de 1889 . " O appellido Amaral da fallecida Gertrudes de Jesus era o do marido que ella teve e que partiu antes , um empregado secundário da Camara . Filha de paes incógnitos : um mysterio qualquer dos tantissimos que occultam paternidades . Os eixos sociaes sobre que gyra o mechanismo da republica não admittiram que Gertrudes tivesse paes . Nem ao menos mãe ! Costume é muito usado o de se occultar o progenitor , patenteando-se a mãe ; isto , porém , succede muitas vezes quando esta é plebea e o pae nobre ; nobre , ou cousa parecida e desejada . Ha perto de vinte annos que me passam pelas mãos certidões de edade de filhos de pães incognitos e ainda nenhuma chamou tanto a minha attenção como essa , que , não sendo de edade , se mistifica com a de morte . Nascera em 1816 aquella Gertrudes : ponto de partida para averiguações e pesquizas . Quer o leitor d' estas linhas acompanhar-me em passeio retrospectivo ao anno de 1816 e commigo indagar quem podesse ser aquella mulher e quem os paes d' ella ? Façamos fardel para o caminho : Em principios d' abril d' este mesmo anno da graça de 1889 fui eu procurado por um homem que me propozera a compra de alguns livros velhos . No intuito de salvar alguma raridade bibliographica , que o acaso me proporcionasse , pedi me trouxessem esses volumes . Vergando ao peso de um sacco enorme me apparecia , pouco depois , o homem . Vinha repleto de Breviários e de esquecidos compendios de Cuniliatis e outros theólogos , conforme verifiquei . Nem um só livro de valor ou pela raridade ou pelo assumpto : não fiz nenhuma conquista para a sciencia bouquinista . Aconselhei ao homem condemnação immediata d' aquelles velhuscos a serem decapitados nas tendas para embrulhos de cominhos , pimenta , canella e congéneres pulverulencias . Fiquei apenas com a lembrança de que taes livros haviam pertencido ao mosteiro da Cartuxa d'Evora , fundação do muy magnifico Arcebispo D. Theotonio de Bragança , no século XVI . Já depois de 1834 , anno da degolação dos innocentes monásticos pelo Herodes que se chamou no século ( e chamará , porque taes homens não morrem ) , Joaquim António d'Aguiar , viveu em Évora no estado ecclesiastico um homem ainda hoje lembrado por conhecido de muitos vivos , D. Bruno , monge da Scala caeli , primeira casa da Ordem Carthusiana , que houve em Portugal , até que em Laveiras surgiu segunda e ultima . Não chegou a ter chronista esta ordem , d' onde o não podermos colher noticias de quem fosse este D. Bruno antes de o ser . Também se não conhece o livro , ou livros das profissões d' aquelles monges , onde se podesse encontrar a geração e pátria do conhecido e lendário D. Bruno . Mas hemos de sabel- o . Qando o decreto de 27 de Maio de 1834 foi lido na Cartuxa definhava na pasmosa , por medonha e homvel , cadeia do mosteiro , um frade ainda relativamente novo . Muitos annos havia que o monge vivia ' nella , se viver se poderia chamar áquelle existir . Haverá occasiâo , no decurso d' este livro , de bem a mostrar ao leitor , a horrível prisão dos austeros filhos do mui austero S , Bruno . Vivia , pois , ali o homem desde 1817 . Com estes poucos dados volvamos , alguns annos depois que nascera Gertudes , ao passado e vejamos se poderemos rasgar utn pouco o tenebroso manto que nos occulta o mysterioso nascimento de uma filha de paes incognitos . Depois que D. João VI , o melhor dos monarchas , na phrasc dos demagogos de 1820 , deixára Portugal , amedrontado de francezes , que lhe batiam á porta e lhe intimavam mandado de despejo em nome do corso feliz , começaram de avolumar no paiz as ideias de liberdade , involvidas na do grande descontentamento causado por sommas avultadas que de cá saiam para o Brasil , por se ver Beresford á frente do exercito portuguez , e á testa do governo da nação uma junta governativa sem as sympathias do povo . A revolução franceza proscrevera reis absolutos do solo da Europa . Em todo o reino era grande a effervescencia revolucionaria : conspirava-se lentamente . Sem talvez ter ainda cabeça visivel , a revolução bracejava por toda a parte : chegara , finalmente , a Evora . O clero e o exercito conspiravam e natural era o seu conspirar : este , não soffria com bom animo a tutela ingleza , aquelle , aborrecia o exercito e pugnava pelos inauferíveis direitos da realeza absoluta . Mas , nem todo o clero andava adstricto a taes ideias . Frades e sacerdotes seculares havia de mãos dadas com os militares e demais cidadãos liberaes na communhão de avançadas ideias . A frei||_Fortunato_de_S._Boaventura Fortunato|_Fortunato_de_S._Boaventura de|_Fortunato_de_S._Boaventura S.|_Fortunato_de_S._Boaventura Boaventura|_Fortunato_de_S._Boaventura , o iracundo bernardo , oppunha-se o notavel benedictino , frei||_Francisco_de_S._Luiz Francisco|_Francisco_de_S._Luiz de|_Francisco_de_S._Luiz S.|_Francisco_de_S._Luiz Luiz|_Francisco_de_S._Luiz . Alcobaça e Tibães defrontavam-se . S. Luiz membro da Junta Providencial do Governo Supremo do Reino , em 1820 ; S.||_Boaventura Boaventura|_Boaventura , látego feroz de liberaes de 1828 a 1834 . Bispo de Coimbra e Patríarcha de Lisboa o primeiro , Arcebispo de Evora , o segundo . Se este livro fora um volume de historia patria muito se poderia espraiar a penna no desenvolvimento da these . Não passando de um romance histórico , limita-se apenas a traços largos , para mais se dar ao maravilhoso romantico , tão do agrado da maioria dos ledores do nosso tempo . Em 1817 entrava já em ebulição a ideia revolucionaria , a incoercivel ideia inimiga de despotas , de propotentes , de tyrannos . Por uma tarde de primavera saía de Evora , a pé , pela porta da Lagoa , o alferes de cavallaria cinco , Christovam da Costa . Tomará a direcção do convento de Santo António , torneára o baluarte em que fundado , efora seguindo , encostado ao muro da Cartuxa , o caminho que conduzia áquella casa religiosa , religiosa , áquelle quartel de outra milícia combatente de demonios , e de malignos espiritos com breviarios , e exorcismos , e camaldulas por armamento unico e invencivel . Vamos nós , leitores curiosos , no encalço do alferes . Somos chegados á portaria externa do mosteiro , sobre a qual ainda hoje se lê : Eremus DEIPARE VIRGINIS MARIAE SCALAE COELI ORDINIS CARTHUSIANORUM , 1604 . Fundação d' este anno a portaria , o mosteiro começara a cdíficar- se em 1587 para receber os primeiros habitantes em 1598 . A mão poderosa de um príncipe da casa de Bragança , D. Theotonio , Arcebispo de Évora , o mandára fundar e fizera construir com largueza singular e dispêndio superior a 200:000 cruzados . Chegado á portaria , o alferes lança a mão á corrente de ferro de uma sineta e puxa por ella . Vibram tres sonoras badaladas lá dentro , abre a porta e a ella assoma um porteiro da Ordem . -- Quem procura vossa mercê ? pergunta o cartuxo . -- Desejo fallar a D. Bruno da Transfiguração . Será possível ? -- Irei sabel- o , respondeu o porteiro ; entretanto permitta vossa mercê que eu feche esta porta e consinta em ficar aqui . -- Aqui ! Pois não poderei entrar e ' nesse pateo esperar por vossa vinda ? -- Prohibe- o nossa Ordem . É precisa especial licença do D.||_Prior Prior|_Prior . -- Esperarei . Fechou-se a porta e Chistovam da Costa ficou fóra a passeiar . Dez minutos eram volvidos e a porta abria-se novamente . -- Pode entrar , disse seccamente o porteiro . Christovam da Costa entrou e a porta de novo se fechou sobre ambos . Atravessado o pateo espaçoso , subiram a escadaria de mármore e chegaram ao átrio da egreja e do mosteiro . -- É preciso esperar mais aigum tempo aqui , até que chegue o sr.||_D._Bruno D.|_D._Bruno Bruno|_D._Bruno . E fez soar dentro uma campa peio mesmo systema empregado do alferes na portaria exterior . Ficou-se ali a passeiar o militar , e o leigo porteiro volveu á sua posição , indo assentar-se no poial de granito sob o alpendre interno da peitaria exterior . Duas portas dão entrada para o interior do mosteiro , aos lados da nova egreja . Juncto da da direita ha uma pequena janella com grades de ferro . Foi a esta janella que , pouco depois , assomou a cabeça tonsurada de D. Bruno Maria da Transfiguração , Apresentemol- o ao leitor ... Homem de vinte e seis annos então , tinha mais que mediana altura . Magestoso , rosto mais sobre o redondo do que comprido , olhar vivíssimo , corado , lábios delgados e vermelhos , annunciando um temperamento sanguíneo , e um génio irritável e sempre inquieto . Nâo tinha estampada no rosto a maceração das vigílias , das rezas , dos trabalhos manuaes no cultivar do seu horto e cerca . Ao contrario ; parecia um mimoso da sorte , do feliz destino de uns certos inúteis , que vêm ao mundo e ' nelle vivem vida regalada em perpetuo dolce far niente , sem cuidados , sem a mínima cogitação , só vivendo a vida vegetativa , a da matéria , a dos tecidos adipoposos , nacarados e luzidios . E não era assim , tal a naturesa d' elle . Exemplar no noviciado , no serviço do culto , no agricola , a que já pouco se davam os monges ' neste século , exceptuando o agricultar do respectivo hortejo , ou jardinsinho , D. Bruno , juntava aos trabalhos da obrigação monástica outros de devoção especial , a que o arrastavam sentimentos do seu modo de ser , da sua natural compleição . Em breve saberemos que trabalhos esses eram . D. Bruno era uma vocação contrariada : para tudo servia seu natural pendor de genio , de vocação , de instinctos , menos para um austero cartuxo . E , comtudo , não havia deslisado um ápice ainda do pautado religioso , da austeridade monástica . Sacrificára- se com indomável vontade o novo monge a conveniências , que viremos a conhecer . Só assim poderemos explicar o antagonismo da Índole própria com a da Ordem cenobitica , em tão boa e ao menos ostensiva camaradagem . Isto basta por agora : o completo retrato de D. Bruno fal-o-ha o leitor no decurso d' este livro . -- Adeus Christovam , dissera o monge mal dera com a vista no militar . Não te esperava hoje . Temos cousa nova ? -- Temos , respondera o alferes . -- Olá , olá ! -- Precisamos conversar a sós , em sitio onde não possamos ser ouvidos . Arranja isso , continuara Christovam da Costa . -- Nao é fácil ; mas ... eu tambem tenho que te dizer ... E permanecera alguns segundos a scismar . De repente , como quem lembra uma ideia e não hesita em sua execução : -- Vamos para a minha cella . -- Mas , não te é isso prohibido f perguntára Costa . -- É ; mas quero o eu , respondera o cartuxo . E sem dar tempo a que o amigo lhe fizesse mais perguntas e com ellas lhe creasse difficuIdades , acrescentou : -- Afasta-te , passeia para ahi . Christovam da Costa obedeceu ao tom imperioso do monge e foi indo pelo átrio adiante , debaixo da arcaria . -- Psiu ! Psiu ! Ó Telmo , dissera seguidamente D. Bruno , em voz suffi cientemente audível do porteiro , ao mesmo tempo em que com a mão lhe acenava para que viesse , O porteiro ergueu-se e correu ao chamamento . -- Aquelle meu amigo vae entrar na minha cella : ha de saír de noite , entendes ? -- Mas , senhor||_D._Bruno D.