Abel Botelho Naquela noite de Março , desabrida e húmida , uma grande animação fervilhava alacremente ao fundo da Rua do Salitre . Era em 1867 . Frente a frente , as Variedades e o Circo Price alinhavam os seus bicos de gás festeiros , a que as vergastadas do noroeste impunham um tremelilhar inquieto . Quinta-feira -- noite de cabriolas com sobrescrito à fina sociedade . Enchente certa no Circo . De cada lado do portal da entrada , um semicírculo compacto de gente se agitava , tendo por centro cada um seu postigo de bilheteiro , e ambos por igual colados , premidos sofregamente contra a parede verdoenga do barracão , e arredondando pela rua fora , numa irregularidade gritada e confusa , a toda a largura do macadame . Tudo queria bilhete . Havia chapéus tombados , ombros que penetravam à cunha , braços arpoando vigorosamente os alizares castanhos dos postigos , mãos retirando triunfantes , muito erguidas , com um papelinho azul ao vento . A cada minuto a agitação crescia . Pregoavam água fresca , pastelinhos , tâmaras . de um primeiro andar , com tabuinhas verdes , logo abaixo do Circo , meninas de batas brancas suplicavam : -- Psiu ! Não sobes , ó catitinha ? -- aos janotas que passavam . Rodopiava no ar , a cada estocada de vento , um cheiro pelintra a iscas e a refogado . A iluminação profusa dos dois teatros doirava , remoçava , erguia as caliças octogenárias das Variedades , acendia espelhamentos fulvos no basalto húmido da calçada , e fazia entrever na penumbra , pela rua acima , o renque tortuoso dos prédios que subiam . De vez em quando , uma carruagem passava ; e no seu rápido passar entre os dois teatros , uma dupla fita de fogo lhe corria na fluidez do polimento . Um homem vagueava ali , contudo , que não parecia dar-se grande pressa em entrar . Ia e vinha , parava , escoldrinhava a multidão , passava automaticamente de grupo a grupo , nesta ansiedade tortuosa de quem procura com aferro alguém . No olhar , dilatado e teimoso , de uma secura inflamada e vítrea , fulgurava ardente a obstinação de um desejo ; ao passo que na boca a brasa do charuto , num labirinto febril de pequeninos movimentos bruscos , denotava que os lábios e as maxilas eram sacudidos nervosamente por uma forte preocupação animal . Devia de ser rapaz quem ele procurava ; porque os olhos deste homem alto e seco poisavam de preferência nas faces imberbes , levemente penujosas , dos adolescentes . Fitava-os um instante , com uma fixidez gulosa e sombria , e desandava logo para outro lado . Percebia-se mesmo , ao cabo de alguns minutos de observação , que ele não procurava determinadamente alguém . Ao contrário , parecia comparar , confrontar , escolher . Se havia garotos por junto dos quais passava rápido , após um olhar furtivo , havia também outros a cuja descoberta lhe arrepanhava as faces a mais pungente sensualidade . E então , com estes , não havia meio que não empregasse para lhes ferir a atenção . Roçava-os de leve com o braço ; tocava-lhes a coxa com a bengala , como distraído ; postava-se-lhes ao lado , fitando-os com o olhar seco e vítreo , persistente ; soprava-lhes na nuca uma baforada de fumo , ao passar . Todo este jogo , -- é de saber -- , feito sempre sonsamente , com cautelas de hipócrita , com astúcias felinas , todo sabiamente intervalado com olhares perscrutadores em torno ... não fosse por aí aparecer e surpreendê-lo alguém conhecido . E , de cada vez que o jovem interpelado se afastava , aborrecido ou indiferente , o noctívago caçador de efebos lá seguia em cata de outro , cortando os grupos , atravessando a rua , numa incoerência de vertigem , não se sabia bem se tiranizado por um vício secreto , se esmagado por uma feroz melancolia . Um bom velho de ar marcial , vermelhinho e gordo , bigode e pera negros , bateu-lhe no ombro : -- Bravo , barão ! ... Rente Ãs quintas-feiras ... É como eu . -- Ó coronel ! -- balbuciou o barão , levemente perturbado , cumprimentando , -- isso é que é zelo ... pelo culto das belas . -- Ai ! Ai ! ... Com elas é que eu me quero . Já agora hei de morrer assim ... A esposa , boa ? -- Boa , obrigado ... Não quis vir . -- Já tem bilhete ? São horas . -- Eu não entro por ora . Logo nos vemos , lá dentro . Um impulso da onda que entrava separou-os . O barão deu de frente então com um rapazito que vendia pastéis . Teria quinze anos . Pele morena , olho aveludado , tipo insinuante de marnoto , camisola de xadrez azul e preto , calça branca