A Farsa de Raul Brandão AO GRANDE POETA GUERRA JUNQUEIRO -- Ai que ma levam ! ai que ma levam ! Uma nuvem desce da serra : arrastam-se os rolos pelas encostas pedregosas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila . E noite , cerração compacta , névoa e granito , formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho . Pastas sobre pastas de nuvens álgidas , que a noite transforma em crepes , amontoam-se na escuridão , O granito revê água . E sob a chuva ininterrupta , sob as cordas incessantes , a vila , envolta na treva glacial , parece lavada em lágrimas ... -- Ai que ma levam ! E o único grito que irrompe do escuro , lúgubre , aflitivo , raspado . Depois o silêncio , a mudez concentrada da noite , a nuvem negra coalhada sobre as ruínas da vila toda lavada em lágrimas . Só aquele grito ressoa na praça solitária . A torre da Sé deformou-se : o granito aliado à névoa de mistura com a noite , abriram arcarias , alongaram as portas e fizeram dos restos da muralha antiga um tropel caótico . É uma amálgama de realidade e pesadelo , trapos de nuvens e palácios desmedidos . A escuridão remexe . Não se sabe bem onde o sonho acaba e começa a matéria , se é uma cidade desconforme , sepulta em treva e lavada em lágrimas , ou meia dúzia de casebres e uma torre banal . Uma luzinha alumia um Cristo aflitivo na abóbada de pedra sustentada por quatro arcos ogivais . Mas a luz treme à ventania , os arcos balouçam , a abóbada estremece , e , ao repelão do vento , grandes sombras esvoaçam , afundando-se no negrume . Há uma sufocação , um espanto , o terror de que a candeia se apague , e só fique o nada , a escuridão imensa e compacta e o grito raspado Lá a levam ! lá a levam ! ... É como a última claridade dum barco de náufragos , tragado sem remissão no redemoinho dum indefinido oceano polar . Adivinha-se a porta da igreja , uma golfada de tinta , e o telingue-telingue eterno duma fonte o choro baixinho daquela escuridão cerrada . A luz estrebucha . Se o vento a sumisse levaria consigo o último sinal de vida . Ficava apenas na noite infinita , impenetrável e revolta , o grito de angústia : -- Ai que ma levam ! As palavras saem duma casa incrustada na Sé . Dentro , numa sala , expõem num caixão o cadáver duma mulher magra , de cera , com flores baratas de papel na cabeça e no seio ressequido . Agarrado ao esquife alguém berra , sacudido de desespero , como um farrapo ao vento . Em vão . A morta continua a sorrir , com os dentes arreganhados e um lenço apertado no queixo , numa imobilidade pétrea . Fora a noite , a invernia brava , dentro a morte e aquela dor suprema e inútil ... -- Ai que ma levam ! ai que ma levam ! Na sala pegada , de teto abaulado , um candeeiro de petróleo alumia outras figuras . São as visitas de enterro : velhas , dois homens , um padre , todos de negro , hirtos e solenes , em roda , nas cadeiras da sala e no canapé de palhinha . De vez em quando uma boca mastiga no escuro . A luz bate-lhes de chapa , ilumina-os como retratos : certos pedaços de fisionomia ressaltam , avançam , outros recuam na sombra . As figuras cerimoniosas são disformes , lembram caricaturas , e os traços exagerados exprimem egoísmo , avareza e secura . Ouve-se o raspar das unhas na seda preta dos vestidos . Uma voz soturna afirma : Deus lá sabe , na sua misericórdia infinita ... E outra acode logo , num tom esganiçado e importante : Resignemo-nos perante os seus decretos ... São palavras da regra , que soam falso , sempre as mesmas . As outras mulheres ajeitam-se , suspiram e tomam a quedar-se num longo silêncio enfastiado . O homem no quarto ao lado , seguro ao esquife como um náufrago a uma tábua , soluça , e aquela dor que não cessa indigna e exaspera as velhas . Não podem suportá-la . Todas trazem vestidos de aparato , com vidrilhos , e mitenes enfiados nos dedos ósseos . A mobília da casa é uma embirrenta miscelânea de cacos doirados de casquinha , um canapé , arcas , cadeiras puídas , mesas de mogno com ignomínias expostas : cães de vidro e bordados de croché . No canapé as velhas empertigadas e os homens esperam , sem terem mais que dizer . Tudo aquilo , seres e coisas , exprime banalidade e secura e ao mesmo tempo certa grandeza . Pressente-se que as existências se fizeram de mil pequenos nadas acumulados . À luz do petróleo os olhos encovam-se-lhes , a dureza sobressai e aumenta . As mãos lívidas e secas , cheias de engelhas , deformadas pelas exostoses , são poemas de maldade e de astúcia . Parecem de mortos e tão afiadas como as da crueldade . O gordo , do lado da porta , todo sebo , que cabeceia e dormita , é o Belisário escrivão finura e crápula , vestidas de negro . Resfolga . Enriqueceu à custa de penhoras e desgraças . Há almas assim , sempre ocupadas por esta mira o oiro . Todo ele por dentro é papelada e ronha . Está tão habituado a processos , que , mesmo sem necessidade , cisma em tranquibérnias . Apertar alguém , esmagá-lo , reduzi-lo pouco e pouco à última angústia , à pior extremidade , é para ele um gozo estranho . Sente uma enorme satisfação em perder os que caem nas unhas , em os levar por complicadas fórmulas até à máxima pobreza , metido na sombra , rabiscando papel selado , e vendo , minuto a minuto , o seu sonho tornar-se realidade . A seu lado está a Felícia , presidente honorário das servas de Deus , associação instituída para que ninguém possa morrer sem confissão . É uma velha magra , austera e ríspida . Remexe de contínuo a boca enorme . Tem a maxila inferior saliente e os seus gestos são decisivos . Quando fala ordena . Os passos rangem-lhe ao atravessar as salas . Põe e dispõe . Nas sacristias temem-na : nomeia e demite padres , e entra como uma rajada nas existências alheias , revolvendo tudo , derrubando tudo . Conversa baixinho com a Patrícia , viúva gorda e banal , que expõe no peito volumoso e mole , num medalhão do tamanho duma almofada , o retrato do marido morto e um caracol do seu cabelo tingido . Cheira a banha . Perto dela outra velha , inquieta e rancorosa , discute com o padre : -- Até a gente devia mostrar satisfação quando nos morre uma pessoa de família ... -- Conforme ... resmunga o sacerdote . -- Porque a dor é uma afronta a Nosso Senhor||_Jesus_Cristo Jesus|_Jesus_Cristo Cristo|_Jesus_Cristo , que morreu para nos salvar . E todas as velhas , ao santo nome de Deus , logo descolam à uma os traseiros do canapé . -- É contrariar-lhe os seus desígnios ! conclui a Patrícia com importância e cólera . -- Mas , minha rica senhora observa o eclesiástico Deus é bom , Deus compreende que as criaturas são de frágil barro . Todos neste mundo estamos sujeitos a fraquezas . -- Pois , quanto a mim , é um escândalo ! exclama , e volta-se para as outras bem alumiada pela luz . É a amiga mais íntima da Felícia . Juntas são temíveis . Nenhum doente lhes escapa . Esperam , espiam , compram os criados , intrigam e caem-lhes em cima , à hora da morte , pregando-lhes Deus , o inferno e as labaredas eternas . Alguns protestam . Debalde : as servas de Deus não desanimam , nem os largam . Rezam extensas ladainhas em livros encapados de negro , sentam-se dia e noite à cabeceira dos leitos , pregam , choram , chamam em altos gritos pela misericórdia infinita e subjugam-nos afinal , aterram-nos , matam-nos às vezes mas sempre salvos . A Felícia persegue até à última , com furioso rancor , os heréticos , seus inimigos pessoais . Chegara a odiar o filho por ser ateu e a expulsá-lo de casa . Nunca lhe perdoara , nem à hora da morte , a sua irreligião . Recusara-se a entrar no quarto onde ele agonizava e nem o próprio confessor conseguira arrancar à dureza daquele coração o perdão do desgraçado , que minutos antes da morte bradava em altos gritos pela mãe . Arrastara-se depois descalça nas procissões , deixando marcado a sangue nas lajes da vila o rasto de seus pés . Por orgulho não confessava nem a si mesma o remorso que crescia com os anos e com a aproximação da morte . As