|_D._Bruno Bruno|_D._Bruno , olhe o que faz . Pois não se lembra de que já não está só ? -- Não tem duvida ; occultarei o que sabes . Ficas entendendo ? -- Fico tremendo por nós ambos , é o que eu fico , respondeu o porteiro , assustado . -- Vae , terminou D. Bruno , indicando a portaria ao guarda . Telmo obedeceu , e D. Bruno internou-se no mosteiro , deixando a passeiar ao amigo . Anoitecia . Christovam da Costa observou o chamamento do porteiro , a vinda e volta d' elle , foi passeiando até chegar á janella , onde deixára ao monge , e aU chegado , contando que elle estivesse , disse para dentro : -- Então , que plano tens ? poderemos fallar a sós , sem receio de sermos ouvidos ? Não obteve resposta , conhecendo com estranhesa , que D , Bruno se afastava pelo corredor adiante sem lhe ter dito mais nada , pois que , ! á no fundo d' elle , via sumir um vulto , que não poderia ser o de outra pessoa , pela escacez do tempo decorrido . Esperou , continuando a passeiar . Cerrara-se a noite , e Christovam da Costa , sempre qne no passeiar chegava á janella , olhava para dentro , como esperando ver chegar ao monge . E ninguém ! Admirado já , mas certo de que D. Bruno viria , tão bem o conhecia elle , resignou-se e esperou mais , continuando o seu passeiar , e olhando pela janella sempre que ali chegava . E ninguém ! Ia para lá , e já defronte da porta da egreja , quando , de repente , aquella se abriu de mansinho e ' nella appareceu D. Bruno . -- Entra depressa , dissera aquelle . Christovam da Costa entrou na egreja e a porta fechou-se sem ruído , sem o mais leve gemer de gonzos . Mal se via no templo , apenas alumeado lá em cima , na capella mór , por unma lampada mortiça . Uma teia alta de madeira de angelim , dividia a egreja em dois corpos , ladeados de assentos e cadeiras para os monges . As cadeiras do primeiro corpo da egreja , logo a seguir à porta e antes da teia apainellada , eram baixas , mas fundas . Nem d' ellas se poderia vêr o segundo corpo da egreja , nem das cadeiras mais elevadas e melhormente emmolduradas em trabalhos de talha , do segundo corpo , se poderiam vêr as cadeiras baixas do primeiro . D. Bruno tomou pela mão a Christovam da Costa , conduziu-o para uma destas cadeiras encostada á teia divisoria , e disse-lhe em voz baixa ' : -- Assenta-te aqui e espera um pouco . -- Mas , nota que me nâo posso demorar muito , observou o alferes ; e , pelos modos , queres que eu assista a alguma das rezas da Ordem . -- Espera , repetiu o monge , subindo egreja acima e deixando ao amigo assentado e como escondido na funda cadeira . Se Christovam da Costa não conhecesse bem a D. Bruno , e não contasse cem o rapido expediente do seu animo na execução de qualquer plano que concebesse , julgaria que fôra uma cilada aquelia entrada , para o colher no mosteiro com fim muito reservado . Tinha , porém , a certesa do contrario . Emquanto o alferes se dava a este pensar , soava lá dentro uma campa tangida , chamando os monges a uma reza nocturna , e , seguidamente , presentiu a entrada d' elles no segundo corpo da egreja . Dois mestres caldeireiros Demora a rua dos Caldeireiros , em Evora , entre a rua de Alconchel e a da Ladeira na direcção noroeste . Estreita e escura , como as primitivas ruas da cidade ainda do tempo da dominação arabe , não arma hoje os caldeireiros , como no lempo exn que d' elles houve o nome , e como nos fins do século , passado em que lá viviam e tinham suas lojas alguns . Ali vivia em 1790 o caldeireiro . Clemente José Candieiro , com sua familia . Diversos filhos tinha o homem . Contra o sentir do arcebispo de Braga , D. Frei BarthoJomeu dos Martyres , aprendia um d' elles o mesmo officio do pae , e o mais velho era destinado aos estudos , para a vida monachal , enlevo da ta mi lia , aspiração suprema de ventura domestica . O rapaz , porém , não tinha geito para ella , e nisto estava , exactamente , a opposição á doutrina do Arcebispo , demasiado sabida de quem o tem lido . Preparava o pae piedoso um mau frade , podendo dar á sociedade um valente militar , ou um habil caldeireiro , ou qualquer outro artífice . Como em Coimbra , difficil não era a um pae pouco abastado o erguer um filho aos acumens das sciencias , que por então se estudavam em Évora : as Humanidades e a Theologia nos conventos . Manoel se chamava o rapaz , o mais velho dos filhos do mestre caldeireiro , frade nas esperanças de uma familia , tardia realidade no chegar a tão desejada tneta de ambições devotas . Tinha apenas doze annos de cdade o moço ; estava em meio da carreira fradesca , dado que aos vinte e quatro podesse já professar . Regularmente intelligenle , era muito desinquieto e travesso ; comtudo , ia estudando a gramtnatica latina em que estava quasi prompto para exame . Relevaria descrevel- o mais se não tivéssemos de o encontrar por este livro adiante , como protogonista de sua acção , e dele tomar mais exacto conhecimento . Até á edade de quinze annos esteve em casa dos paes . Mas , quinze annos sâo uma edade perigosa no rapaz . É o abril da existência , edade do desabrochar d' affectos , dos primeiros rebates amorosos , de cogitações oppostas á quietação do estudo . Defronte d' elle , na casa de esquina da rua MiIheira vivia outro caldeireiro , casado , que tinha uma filha única , um pouco mais nova do que o Manoel , mas muito formosa , de nome Bemvinda da Gloria . Mal vinda fôra ella ao mundo para os sonhos de ventura ecclesiastica que sonhava o pae do estudante . É um perigo imminente para o que se dá ao estudo o ter defronte a uma mulher . O desenvolvimento intellectual apressa o desenvolvimento physico ; e , por nao fazermos longa dissertação sobre o caso , diremos a quem ler este livro , que Manoel já lia mais no coração de Bemvinda do que no compendio de rhetorica , fastidioso . Descobriu-se aquelle estudo , e o pae do rapaz cuidou logo de apressar a entrada d' elle ' num convento , de áspero instituto . Foi lembrado o mosteiro da Cartuxa . Sem consultar o moço , sem lhe espreitar a vocação , caso em que ha muito devera ter pensado , o pae do estudante procurou um dia ao D.||_Prior Prior|_Prior dos cartuxos , para com elle combinar a entrada do filho na Ordem . Não houve senão uma duvida -- Então , va de assentar , dissera o dono da casa . E , offerecia uma tripeça ao visinho Clemente emquanto elle se assentava no dorso de volumoso caldeirão de cobre . Assentaram-se . -- Pois , senhor , saiba o visinho que um negocio de muita importância me traz aqui , de interesse ... -- Seu , ou meu ? perguntou atalliando a exposisão o pae de Gloria . -- É de nós ambos , não é só meu , respondera Gemente Candieiro . -- Então falle para ahi . -- Sabe o visinho que eu tenho um filho , que ... -- mais do que um vejo eu que tem : a que propósito me falla ' nisso ? -- Ó homem , não me interrompa , ouça , se quer ouvir e falle depois . -- Bem , diga lá ; mas olhe que eu tenho que fazer . -- Sabe que tenho um filho , que distino á vida ecclesiastica ? -- Sim , parece-me que sim . -- Tem ido muito bem nos estudos até ha pouco tempo ; mas , agora anda-me estabanado com a sua pequena , o demónio do rapaz , e é preciso ... -- O que diz vossê , homem do diabo ! -- Alto lá com isso , ó sô||_Raposo Raposo|_Raposo ; dobre essa lingua , se quer , e se não quer , vivai passe bem . E erguera-se o Clemente Candieiro . -- Eu logo vi que o dotorselho havia de dar bom burro ao dizimo . Tal pae , tal filho . Querem vêr que o rapazola me dá cabo da pequena ! Mas , isto não pode ser . A Bemvinda é uma creança , e seu filho um maroto , que m ' a quer deitar a perder . Sabe que mais ? Ponha-se lá fora e deixe o trastesinho por minha conta , que quem o desanca sou eu . -- Vossê falla assim , porque está em sua casa , respondera o Candieiro aos inconvenientes do Raposo . Eu sáio já ; não se incommode . Olhe que quem tem que perder mais não sou eu , é vossé ; e passe bem . E dava os primeiros passos para sair d' ali o pae do estudante . Fervia em pouca agua Joaquim Raposo , que tal era o nome do visinho de Clemente Candieiro . Tinha um génio assomado , como o leitor viu , e tanto que chegava offender a quem dizia cousa que lhe não quadrava . Incorrecções ou de temperamento ou de educação . Mas pouco ihe durava aquelle estado de exaltação . Homens ha assim , emquanto não reflectem um pouco . A lembrança de que quem perderia mais seria elle , com que o ameaçara o visinho , accudioIhe á mente repentina , ao ver já ir pela porta fora ao visinho , e correu a tomar-lhe o passo : -- Homem ! venha cá . Vossê diz as cousas assim tão á queima roupa , que na verdade ... Entre cá , entre . E tomava por um braço ao visinho , seguindo com elle para o cubculo . Desculpe estes meus modos ... -- Sim , está desculpado , mas que quer de mim ? perguntou o Candieiro . -- Vossê disse que era preciso , mas não disse o quê . Diga para ahi . -- Em poucas palavras : digo que é preciso tirar de casa a pequena quanto antes , para o rapaz estudar e para não termos por ali cousa peior . Veja se me entende , pense no caso , e sem mais ... De novo dava os primeiros passos para tornar a sair . -- Que tire minha filha de casa ! Tire vossê o seu filho ! E esta ! -- Bom , bom ! Tornamos á vacca fria ! Pense , e saúde . Clemente José Candieiro d' esta vez sáíu , para não ter alguma turra grave com o irascivel e inconveniente Raposo . Pouco depois dos dois visinhos terem entrado para a casa pequena , o aprendiz de caldeireiro , que martellava quando elles entraram , ao ouvir erguer a voz do mestre , parou de trabalhar , e poz se á escuta , disfarçando o espreitar com uma pancada ou outra na obra que tinha entre mãos . Não deram por tal cousa os dois visinhos , e o negocio que Clemente Candieiro só queria sabido de dois já o era de um terceiro . Outra inconveniência do génio exquisito de mestre Raposo . Clemente Candieiro passou aquelle dia a scismar no modo de remediar as cousas , por modo que o filho não fosse perturbado e.n seus estudos , e o Raposo , almejando que chegasse a noite para tudo communicar á mulher e d' ella saber o que na revellação houvesse de verdade , suspeitando que a esposa devesse já ter descoberto aquelles amores de creanças , com a vigilancia e perspicácia proprias do sexo . Deixemos que o Raposo indague da mulher o que pretende saber , e sem proseguir a historia , demos uns traços ao leitor d' aquelle manhoso aprendiz de caldeireiro , que se pozera a escutar a conversação dos mestres Raposo e Candieiro . Contava ao tempo o aprendiz uns quinze annos de edade . Tinha sido exposto na roda d' elles , e tomado para casa do mestre . As más linguas diziam-no filho do mestre ; mas , nem todas , crendo algumas que o rapaz era filho de frade . Esta asserção dos maldizentes d' aquella epocha , não agradava então aos que podiam apontar-se como pães dele , e ainda hoje sei eu que não agradará a muita gente a revelação . Sempre a eterna mascara , a caraça collossal dos romanos cómicos a tentar occoltar a verdade . Pois ' numa cidade , como Evora , em que os conventos se contavam por dezenas e os frades por centenas , era lá possível que alguns deles observassem o preceito da castidade , que juravam , ao tomar o habito f Era lá possível que muitos não fossem homens ? Quem não crê ' nesta doutrina realista ignora a historia mesmo do paiz . De bispos descendem muitos fidalgos honrados : regias styrpes procedem de troncos tonsurados e adstrictos pelo voto á castidade monachal . Não vem para aqui o desenvolvimento da these , aliás de fácil deíensa e de copiosa demonstração . Vejam os nobiliários , os curiosos , os descrentes , os sinceros de opinião contraria , e por lá acharão matéria de muita edificação e convencimento . Mas , deixando o caso , fosse elle íilho de quem fosse , é certo que nao conhecia paes . Era rude e astucioso , estúpido e velhaco , parvo e finório , contrastes não raras vezes associados , como todos nós sabemos por observações feitas . Tinha-se creado sob o mesmo tecto com a Bemvinda : estimava-a muito , sem que aquella estima fosse diflerente da de um bom irmão . A noticia que descobrio no seu espreitar incommodou-o . Elle já embirrava com o Manoel Candieiro , talvez por elle não seguir a vida de caldeireiro , a do pae , e a d' elle próprio , e ser estudante , sem lembrar , sem poder reflectir que tal vida lhe era imposta pelo pae , o mestre Clemente . Escusado será dizer ao leitor que o aprendiz de Raposo tomara de ponta ao aprendiz de frade . Chufas , remoques , martelladas enoniies ensurdecedoras , para incommodar ao estudante nos seus estudos , foram uma tempestade d' ali por diante . E era natural aquella antipathia ; porque é vulgar não gostarem os artistas d' aquelles que se dão ao estudo , que procuram nos livros instrucção , ou por necessidade de occupação ou de seu espirito , mais propenso a letras do que aos exercícios manuaes e inglórios das artes mechanicas . De toda a parte è semelhante doutrina . Trinta annos ha que muitos artistas de Coimbra apodavam de atistocrata a um , que , em vez de com elles se dar a passeios improficuos , a frequência de casas e passatempos próprios da sua educação litteraria deles , achava por melhores os do trato com velhos livros clássicos , mestres da nossa boa e genuina linguagem , com que veio a passar o melhor da sua vida de moço , velando noites e noites a lel-os , e consagrando-lhes quantas horas vagas de sua occupação necessaria tinha durante o dia . Muitas gerações academicas o sabem , muitas , donde sairam theologos , mathematicos , medicos , juizes e ministros da corôa , hoje vivos , e muitos já no tumulo . Não se lhes queira mal por isso ; lamente-se antes a obcecação de seus espiritos , mal dirigidos e encaminhados . Deixando , porém , a divagação , que dava para muito escrever o assumpto , desde aquella antipathia até á de uns Janinguens litterarios , arrumadores de palavras na alfandega das letras , que nSo perdoam , elles , que estudaram umas cousas nos Lyceus , de que por certificado possuem umas meias folhas de papel , que os dizem sábios , que não toleram aos que as não tem , os conhecimentos reaes e sólidos que possam ter adquirido á custa de longas fadigas , de meditação , de descernimento . Para estes pronunciou o Martyr divino expirante no lenho da redempção o famoso i Pater dimiite illis , quia nesciunt . Volvendo , pois , ao aprendiz de caldeireiro , affirmaremos gue votara ao estudante desde aquelle dia mais do que aborrecimento , zanga , odlo até . Sabel- o-hemos lá para o diante com evidencia manifesta , bem como lhe conheceremos o nome , que por elle não perca já . Conspiração de 1817 Como são sempre mais cubicadas as cousas de alcançar mais custoso , não diremos por emquanto mais nada ao leitor com respeito aos dois visinhos caldeireiros , aos filhos d' estes e ao aprendiz sem nome ainda , para que lhe seja mais cubicado o saber no futuro , que sequencia terão os acontecimentos , apenas enunciados na antipathia dos dois mestres e na afleiçSo dos filhos d' estes . Voltemos antes á Cartuxa , onde deixámos Christovam da Costa na cella de D. Bruno Maria da Transfiguração , ou prestes a entrar ' nella . De facto , termmada a reza nocturna foram os monges debandando em busca de suas cellas . Pouco depois , novas badaladas de campa tangida prescreviam o silencio na vastidão do mosteiro . Minutos decorridos , pé ante pé , D. Bruno descia á egreja e vinha ter com o alferes . -- Vem comigo , mas de mansinho . -- Póde trahir-nos esta espada , objectou o militar , batendo por ahi ao acaso com ruido ' nalguma porta . -- Mette-a debaixo do braço , e vem . Foram , e saíram da egreja por uma porta latteral , que dava para o corredor , onde , havia pouco tempo , Christovam da Costa tinha visto ir-se aflfastando um vulto , que suppoz ser o de D. Bruno . Andado este corredor , entraram na vastíssima claustra , e tomaram para a direita . Dobrado o angulo , e quando davam os primeiros passos no segundo corredor d' ella , em demanda da cella do monge , a terceira , pareceu-lhes distinguir lá no extremo , ao dobrar sobre a esquerda aquella claustra , sem egual na grandesa , um vulto que se escondia no terceiro corredor . Poderia ter sido sombra de um lampeão que lá se avistava no angulo , vasquejando clarões no balouçar visivel , e poderia ser monge que recolhesse á cella . Por cautela , D. Bruno poz-se diante do alferes , encobrindo-o com as abas largas e compridas do habito , e ambos assim se dirigiram á terceira cella , onde habitava . Aberta a porta , D. Bruno fez entrar primeiro a Christovam da Costa e , seguidamente , o fez elle , fechando-se por dentro . A cella de um cartuxo de Evora era uma morada de casas , capaz de abrigar a uma familia . Um corredor estreito , parallelo á parede da claustra terminava , á esquerda de quem entrava , ' numa escada que conduzia ao segundo pavimento , ao andar de cima , e á direita em cubiculo , cuja applicacão se não determina bem hoje , no estado ruinoso em que tudo ali está . Duas portas saíam d' elle : uma , para o ^ jardimsinho quadrado , com fonte de mármore no meio e canteiros de flores em volta , outra para a casa da chaminé , donde havia uma porta para três casas mais internas : a do jantar , talvez , a de estudar e a de rezar e de escrever . D. Bruno e o alferes entraram na casa da chaminé , onde tremebrilhavam labaredas de ascuas crepitantes . -- Fogueira accesa neste tempo ! dissera Christovam da Costa , admirado . Se fosse no inverno , comprehendia-se ... -- Que queres tu de um solitário ? Recreio-me de noite , assentado áquelle lume , a ouvir os estalidos da lenha e ao ver trisulcar as chammas e as faulhas por essa chaminé a cima . Não tenho outra companhia , dissera intencionalmente o monge na resposta ao seu amigo . Entra cá para dentro . E os dois foram entrando na casa immediata . Era a de leitura , de estudo e reza . Mobilada com parcimonia , continha apenas uma mesa ordinaria e algumas cadeiras de couro , com espaldas apaineladas em relevos da renascença , nos desenhos de mulheres meiopeixes , de homens semi-capros , de cabazes de flores . Um armario aberto na parede mostrava Breviarios e mais alguns livros . -- Assenta-te e falla para ahi , dissera D. Bruno a Christovam da Costa , puxando-lhe uma cadeira e assentando-se ' noutra . -- Venho-te