muito justa , à frente uma grande cesta vestida de oleado , em cujo interior destacavam de uma alvura de toalha várias gulodices . Como viu o barão encará-lo com insistência , o rapaz naturalmente aproximou-se : -- Quer pastelinhos , freguês ? E oferecia-lhe o cesto , donde vinha um cheiro morno a canela e a manteiga . O barão porém respondeu-lhe : -- Não , filho ... não quero pastéis ! -- com um acento , uma expressão tão nuamente lúbrica , que o rapaz retrucou , num tom de desprezo sacudido , dando-lhe as costas : -- Olha que gajo ! ... Você comigo engana-se ! O barão circunvagou rápido em torno com a vista , a ver se alguém teria ouvido , e rodou viscoso , manso , para longe , infiltrando-se , anulando-se na massa anónima daquela multidão turbulenta . Aproximara-se do teatro das Variedades , onde retinia o sinal de começar o espetáculo . Tinha entrado quase tudo ; os retardatários premiam-se ao fundo do corredor estreito que dava para a superior . À porta , dois contratadores apenas , um polícia , e , sentada no último degrau sobre a rua , uma velhota , de tabuleiro à frente , coalhado de quanto há de mais pelintramente indigesto em matéria de doçaria , com uma vela protegida por um cartucho de papel cor-de-rosa . Dali o barão , um pouco à vontade , mais fora do alcance de encontros inoportunos , continuava a perscrutar com um exclusivismo ardente as imediações do Circo fronteiro . Ao descortinar na sombra dos extremos da rua qualquer escorço vago de adolescente que viesse a crescer , aproximando-se , o seu olhar piscante de míope contraía-se numa crispação suprema de expetativa angustiada , e seguia-lhe vorazmente os movimentos , até poder analisá-lo , adivinhá-lo bem na conformação , no tipo , na plástica , no modo de vida provável , nas predileções sensuais do temperamento , quando o rapaz entrava na zona duramente iluminada pelo renque de bicos de gás tremebrilhando sobre o portal do Circo . No melhor de um destes alheamentos fervidos de pederasta , o barão estremeceu . Mão amiga lhe pesara no ombro , enquanto uma voz familiar lhe perguntava em ar de adorável reprimenda : -- Que faz você por aqui a esta hora ? Era o seu leal e velho amigo , Henrique Paradela , que , com a mulher pelo braço , descia tranquilamente à Baixa . O barão ia-se traindo . A súbita aparição daquele par bondoso , honesto , simples , caindo de repente , com toda a galharda e lúcida expansão de uma vida exemplarmente calma no torvelinhante mistério da alucinação do seu vício , envergonhou-o , aclarou-lhe a razão , deu-lhe a medida do próprio aviltamento , e , como um raio de luz faiscando nas estalactites de uma caverna , acordou-lhe na consciência um repelão de remorso . Corou , atabalhoou , agitou-se , e após uns segundos de arreliante embaraço , mal conseguiu balbuciar : -- Estou à espera de uns rapazes ... Combinámos vir ao Circo hoje ... Mas demoram-se . -- Não sei como ainda há quem ature esta maçada , -- comentou Henrique , apontando com a bengala o portal do Circo . E o barão , um nadinha humilhado : -- À falta de outra coisa ... -- E depois , para a esposa de Henrique : -- Como está vosselência , minha senhora ? -- Eu bem . E a Elvira ? Quase ao mesmo tempo , Henrique perguntava : -- Há cá hoje algum trabalho novo ? -- Não , -- disse o barão ; -- isto foi por não termos para onde ir . -- E então vens esperar os teus amigos para este lado ? -- Sim , bem vês ; aqui , longe do apertão , vejo melhor quando eles chegam . -- Pois nós vamos à Baixa . A Leonor anda há dias para fazer umas compras ... Aproveitamos hoje , que me apanhou mais desembaraçado . -- Imagine , barão , -- acudiu , num abandono íntimo , D. Leonor , -- os pequenos estão sem ter que calçar ; eu também preciso umas miudezas ; e depois de amanhã casa-se aquela minha criada , a Joaquina , que me pediu para ser madrinha do casamento , e eu tenho de lhe dar alguma coisa . -- Muito louvável , minha senhora , muito louvável ... -- apoiou o barão , já outra vez empolgado pelas degenerescências do sangue , e fixando com avidez um efebo que vira despontar das bandas do Passeio . O amigo convidou , todo afável : -- Vem daí com+nós ! -- Ó menino , não posso , bem vês . Combinámos ... Desculpem-me ... E daí , talvez tenham chuva . A noite não está boa . -- Toma-se um trem . Isto de hoje não pode passar . -- Adeus , -- rematou D. Leonor , estendendo a mão ao barão . -- Muitas recomendações à Elvira . E depois de amanhã