velhas sabem tudo que se passa na vila . Farejam os escândalos clericais e correm logo à diocese a denunciá-los ao arcebispo , que as teme como à praga . Na casa da Adélia há uma contínua roda-viva : vão lá à tarde todas as criadas da vila rezar o terço . E ela indaga , rebusca , espiolha o que se passa nas casas de fora e nas consciências alheias . E suspira : -- Ai não morro sem ver outra vez a Santa Inquisição ! A um canto estão outras mulheres e alguns homens nulos , um empregado da Câmara muito meticuloso , sempre vestido de negro . Seu crânio pontiagudo reluz como um espelho . Do céu barrado continua a desabar a fastidiosa chuva e a ventania abala as vidraças . A vida é um inferno de banalidade e toda aquela secura pesa sobre o pobre homem , que continua a gritar fincado no caixão : -- Lá a levam ! lá a levam ! ... -- Então , então , meu amigo ? ... Vamos ! -- Todos têm de passar por este transe ! -- Está no Céu ! Resigne-se ! então ! ... As velhas , imponentes nos seus vestidos de aparato , bocas somíticas e cuias de retrós dizem , só dos lábios para fora , as mesmas palavras vás . A luz do candeeiro quebra-se na careca reluzente do empregado camarário e a essa claridade as figuras parecem deformadas e monstruosas . -- Tudo tem limites intervém com indignação a Adélia até a dor . Resigne-se , seja cristão ! -- Não há nada pior que não acatar os decretos do Altíssimo . De vez em quando , uma velha ergue-se e vai em bicos de pés ver a morta . O caixão está no meio do quarto , com duas tochas ao lado e o crucifixo à cabeceira . Entram , espargem o cadáver de água benta e saem logo enojadas . Ao lado do esquife a Candidinha vela , sentada e embrulhada no xale coçado , figura de túmulo de guarda ao cadáver . Não diz palavra . As vezes do corredor escuro irrompe outra criatura , toda em lágrimas : é a criada , a Joana . Traz uma criança ao colo . Mas afastam-na logo , levam-na* de rastos , e ela lá vai com a pequena nos braços , aos gritos : -- Minha menina ! minha menina que fica sem mãe ! ... O cadáver apodrece , murcha entre as rosas de papel : lembra um passarinho num esquife enorme . Os olhos são duas manchas na palidez da face ressequida ; os dentes arreganham-se por entre os lábios roxos ... E as velhas fogem com o lenço no nariz , exclamando sem convicção : -- Está no Céu ! Só a Candidinha , embrulhada no xale , sem bulir , espera . -- Está no Céu , senhor||_Anacleto Anacleto|_Anacleto e meu respeitável amigo consola o padre e conclui : O que não tem remédio , remediado está ... E ele , sem querer ouvir , abraçado ao caixão : -- Deixem-me ! deixem-me ! ... Então o padre , ferido no seu orgulho , diz-lhe com severidade : -- Basta ! Homem , isso até lhe fica mal ! É um pecado . Lembre-se do que Cristo sofreu para nos salvar ! E aponta o céu . Arrancam-no enfim dali , numa explosão de lágrimas . Ao pé daquela dor sincera toma maior relevo a secura e a banalidade dessas mulheres , que só temem a Religião e , sobretudo , o Inferno . Perto do cadáver entre os móveis doirados que parecem mais reles com a ventania imensa lá fora todas estas figuras banais avolumam como figuras de tragédia : os ventres inchados parecem mais inchados ainda , as máscaras mais cansadas , e mais negras as bocas sem dentes que remoem . -- Ai que ma levam ! ... Tinha morrido na véspera . Nas últimas horas do dia nublado , ao sentir-se trespassada pelo pior frio , o da morte , chamara para junto de si a irmã , a Candidinha , uma mulher insignificante , envolta num xale gasto . Pelos vidros côa-se a luz baça do crepúsculo . Fora choram . A velha traça o xale , e a boca aumenta-lhe , avivam-se-lhe as rugas . -- A minha filha , peço-te ... diz-lhe a outra . E entrega-lhe um maço de cartas . A velha não responde . Um silêncio glacial . Na luz , que atravessa , antes de entrar no quarto , a espessura da água esverdeada , a Candidinha esboça um gesto de garra que se contrai . E a moribunda repete : -- Olha por ela ... Tu sabes tudo . A velha hesita ; depois vai de súbito à porta e fecha-a de repelão . Transfigura-se : dum jato sai daquela mulher amachucada e insignificante , uma figura de aço e ódio . Curva-se sobre a irmã e fala-lhe baixinho ao ouvido . -- Hã ? ... Não se ouve , mas tais palavras lhe diz que um suor de aflição cobre-lhe o suor da agonia . Senta-se e depois de a ter encarado cai para sempre , de chofre . Aquilo dura um minuto e um século . Ao pé da morte abre-se-lhe um abismo de desespero . A velha debruça-se sobre o cadáver , com o xale tombado aos lados como asas disformes , e numa sofreguidão repete palavras sobre palavras precipitadas para que a outra não vá sem as ouvir . Entra a sombra pelos vidros embaciados : um último estertor e a moribunda queda-se , com espanto nos olhos e lágrimas arrancadas a um coração já frio . A velha encarniça-se : -- Ouviste ? ouviste ? ouviste ? ... Prega a um cadáver , como quem fala para dentro dum túmulo . Quer contar-lhe tudo e não tira os olhos dos olhos vidrados da outra , que a escuta inteiriçada e fria . Morre vendo nos últimos minutos , não a mulher banal , com quem se habituara a lidar , mas outra desmedida e seca , atroz . Só descobre a verdade gélida quando penetra , transida de desespero e sem boca para gritos , no mistério da morte . Os olhos vítreos exprimem , porém , tal horror , que a Candidinha continua a falar , como se ela escutasse ainda : -- Ouviste ? ouviste ? ouviste ? ... Do túmulo não se protesta . A morte é muda não há horror que a transa . A Candidinha pode enfim desabafar , e as palavras sucedem-se-lhe na boca encostada ao ouvido daquele corpo , ressequido e murcho como o dum passarinho . -- Ouviste ? ouviste ? ouviste ? ... não cessa a velha de pregar . Cerra-se de todo a noite e ainda o monólogo continua . Na escuridão as asas do xale sacodem-se , imensas como as da Morte ... -- Ai que ma levam ! ai que ma levam ! ... A essa hora o caixão afunda-se na treva , levado a trouxe-mouxe pelos galegos de fumo negro no chapéu . Vão aos bordos e a névoa agiganta-os e deforma-os . Ao clarão das tochas o caixão parece a tumba dum gigante . Nem o esquife de Heine , nem a barca onde coubesse toda a desventura humana . Cheio de lágrimas levaria um mar e no entanto os galegos só acarretam um corpo mirrado de passarinho . Mas , como a névoa tudo aumenta , aquele enterro é caricato e lúgubre , e ao mesmo tempo formidável . Dá uma impressão dolorosa e pícara , sob as cordas ininterruptas de água , através da vila toda lavada em lágrimas . Lá a levam ! lá a levam ! ... Os anos passaram indiferentes e vãos , como o tempo que é um segundo , um século ou uma eternidade . As mesmas estrelas na abóbada infinita , o rolar sem fito do mundo , pedras que se esboroam , gritos , dores , lágrimas dores sem resultado , lágrimas que se perdem na terra , gritos que se não ouvem a cem passos de distância ... Passaram-se os anos inúteis , e as velhas continuam a reunir-se no mesmo casinholo , tão triste que parece habitado pela desgraça , e o Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto , estancada a dor , preso ao balcão , sentado e quieto como o piloto duma frota macabra , a vender os caixões que lhe atravancam a loja . -- Caixões para mortos ? Há-os de todos os preços ... -- Mostre ... -- Veja V. Exa este de mogno , marca acreditada ... Dourado , rico , ótimo ... É sua filha a morta ? E fixa os olhos inexpressivos na cara do freguês , que pergunta : -- E mais barato ? E ele indiferente e monótono : -- Também temos ... sortido ... Preço razoável ... E afaga outro esquife . Casquinha ... Não lhe&lhes+o aconselho , porém . Tem inconvenientes ... primeiro apodrece logo , segundo ... E , como o freguês sufoque de pranto , interroga-o com a mesma cara empedrada : -- Sempre é sua filha a morta ? -- Pois vai bem servido com este , palavra de cavalheiro . Mais caro , mas de dura . Obra de primeira qualidade . A sua morada ? Nada de incómodos , manda-se a casa do freguês . E fica a ruminar palavras sem nexo na loja de granito : V. Exa. . . grande abatimento ... minha filha ... ex.mo freguês ... Há existências inúteis , para quem a vida se reduz ao estreito âmbito formado pelas paredes que as cercam . Vivem por hábito . Sabem apenas exprimir-se com seis palavras rançosas . São um misto de papelada , de números , de ideias estúpidas e vãs , de frases gastas e falsas . Obra de primeira ... a minha filha ... ex.mo freguês ... Pode a dor revolver o mundo , que a máscara de pedra do Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto nem diante da catástrofe se altera . Sucedem-se os dias e os anos ; sucedam-se os séculos , que o velho não bole de entre os caixões , na loja de granito solitária ; estoire embora o planeta com os seus risos e as suas lágrimas , que , se num caco ficar de pé a vila perdida e submersa entre os vagalhões da serra ele continua sem sobressalto nem pasmo a vender os mesmos esquifes , com a mesma cara de estanho . À noite sobe e assiste à reunião das velhas ; de madrugada , desce , embrulhado no zézinho , para ouvir a missa das almas . Há criaturas assim : todas banalidade e inesgotável emoção . Porque este velho gasto e reles , amarfanhado , só pensa na filha . Não sabe o que lhe há de dizer . É grotesco . Pára diante dela , com a cara inexpressiva e os cabelos já brancos e pergunta : -- Hei de ser a tua mãezinha , queres ? -- Quero . E fica suspenso a olhá-la , sem saber dizer mais palavra . Depois acrescenta : -- Eras tão pequenina ... O que lhe custou a deixar-te ! Mas eu hei de ser a tua mãezinha ... E lá vai para a necrópole , sentar-se entre rumas de esquifes , com a pena atrás da orelha e os olhos espantados , o livro aberto diante de si : ex.mo freguês ... caixões de segunda qualidade ... data tantos ... A Joana criou-a , e passa horas a olhá-la , embebida . É pobre , humílima , sem lar , nunca teve filhos e pegou naturalmente a amá-la e a dar-lhe a sua vida . -- Minha menina ! minha menina ! ... De mãos postas , não se cansa de a olhar . -- Deixa-me , aborreces ! A vida no casinholo é sempre a mesma . Os dois velhos , a criança e à noite a Felícia , a Adélia , a Candidinha . No entanto há ali duas figuras que se entendem : uma o Anacleto ; a outra a Joana , feia e estúpida por fora carcaça reles , por dentro piedade a jorros . Unem-se no mesmo amor . Compreendem-se , ambas grosseiras , ambas sem quase saberem exprimir-se . Os dias são monótonos . Vêm os invernos e depois a montanha envolta em cerração ressurge esplêndida , por entre os telhados . Só os hábitos , a casa , as velhas não mudam . A Joana é estúpida e quase santa . Mãos calosas e sujas , olhos pequenos enevoados de lágrimas , uma pieira cómica na garganta e sobre isto tal emoção , que acodem , só de vê-la , as lágrimas aos olhos . -- Minha menina ! -- Vai-te embora ! Aborreces-me ! Não passa , é certo , duma criada , duma pobre sem lar . Andou sempre de casa em casa , vestida de grossa lã e com as pernas cascosas à mostra : de seus olhos pequeninos transborda a piedade . Afeiçoa-se põem-na na rua . E ela lá vai para outra casa , calada e humilde . Nunca teve filhos e por isso mesmo é sestro não encontra uma criança que se não deite a amá-la . Há patrões que a maltratam , vendo-a , velha e desleixada , apegar-se-lhes aos filhos e beijá-los . Ninguém faz caso da Joana . Há quantos anos ela anda assim de lar em lar , de casa em casa , de dor em dor ! Sorri desdentada até para os pequeninos que encontra ao abandono na rua . Já não se queixa nem se atreve por fim a tocar nas crianças das casas onde serve . Espreita-as . A vida ressequiu-a criou cabelos brancos a cuidar dos outros , a amar os outros , a dedicar-se , a sofrer e a ser posta na rua . As velhas , a Adélia , a Felícia , a Candidinha , metem-na , como a todos os pobres , na categoria das pessoas ordinárias . Ela também não se importa . Olha extasiada para a sua menina . E sorri , mostrando a boca sem dentes , os olhos pequeninos alumiados de ternura postos em Sofia , de quem foi segunda mãe . Seu cabelo parece estopa ; tem as mãos enormes e a pele gretada ; cheira mal que tolhe . Não se atreve a beijá-la . Queria uni-la ao peito seco e raso como as tábuas , mas a sua fealdade impede-a . -- E dizer que andei com esta menina ao colo ! -- Deixa-me ! E Sofia cisma , olhando as andorinhas que tecem ninhos no beiral saliente . Vêem-se à mostra os barrotes descarnados . É uma criaturinha insignificante e feia , de boca enorme . Seus olhos são tristes , mas sua boca sorri e toda ela exprime humildade e inocência ' . Criada entre a Joana e o Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto , nada sabe da vida . As velhas de tempos a tempos dizem dela : Meu Deus , como esta rapariga se tem posto feia ! Cisma lá no alto , no quarto , donde se vê a montanha imensa surgir de entre os muros ásperos da Sé e os telhados requeimados da vila : Meu Deus , porque é que eu sou feia ? pronta a cair nas mãos da primeira pessoa que lhe fale com ternura . E ao fundo na loja tanto caixão para mortos ! Há-os de todos os tamanhos e feitios , pequeninos e disformes . Há-os lúgubres , que só levam lágrimas para a terra , e os que acarretam mentiras leves como penas , pesados como chumbo . Uns que transportam a desgraça , a aflição , a dor e o ódio . Tudo que faz agitar o homem sobre este solo que calcamos , exaspero , sonho a que não basta o planeta , fé , lágrimas que tombaram Ãs levadas , tudo cabe entre quatro tábuas de pinho . A tragédia e a farsa , a ambição , infâmias e remorsos , a Vida enfim , lá vai ter sua última morada . Tantos caixões ! uns como barcos , outrospequeninos como folhas , leves como penas , pesados como chumbo . Tanto caixão ! tantos gritos ! ... As velhas estão juntas na sala . Banalidade , hábitos , gestos indiferentes . São criaturas egoístas e secas que se cumprimentam e odeiam : a Candidinha embrulhada no trapo , calada e hirta , com o filho , o Antoninho , ao lado ; o Anacleto sem dizer palavra ; a figura caricata da criada ; e a rapariguinha inocente , feia e triste . E quase as mesmas palavras , os mesmos ditos , a mesma bisca que a morte um dia interrompeu jogada sobre o porão onde os caixões esperam como bocas abertas na velha casa incrustada na Sé , batida da ventania , sob os frígidos aguaceiros , que descem da serra , corda atrás de corda . Mas há ocasiões na vida em que as figuras humanas adquirem uma expressão extraordinária . Basta que outra luz as ilumine diferente daquela em que estamos habituados a vê-las . Às vezes basta uma palavra e descobrimos um mundo novo que nos surpreende . O hábito é uma grande coisa : sem o hábito a gente morria de pavor ... Esta noite , à luz do candeeiro , a sala afigura-se-me um aquário com bichos disformes pousados no fundo . Pelas paredes a sombra alastra e sobe pelo teto como braços de algas monstruosas e encova-lhes os olhos sem expressão tornando-os maiores e mais fixos ; suas bocas enormes remoem como ventosas e a cara empedrada do Anacleto torna-se mais dura e mais impenetrável como a dum ídolo que presidisse Ãquela reunião de bichos temerosos . A história destes seres , o hábito e a inveja que é toda a história da vila há dois mil anos revela-a o claro-escuro melhor que nos quadros de Rembrandt , deformando os tipos , exagerando-lhes as papeiras e os gadanhos , avolumando-lhes as barrigas inchadas , os seios engelhados e todas as deformidades com ferocidade e grotesco , até ao ponto de nos mostrar a nu almas trágicas de monotonia e rancores até ao ponto de vermos remexer lá no fundo do poço animais gelatinosos , que vivem na água esverdeada sonhando na presa e remoendo sempre o sumidouro das bocas horríveis e frias como as dos cadáveres . A Sombra é um grande pintor . Se a rajada levasse o que a cova leva e desfaz a matéria e ficasse de pé o que é eterno , talvez recuássemos de espanto diante de tipos desconhecidos , de sentimentos desconhecidos , de