consultar , como a um amigo de infancia , cujo parecer me tem sido em muitos casos proveitoso ; mas , não me posso demorar , por causa de assistir ao recolher . -- Qual recolher ! Illude a disciplina , como eu faço : deixa essa exactidão mechanica ao soldado , ao automato , ao manequim da ordenança . Vamos , dize lá ; mas não tenhas pressa , mesmo porque não podes saír tão cedo . -- Cheguei hontem de Lisboa e trago comigo um juramento , e a concessão de quinze dias para responder a uma proposta . -- Não percebo nada ; explicate mais , -- Tu nunca foste a Lisboa ? perguntára o alferes , como quem queria chamar ao monge a attenção para logar conhecido . -- Não . -- Bem . Suppõe tu que perto do Rocio ha o botequim de Santa Justa , onde se ajuntam muitos militares e paisanos . -- Sim , sim ; mas ao final , que o caso de um juramento , tem-me curioso , como se mulher ou creança . -- Seja como desejas . No botequim de Santa Justa fui convidado para entrar em conspiração contra o governo , e contra os inglezes . -- Ólá ! O caso é grave . E quem te convidou ? -- O coronel Manoel Monteiro de Carvalho e António Cabral Calheiros . -- E quem é o chefe da conspiração ? -- Affirmaram-me que era Gomes Freire de Andrade . -- E trazes d' isso a certeza ? -- Não . -- E que homens são esses ? que conceito fazes d' elles ? -- Pelo que me disse o coronel Carvalho , entendi que a ambição de postos era o movei dos militares , expulsando para isso aos officiaes inglezes . -- Tu juraste entrar na conspiração ? -- Não jurei senão o segredo , e prometti pensar no caso durante quinze dias , para me decidir no fim d' elles . -- Fizeste bem . E como pensas no assumpto ? -- Vacillo , hesito , não sei que partido tome , e para ouvir tua opinião te communico , só a ti , este negocio . O cartuxo permaneceu algumt tempo silencioso , meditabundo , cogitativo , e logo : -- Queres então o meu parecer , sobre se deves ou não entrar na conspiração ? -- Quero , para isso venho . -- Não entres . -- Mas , ' nesta paz octaviana , ' nesta carreira de postos e de accéssos , em que entrei , arrisco-me a não passar de alferes : estão para ahi officiaes ingiezes aos montes a tomar-nos o passo ... -- Olha , meu amigo , altende-me : Essa paz de que falias não pode ser de grande duração . Tudo conspira para uma guerra formidável ahi mesmo no paiz , e ' nella , tu verás como nos deixarão inglezes , e como ou has de subir postos , ou perecer ' nalgum combate , já que segues uma vida de tanta contingência . Não entres na conspiração . Se a eventualidade da guerra , se o caprichoso dos combates , os precalços d' esse teu officio te podem prostrar , não entres na conspiração , que pode abortar , e levar-te a um fuzilamento , como a rebelde e a inimigo das instituições . Foi um mal o virem cá inglezes combater a nosso lado o inimigo commum , os francezes ; porque depois da batalha do Bussaco se consideram senhores -- Portugal , e se chegam a descobrir o plano , a colher os conspiradores , fuzilam-nos a todos , pódes crel- o . É como eu penso . -- De modo que é teu parecer que ... -- Que não entres na conspiração ; que escrevas a quem te convidou e lhe digas que não ; mas , vê lá como escreves : falia no caso por longes , de modo que entendam a tua recusa sem que digas o que regeitas . E fallo-te assim , porque temo , receio muito que se descubra o trama , que , uma vez descoberto , levará infallivelmeiite ás prisões e aos cadafalsos aos que forem colhidos na rede ingleza , sendo esses , quem sabe ! talvez os primeiros martyres das ideias liberaes , que ahi estão no paiz na maioria dos homens . Espera , deixa que os acontecimentos se manifestem , e tomarás então , e só então , o caminho que houveres por melhor , e mais favorecer a teus interesses . Não luctes com sombras , não corras após o incerto : lembra-te que de milhares de victimas tragaram esses mares antes que Vasco da Gama mostrasse ao velho mundo um caminho para o oriente , e Alvares Cabral um mundo novo . -- Mas , d' esse modo ... -- Sim , bem sei o que pretendes oppôr a esta doutrina fradesca , egoista , sim , porque o é ; colher alguém o fructo dos trabalho dia já deve seguir os usos e costumes das mais , alimentando se como convém a homens enclausurados e adstrictos a mortificação e a silicios contra as carnes , a vigilias e rezas , dissera , com intenção especial , o alferes . E accrescentou : estava capaz de te acompanhar na ceia , visto que me não deixas saír por ora . -- Pois sim , com muito boa vontade ; o caso está em que tu queiras . Anda cá . E assim fallando D. Bruno tomou-o por um braço e levou-o para a primeira casa , que tinha a chaminé . -- Para onde me arrastas ? -- Vem ver a lauta ceia que te espera . Entraram na cosinha , e D. Bruno foi-se a um armario , que abriu de par em par , dizendo : -- Olha . Era a provisão que recebera composta de feijões frades , laranjas , nozes e um pão grande de toda a farinha , tendo por complemento um mólho de couves noviças . -- Pensei que te traziam feita a comida , dissera o Costa , e que outra fosse . -- Não , outra não é : só nos dão o que vês , e de tempos a tempos alguns ovos e queijo : se adoecemos somos mimoseados com peixe , e , na falta do do mar , comemos kagados , que ahi creamos . -- E nunca vos dão carne ou vinho ? -- Nunca jamais comemos carne ; vinho sim ; provamol- o , muito aguado , raras vezes . -- Pois , meu caro amigo , declaro-te não saber explicar o como te sujeitas a isto ; sim , tu , que eu conheço desde a infância , espirito revolto sempre contra prisões e rigores , creado na modesta mas abundante fartura de teus pães . Grande mudança se operou em ti . -- Enganas-te ; sou o mesmo . -- O mesmo I aqui enclausurado ha já annos , ahmentado como o teu Patriarcha ou como esses monges dos ermos ! como esses cenobitas da Thebaida , de que nos faliam os livros ! Não comprehendo . -- Em tudo isso o mesmo sou . Eu t ' o explico . Se eu tivesse professado outra Ordem de menos austeridade , das muitas que por ahi temos em Evora , succederia o ter eu mais liberdade , melhor mesa em refeitório farto , cosinheiros e creados para me servirem , um bem estar relativo , não é assim f É . Eu seria , como os demais , um homem frade ; mas um homem homem , não . Seria frade objectivo , sem poder ser frade subjectivo . E tu , que me conheces sabes quaes são minhas ideias a respeito de muita cousa . O que eu pretendesse como homem seria conhecido de todos , e d' ahi o descrédito pessoal e o da Ordem a que pertencesse . Na Cartuxa é outra cousa . Cilícios , jejuns , abstinência , silencio , clausura , alimento de friictos e legumes , tudo isso cambio na satisfação de meus gosos pessoaes em proveito do meu subjectivo , sem que ninguém o saiba . Quem o poderia suspeitar ? Um austero cartuxo , que não mais saiu d' aqui , que se mortifica e mal alimenta pôde lá dar largas á sua naturesa ! Pois , meu amigo , chegámos ao ponto : fica sabendo que dou , conhece que me não cilicio , que como outras comidas e que saio do mosteiro . -- Sim , creio ; mas és tu então um péssimo cartuxo , observou o alferes . -- E já te disse alguém que eu pretendesse ser optimo ? Circumstancias me fizeram ser frade , como sabes : hei de ser um frade como o poder ser , e ... mais nada . Mas , voltando ao ponto ; queres ceiar comigo ? perguntou D. Bruno , sorrindo malicioso . -- Quero , só para ter o gosto de te vêr feito cuque . -- Muito bem . Como ainda não podes sair , temos tempo . Vae tu ahi lançando lenha no lume , que eu já volto . E ao fallar assim D. Bruno entrou no corredor da habitação , tomou á direita , chegou á extremidade e subiu a escada , que vimos quando entrámos . Cnristovam da Costa , distrahido com a conversação do amigo , scismante no colete de mulher que lhe viu sobre a cama , pasmado da confissão feita sobre o viver que vivia , que lhe disse viver ali , tão diverso do que lhe suppunha , já não pensava na conspiração , nem na hora de , recolher . Almejava por conhecer os processos empregados de D. Bruno , para conseguir o que lhe affirmára conseguia e gosava . Occupava-se em alimentar a fogueira , seriam volvidos dez minutos , quando sentio que D. Bruno voltava . Interrompeu o serviço , ou deu-o por concluido , e voltou-se para a porta , por onde entrara D. Bruno . De facto , o monge assomava ali , capuz sobre a cabeça , rosto vendado . -- Essa não é má ! vens mascarado ? O vulto entrou ; mas não respondeu . A ceia de um cartuxo No entretecer da historia da vida do ultimo cartuxo da Scala caeli de Evora , ficava bem ' neste ponto uma suspensão da narrativa . Mas , o leitor , ao vêr entrar a D. Bruno mascarado , deseja , como é natural , conhecer a razão do estranho disfarce , e nâo é justo addiar-lhe esse conhecimento . Continuemos pois a narrar . Christovam da Costa notava , com assombro , que D. Bruno lhe parecesse de menores dimenções corporaes , e , sobre tudo , que não fallasse , que não tivesse respondido ás suas palavras . D. Bruno silencioso , ou o diabo por elle , entrou , foi-se a um armário , que continha louça e utensilios de cosinha , começou de tirar alguns e a tudo preparar para fazer a ceia . Composto o lume , a fogueira alimentada de um novo trasfugueiro e novas achas ; ' nella posta uma trempe de ferro e sobre ella uma caçoula de barro , a operação culinária começou . -- Tu não fazes favor de me dizer alguma cousa , de me explicares o teu silencio , esse bioco ? dissera Christovam da Costa , depois de ter contemplado silencioso a D. Bruno nos preparativos da O mesmo silencio do monge ; nem uma resposta , uma paragem , um prestar sequer attençSo ás falias do militar . -- Só se tu não és D. Bruno ; mas eu devo sabel- o , que para brincadeira e zombaria de sobejo me parece . Deixa vêr o rosto . E Christovam da Costa