não faltem ! -- Por modo nenhum ! -- corroborou Henrique , apertando também a mão ao amigo . -- Adeus ... Olha que o espetáculo já começou . Efetivamente , nas imediações do Circo rareava o público e o pejamento da rua desaparecera . Na frontaria farrapenta e mesquinha daquele barracão verdenegro , os dois óculos de venda dos bilhetes , agora a descoberto , fulguravam como olhos de ciclopes , quentes e vermelhos . O noroeste frígido recalcava as lufadas de ar quente , no portal escancarado . Vinham perder-se dilatadamente na aspereza húmida da noite as últimas sonoridades metálicas de um galope cediço . Um estalo de chicote vibrava branco , de vez em quando . O barão , atraído pela sensualidade do espetáculo , foi comprar bilhete . Enquanto o bilheteiro lhe fazia o troco , o bom do velho Price , sentado ao fundo do cubículo , gordachudo e flácido na grande luz do recinto , os dedos entrecruzados beatificamente sob o ventre , dormitava . Lá dentro a função , a despeito do cartaz berrante , seguia com a monotonia do costume . Depois de uma voltigeuse banal furando arcos de papel de seda , um intermédio cómico pelo primeiro clown , prodígios de equilíbrio de uma criança sobre um arame , cães sábios , barras fixas , um salafrário num cavalo em pelo . O barão , por um fenómeno aliás frequente na dinâmica dos sentidos , arrefeceu , acalmou ; e numa intercadência de bom senso , filha de uma reação salutar do organismo , sentiu que se aborrecia muito sofrivelmente . Pôs-se então a olhar pela centésima vez os escudetes das colunas que sustentavam a cúpula central , e a contar as tiras de paninho , alternadamente azuis e brancas , irradiantes do fecho do teto , em cuja curvatura , sete anos antes , quando fora da inauguração , tão engomada e tão lisa , um ou outro rasgão indiscreto começava a pôr escarninhamente a certidão de idade . O último trabalho porém da primeira parte reacendeu os instintos pederastas do barão . -- Família de acrobatas . Cinco : um hércules monolítico e façanhudo , um rapazola magro , de ossatura agressiva ; uma mulheraça toda expluente de adipos ; uma criancita franzina , sem sexo , amedrontada , frouxa ; e um efebo extraordinariamente elegante . -- Fatos cerces de malha cor de carne , modelando escrupulosamente as formas , dando uma impressão do nu quase flagrante , realçada nos mais leves detalhes anatómicos por bem calculados efeitos de luz Drummond . Faziam trabalhos académicos ; reproduziam as composições célebres da estatuária clássica . A rápida sucessão dos grupos , arquitetados a meio da arena , sobre um velho tapete , na crua incidência da luz do magnésio , tinha uma viva arrogância de animalidade , sugeria as demências quentes do sensualismo pagão . A um tempo viril e doce , impetuosa e lânguida , efeminada e rude , aquela mobilidade atormentada , vertiginosa , artística , ensopava os nervos numa alta voluptuosidade , seduzia como uma hetera e dominava como um herói . O barão , todo nos olhos , seguia avidamente a pantomima . Hipnotizava-o principalmente o belo efebo , com o seu rosto de um talhe impecável , o seu colo alvo e redondo , os seus grandes olhos de veludo negro , o seu corpo sólido mas enxuto , de carnes escorrentes , todo em curvas levissimamente cheias , todo num contorno de músculos suavíssimo , numa linha plástica sedutora , todo quebrando-se em não sei quê de feminilmente ondulado e grácil , que a ginástica afinara e consolidara , irrepreensivelmente . O barão sorvia-lhe , um a um , os movimentos , e em cada atitude , em cada pirueta nova lhe descobria um estímulo , uma sedução mais . O desejo mordia-lhe os nervos . A fascinação tornou-se completa , doida , quase dolorosa . Sócrates não ficou mais inteiramente subjugado , ao seu primeiro encontro com Alcibiades . No intervalo , o barão saiu excitadíssimo . Latejavam-lhe as fontes ; via vermelho ; na imaginação dançava-lhe a figura do jovem acrobata com uma insistência de alucinação , com uma nitidez material e implacável . Cá fora recomeçara o alarido . Chovia . Abriam-se guarda-chuvas , e ouviam-se , disparadas contra o céu carrancudo , pragas de arrelia . Numa mercearia ao lado , a gente da geral comia pão com queijo e decilitrava . Os garotos insinuavam-se pelos grupos , gritando : -- Senhas mais baratas ... Quem vende a senha ? -- O barão tomou para o meio da rua , instintivamente . Sentia-se mal ; tirou o chapéu ; queria que lhe fustigasse o cérebro o ar