almas nuas na sua beleza ou na sua esplêndida hediondez . Aquele casebre de granito enegrecido pelo tempo , há muitos anos que abriga os mesmos dramas . Cada figura traz recalcado e escondido sob um aspeto banal o seu sonho . Já a morta é pó , a criança cresceu , as velhas recurvaram e azedaram : só a pedra não mudou nem o tempo eterno : o ódio acumulou-se . Soou a hora : a catástrofe desaba e no entanto a Felícia , a Patrícia , as outras continuam como sempre , escravas do hábito , a reunir-se todas as noites de inverno . Os queixos agitam-se , estremecem as mãos , mais secas ; o Anacleto a um canto ressona , e a Candidinha imutável embrulha-se no xale e atende ... Segreda a Sofia , como se lhe repetisse uma frase de há muito anos : Ouviste ? ouviste ? ouviste ? ... E o velho relógio de parede , rape que rape , tosse de vez em quando as horas no escuro , marcando o estúpido tempo . E de vez em quando , no silêncio sente-se passar a lufada e desabar o enxurro . -- Não se quer confessar dizia Adélia , a propósito de alguém que está na agonia . -- Manda-se lá o padre||_Júlio Júlio|_Júlio . -- Já lá foi e nada . Morre impenitente . -- Vou eu lá diz a Felícia . Calam-se e olham-na surpreendidos . Ela explica : -- Alguma coisa tenho de fazer para que Deus me perdoe os meus pecados . Deus é grato a quem salva uma alma . -- Deus perdoa tudo . -- Tudo não . Amanhã vou falar com ele . Talvez o convença e Deus me perdoe os meus grande pecados . Ainda Deus é o menos o pior é o Diabo . Com o frio da velhice vem o terror da morte , levantam-se todos os fantasmas esquecidos e a figura do Diabo avulta e enche todo o horizonte . Se elas pudessem matar o Diabo com o cabo duma vassoura ! Talvez em tempo esse senhor fosse apenas uma palavra e mais nada talvez alguma o julgasse enganar e ele se deixasse enganar ... Mas agora o juiz severo carrega o sobrolho e o Diabo só espera que elas morram ... Todas têm de dar contas a Deus . Uma cometeu talvez um crime , outra não fez o bem nem o mal , outra deixou morrer o filho sem lhe perdoar nem à hora da morte ... E a morte como uma ventania já levanta e sacode todo o pó esquecido que deixaram pelo caminho da vida ... Há um instante de silêncio em que suspiram de angústia . Depois tornam a dizer as mesmas banalidades . E no fundo da loja ( nestes momentos todas elas os veem ) os caixões vazios esperam leves como penas , pesados como chumbo . Às terças aziagas aparece desde tempos remotos no casinholo lúgubre essa velha desmemoriada e ridícula , sempre com o Antoninho pela mão . Lembra uma ave molhada e sem penas aos pulinhos na sala . Esvoaça-lhe o xale e traz o chapéu à banda . Todos a acham sobremodo estúpida e cómica , com o filho agarrado Ãs saias , o olhar desorientado e vago e um aspeto reles . -- Lá vem a Candidinha ! -- Oh que praga ! ... E ela irrompe : -- Filhas , venho numa freima . Imaginem o que me havia de acontecer ... Filhas ! Ao vê-la , desatam a rir-se dessa figura amolgada pela desgraça , com o chapéu depenado e um riso postiço em que mostra os dentes todos cariados . É uma espécie de bobo que toda a gente escarnece e a quem se atira uma côdea por ser pobre e , sobretudo , por ser inofensiva e estúpida . Diante da velha podem-se contar as aflições , as chagas , as misérias , os exasperos tudo . Ela não ouve . Dai a minutos , troca as palavras , com um riso forçado , aos pulinhos pela casa , de xale esfarpado a rasto . Se estamos aborrecidos pelas contrariedades da vida , toca a insultar a Candidinha , a descompô-la , a amesquinhá-la . A sua miséria , a sua abjeção , a sua fome consolam-nos das nossas próprias desgraças . Tudo nela é efetivamente grotesco , até a narração aflita com esgares e o chapéu ao lado que costuma fazer da sua amarga existência para os outros se rirem . -- Conta alguma coisa para a gente passar um bocado da noite ... -- Ontem , filhas , deitei-me sem comer . Tinha uma coisa na boca do estômago a roer ... Uma ferida ... E eu sem saber o que era ! Sou tão estúpida que nem me lembrava o que tinha ! ... E em volta todos à uma gargalham da velha pelintra , que arrasta a sua desgraça pelas casas de fora , contando a este e Ãquele o que sofre , rasteira como os cães e rebaixando-se ainda mais para lisonjear as vaidades alheias . Se estão de mau humor , recebem-na com pedras na mão , despedem-na* , batem-lhe com as portas na cara , e ela lá se vai com o estômago vazio e o Antoninho atrás . -- É para aprender ! A velha leva , nas aflições , as pratas para o prego , paga os juros , faz os recados melindrosos que se não confiam Ãs criadas . -- Pode-se-lhe entregar . tudo . Oiro em pó que seja ! ... -- É porque é uma estúpida ! E a Candidinha anda e torna , sempre com a mesma figura arrepiada de tragédia , o velho xale esverdeado ao vento e um sorriso abjeto na boca . O Antoninho cresceu , com as calças muito curtas , amarelo e esguio . Nunca chora nas casas de fora . Recita versos , para que os outros , no fim do jantar , se riam dele e da mãe . As vezes surpreendem na velha um olhar duma secura atroz esguicho de ódio logo reprimido . Todos emudecem transidos . -- Tu em que estás a pensar , ó Candidinha ? -- Ó filhas ! ... Desculpai ! esta cabeça ! ... E dá uma explicação confusa . Dizem-lhe , nas imensas noites de inverno : -- Ó Candidinha , conta p ' ra aí misérias ... E logo a velha faz mais uma vez a narração da sua vida . Enchem-na de escárnio . -- Agora o Antoninho que recite , para a gente estar entretida . E o choninhas , de pé numa cadeira , diz versos sem mexer os braços , hirto e solene . -- Esta Candidinha sempre tem mais graça ! -- É estúpida ! -- Coitada ! Coitada ! -- Modos de levar a vida . Lá vai enchendo o papo ! ... -- Mas sempre rapa cada fome ! E durante anos e anos todos acharam aquela mulher esgalgada e seca , de chapéu ao lado e xale verde esgarçado , insignificante , ridícula e sobretudo estúpida . -- Lá vem a Candidinha ... -- Oh que praga ! Tem dias certos de aparecer . No dia da Candidinha quase sempre estão de mau humor . -- Ela aí vem ! -- Isso não falha . Tem sempre fome aquele diabo ! -- Tenho notado diz com importância a Felícia que esta gente pobre nunca está doente . Não se lhes pega nada , nem uma dor de barriga ! A coisa ruim não acontece desastre ! ... Só eu cá ando com os meus padecimentos há tantos anos ! ... Há muito que conheço esta Candidinha e nunca a vi queixar-se senão de fome . Um dia que Sofia bate no Antoninho , a velha ergue-se colérica ; -- Bate-lhe ! Bate-lhe tu nela , filho ! Só sabes chorar ! Bate-lhe ! Mas o Anacleto , que por acaso está de mau humor , grita : -- Bate o quê ? quem é que bate ? Cale-se ! Para que é que se lhe mata a fome ? Não seja desagradecida . Olha a grande coisa ! ... Que é que a minha filha fez ao seu pequeno ? Uma graça ! Minha rica , precisa de aprender ... E se lhe não serve , rua , que é a sala dos cães ! Na minha casa não dá vossemecê leis . Vem-lhe agora a soberba , a vossemecê que não tem onde cair morta ? Saiba ocupar o seu lugar . A senhora é pobre , não é ? Pois então seja humilde que a humildade fica bem a quem não tem um pataco de seu . Mata-se-lhe a fome está bem ... Mas seja agradecida . Sofre ? Pois tem de sofrer , que mais sofreu Nosso Senhor||_Jesus_Cristo Jesus|_Jesus_Cristo Cristo|_Jesus_Cristo para nos salvar . Para que é que eu sou rico ? É para a aturar à senhora ? ... E vá , de pequenino , habituando seu filho a sofrer ; crie-o para o que ele tem de vir a ser ... Ou o que é que a senhora imagina ? ... E a velha trémula , aconchegando o xale ao peito raso , com um sorriso verde e o Antoninho pela mão , acode logo : -- Não chores , filho ... Nós somos muito agradecidos aos nossos benfeitores . -- Vossemecê não se faça atrevida , ouviu ? ... -- Às vezes é a fome que me transtorna o miolo ... Nesse dia , a Candidinha não quer jantar . Parte , com a boca fechada , o Antoninho pela mão e o xale a esvoaçar na noite . -- Filho , não chores ... diz-lhe . Pega lá uma côdea ... É o nosso jantar . E as velhas na sala murmuram : -- Esta Candidinha está a fazer-se soberba ... E o pobre soberbo . Não há nada pior . Até a gente perde a vontade de dar esmola aos necessitados . Esta criatura insignificante fala pelos sete cotovelos com suspiros , ais , banalidades , para esconder , uma mixórdia confusa e sem nexo . Para ocultar o quê ? Babuja , beija agradecida as mãos dos benfeitores e pronuncia palavras duvidosas , que deixam a gente cismática . Os olhos fecham-se como à procura dum sonho , que só ela , no meio da sala , entrevê . Acontece surpreenderem-na falando sozinha . -- Coitada , não diz coisa com coisa ! ... A gente pobre precisa , na verdade , de se abaixar , mas ela exagera a sua abjeção : parece que goza em se sentir mais reles , em se amesquinhar a seus próprios olhos . -- Dêem-me a esmolinha ! a esmolinha ! intercede . -- Oh filha , tu não precisas de pedir com esses modos ! -- Então que sou eu senão uma pobre ? A vossa caridade é que me vaie . E cerra os olhos para que não adivinhem o ódio . Outras vezes mete-se de propósito na cozinha com as criadas . Um dia uma velha maldosa , visita da Felícia , surpreende-a a comer restos com sofreguidão . -- Esta Candidinha é que te vale ... tens aqui uma boa criada . E a Felícia acode : -- A Candidinha não é uma criada , é parente . Mas ela áspera , de pé , com um olhar estranho : -- Então que sou eu senão uma criada ? e muito agradecida ... A visita ao sair diz para a Felícia : -- Ai não a estragues , filha , não a estragues com mimos ! ... Os pobres querem-se como o que são ... E fechando a mão , conclui : Aperreados ! ... A fome faz rir , a desgraça faz rir . Ponham uma máscara à dor , desengoncem-na como um palhaço de feira , que a multidão cobre-a de chufas . A velha é um trapo arrastado por todos os desesperos e as lágrimas , a miséria , a catástrofe , ainda a tornam mais cómica . Não tem grandeza nenhuma . É inofensiva e , sobretudo , estúpida . Confunde a pelintrice e a amargura . A narração das suas desgraças começa no choro e acaba por gargalhadas . É certo que esta mulher podia fazer muito mal . Sabe alguns segredos : diante dela ninguém se retrai : mostram-se-lhe todas as chagas como se mostram aos cães . É que ela é , sobretudo , desmemoriada e estúpida . Passa fome . Podemos-la matar à fome . Ninguém faça caso da Candidinha , que não vale a pena ! ... Sempre desgraças ! sempre misérias ! Ela com a eterna lamúria , um bucho sôfrego e disforme e os outros ricos , felizes , repletos . Coitada ! coitada ! é uma estúpida ! Mal sabe ligar as palavras e já repararam para o riso idiota que traz afivelado na boca ? Decerto às vezes a figura não sei porquê lembra logo desastres . Arrepia . Quando mastiga , aquela bocarra negra faz aflição , e Ãs terças aziagas um calafrio irrompe com ela portas dentro ... É certa . Nunca falha o diabo ! Mas a gente precisa de fazer algum bem neste mundo , que é com o que se encontra no outro ! ... É parente , é velha , é um mau hábito : dê-se-lhe , portanto , de comer . Demais , é humilde , faz recados . Às vezes chega até a ser utilíssima . Ouve tudo o que se lhe quer dizer palavras de cólera e de desprezo . Até as criadas a tratam pior do que mal , tratam-na de resto . É uma estúpida , coitada ! ... Ora eu bem sei que todos nós somos mais ou menos atores para levarmos a vida a termo . Tudo na natureza cumpre o seu destino com gravidade só o homem é histrião . Apenas conheço duas maneiras de triunfar na existência : pela força , num áspero combate , ou pela manha aproveitando os defeitos dos outros . O triunfo para ela era uma côdea , e , para a obter , tinha de explorar a vaidade , o orgulho , as más qualidades da outra gente . Desengonçava-se para comer , amesquinhava-se para comer , fazia-se estúpida para comer . A gente é humilhada na vida ? Gosta também de calcar e lá estava a Candidinha a propósito . Ter , de vez em quando , diante dos olhos aquela velha caricata e rota , sentir piedade , rir da abjeção é mais que útil , é necessário . Conforta . A infâmia dos outros consola das nossas próprias infâmias . -- Mal dos pobres ! mal dos pobres ! Mãe e filho surgem à porta : as velhas , agarradas Ãs cartas , nem sequer erguem os olhos . Apenas a Patrícia murmura com desdém : É a Candidinha ... e tudo torna ao silêncio . O Antoninho , calvo e magro , senta-se no escuro , a mãe agacha-se ao pé de Sofia e o relógio de parede tosse rape que rape as horas imutáveis ... Durante alguns anos mãe e filho tinham desaparecido da vila . Um dia voltaram , ela mais consumida e gasta , mais magra , ele esverdeado e calvo , falando sempre baixinho . Cobriam-nos de chascos . Vêm para comer . Foram escorraçados ... Mas a Candidinha pela abjeção , pela humildade , pelo ar pelintra , desorientado e cómico , desarmou todas as más vontades , sofrendo todos os sarcasmos para não morrer à fome . Já afinal se dizia , com piedade : Esta Candidinha fazia falta ... E a banalidade imensa cobrira , amortecera todas as arestas . Correra o tempo , e o hábito desgastara até as cóleras mais resistentes . Seca , esgalgada , com as mãos metidas debaixo do xale , a Candidinha fica horas e horas ao pé de Sofia . Fala-lhe . Não se pode fixar a baba pegajosa com que a velha a envolve , as pequeninas frases , as palavras murmuradas ao ouvido , o rodar em torno dela , como uma aranha que constrói uma teia . A sua conversa amolece e escorre . Edifica dia a dia , cautelosa , frase que avança , palavra que recua ... Para se preparar uma infâmia é necessário quase tanta grandeza como para ganhar uma vitória . Os anos tinham passado e ela calada ; podia vir a morte e surpreendê-la na sua mudez . Andar mascarado uma hora é fácil , mas a vida inteira , entre a espionagem de criaturas desconfiadas e maldosas , é quase um heroísmo . Enganar as velhas exige uma tenacidade , uma energia , um carácter de ferro . Às vezes emprega-se mais esforço num pequeno nada que numa desmedida empresa ; gasta-se tanta tenacidade num caso fútil como numa obra imensa ... Quanto mais nessa comédia que dura há anos desconhecida , apagada , perdida numa terra de província , entre quatro estúpidos tabiques ! quanto mais nesse sonho que só se satisfaz com gritos ! A velha fizera um cálculo feroz : casar Sofia com o filho . E não desperdiça um minuto , uma ocasião , um pormenor . Ri baixinho e depois repete : -- Mal dos pobres , filha ! mal dos pobres ... -- Oh tia ! ... -- Tu sim que estás uma flor ! Quem te há de gozar ! ... A Patrícia fala baixinho Ãs outras e as suas mãos brancas remexendo no escuro lembram aranhas pacientes . -- Você corta ! A velha , ao pé de Sofia , mastiga palavras e depois põe-se a falar num jato : a bocarra remói , seus olhos parados de cobra não se despegam dos olhos de Sofia . Em baixo está a loja atulhada de caixões , bocas e bocas à espera de desgraça , de gritos , de catástrofes ... Corte ! ... ouve-se . E aquilo perturba-a , entontece-a , derranca-a . -- Quem há de gozar esse corpinho de fada ? ... torna a velha . Se tu ouvisses , filha , como ele fala de ti ... Não pensa noutra coisa mas é pobre ... Ouviste ? Ouviste ? E a estas palavras os restos dum cadáver ainda estremecem no sepulcro . Aquilo dura noites e noites dura anos , até que Sofia se perde . A velha atira-a para os braços do filho . Mas ninguém suspeita . Ela sofre , as outras continuam a jogar a bisca sórdida e mal dos pobres ! exclama a Candidinha , nessa noite , ao entrar na sala com o filho ao lado . Cada fio dessa teia cautelosa representa um esforço , um cálculo , uma vitória . Ninguém deu por isso . O tempo passou sem vestígios : hoje , como dez anos atrás , a sala é a mesma , as velhas as mesmas , idênticos os ódios e o tédio idêntico . Parece que há séculos se conservam curvadas sobre as cartas sebentas , ao clarão imobilizado do candeeiro . As coisas não se transformaram nem gastaram . O pó cobre os móveis intactos e os