fôra-se ao monge para lhe erguer um panno , que , a modo de dominó , lhe velava o rosto , -- Alto ! bradou D. Bruno , assomando ' naquelle instante á porta , por onde saíra . -- Bravo ! meu amigo ! A situação vae de novella . Que diabo é isto ? -- Um leigo monachal que nos prepara a ceia , respondera D. Bruno , a rir , a rir . -- Isso será , como dizes ; mas , porque nSo mostra o carão este leigo cosinheiro ? -- Porque lh'o prohíbe a Ordem . -- A Ordem ! Explica-me o caso e deixa-te de comedia . -- Bem está ; mas não te zangues , acudira D. Bruno . Tudo saberás ; mas ajuda-me antes a depor esta carga . A taes palavras , Christovam da Costa attentou no amigo . Vinha como um ouriço , D. Bruno . Uma garrafa debaixo de cada braço ; na mSo esquerda uma taça de marmcllada e na direita um presunto de Lamego , quasi inteiro ! -- Santa obediência aos estatutos de S. Bruno ! Assim já comprehendo este viver . Dá cá . E Christovam da Costa tomava a D. Bruno as duas garrafas lacradas , bojudas e mal feitas . -- Leva para dentro , disse D. Bruno , tomando também a direcção da casa de jantar , aquella em que já estivemos , contigua á alcova de dormir . E entretanto , o leigo carthusiano trabalhava na ceia . Rechinava a caçarola na trempe , esperando as grossas fatias de lacão que D. Bruno cortava com mestria sobre a mesa de jantar . Christpvam da Costa estava maravilhado do que via , desconfiado do cosinheiro , arrebentando de curiosidade por vêr o final da scena culinaria . Cortadas grossas lascas de presunto , sufficientes para a ceia de tres ou de mais individuos , o monge correu a levai as ao leigo mascarado , volvendo a Christovam da Costa , que , absorto , permanecia de pé . -- Pareces estupefacto ! defensor da pátria ! dissera D. Bruno , risonho . -- Não é para menos o que vejo . -- Pois , meu amigo , em tudo isto só vês actos naturalissimos . Faz-se uma ceia para nós comermos . Non sole oratione vivit homo , E assim fallando D. Bruno punha a mesa , sacando de baixo do habito de uma toalha alvissima , de talheres e guardanapos . -- O teu habito parece-me inexgotavel como as garrafas dos saltimbancos ! dizia o alferes , ao contemplar tanta humildade e preparativos de mortificação . -- Não te disse eu que era o mesmo , não obstante o aspérrimo da nossa regra ? -- Vou vendo isso mesmo ; mas , dize-me : como diabo te arranjas tu para fazeres o que fazes } -- Ahi o meu segredo . E acabava de pôr três talheres na mesa . -- Três talheres ! Acaso ceiará com+nós o cosinheiro ? -- Claro é que sim ; pois não quererás tu que o homem coma ? -- Isso quero eu ; mas em nossa companhia , acho menos próprio ; não porque não seja elle um homem como nós somos , mas ... -- Lá isso nâo é ; continúa , interrompeu D , Bruno . -- Como , não é ? Explica-te . -- Não é , já t ' o disse ; mas , continúa a desenvolveres o porquê . -- Porque não poderennos estar tão á nossa vontade . -- Estaremos , descança . E dize-me cá uma cousa : quando chegaste de Lisboa ? -- Hontem por noite . -- E ha que tempo estavas tu para lá ? -- Havia quinze dias . -- E quando chegaste , ou já hoje não te contaram nada de novo ? -- De novo ? Não percebo nada , A que alludes ? -- Em breve o saberás . ' Nisto apparecia á porta o leigo mascarado , silencioso , sem lhe ultrapassar o limiar . Depois de fazer certo signal a D. Bruno , retirou para junto da cosinha . -- Que diabo de automato é este que tu arranjaste ? E sempre mascarado ! Se estiveramos na Inquisição explicado estava o caso : era um d' esses instrumentos conscienciosos de torturas horríveis , de tormentos espantosos , que , por vergonha da humanidade , ali mortificam a seus semelhantes . Aqui , porém , o caso é outro , e , francamente , tu vacs dizerme o que significa tal embiocado . -- Vou , mas não já ; ha de ser depois da ceia . -- Mais aguças o meu desejo : explica-te já . -- Não sejas apressado . Tu vieste a esta casa para me revelares um segredo e de mim ouvires um parecer . Pois bem , sabe agora que também eu tenho um segredo a revelar te e quero de ti un : parecer , ouvir tua opinião , . conhecer como pensas sobre um caso , que , pelos modos , não conheces . -- É curioso ! Pois sim , direi o que souber , observarei o que me occorrer , logo que conhecido seja . -- Então vamos ceiar . E D. Bruno ergueu-se da mesa , chegou se á porta e disse para o silencioso cartuxo : -- Vamos comer . E retrocedeu á mesa e assentou-se . Seguidamente o leigo entrava e punha na mesa pratos e um pão alvo capaz de alimentar a seis e mais pessoas , volvendo a ir buscar uma fritada famosa de ovos com presunto . -- Assenta-te aqui ao pé de mim , dissera para o Qosinheiro D. Bruno Maria da Transfiguração . O encoberto e silencioso personagem , ao ouvir aquelle convite , retrahiu-se , encolheu-se , deu-se ares e modos tímidos , envergonhados , singulares . Reparou ' nelles Christovam da Costa . -- Vamos , não tenhas vergonha de um amigo meu , particularissimo companheiro desde os brincos infantis , amigo , que , de mais a mais , deves conhecer . Não conheces ? O cartuxo interrogado acenou com a cabeça , confirmando conhecer ao contubernal da ceia em perspectiva . -- Cresce o meu espanto ! Decididamente é uma noite maravilhosa esta , dissera o alferes . -- Assenta-te , pois , terminou D. Bruno , ageitando- lhe uma cadeira : Obedeceu o leigo singular e assentou-se . D. Bruno fez-lhe o prato , com maior assombro do amigo , serviu a Christovam da Costa , tirou comida para si e começou de comer , acrescentando : -- Vamos , agora não se pensa em outra cousa . O alferes imitou ao cartuxo , mas o leigo não comia . -- Então não comes ? perguntara D. Bruno . -- Como diabo queres tu que elle possa comer assim , com aquella matamorra na cabeça ? acudiu o Costa . -- Ah ! sim , que a tire , respondeu D. Bruno . E para o mascarado continuou : -- basta de rogativas : Christovam da Costa é outro eu ; tira esse panno e come , não tenhas vergonha . Dispunha-se o leigo a tombar o capuz e tirar do rosto o panno que lh'o cobria , quando uma pancada na porta lá de fora , do corredor grande da claustra do laranjal , veio sobresaltar a todos , especialmente a Christovam da Costa e ao embuçado , que logo se poz em pé em attitude de sair d' ali . -- Nada é , assentem-se , disse ò cartuxo : fallem baixo , que eu já volto . E D. Bruno ergueu-se e saiu rápido para saber quem bateria , e porque , e com que fim . -- Quem poderá bater agora áquella porta ? perguntou o alferes ao calado companheiro . O vulto encolheu os hombros . -- Singular silencio ! Respostas por mimica ! Estranha scena é esta e bem parecida com as das Mil e uma noites , por lhe acrescentar mais uma . Com que , a respeito de fallar , nada de novo ? Outro signal negativo do leigo ; mas acompanhado de um como fungar expellectivo ou brincalhão . Christovam da Costa embatucou com o sorriso do cosinheiro , um leigo brutal que se propunha escarnecer d' elle . Ergueu-se de máu aspecto , e dispunha-se talvez a mandal- o sair , quando D. Bruno voltava risonho e entrando dizia : -- Nem eu me lembrava de tal cousa : era o irmão que nos vem dar o pax tecum e perguntar se estamos com saúde . Mas , que tens tu , que estás de mudado aspecto ? perguntára ao alferes . -- Nada tenho : ou tu mandas immediatamente descobrir o rosto a esse leigo , ou eu vou sair d' aqui sem demora nenhuma . Cheira-me tudo isto a banquete de fantasmas . -- Tranquiliza-te , que vae ser feita a tua vontade . Assentaram-se , e o leigo , sem esperar outro rogo de D. Bruno , descobriu o rosto e começou de comer . Christovam da Costa , como sacudido por mola potentissima , erguera-se assombrado , boquiaberto , emquanto o cartuxo ria a bandeiras despregadas . O cosinheiro monachal era uma formosa mulher ! Forçadas vocações Deixemos ceiar bem aos tres companheiros na cella ou casa de um monge de S. Bruno , da Cartuxa de Evora , de austera recordação . Retrocedamos na chronologia e entremos a portaria do convento de Santa Catharina de Senna , da Ordem de S. Domingos , ha pouco extincto , convento encravado no interior da cidade em bairro de construcções inferiores , pobres de architectura e de haveres . Fundado em 1547 sob a protecção da casa de Bragança , este convento está hoje quasi totalmente arruinado : abriga no dormitório grande uma ou duas companhias de infanteria da guarnição da cidade , e tem sepultada na casa do Capitulo a uma irmã do conde do Vimioso , D. Brites de Portugal , filha do bispo de Évora , D. Affonso , ordenado depois de viuvo . Esta declaração é precisa aqui para que os linhagistas e historiadores apressados não apimentem de escândalo o viver do homem , que santa gloria haja . É de manhã . Abre-se a portaria para receber a mais uma serva do Senhor , uma menina do coro , de formosura não vulgar , antes de peregrina belleza . Duas alas de freiras de todas as edades se prolongam no corredor da claustra sombria : uma tia freira serve de madrinha á neophita . Entra , e a larga porta fecha-se a olhares curiosos e cubiçosos . As poucas pessoas que a acompanharam retiram silenciosas , sem attentarem ' num mancebo de poucos annos , que se occultára com uma columna de mármore da casa da entrada . Singelíssima entrada nos umbraes religiosos de uma rez innocente foi aquella . Quando a sós , o mancebo e a rodeira , ou veleira do convento , aquelle correu á mulher banhado em lagrimas . -- Ó tia||_Bernarda Bernarda|_Bernarda , ha de deixar-m ' a vêr algumas vezes , sim ? -- Não posso fazer tal cousa , filho , dissera a veleira . Aquella porta só se abre por ordem da senhora||_Abbadessa Abbadessa|_Abbadessa . Isso não se pede , não se póde pedir . -- Pois então , tia Bernarda , vou matar-me . -- Santo nome de Deus ! exclamára a velha . Isso não ; só para a veres tens ensejo sem se abrir aquella