fresco da noite . Nisto , chega-se-lhe um garoto : -- Vai-se embora , freguês ? Quer vender a senha ? O barão olhou-o , distraído , mas ficou logo fascinado , com o olhar preso ao do rapaz . Se ele era a viva estampa do efebo que acabava de ver trabalhar ! -- Os mesmos olhos , a mesma estatura , o mesmo colo , a mesma elasticidade grácil , o mesmo ritmo adorável de movimentos . -- Disse-lhe , repondo o chapéu , com os lábios a silvarem desejo : -- Dou-te a senha e dou-te dez tostões ; mas hás de vir comigo . -- Aonde ! ? ... -- Aqui ao largo do Passeio ... Quero-te dizer uma coisa . -- Como passaste ? ... comentou agre o garoto . E afastou-se a correr : -- Quem vende a senha , quem vende ? O barão não tugiu ; porém , daí a minutos , estava novamente de volta com o rapaz : -- Então , queres ou não queres ? ... A senha e dez tostões . E o rapaz , enfadado : -- O senhor deixe-me ... já lhe disse . O barão não insistiu ; mas teve ocasião de reparar que , no franzir colérico dos olhos do garoto , uma nuvem se lhe esbatera sobre as faces , longamente . Era a sombra dos grandes cílios , fartos e sedosos . Tanto bastou para que , passados pouco minutos , ele estivesse de novo ao lado do rapaz : -- Olha lá , pela última vez ! ... Dou-te quinze tostões ! ... Chega aqui ao Passeio . Se não vens , arrependes-te ... Quinze tostões ! O rapaz encarou-o muito , entre compassivo e espantado ; pareceu refletir ; e por fim resmoneou : -- Então , ande lá adiante . Daí a pouco , o barão , encostado ao muro do Passeio , na quina oriental , frente à Rua das Pretas , tratava com o rapaz das senhas um diálogo animado e estranho . Propunha-lhe o que quer que fosse , -- coisa pouco do agrado do jovem ; porque , à torrente de palavras do interlocutor , ele apenas opunha de onde a onde um meneio negativo de cabeça , ou mastigava baixo : -- Está doido ! ... Eu não , senhor ! -- Chovia ainda . Quando a água apertava , logo o barão , muito solícito : -- Chega-te para aqui . -- E ficavam os dois resguardados pelo mesmo guarda-chuva . E a arenga continuava , suplicativa , doce , muito persuadente , armada toda numa retórica inflamada , corrosiva , ignóbil . Tratava-se por certo de algum projeto infame de sedução . A certas frases , que o barão lhe coava mais baixo no ouvido , o rapaz tinha com o braço um gesto de repugnância , o rosto vincava-se-lhe de desgosto , e afastava-se . Mas a eloquência do barão era inesgotável ; acendia-lhe efeitos , argumentos novos , a veemência do desejo . Um Demóstenes do vício . Gradualmente , a inconsciência tímida do gaiato foi sofrendo o império da vontade dura e firme do aliciador . O rapaz agora escutava manso , com uma atenção resignada , passivamente ; enquanto o sedutor falava , falava sempre , com os olhos afogados em volúpia , os pés irrequietos e o longo bigode cofiado tremulamente pelos dedos emaciados . A arenga prolongou-se por mais de uma hora , interminavelmente . Já terminara a função no Circo . Rodavam os primeiros trens , e a multidão vinha escoando do Salitre para o largo , apressada , muda , apagada na monotonia dos abafos . Crescia um grande ruído de pés espatinando a lama . Raro , algum grupo de rapazes , lestos , corpinho bem feito , fumando , soltava na quietação pardacenta da névoa o trilo de uma risada . Então o barão , dando uma pequenina moeda de ouro ao rapaz , intimou : -- Não faltes ! -- apertando-lhe com força o pulso . E separaram-se : o pederasta leve , orgulhoso , radiante , com a esperança a luzir-lhe nas feições ; o efebo cabisbaixo , vergando a um problema , pensativo , contando as pedras da calçada , grave , meditando . CAPÍTULO II Quando entrou em casa , na saleta habitual dos serões , o barão proferiu , no tom frio e breve de quem se desobriga de um dever banal : -- Boa noite , Vivi ; -- enquanto deixava cair maquinalmente um beijo nos crespos eriçados sobre a testa pequenina da baronesa , que lia com interesse Madame Bovary . Depois , logo a seguir , afundou-se pesadamente na macieza de um fauteuil . -- Boa noite ... Então que tal ? -- retorquiu a baronesa , erguendo indolente os olhos do livro e sorrindo para o marido com uma indiferença amável . -- Uma sensaboria ... Não volto lá tão cedo . Bem fizeste tu em preferir Ãquela palhaçada tão vista o conchego da tua casinha e a companhia leal dos teus livros . -- Ah ! e então que livro , este ! ... -- exclamou a baronesa num profundo acento admirativo , retomando com delícia