cães de vidro sobre os crochés das mesas . Entre o dia de hoje e outro longínquo a diferença não existe . Tudo se fez com uma lentidão pasmosa . A Candidinha cismou dias antes de pronunciar uma palavra , preparou-se meses para dar aquele passo . Mas as figuras , inalteráveis como as pedras , dir-se-ia-que não têm uma ruga a mais e que o hábito as conserva na sala escura , vestidas de negro , como se fossem retratos . Vê-se como sempre o grupo das velhas , o perfil seco da Felícia , a sua boca rancorosa , de lábios finos , as mãos batidas da claridade , agarrada Ãs cartas ; o olhar vazio da Patrícia ; repetem-se os mesmos trechos de conversa banal : -- Chove , hã ? -- Lembra-me sempre o dilúvio universal . -- Logo temos de aproveitar uma aberta ... De que valem gritos ? Ao fundo , no porão , a traça rói indiferentemente os esquifes de 1a classe , dourados , ricos , com galões e forros de seda branca , ou os de pinho barato , quatro tábuas sem plaina , cobertas à pressa de paninho preto , e na casa lúgubre , sob a enxurrada imensa , continua-se a jogar a bisca . Só ela sofre . Quatro paredes , os mesmos hábitos , as mesmas frases rançosas . Sofia olha sem ver , quase cega pelas lágrimas , atónita , aquela figura que lhe surge agora pela primeira vez na vida de entre esse mundo apagado . -- Trinta ! É uma rolha ! ... -- Olhem como ela canta nas vidraças ! O Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto cabeceia , embrulhado no zézinho , a Joana aparece à porta com a candeia na mão , magra , rota e desleixada como um esfregão de cozinha ; e a Candidinha curva-se sobre Sofia para lhe perguntar baixinho : Ouviste ? ouviste ? ouviste ? ... Sofia está grávida . E agora ? agora ? ... Aos dezoito anos começa a amargar a vida . Não a conhece ainda e já se alimenta de lágrimas . -- E agora ? agora ? Descalça , com os pés nus no lajedo , para que lhe não sintam os passos , espera-o à porta numa brusca madrugada de inverno . A claridade mal rompe a cortina espessa da chuva : a essa luz esverdeada de subterrâneo , as bátegas fustigam o granito em ondas sucessivas . Precisa de alguém a quem se ater . O frio traspassa-a . Fora a enxurrada estrupe , e o vento passa enovelando a água . Oh o que lhe queria dizer ! Nem sabe . Vêm-lhe gritos à boca , golfadas de dor mas só lhe saem as mesmas palavras repetidas : E agora ? agora ? E rapidamente , enquanto o Anacleto e a Joana ouvem a primeira missa , a das almas , trocam no portal um curto e desesperado diálogo : -- Mas então ? então ? Fala ! O Antoninho fita-a , e ela , embrulhada no xale , treme de frio e dor . Ele hesita : -- Então ... não sei ... -- Mas então agora ? ... E encosta-se à parede , sacudida de choro . Fora a água corre : o vento abala a porta . Ele faz um gesto , encolhe os ombros : -- Pões-te a chorar ? Fazes bem ! Com lágrimas é que estamos servidos ! -- Deixa-me ! -- Chora . Se isso te alivia ... E ela numa explosão de choro : -- A minha desgraça ! que desgraçada sorte a minha ! ... Enganaste-me ! mentiste-me ! -- Sabes tu que mais ! ... -- exclama ele aborrecido , sem palavras para lhe dizer . -- Vou-lhe contar tudo . -- A quem ? -- A meu pai ... -- Vai diz logo decidido . Queres-lhe dizer ? Mata-o ! -- Oh meu Deus ! ... Sofia sobe a escada . Deita-se com o cobertor sobre a cabeça e chora , chora , num estertor , com as mãos fincadas na boca para que a não ouçam , até que fica esvaída de lágrimas , esquecida de si mesmo e inerte . A desgraça é negra . É uma queda sem mão que nos ampare . Fartam-se as bocas de gritos , cegam-se os olhos de chorar e o buraco trágico e estúpido sempre à espera de mais lágrimas . A desgraça pesa e esmaga . Pior : absorve-nos ; impele-nos para desgraças maiores . A mão férrea que um dia nos toca , deixa para sempre vestígios impressos e um calafrio que não passa mais . O sabor a infortúnio guarda-se para toda a vida , não na boca , mas na alma ; a negrura álgida traspassa-nos dum frio pior que o da morte . Olhar pela primeira vez a desgraça apavora . É um estonteamento , um caos , mas até na desgraça se restabelece o equilíbrio . Chama-se a isso o hábito da desgraça . Sofia tem sempre a seu lado aquela voz : Ouviste ? ouviste ? ouviste ? E depois o jato de infâmia : -- Sabes lá , não te aflijas , menina ! No melhor pano cai a nódoa ! A mim em nova , sucedeu-me o mesmo fracasso ... E ri , a velha ri : sacode-a um riso que vem de dentro e que tem raízes no sonho que lhe transtorna por momentos a fisionomia . É ainda um riso baixo , que mal se atreve , prenúncio de outro maior , cheio de fel e triunfo . A Candidinha ri ... Muito longe , num mundo que já a não interessa , perdem-se as outras figuras : velhas em volta duma mesa , o senhor||_Anacleto Anacleto|_Anacleto , a sala abaulada , o vento a sacudir as vidraças . Perto a velha sórdida , embrulhada no xale , esfrega as mãos como duas tábuas uma contra a outra . -- São coisas que sucedem e quando a gente mal se precata ... Leve o diabo paixões ! Não chores , filha , que escusa ninguém de o saber ... -- Que sorte ! -- Não te aflijas , que estragas esse palminho de cara . E não confesses o teu erro , que escusa ninguém de o saber . Vais comigo para a quinta e aquilo é um descampado ... Ouviste ? ouviste ? ouviste ? ... Palavras ! De que serve falar à desgraça , discutir com a dor ? Dez horas no relógio rouco e lá no fundo a loja atulhada de caixões , de 1a classe , ricos , ótimos : de 2a classe , reles esquifes de madeira barata pequeninos e enormes , leves como penas , pesados como chumbo ... A desgraça deita-lhe as mãos , sacode-a e transforma-a : aquele mundo já a não impressiona . Arredou-se , perdeu-se , não a interessa , nem a prende , é uma fantasmagoria . Resta-lhe a dor e a Candidinha , que com o eterno xale esfarpado , a mão afiada no ar e o riso amargo na boca , se transmuda numa figura que enche o quadro sem relevo . Conta-lhe as rugas , nota-lhe particularidades que se salientam com uma precisão enorme . O xale parece que tem vida , o chapéu sem penas não é ridículo apavora . E as velhas querem espiá-la ... Hirtas , secas , maldosas , aí vão sentar-se à roda da sala , à espera que desate aos gritos . A Candidinha a seu lado não cessa : Ouviste ? ouviste ? ouviste ? Sofia olha transida : nunca vira a desgraça e sente-se palpada por suas mãos de ferro . Da banalidade , dos hábitos , das palavras sobre palavras inúteis , do casinholo de pedra , irrompe o quer que é de desconhecido e grande , que ela própria não compreende . A dor bate-lhe à porta , descarnada e imensa . Seus peitos são secos , seus olhos de aço . Até ai não passara duma criaturinha insignificante , de vida inútil : vai agora alguém acompanhá-la até o túmulo . Estava em riscos de ter aquela mesma existência estúpida : horas monótonas , a casa de granito , o Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto , a criada , frases repetidas , a felicidade e o asco . A dor salva-a . Gritar é viver : despedaçam-se e revolvem-se dentro em nós todas as raízes ; enche-nos a boca todo o fel do mundo ; os olhos todo o amargor do mar salgado mas o que há em nosso ser de inútil some-se e a alma engrandece . Só pela dor se vive . Ouviste ? ouviste ? ouviste ? ... Sob qualquer fútil pretexto a Candidinha e o filho a levaram daí a dias para a serra . Levaram-na e desde essa hora aziaga nunca mais se fartou de chorar . Tanto caixão para mortos e nenhum a quis . Uns pequeninos como berços , outros pesados como naus e onde caberia toda a desgraça humana . E todos à uma enjeitaram a sua desventura ! ... Véspera de S. Nicolau e toda a populaça na rua : uma mixórdia de grotesco e de caligens , de lama e gritos , de gestos confusos e de novelos pastosos que se acastelam lá no alto e barram o céu de horizonte a horizonte em pesadas cortinas sobrepostas . Vem a cerração e a chuva pegada e tão miúda que amolece o granito Das ruas irrompem sucessivos magotes , num clamor de inferno . Na noite ressoam gritos , urros , e clarões de archotes revoluteiam tornando-a mais densa e profunda : fisionomias e gestos surgem de repente como aparições e logo se somem no pez . É uma mescla de negrume e fogo , de braços que se agitam , de doida ventania e chuva cuspinhenta . Os tambores rufam sem interrupção dir-se-ia-que o planeta estoira farto de sonho inútil e do nada , iluminados a vermelho , brotam bamboleando e somem-se logo sem aparência de realidade , o arco medievo e a mole rendilhada da Sé , para depois a novo clarão ressurgirem só por momentos com a abóbada , o Cristo , as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam corpo e se amontoam nos vastos fundos onde o clarão não penetra . Uma derrocada em tropel , um jato vivo de escuridão , um burgo de sonho entrevisto que o vento leva consigo . A turba avança , a praça trasborda : há milhares de bocas que gritam ao mesmo tempo . Aquele mar humano oscila , cresce , clama e dispersa-se . Quando os archotes se apagam , fica só a noite e o ruído ; avivam-se os fogaréus e voltam a entrever-se as faces , as bocarras abertas pelos risos estúpidos , rasgados de orelha a orelha . -- S.