porta : basta entrar na egreja e vêl- a no côro , ouvil-a cantar e rezar . O moço estava dominado por amorosa paixão violentissima , como se teem ' naquellas edades . Por visinho , o conhecia bem a mulher : tinha-o visto crear , como á menina , ha pouco entrada na clausura , abrigo que lhe buscavam os pães contra o bater das encapelladas ondas do mundo , contra as vicissitudes d' elle , contra seus perigos e seus baldões temerosos . Teve dó do moço apaixonado , aconselhou-o como poude , a veleira d' aquellas vestaes do senhor , e terminou por lhe pedir que saisse ; porque tinha de fechar a portaria áquella hora , para a reabrir mais tarde . Difficil foi á veleira Bernarda o vêr-se livre do importuno , por tresloucado mancebo . Fechada a portaria , ficou-se a velha a pensar no caso , condoída do moço , e não menos da recementrada menina , colhida por mão violenta do jardim da vida , onde , como a rosa mal aberta ainda , começava a rescender amores , a haurir brisas aromáticas de ventura , a desabrochar ao sol vívido da mocidade , e do amor , e da bonança passageira da primavera da vida , para ir estiolar nas sombras d' aquella casa , perdidas roseas côres da juventude , a alegria , a felicidade . Fôra nova e amorosa a veleira : viu passar por sua mente um drama de angustias , de soffrimentos muito intimos , cujos personagens conhecia , e teve , na verdade , sincero pezar . Não é precisa muita perspicácia ao leitor para conhecer no moço apaixonado ao filho do caldeireiro e na menina do coro a Bemvinda da Gloria , filha do visinho official do mesmo officio , Claudio Raposo . A confissão que llie fizera Clemente José Candieiro e o parecer que lhe dera de recolher a filha a um convento , levaram o homem , ao cabo de dias , a mettel-a , como vimos , em Santa Catharina , onde tinha uma tia freira , sua irmã d' elle . Manoel , o estudante filho do Candieiro , entrou também no convento das Mercês , algum tempo depois , não como para seguir aquella Ordem , mas , para ali permanecer até attingir a precisa edade de entrar na Cartuxa , seu desejo d' elle rapaz , expresso ao pae , no dia em que Bemvinda se recolhera a Santa Catharina . -- Mas , olha tu , Manoel , que se professares na Cartuxa , não te torno a ver , não tornas a sair d' ali , dizia o Candieiro ao filho , antes de ir para as Mercês . -- Tenho cá o meu plano , meu pae , e visto que quer ter a um filho frade , deixe ao menos que eu escolha a Ordem . Bem vê que lhe obedeço e faço a vontade , quando podia seguir a vida militar , como o Christovam da Costa , respondia o rapaz ao pae . O Candieiro não insistiu mais , crente que o filho mudasse de pensar ainda . ' Nesse dia , á noite , o estudante Manoel rondava o convento de Santa Catharina , sem duvida por ver se avistava a Bemvinda através das grades de alguma janella , persuadido de que o mesmo desejo lhe assistisse a ella , ave presa ' naquella gaiola enorme de arruinada construcção . Escura era a noite e sem illuminação a cidade . Quando , depois de costear por mais de uma vez o convento , no baldado intento , o estudante dobrava a esquina da rua da Milheira para a de Soeiro Mendes esbarrou de súbito com um vuito , que a descia para subir a da Milheira . Por modo se chocaram os dois corpos , que tanto um como outro individuo não conheceu ao contrario no primeiro momento . Não decorreram segundos : de repente , o que descia a rua Soeiro Mendes desatou um tal chuveiro de murros no estudante , que , tão crebos e fortes , só os daria um inglez . No inopinado de tal assalto depois do subito encontro , Manoel Candieiro , o contrariado amante de Bemvinda , cujo sangue frio o abandonara por um instante , sem conhecer ao adversário , sem poder formar um ente de razão ; mas estimulado da pancadaria e cuidadoso da integridade de seu rosto , agacha-se instantâneo , mette , á força , a cabeça entre as pernas do contrario , agarra-lhe as extremidades d' ellas , levanta-se com empuxão violento para diante , desequilibra-o , e deixa-o cair inerte , estendido com o rosto sobre a calçada da rua . Tão violento foi o baque , tão perigoso mesmo , que Manoel Candieiro , ao notar que o corpo do adversário desconhecido ficara sem o mínimo movimento , concluiu que o matara , que , na queda de chapa d' aquelle corpo , a testa se abrira contra as pedras da rua , e horrorisou-se . Sem buscar conhecer ao contrario , sentiu que devia fugir d' ali . E fugio , correu pela rua de Soeiro Mendes e sumiu se na extremidade d' ella , deixando ficar ao outro resupino , na mal calçada e pouco frequentada rua . Meia hora depois era o caído encontrado por mestre Raposo , que ' nelle tropeçara , virado , reconhecido e erguido . Não tinha fendido o craneo , como suspeitara o estudante , mas escalavrados o nariz e a testa : a pancada d' esta contra uma pedra fora tal que lhe tirara os sentidos , permanecendo ' naquelle estado , a escorrer sangue , durante o espaço decorrido . -- Desgraçado ! como caíste assim ? perguntára o pae de Bemvinda ao aprendiz , que outro não era o caído . -- Não caí , poude responder o rapaz , amparado do mestre . -- Não caiste ! então como te encontro eu assim ? -- Foi o Manoel Candieiro quem me botou ao chão . -- o que ? ! Calte , maroto , que m ' as vaes agora pagar todas juntas . Vamos para casa . E assim fallando foi levando o rapaz rua acima . -- Não lhe faça mal ; o culpado fui eu . -- Tu ! E pararam . -- Eu dei-lhe , eu bati-lhe , respondeu o aprendiz . -- Então bateste-lhe sem mais nem menos ? -- Bati . -- Não póde ser : has de ter alguma razão para o que fizeste ; dize lá . -- Não posso , sinto-me mal , vamos . -- Pois sim ; mas logo fallarás quando estiveres melhor . Vamos , sim , para casa . Foram indo ; o rapaz gemendo , ensanguentado , e mestre Raposo murmurando : -- Leva o diabo ao pae e ao filho d' esta feita . Perto era a casa , entraram ' nella . Mestre Raposo e a mulher cuidaram logo de la ' var o rosto ao aprendiz , e de lhe pôrem uns par ches molhados em vinagre na testa escoriada , no nariz machucado . Deitaram-no , alimentaram-no* . O rapaz pegou no somno . -- Conta-me o que foi isto , pedia a mãe de Bem vinda ao marido . -- Foi o maroto do filho do Candieiro quem poz o rapaz ' naquelle estado . -- Mas , porque ? Sabes ? Tu viste ? Não seria elle . -- Foi , foi que m ' o disse o aprendiz , e eu vou já dar cabo do patife , que nos obrigou a metter a pequena no convento e que nos ia matando o rapaz . E dispunha-se a sair . -- Não vás , que t ' o peço eu : que certeza tens tu d' isso ? São bulhas de rapazes , deixa-os lá uns com outros " -- Pois não sairei ; mas amanhã fallaremos : hei de entregal- o á justiça , áquelle tratante ; com o pae é que eu me quero . Em quanto isto se passava em casa do caldeireiro Raposo , defronte , em casa do Candieiro corria scena de cuidados com o filho Manoel , que havia entrado em casa , como fugitivo , pallido , sem poder fallar , amedrontado . -- Que tens tu , rapaz ? lhe perguntou , finalmente , o pae . Manoel não respondera , permanecendo cabisbaixo e triste . -- Falia para ahi Manoel : que tens tu ? o que te aconteceu ? O mesmo silencio , seguido de soluços e de choro . Devia traduzir aquelle estado o do espirito do moço apaixonado , que não podéra vêr a Bemvinda e que , para complemento de magoas , matara um homem , como julgava , ao tel- o visto ficar estendido na rua sem dar acordo de si . Ameigou-o a mãe , disse-lhe palavras consoladoras , das que só mães podem empregar em casos semelhantes , e conseguiu saber d' elle a causa da situação em que se achava . A ideia de ter morto ao aprendiz do Raposo assustou deveras mãe e pae . Este correu logo á janella por vêr se descobria o que se passava na casa do visinho de fi-onte . Nada de ruidoso , de alarmante , na phrase franca de nossos dias , em que pouco se escrupulisa o introduzir a moda na linguagem , poude descobrir mestre Candieiro . -- Não o saberão ainda , murmurou , voltando ao filho , entregue aos cuidados da mãe . Talvez lá esteja na rua caido sem vida , se é que o rapaz o matou . E , sem dar conta dos seus intentos á mulher e ao filho , saiu de casa para , naturalmente , percorrer a rua e verificar o caso . Foi , chegou ao sitio , e , não encontrando ninguém , folgou , desopprimiu o peito , nasceu-lhe uma alma nova . Correu a casa a dar parte á mulher e ao filho de que o rapaz já lá não estava , e que , portanto , ficara vivo e se fora para casa do mestre Raposo . A lembrança de que tivesse sido removido o cadáver appareceu-lhe , para logo se apagar , como impossível , visto não constar , não haver na visinhança borborinho algum . O estudante Manoel reanimou-se , com a nova de não ter morto ao aprendiz de caldeireiro . Ergueuse da cadeira , em que permanecia assentado , e disse muito prompta e sacudidamente aos pães que queria entiar , sem demora , nas Mercês . Annuiram os pães , dominados da lembrança e conveniência de o pôr a bom recado no convento , livre de mais encontros , de represálias , em caminho de se esquecer da filha do Raposo . Clemente José Candieiro já tinha o negocio tratado ' naquella casa religiosa , de modo que , no dia seguinte , o rapaz entrara no convento das Mercês , muito a seu contento . Mestre Raposo dormira sobre o acontecimento ; e , pois não tinha certesa nem testimunhas da agressão , houve por melhor aparentar ignorância , não se dar por achado . Por outro lado , o aprendiz estava bom ; apenas com uma contusão formidável na testa , nascida da queda despedida , a que o leitor assistiu . Não se fallou no caso , que passara despercebido do publico . Temos aos dois amantes em conventos . Uma realidade das muitissimas de que rezam annaes monasticos , desde que se fundára a primeira casa religiosa no mundOy um facto sabido dos que sabem , dos lidos , dos conhecedores da historia monachal . Vejamos agora ao neophito , se lhe podemos dar tal nome , visitemos ao estudantes nas Mercês , dias depois de sua entrada ' naquella casa . É hora de recreio no convento . Passeiam na cerca os homens , divertem-se os rapazes na claustra , entregues a brinquedos proprios do estado , que pretendem tomar , e coadunáveis com suas edades . Existia no convento um preto novo , rapaz de vinte e nove a trinta annos , que , pouco havia , tinha chegado de Moçambique . Era um creado dos frades , da cosinha , um moço de recados . Muito feio e muito cerrado , era elle o divertimento dos conventuaes , maiormente dos novos . Vae estando quasi perdido este gosto de possuir um preto . Nossos avós não prescendiam de os ter em numero , como escravos a principio , quando trouxeram os primeiros a D. João II esses aventurosos portuguezes que costearam Africa pelo Cabo da Boa Esperança , á mercê de Deus e das ondas encapelladas , esses macacos sublimes , como nos chamam ' neste momento os inglezes , estes pechelingues insulanos , que lhes foram no encalço , para se apoderarem de suas descobertas e conquistas . Vergonhas inglezas , iniquidades da nossa potente alliada , notoriamente desde o Mestre de Aviz , que lá foi buscar uma esposa . Livres , depois da alforria , nossos avós tinham pretos como objecto de luxo , como se haviam tido anões por bobos , por truães anteriormente , nos primeiros reinados de nosso viver pacifico e autonomo . Foi o preto , o negro africano um elemento forçado do theatro portuguez em Gil Vicente , Prestes , Chiado . Era elle , o pobre arrancado por força aos affectos dos seus , a parte cómica indispensável nos autos do século xvi , como em nossos dias o tem sido o gallego , ambos pelo mascavado da lingua , pela algaravia da falia , como se , pelo mesmo fundamento , o não podesse ser qualquer estrangeh- o , que não falle a nossa lingua , ou que a falle , como o brazileiro , já por vezes aproveitado de um ou de outro escriptor . Chegámos em boa occasião para presenciar um divertimento dos conventuaes com o preto . É na claustra . Grandes surriadas de palmas festejam , de espaço a espaço , a queda de um donato , impellido de potente marrada do negro . Appareceram valentões ; mas , todos foram a terra . Crera-se que o mongol , contra a fama conhecida da dureza do craneo , não prostraria a todos , e assim foi que , por diversos modos , muitos lhe apararam as pancadas . Venceu a todos . -- A braço , a braço ! brada um . Ha de ir ao chão . E de um grupo destaca um aprendiz fradesco , colloca- se-lhe em frente e exclama : -- Vem para cá , se és capaz ! -- Mê siô , vae negro . E foi , e caminhou para o adversario , que outro não era senão o nosso estudante Manoel Candieiro , que lhe parecia impossivel não haver quem resistisse ás forças de um negro cambaio . Pegaram-se , arcaram , cambalearam e nenhum caiu . -- Descancem , descancem , bradou um . O preto vae a terra . E palmas e risadas acolheram a lembrança . Separam-se os dois . O preto suava , e o branco era offegante . Seriam passados dois minutos e a mesma voz de gritar : -- Vá ! á terceira : um , dois , três ! Manoel Candieiro , aguçado dos monosyllabos , correu ao negro , que se não bulio , como quem se queria deixar tomar nos braços do que para elle ia . Mal as mãos do estudante se erguiam , já proximo do negro , para o apertar em seus braços , ouve-se uma exclamação geral de espanto : -- Bravo ! O preto , firme no logar em que estava , fazia uma feia careta a todos os noviços e apresentavaIhes o Candieiro , estendido em seus braços , estrebuxando vencido ! -- Como foi isso ? como foi isso ? bradaram diversos . O negro pozera o estudante no chão , em pé , porque manifestamente o não quiz prostrar . Tão rápido , tão instantâneo , tão inesperado foi aquelle acto , que mal tiveram tempo alguns de ver tombar de repente o corpo do estudante , erguer do chão os pés e ficar estirado nos braços do negro , peito para cima , cabeça e pernas pendentes , braços estrebuxantes ! Manoel Candieiro ficara fulo como o negro , de pura vergonha , e aquelle carantonhando alegre de triumpho . Ninguém sabia explicar como se passara a scena , por mais tentativas feitas . Sobre envergonhado , raivoso o estudante súbito arremete ao negro . No impeto vae a victoria : todos calam , todos olham e ... ' num instante , o mongol a rir , a caretear , a mostrar a todos o rapaz estendido em seus braços , como anteriormente ! Espanto geral ! -- Lá vou eu ! exclama o que os incitara á lucta . Era um rapagão foite , atarracado , moreno , musculoso . Caminha , sem correr , para o negro , apenas com passo accelerado ; chega perto , estende os braços para ' nelles apertar ao contrario , e , oh ! caso estupendo ! cae instantâneo nos braços do outro , como caíra o primeiro ! Uma salva de palmas acclamava vencedor ao negro , e uma de vaias de vencido ao valente noviço ! E nenhum sabia como o caso se passava ! Tentaram mais alguns vencer ao negro ; mas ò mesmo lhes succedia : caíam-lhe todos nos braços , mal d' elle se approximavam . Era o caso que o negro conhecia um processo simples de desequilibrar ao contrario , usado dos indios da America e de alguns africanos : consistia em deixar chegar ao alcance da mão o corpo do contrario e da perna esquerda as pernas dele ; assim , e nos casos que vimos , a mão direita do negro agarrava fortemente o hombro esquerdo do adversário , exactamente ao tempo em que a perna esquerda lhe desviava a direita . Simultâneos estes empuxões em contrario sentido , desequilibravam de súbito , a todo o que se approximava do Moçambiqueno , e cairiam , infallivelmente , se o mesmo preto não fosse logo com o braço direito suster o corpo desiquilibrado e com ambos erguel-o'nelles vencido , á mercê de sua generosidade . O perfeito do acto consistia em accommetter ao mesmo tempo , no momento preciso em que a perna do contrario vinha no ar , por dar mais um passo . É processo infallivel para urn fraco prostrar a um forte : prevenido mesmo , cairá . Formosa edade , a da juventude ! Dissipam-se paixões ' nella como se haviam formado , instantaneamente , como fogos fatuos . O apaixonado Manoel , o amoroso amante de Bemvinda , parecia esquecel-a ; brincava com outros moços , não estranhava o convento . Outeiro de abbadessado Manoel Candieiro ficou gostando muito do negro , que lhe ensinara um processo de vencer em luctas ao contrario , e que lhe poderia vir a ser preciso , attenta a sua qualidade de moço de recados . Emquanto o estudante se diverte nas Mercês , como passará Bemvinda em Santa Catharina ? . Apenas sabemos , por emquanto , que é loucamente amada de um moço de sua edade , aproximadamente , sem termos conhecimento do quinhão de affecto que lhe retribuirá a elle , estudante de frade , tamanha paixão . como se não fecham para nós as portas de conventos , graças ao Breve especial que temos de nosso pensamento para ' nelks entrarmos , penetremos em Santa Catharina , convento extincto hoje , encravado ' numa baixa da cidade , húmida e fria . Entremos de tarde . Na claustra passeiam algumas freiras novas , conversam . De todos os tempos foi o convento um pequeno mundo , perfeitamente ao con-ente dos acontecimentos de toda a ordem do grande mundo externo . Sabia-se ' nelle de casos de politica geral ou local , de guerras entre nações , de discórdias domesticas , dos mais pequenos escândalos , em fim , da humanidade extra conventual . Lá dentro de tudo aquillo havia . Ou fosse porque , naturalmente amigas de saber as mulheres , ou porque , sequestradas ao mundo de agitadas paixões em diversissimos casos , não haviam deixado á portaria , na entrada , desejos , affectos , curiosidade , é certissimo que , tanto frades como freiras , mas estas especialmente , andavam sempre ao facto de tudo quanto succedia cá fóra . E porque mais real fosse , mais positivo esse conhecimento , não raro foi lavrar lá dentro a discórdia politica avassallando a todas , tanto nos bandos da sonhada governança da casa , como nas paixões amorosas , em tudo . Um perfeito simile do mundo externo . A historia monastica ahi anda patente em livros : Lorvão , o notável mosteiro de S. Bento , encravado na raiz de altíssimas serras chegou a ter promiscuamente duas abbadessas , cada uma eleita por seu bando politico , que se chocavam por aquellas arcarias em luctas até corporaes , em escândalos de toda a ordem , em perfeita insubordinação de péssimos exemplos . Em Semide e ' noutros o mesmo succedia . E talvez fosse natural aquelle desregramento . Privadas do contacto mundano , donde abruptamente arrancadas , aquellas mulheres sentiam a falta imperiosa da vida do espirito , que não bastava a contemplativa , quer exercida no estudo , na oração , quer nos desejos , na vingança , no amor , em todas as manifestações do coração humano , em todas as suas exigências . Mas para que explanar a these ? Matéria corrente e de todos sabida é a exposta e tocada pela rama . Ouçamos as freiras , que em grupos diversos passeiam na claustra . -- Não está , uma dizia . -- Está , que o sei eu , outra confirmava . -- Não está , não está , não está ! ápre , que és bem teimosa ! Eram duas mulheres novas as que assim fallavam . Uma terceira , destacou de outro grupo , ao ouvir aquella apostrophe , e achegou-se ás duas . Era mulher feita , experiente , sabedora , durasia mesmo . -- Estás muito zangada , minha menina . Não está , não está , não está ! Mas não está o quê ? perguntára . -- Escusa de saber o quê , disse a que affirmava , não só como respondendo , como insinuando á companheira o silencio á indiscreta , que se intromettia . -- Ai ! que tanta gracia tienes ; respondeu a terceira , de origem hespanhola , natural de Montanches . Pensam as meninas que nâo sei