a leitura interrompida . -- Gostas ? -- Nunca li nada que me tocasse tanto ! -- E enovelou-se toda na cabeceira da chaise-longue , uma das pernas dobrada , colhida graciosamente sob o tronco , num gesto friorento de avezita ; as mãos sobre o regaço , preguiçosas , deixando os dedos jogar distraidamente com os anéis ; as pupilas traçando num vaivém rápido o paralelismo das linhas que iam devorando no livro , poisado sobre uma mesinha baixa de charão . -- Sabes tu quem eu vi ? ... -- disse o barão , querendo armar conversa . -- Os Paradelas . Porém a baronesa , cortando logo : -- Sim , sim , mas deixa-me ler . O gás estava apagado . Apenas iluminava a saleta um alto candeeiro de bomba , de bronze esmaltado , estilo bizantino , com o globo fosco vestido por um para-luz tenuíssimo de papel-japão . Estava sobre a mesinha , junto ao livro , vertendo em torno um cone muito restrito de luz . O maior do aposento , -- águarelas , chinesices , faianças ornando as paredes ; fotografias , revistas ilustradas , álbuns , quinquilharias galantes abarbando os consolos , as estantes polidas a negro , o contador embrechado ; móveis esparsos numa desordem estudada , o piano , flores , porcelanas caras , -- mergulhava tudo discretamente na penumbra , tinha os contornos adormecidos num claro-escuro de pacificação e castidade . Só Ãquele cantinho morno e preferido , entre o biombo e a parede , na incidência próxima do candeeiro , realçavam , numa claridade repousada e honesta de interior de Gerard Dou ou de Van Eyck , um trecho da alcatifa , curvo e afilado como um crescente , o espelhamento opalino de um velho prato suspenso da parede , um ou outro avoejo exótico de laca e oiro no verniz da mesinha acharoada , e a viva mancha adorável da cabecita pequena e redonda da baronesa . Era um desses tipos de mulher delicados , miudinhos , frágeis , picantes à força de subtilização e de nervos , que apetece à gente ao mesmo tempo contrariar e amar servilmente , acariciar e destruir . Uma figurinha de Saxe , luminosa e frívola . Os olhos , grandes , entre o cinzento e o verde , um tudo- nada metálicos , tinham uma translucidez enxuta , saudável , forte , que raro , num trémulo conchegar de pálpebras , humedecia um espasmo breve de volúpia ; o nariz , impercetível , fino , erguia-se na base em arrebite , num leve jeito provocante , entre malicioso e altivo ; na testa , desanuviada , lisa , pequenina , não havia notícia da passagem de um pensamento grave , de um minuto reflexivo , de uma justa noção do Dever ; e pela curva da face , de uma alvura crassa de leite , subia de cada lado , do mento Ãs fontes , a sinuosidade azul de uma veia tenuíssima . Um conjunto fascinante de juventude e graça , de petulância e mimo . O barão , fatigado , arreliado , quente , o coração palpitando forte , e o cérebro e as mãos a arder , saboreava um alívio e uma doçura imensa na tranquilidade muda do recinto . Mal apaziguado ainda das tumultuárias emoções da noite , o remanso dormente da sua casinha embalava-lhe a carne estimulada numa acalmação voluptuosa e emoliente de banho a 33 graus . Mas não era bastante ; se os sentidos se lhe normalizavam , a alma continuava estrebuchando numa exaltação dolorida . O silêncio exasperava-o . Queria um derivativo psíquico , uma mutuação qualquer de ideias , o bálsamo de um comércio espiritual , sincero , íntimo , todo afabilidade e abandono . Por isso aventurou para a baronesa , numa súplica impertinente : -- Então , não me dizes nada ? ... Deixa agora o livro . Ao que ela , contrariada , sem desfitar da leitura : -- Ora , muito obrigada . Não andaste por lá sem mim , entretido até agora ? ... Pois deixa-me ler . E a boca vincava-se-lhe aos cantos , muito acre , e as veiazitas da face coravam-se-lhe de roxo , ligeiramente engrossadas . Portanto , o silêncio pesou novamente , esmagador , absoluto , na quietação implacável da saleta . Ao seu cantinho predileto , enovelada sobre a chaise-longue , a baronesa não despegava de ler . Guardava-a do ar da porta próxima que , do lado da cabeceira , dava para o quarto de toilette , um alto biombo de preço , com os seus cinco panos , de cetim preto , sobriamente bordados de aves pernaltas , gramíneas capilares e florinhas ténues , em matizes de um realce maravilhoso , em desenhos da mais solta e delicada fantasia . Do lado da cauda , a chaise-longue entestava com uma parede toda lisa , no sentido do comprimento da casa , tendo um