||_Nicolau Nicolau|_Nicolau ! S.||_Nicolau Nicolau|_Nicolau ! ... É , na véspera da festa , o dia das posses , em que desde tempos imemoriais certas famílias estão na obrigação , que a populaça não perdoa nem perde , de dar , uns castanhas , outros lenha , vinho , pão , uma árvore . Forma-se o cortejo . Já estrondeiam os primeiros compassos da charanga , que desce a rua a passos marciais , archotes à frente . Um reboliço , mais berros , rufos desesperados , uivos , maltas que desaguam de outras vielas recônditas e a multidão que oscila e se espraia até à muralha da igreja . Em cima a abobada negra do céu goteja lama e as névoas arrastam-se lentas e esponjosas , bambinela atrás de bambinela , pegam-se Ãs paredes e deformam-nas , desagregam-se , suspendendo-se nas arestas do granito como grandes farrapos de luto . Os uivos redobram . O mesmo pé de vento parece que fez redemoinhar a canalha e galopar no céu os grossos novelos de fumo . -- A câmara ! aí vem a câmara ! ... Pendões balouçam-se , inclinam-se como velas sacudidas pelo temporal , a que se agarram meia dúzia de náufragos . Logo mais alto , se ouvem os clamores e a charanga ataca as primeiras notas duma marcha de guerra . Abre o cortejo o presidente do município , imponente e grave , com o pendão erguido ; seguem-no , solenes , o Pinheiro Careca e outros tipos cerimoniosos , de sobrecasaca e chapéu alto , sob a chuva incessante . Há um vaivém : a mó de gente empurra-se e rodopia , mas organiza-se afinal o cortejo , depois de desordens e protestos ; das tabernas irrompem os últimos matulas de suíças ; e o céu todo lama desce , desaba , imenso , gelado e fétido , sobre a triste humanidade . Fúnebre , lá consegue o Testa , de cara rapada e olho em alvo , abrir a marcha com o pendão erguido ao vento . O Careca pega com sofreguidão a uma borla , a charanga segue a passo cadenciado , e por último os magotes anónimos e confusos . -- S.||_Nicolau Nicolau|_Nicolau ! S.||_Nicolau Nicolau|_Nicolau ! ... E tudo aquilo , mar de uivos , treva , archotes , homens e fêmeas , urros e clarões , jorro desordenado e imenso , se engolfa nas ruas estreitas , numa interminável e ensurdecedora bicha . Aqui e além o fogaréu dum archote : dum lado a casaria , do outro a muralha antiga , compacta e bárbara , a que a noite dá dimensões monstruosas . A Candidinha atravessa a praça sem ver nem ouvir . Repelem-na , e ela segue absorta o seu caminho . Fala sozinha , ri , as mãos contraem-se-lhe . Vai para o gozo , vai para o ódio . Tantos anos calada e calcada , de boca espremida , atrás da côdea ! ... E agora vê o seu sonho de pé também eu o vejo na atmosfera que a envolve ... Se não fosse aquele sonho tinha cortado a língua com os dentes , se não fosse aquele sonho quase realizado que se lhe acumula sobre a cabeça , esvoaçando em farrapos como os farrapos das nuvens . É uma coisa disforme que na noite negra se entranha na caligem e a persegue projetada nos ares . Pode enfim desabafar ! Ri , corta a multidão , hirta , de negro , a saia esgarçada e o xale ao vento . Não vê , não ouve . Arranca pela primeira vez a máscara , mostra-se , grita cara a cara o seu ódio . E ri , corta a multidão e ri . Na sala estão os dois , o Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto e a velha frente a frente ; ele dormita , ela de pé , do outro lado da mesa , espera e goza . Vai falar ! vai falar ! diz lá por dentro . E seu coração bate como um tambor à carga . Sobre as duas figuras , a velha hirsuta , formidável , impiedosa , o velho gasto e empedrado , incide de chapa a luz do candeeiro . E a mesma sala embirrenta de sempre , os mesmos móveis puídos ; sobre o pano da mesa o cão de vidro olha esgazeado ; a um lado o canapé e à roda as cadeiras doiradas de casquinha ... Um minuto e só se ouve o coração da velha aos baques . -- Hã ? diz ele . -- Hã ? ... range a velha . -- A minha filha , há ? a minha filha quando torna ? Ainda a Candidinha com esforço se contém . -- No melhor pano cai uma nódoa ... -- Hã ? -- Não se aflija . Tudo se repara com o casamento , e você é rico . Ele não compreende . -- Eu estou pobre . -- Pobre ! -- Estou pobre . Tudo me tem corrido torto . Estou talvez em vésperas de falência . A minha filha que volte . Vamos mudar desta casa . -- Mas então você está pobre ? ! Você está pobre ? ! -- Traga-me a minha filha . São tantas as palavras que lhe acodem à boca que a velha não sabe por onde principiar . Resfolga . E o cenário banal , onde as velhas há anos jogam a bisca , assiste Ãquela farsa . Nas paredes impregnadas de tédio enfileiram-se as cadeiras doiradas por cima , reles por baixo . A luz ilumina as figuras o Anacleto estúpido , a Candidinha enorme e trémula . Foi tudo inútil ? Torna a bater o coração da velha , que já se não contém : -- Hã ? ... E respira sôfrega como se todo o ar da terra lhe não bastasse . A sua filha ... a sua filha ... E de súbito num ímpeto : Estou até aqui , sabes ? Estou farta de pedir côdeas ! E tira o xale dos ombros , como quem arranca a pele . Fica enorme , seca como a própria secura . -- Hã ? ... Ele não compreende : está afeito a ver uma Candidinha de comédia , pedinchona e ridícula , que se descompõe e despede , e a quem por caridade se mata a fome . -- Hã ? torna . E ela baixo , sôfrega , desesperada , endireitando-se , com outra voz , rouca , raspada , furiosa : -- Tu que imaginas ? tu que imaginas ? ... Isto era só ter regalos , mandar , atirar a côdea aos cães ? ... Isto era só calcar a estúpida , desprezar a estúpida ? ... Estou farta , meu rico , de ser uma escrava de pedir esmola ... E prega : Estou farta ! estou farta ! Mas não sabe , não pode exprimir tudo . É um montão de coisas imensas , desconexas , acumuladas , um jato de cólera e de infâmias que não pode romper para a luz . E ele olha sem compreender ainda aquela figura imensa . Então ela mais baixo exclama : -- A tua filha não é tua filha ! Precisavas de o saber ... A tua mulher enganou-te ! A tua filha enganou-te ! Era isto que eu te queria dizer . Vim aqui de propósito para to dizer . Podes ir buscá-la quando quiseres ... Queria-to dizer pelo que tenho sofrido toda a minha vida e sem poder abrir bico ... Eu a fazer recados como um cão e tu a dares-me esmola , hein ? O meu filho desprezado e com fome e a tua filha no quente , hein ? A tua mulher enganou-te , tenho aqui as cartas ... Há anos que as trago aqui no peito a escaldar-me , a remoer dia e noite sempre ... Em redor assiste Ãquele drama o cenário de sempre : as mesmas paredes , a mesa onde as velhas jogam há muitos anos . O Anacleto não percebe ainda , mas ergue-se num espanto . Nem a dor no entanto é capaz de lhe transformar a fisionomia empedrada . -- A minha filha ? ! a minha filha ? ! -- Está grávida , sabes ? Está grávida ! Agora se queres vai buscá-la . Estou farta de