de que falam ! Ingénuas ! Discutem se a menina Bemvinda está , ou não está na cella da abbadessa . Ora vejam lá o grande segredo ! -- É bem atrevida , em se metter onde não é chamada , disse a da confirmação . -- Sim ? menina ; pois é verdade que sou , e que lhe prometto uma derrota em seus planos . -- Isso veremos , replicou a outra . Prolongou-se a conversação , mirando alvo só bem visto das devotas enclausuradas . Mais adiante conversava outro grupo de servas do Senhor , mais edosas . O mesmo assumpto da conversação d' estas era a nova enclausurada Bemvinda , Era ella a mais formosa d' aquellas mulheres , se bem que imperfeita , por muito nova . A circumstãncia fazia com que as edosas a cubicassem para amiga e as raparigas tivessem d' ella ciúmes devotos . Umas queriam-na para ' nella ver a imagem da Virgem||_Maria Maria|_Maria , outras , apesar dos zelos , cobiçavam-na* para que a bellesa própria durasse mais amparada na amisade d' ella . Todas a queriam , por causas diversas , só bem apreciadas de desejosos corações femininos , -- Pois eu já sei que a senhora abbadessa a quer para sua companheira , parecia responder a outra , de contrario parecer , uma sóror quarentona , -- Não me parece , menina , respondia outra : já lá tem duas meninas do côro ; não lhe cabem na cella . -- Ora ! emprega-as no manjar branco , e divide a cella em beliches para todas accommodar , disse outra despeitada . -- E porque não ? continuou a hespanhola , que se intrometera . Seria um feliz recuerdo das Bemaventuradas Onze Mil Virgens , de nossa devoção . -- O que seria não sei ; mas o que é vejo eu : é que a menina anda muito apimentada , observou outra do grupo . -- Por isso mais appetecida , respondeu a da lembrança das Onze Mil . E a santa besbelhotice continuou em grupos , até que o tanger da campa claustral veiu lembrar a todas o findar do recreio . Dispersaram : cada qual seguiu seu destino , que diversos eram , apesar de só um dever ser : -- o de rezas no côro , mortificações nos jejuns e na applicação de cilicios ' nalguns pontos do corpo , confissões diárias e outros exercicios , tendentes a libertar o espirito das impurezas da carne . Para o côro foram muitas , outras para a cosinha , outras dirigir o trabalho do forno , onde , ' nesse dia , grande era a asafama em metter ' nelle variados doces , encommendados , não só ' neste convento como em todos os da cidade , para os annos do Arcebispo , D. Fr. Manuel do Cenáculo , que tinham logar no dia seguinte , 1 de março . É notável esta industria do doce nos conventos não só de Évora como de todo o reino . Própria é ella de mulheres , de seus dedos delicados para ameigar e adoçar , apesar da unha que lhe poz o diabo , quando o Creador formou a mulher e lhe fez a mão . Duplamente própria , porque as freiras consagradas a preparar para as doçuras celestiaes as próprias almas e as da humanidade em suas orações , tinham por visco mui attractivo o de se adoçarem as carnes , adoçando-as aos invólucros das tresmalhadas pelo mundo . Bom raciocínio era aquelle : pois se das mãos d' ellas , das freiras , nos vinham famosos doces com nomes a lembrar o ceu , como o bolo celeste e o toucinho do ceu que taes seriam os promettidos , os propriamente feitos na mansão dos justos ? Era do cubicar de glutões , se era ! Pingos -- tocha , melindres , bolos de amor e barrigas de freira ( ! ) eram doces para homens . Afamados eram em Évora o manjar branco de Santa Clara e o bolo real do Paraiso com que as freiras , impensadamente , nos mettiam el-rei na barriga , como por esse paiz fora o manjar branco de Cellas , em Coimbra , notável por sua forma de virgens peitos , as cavacas de Villa Real , morcellas de Arouca , pasteis de Tentúgal , nabada de Semide , e um infinito numero de especialidades , que vão acabando com os conventos , com magua o dizemos . Tudo o que é bom acaba . Faziam , pois , as freiras doces para festejar os annos de Cenáculo em 1805 e commemorar a inauguração da Bibliotheca , thesouro de preciosidades diversas , que legou a Évora , e que no dia 24 de março anterior consagrara com voto perenne a Jesus Christo , Filho de Deus . Deixemos , pois , as freiras no doce mister e saiamos , que já ficámos sabendo que Bemvinda é a menina bonita da casa , a querida e cobiçada de todas , a companheira da abbadessa . Emquanto os dois amantes , engaiolados por conveniências de familias mais do que das da religião , lá se vão acostumando ao viver claustral , emquanto estes Paulo e Virgínia se lementam a ausência , e começam de cogitar meio de se approximarem , ao menos em espirito , que para tal conseguimento sobeja habilidade tem o Manoel Candieiro , Portutugal admira os triumphos , pasma , como a Europa , como todo o mundo , das victorias de Napoleão Bonaparte , sem prever que em breve trecho a formidavel aguia franceza esvoaçaria sobre este paiz , para lhe cravar as garras possantes . Jounot em 1807 invade Portugal em nome da França , expulsa a familia real para o Brazil e apodera-se d' esta tira de terra , de glorioso passado , até que um exercito inglez j une to ás tropas portuguezas lhes ganha as batalhas da Roliça em 17 de Agosto e a do Vimeiro em 21 , e os invasores evacuam Portugal . Apesar d' esta invasão , que nus humilhou , que nos roubou , Napoleão , o génio potentíssimo , continuava a ter grandes admiradores no paiz , nos conventos até , em gentes moças , de fácil enthusiasmar . Em principios de 1808 , o nosso estudante das Mercês concluirá os estudos theologicos e apromtavam-no para começar o noviciado preambular da profissão . Mas o filho do caldeireiro não sentira ainda o intimo rebate , o celestial aviso despertador de sua vocação religiosa , antes ' nelle avolumaram ideias bellicas , ardência de gloria marcial , desejos de combater pro pátria os invasores do seu paiz . Mas , a ninguém o revellára èlle , nem a Bemvinda , com quem se carteava desde pouco , depois da entrada d' ella em Santa Catharina . Não fica mal aqui o saber o leitor d' esta historia , de que artes se serviu Manoel Candieiro para enviar uma primeira missiva á joven enclausurada , ou , antes , indicação do modo de futura correspondência . Havia abbadessado em Santa Catharina . Os abbadessados em Evora eram frios , com pouca vida ; não tinham a expansiva alegria dos de outras terras do reino , dos de Coimbra , por exemplo , onde o melhor da poética academia fazia retumbar de seus improvisos os pateos e arcarias de Santa Anna e de Cellas . Ou fosse porque a Universidade de Evora mais estudantes tivesse de Theologia , propriamente dita , e de direito canónico , do que a de Coimbra , onde se ensinavam os dois direitos , a mathematica e a medicina , e onde , conseguintemente , mais eram os que não miravam a vida sacerdotal , a de pautados costumes ascéticos , imprópria da poesia lyrica e amorosa , ou porque Évora , assentada em meio de vasta campina , núa de arvoredos , de sombras , de rios , de harmonias suavissimas de rouxinoes , de balsamicos aromas de laranjaes florídos , d' esse conjuncto de naturaes bellesas que fazem poetas , que dão inspiração , é certo que nos princípios do século presente , como no passado , como em todos os tempos , em Evora não havia poetas . O Xarrama de Plinto , e de Pomponio Mella , e de Strabão , que no inverno tributa ao Sado uma ténue veia de agua de chuvas , e no verão , no ardentissimo estio do Alemtejo apenas cria laparos e coellios , nâo é o Mondego de viridentes margens , inem estes campos transtaganos são os deleitosos prados , hortos e vergeis do Tejo , do Mondego e do Lima , Era , pois , a poesia em Évora no primeiro quartel d' este seculo uma cousa deslavada , um reflexo pardacento de côr e de Iují da legitima e genuina poesia portugueza . Assim , o abbadessado em Evora . Mas havia-os ; mas faziam-se por imitação . Davam motes as freiras , improvisavam canonicos poetas , sedentos e famintos de doce freiratico . Manoel Candieiro quizera ir ao abbadessado mas , não lh'o consentiram , por ser acto indecoroso esse de quem prestes iria dar provas , no indispensável noviciado , de sua muita vocação para religioso . Não se desconcertou com a recusa o futuro fradk . ' . Chamou o negro , que já conhecemos de radas tourinas e de cambapés singulares , e disse-lhe : -- Negro , sabes improvisar ? -- Mi , não saber que seja esso . -- Improvisar é ser repentista , é fazer versos e fallar ' nelles . -- Mê siô , não entender . -- Tu nunca ouviste fallar em Bocage ? -- Mê siô , sim , conhecer versos lindo , que fazer rir as gentes . -- Bem , bem ; pois esses versos que te fazem rir são quasi todos improvisos . Serás tu capaz de fazer um improviso ? -- Qui diabo di cosa ! Mi não saber . -- Ora ouve bem , repara muito . Dá-se um mote e sobre esse mote se improvisa . Deram um a Bocage , que dizia assim : e Bocage improvisou logo , respondeu assim : -- Lua cheira tabaco ! Hi , hi , hi ! ... -- Não rias : serás tu capaz de fazer uma cousa assim ? -- Mi não ser , mê siô , respondera o negro pasmado de tal proposta . -- És sim , és capaz . Ouve bem . Em Santa Catharina fazem hoje abbadessado ; dão motes as freiras e os estudantes improvisam ; os estudantes e quem quer . Depois come-se doce , bebe-se chá da índia e vinho fino . -- Freiras dar marufo ás gentes ? Oh ! mi não saber ! -- Has de lá ir , que o quero eu , e has de fazer o que vires fazer a outros , entendes ? Elles , de fóra , batem as palmas e pedem mote , e tu farás o mesmo , percebes ? -- Mê siô , não saber fallar verso . -- Eu te ensinarei . Bem sabia o Manoel Candieiro que o negro era incapaz da commissão que lhe confiava ; mas tinha o seu plano , qual era o de chamar as attenções das freiras logo que o negro batesse as palmas e pedisse mote . Desejariam todas velo e saber quem e de onde era .