grande espelho doirado ao centro ; distribuídos em volta , na mais harmoniosa das desordens , quadros , suspensões , bugigangas , velhas porcelanas ; encostadas , duas estantes com livros ; e , em ângulo contra o extremo oposto , um piano de cauda sobre um estrado . Era uma parede interior . Seguia-se-lhe outra mais pequena , adornada também de quadros e com uma porta fronteira à do quarto de toilette , dando para o gabinete de trabalho do barão . Esta porta era flanqueada por duas grandes colunas torcidas de pau-preto , farfalhudas de parras , de cachos , de anjos em regueifas , com dois vasos de Perusia ao alto , desgastados , sem brilho , granulosos , de um estilo puríssimo e de uma lendária antiguidade ; e Ãs duas porções laterais da parede dois magníficos consolos encostavam , abarbados de coisinhas preciosas , -- pagodes de marfim filigranado , retratos queridos em molduras de pelúcia , miniaturas de esmalte , bronzes , conchas , lacas , cinzeiros de malachite . Depois , paralela à parede lisa interior , havia a exterior correspondente , com duas amplas sacadas dando sobre o jardim . No intervalo destas , ressaltava um contador índia embrechado , de pernas oblíquas , lineares , singelíssimas , todo atropelado na severa amarelidão da sua teca por correrias de monstrosinhos de ébano , rasteiros , ventrudos , rabiosos , a cauda em ponta de dardo , a língua a sair num jato da goela a escâncaras , o olho de marfim , branco e redondo . Para cima , vestia a parede um espelho esguio , de moldura de ébano , biselado . Aos dois cantos , para lá das sacadas , a folhagem glabra e tenra de dois philodendrons naturais espadanava em leques luxuriantes de grossos vasos de faiança do Rato , postos sobre velhos tamboretes persas , de cedro e madrepérola . Nos reposteiros , feitos de bourrette espessa cor de madeira e oiro , sinuosava também um desenho persa complicado . Sobre os vãos das sacadas , a temperar a luz externa , desciam muito sobrepostas , orlando a bourrette interior , cortinas finíssimas de tule creme com aplicações a branco . Junto da porta do toilette , um pouco à frente , um cavalete vieux chéne sustinha , meio afofada nas pregas de uma colcha secular da Índia , uma tela , assinada Lupi , com um retrato em busto da baronesa . E por baixo do grande espelho doirado espreguiçava-se um largo sofá de pelúcia de linho azul-escuro , esquadrado em volta por uma tira de seda cor de oiro velho , e tendo a um lado , erguida nas mãos sobre a espalda cilíndrica , uma figura minúscula de mandarim , escarolada e risonha , posta graciosamente a espreitar . Meia dúzia de móveis mais , arrastando ao acaso na alcatifa , cujo tom sanguíneo dava um destaque vivo de petulância à cor tranquila do recinto . No papel cinzento-adamascado das paredes alisavam-se lampejos de aço , esbatidamente . Do teto branco de estuque um lustre pendia , de bronze . Saboreava-se a quintessência do conforto e do agasalho naquele ninho mimado de elegância . E todavia o barão estava mal , sentia frio . Era tão flagrante , tão profunda a discordância entre a brutalidade animal dos seus instintos e a doce quietação , o familiar abandono , a feminina graça de tudo quanto o rodeava , que , agora , dissipada a primeira grata impressão da entrada , aquela pacificação hostilizava-o , arreliava-o , dava-lhe toda branca , em cheio , nas turbulências sinistras da sua alma doente , e fazia-o sofrer . Ergueu-se de repente e começou a passear . Então a baronesa , breve : -- Tens aí os jornais para ler . O barão , maquinalmente , veio sentar-se de novo , junto da luz , no mesmo fauteuil , e procurou ler a Gazeta de Portugal , em que colaborava . E assim , na mudez discreta da noite , na voluptuosa penumbra da saleta , aqueles dois esposos , na aparência tão próximos , ambos novos , ambos amantados na carícia do mesmo ambiente perfumado e morno , obstinavam-se longe , muito longe um do outro ; ele galopando o destrambelhamento do seu vício ; ela deliciando a imaginação e envenenando os sentidos na tragédia dissolvente de Madame Bovary . Era lógico . Derivava naturalmente da índole , da educação , das condições de ligação dos dois esta situação mortificante . O barão garfava por enxertia duplamente bastarda em duas das mais antigas e ilustres famílias de Portugal . Assinava -- D. Sebastião Pires de Castro e Noronha . O dom trazia-lhe origem dos Castros , carugento apelido castelhano , evo de oito séculos , que