comédia . Um ano , outro ano e a besta a sofrer ... Desabafo ! Pega as cartas , trago-as aqui ! Torna a bater o coração da velha , que repete numa sofreguidão : -- Estou farta ! estou farta ! Atira com os papéis amarrotados para cima da mesa e sai , trágica e solene como o destino , com o xale a rasto . Vai-se e a porta em baixo bate com estrondo fazendo estremecer todos os caixões da loja . Traga-a a escuridão , some-a a lufada ... Para o fundo um uivo mais alto e um clarão de incêndio . O velho tomba esvaído , e tal é a dor que chega a sentir-se o embate do desespero sob a capa inteiriça de pedra . Há uma sufocação naquela alma : a princípio é o nada como uma árvore a que cortassem de golpe todas as suas raízes . Um negrume pior que a aflição , pior que a dor . A morte . Não fala porque se lhe estrangulam na garganta todas as palavras ; não grita porque não se lembra de gritar . Aquilo passa como uma impetuosa rajada revolvendo tudo , desordenando tudo , e há tal contraste entre as feições paradas e os olhos onde se lhe concentra o espanto , que a sua figura surrada atormenta e transe . O Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto , que passou a vida a vender caixões para mortos , dá de súbito de cara com a realidade : a mulher atraiçoou-o , a filha está desonrada e perdida ! Cai-lhe o queixo , agita os braços e rompe pela porta fora sem destino , com a cabeça descoberta , a gesticular . Não vê , não ouve , não sente . Fora a noite , na sua alma a voragem . Molha-o a chuva , o frio traspassa-o . Como é que se grita ? Vêm-lhe à ideia palavras sem nexo , a loja e o negócio , e no entanto o coração estala-lhe . Para que é que se grita ? E ainda não entende . Veja este caixão , obra asseada ... isto não é fancaria ... ora repare ... é o último preço ... E a dor revolve-o . O Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto nunca reparou nas lágrimas alheias : a morte fizera-se para vender caixões de 1a qualidade , de cedro e mogno ; 2a qualidade , de pinho e casquinha , e últimos preços , caixotes vendidos por atacado , para os mendigos e pobres do hospital , grande abatimento ... A minha filha ! E lá segue aos encontrões pelas ruas . Atasca-se na lama sórdida , perde o zézinho em que se embrulhou durante tantos anos . A má mulher ! a má mulher ! ... A canalha toma-o de repelão , traga-o entre as muralhas estreitas , esmagado naquele oceano de cabeças . A chuva despega-se do céu , enlameia-o , pegajosa e fétida . A turba ulula aos arrancos . Noite , lama , um inferno que apanha e leva também outro fantasma imenso , a velha que atravessa a vila sem ver nem ouvir , perseguida por um cortejo de ideias , de sonho , de exaspero que a envolve e a funde na caligem . O burgo medievo com o castelo no alto e as muralhas desdentadas abrangendo as ruelas fétidas . De vez em quando um buraco , um postigo , um pano intacto , que na sombra redobra de espessura , alumiado pelos clarões dos archotes . Granito , granito sólido , boeiros de treva , mais treva acastelada e a multidão que corre para um saque , desvairada , aos gritos , com os archotes em punho e as bocas escancaradas ... Escuridões longínquas remexem . A névoa envolve e traspassa , a chuva cai sobre a pedra e as ruas envolvendo tudo de fumaceira e mistério . E à medida que vão passando aos urros , o quadro desfila a negro e vermelho , os prédios , os becos , uma praça esganada entre muralhas que se perdem no céu , boeiros que esguicham mais gente e que se afundam na treva , coisas disformes que pertencem à noite e farrapos engrandecidos e misturados de névoa que transformam a vila num burgo de pesadelo , quase alucinatório : são escadinhas que sobem até ao céu ; é a quina duma torre toda ensanguentada à luz dos fogaréus , que bamboleia e recua para a treva ; é um novelo de casaria que estremece e avança , avivando-se pormenores que logo se perdem ; é outra fiada de casebres que surgem como palácios monstruosos e lá no fundo uma calçada a rever água que vai acabar num poço subterrâneo ; são nuvens esgarçadas que flutuam sobre o clarão dos archotes , tomadas duma vida estranha . O burgo parece enorme , o milhar de pessoas que se agita uma enorme multidão desorientada e as nuvens crepes a rasto para o luto duma catástrofe universal . Por fim um jorro humano estaca diante dum prédio emudecido e escuro , os clamores e a música cessam e a bicha , depois de ondular , atende ansiosa . Novelos sobre novelos as nuvens continuam lá em cima a sua desordenada e eterna correria sem fito . O pendão camarário oscila , há um baque , e , grave como quem cumpre um rito , o Testa destaca-se do grupo e avança limpando da careca o suor das grandes solenidades . Diante do prédio , no silêncio e na noite , três vezes chama : -- Cucusio ! cucusio ! cucusio ! ... Nada . Ninguém responde , e um frémito percorre a turba que espera sempre , milhares de cabeças erguidas no ar , as bocas abertas como peixes diante da casa negra e cerrada . Para o fundo no negrume outros , e mais outros envoltos na escuridão , atendem também como quem espera um milagre . E ouve-se no silêncio a chuva cair , miúda , pegajosa , eterna . Pela fresta duma janela lá se escoa por fim uma ténue claridade e ao fundo estremece , silenciosa e compacta , a canalha comovida e atenta , até que , avançando com imponência mais dois passos , o Testa , como quem invoca , implora e ordena , torna : -- Cucusio ! ... Sente-se abrir o postigo do prédio e uma voz comovida responde afinal ao apelo : -- Pronto , meus senhores , cá está o Cucusio ! ... E logo assoma ao peitoril do primeiro andar , alumiado pela chama vacilante da vela , um monstruoso traseiro como , desde tempos imemoriais , é obrigação daquela família , na véspera do santo , transmitida religiosamente de pais para filhos , mostrá-lo à vila . A charanga ataca o hino , os tambores ao mesmo tempo rufam , os urros estrugem , o pendão oscila levado pelo Testa , no alto daquela onda , e o Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto corre sem ver nem ouvir , desorientado . Anda e por fim , lá longe , a uma esquina , topa na escuridão com uma figura que mal se destaca da treva , como um farrapo arrancado à própria noite . Come a ferrugem o aço , corrói a desgraça as criaturas . Olha-o surpreso , como se pela primeira vez na vida se lhe deparasse um ser humano . E pára atónito . Sem saber porquê , sem razão plausível , o velho estaca ... É uma rapariga , envelhecida pelos tratos : adivinha-se-lhe a palidez , a fome e as lágrimas . É na verdade um farrapo de sonho todo transido de dor . O Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto detém-se atordoado diante da mão que rompe do escuro e implora . -- Que é ? que queres ? -- A desgraça . -- A desgraça , hã ? ... Que desgraça ! ? ... Remexe nos bolsos , fixa um momento a pobre que nem sequer responde . Cala-se . Já , de atascada na dor , não tem forças para gritar . Parece posta ali de propósito para ele compreender a vida , parece que a criou a noite e lhe&lhes+a mete pelos olhos dentro . E um farrapo que se põe a gemer baixinho , um farrapo criado pela dor e que já não pode com a dor , e que anda de mão em mão , como se a vida fosse para ser desprezada e calcada . O Sr.||_Anacleto Anacleto|_Anacleto , que passou seus dias a vender caixões para mortos , pela primeira vez tem a compreensão da desgraça . Quer dizer não sei o quê e não pode . Não sabe . A outra espera molhada até aos ossos . Nem talvez esta figura exista . Criou-a ele na imaginação e nela vê refletido o futuro da filha . A desgraça ? que é a desgraça que reduz os seres a esta expressão atormentada , que os reduz a gritos e a sonho , dando-lhes ao olhar não sei o quê que nos enche de remorsos ? Talvez nem esta figura exista ... -- Que desgraça ? de que desgraça é que me vens falar nesta noite de lama e uivos , que eu não compreendo bem , com figuras que me parecem fantasmas ? ... -- Pior que a fome ... -- Mas fala !