passara ao nosso país , ainda mero feudo leonense , por ocasião do casamento de D. Fernando , filho do rei -- Portugal e Galiza , D. Garcia , com D. Maria Álvares , senhora da vila -- Castro Xeris , e descendente de Laim Calvo , o afamado jurisconsulto . É de saber que este glorioso talo genealógico dos Castros , refolhou , em Espanha , nos condes -- Lemos ; e , entre nós , nos condes -- Basto , de Mesquitela , de Monsanto e de Resende ( primeiros almirantes-mores do reino ) , e nos senhores do Cadaval . Deu ainda tão preclara cepa da nossa horta heráldica esse lendário grelo da isenção e da honra , que foi o grande D. João de Castro . Mas a casa de Monsanto não era vergôntea legítima : apurou-se isto da larga contenda batida por D. Álvaro Pires de Castro , senhor das Alcáçovas , contra seu tio , também D. Álvaro Pires -- Castro , senhor -- Arraiolos . Contestava aquele a este o uso das armas direitas dos Castros , por ser uma degenerescência bastarda no bracejamento fidalgo da família . E o caso é que , desde então , tanto os condes -- Arraiolos , como os Castros de Fornelos e os de Melgaço , ambos seus descendentes , deixaram de usar o escudo primeiro da casa , -- treze arruelas de azul em campo de oiro , -- passando a ter por divisa apenas seis arruelas , e em campo de prata . Escarolavam nesse tempo do segredo tépido das alcovas para a bisbilhotice oficial dos símbolos brasonados as diferenciações no estalão moral das grandes famílias solarengas . Era o que podia haver de mais meticulosamente fútil e de mais superfluamente ingénuo . Mas era claro , ao menos . Sabia a gente com quem tratava . Não se tinha inventado ainda a carta de conselho para galardoar alcoviteiros e nobilitar ladrões . Em tempos de D. João III , 1541 , preparava-se em Lisboa , com destino à Índia , uma esquadrilha de cinco navios que devia comandar Martim Afonso de Sousa , o herói de quem a tradição refere que recebera de Gonçalo de Córdova a espada , de que nunca mais abriu mão . Fora ele nomeado sucessor de Estevão da Gama no governo dos nossos domínios asiáticos , e preparava-se-lhe um luzidíssimo cortejo de homens de algo . Queria-se honrar dignamente o benemérito guerreiro , cujo nome já então doiravam sobramente altos feitos cometidos no Brasil , no mar das Índias , na ilha de Repelim , em Ceilão , na costa do Malabar . Um dos Castros de Monsanto , então na corte , homem de terras e de dinheiro , foi insinuado ao rei como devendo embarcar . O sombrio e fanático monarca não o via de feição . Surpreendera-o uma vez , à missa , rindo . Pouco depois , como tivessem chegado a Portugal os quatro primeiros padres da Companhia de Jesus , o desastrado Castro permitiu-se pôr em dúvida , na frente do rei e da nobreza , a austeridade e a pureza de intenções dos padres jesuítas . O soberano agastou-se . Para mais , três desses jesuítas , -- e um deles era S.||_Francisco_Xavier Francisco|_Francisco_Xavier Xavier|_Francisco_Xavier , -- embarcavam já com rota ao Oriente na esquadrilha de Martim Afonso , para missionar . -- Que fosse o Castro ! Era quase certo que ao cabo dessa longa viagem na salutar companhia de tão santos varões , ele estaria convertido . -- E o rei achou bom , indeclinável que o zombeteiro áulico saísse de Lisboa ; não inquinasse ele de heresia a católica subserviência da corte da sua majestade fidelíssima . Grande obra de piedade -- fazê-lo embarcar . -- Que fosse ! Mas o pobre fidalgo era mole , doente , linfático , poltrão . Tinha um pavor invencível ao mar . Andava , ainda por cima , perdidamente enamorado por D. Branca de Noronha , servilheta , e , -- dizia-se , -- filha bastarda da casa dos Noronhas , -- outra nobre família antiquíssima , prendendo nos reinos -- Leão e de Castela , muito fundo , as raízes da sua estirpe . Correspondia-lhe por igual a formosa menina , -- temperamento manso , resignado , sonhador , todo feito de passividade e modéstia , reclamando a calentura constante de uma forte proteção , afetuosa e discreta , que a envolvesse numa calmaria tépida de estufa , para viver . Uma noite , ausentes os Noronhas em sarau do Paço , propôs-lhe o amante fugir . Aceitou . E , dias depois , a cara de ordinário torva de D. João III caliginava-se , furibunda , ao saber que o cortesão em desfavor , desprezando o mandado de embarque , se fora alcandorar , com uma nobre virgem raptada , na penhascosa e abrupta solidão do seu castelo de Monsanto . Pensou em fazê-lo render-se , mandando-o cercar . Difícil . Tinha o Castro leais , valentes e numerosos servidores . Monsanto , -- espessa coroa mural de um alto mamelão lascado a pino , -- era de natureza inexpugnável . E depois , o rei na ocasião preocupava-se demasiado com a Reforma , contra a qual prorrompera , de colaboração com Carlos V , numa guerra implacável , e com a deflagração sinistra dos autos-de-fé . Depressa esqueceu o rebelde , em cujos braços morria , após dois breves anos de um fervoroso idílio , a sua dedicada e doce amante . Desta romanesca mancebia porejou um filho , que vinha a ser o sexto avô do nosso barão de Lavos . O atavismo fez explodir neste com rábida energia todos os vícios constitucionais que bacilavam no sangue da sua raça , exagerados numa confluência de seis gerações , de envolta com instintos doidos de pederasta , inoculados e progressivamente agravados na sociedade portuguesa pelo modalismo etnológico da sua formação . A inversão sexual do amor , o culto dos efebos , a preferência dada sobre a mulher aos belos adolescentes , veio-nos com a colonização grega e romana . Nos Gregos a pederastia era uma paixão comum e de nenhuma forma desprezível . Cantavam-na e celebravam-na publicamente . A obscena invenção de Ganimedes , príncipe troiano de uma beleza maravilhosa , arrebatado e transportado ao Olimpo pela águia de Júpiter para substituir Hebe , a hetera divina , no serviço particular dos deuses , dá o documento frisante de quanto era honrado o efebismo na antiga Grécia . Este vício era mesmo trivial em todo o Oriente . Na mitologia indiana há um episódio análogo ao rapto daquele favorito de Júpiter . Refere o Vaschkala , um dos upanischads do Rig Veda , que Indra em pessoa empolgou , com um gesto fulminante de ave de presa , o jovem Medhatithi , transportando-o depois Ãs mais afastadas e mais sagradas culminâncias através dos mundos e dos céus . Os Romanos imitaram , e excederam por conseguinte , os povos mais velhos do Oriente no gosto da pederastia . Ao tempo de Augusto , o amor de homem para homem era a mais banal das paixões . Muitas vezes , na risonha península da Etrúria e do Lácio , o véu da amizade encobria infamíssimas torpezas ; pensava-se que a reciprocidade no gozo sensual era o melhor laço para o coração de dois amigos ( + ) . Julgava-se a amizade dependente de um apetite lascivo , conjugada com a ligação carnal . Os grandes modelos de dedicação fraterna que nos oferece a História , -- Castor e Pólux , Pirítoo e Teseu , Pilades e Orestes , Alexandre e Efestion , Harmódio e Aristogíton , os dois filhos de Adiátorix , os nossos dois Ximenes , Antínoo e Adriano , Pátroclo e Aquiles , -- não passam os mais deles de espécimes aberrativos de mútuas complacências libidinosas . De Roma é claro que a paixão dentro do mesmo sexo alastrou para as colónias . A contaminação era fatal . Sofreu-lhe os efeitos a Península Hispânica , mormente no sul e no oeste , aonde mais demorada e mais poderosa foi a influência etológica dos Romanos . Depois vieram os Bárbaros do Norte inocular sangue novo no derrancamento crapuloso do império . A transfusão foi crudelíssima . Operaram , destruindo . Mas por trás da arrogância bestial da sua arremetida vinha apontando a generosa unção de um mundo novo . Aquela treva aparente mascarava uma alvorada . Eles traziam da penumbra druídica das suas florestas os elementos sociais que faltavam ao Ocidente gasto e decrépito : a liberdade pessoal , a sinceridade da crença , a disciplina , o valor , a ordem , a consagração da virtude , o respeito da família , o amor pela mulher . A regeneração foi prodigiosa . Dos escombros da assolação ergueu-se , -- pura , sadia , idealista , ingénua , -- a sociedade medieval . Contudo , nesta reparação salutar dos povos latinos o gérmen mórbido resistira , latente . Mais tarde , a civilização árabe pô-lo a claro ; depois , o abuso do monaquismo e das expedições náuticas longínquas favoreceram-lhe o desenvolvimento , agora piorado do apeganho ruim da cronicidade . Compreende-se como centenas de homens válidos , desviados da labuta habitual da vida e mantidos em contacto reciproco permanente ; com a imaginação e a carne falando alto , excitadamente , na eterna ociosidade da clausura ou na estreita e forçada permanência a bordo ; sistematicamente afastados do comércio de qualquer ordem com a mulher , tinham de por força procurar iludir artificialmente , em ascoentas aproximações de uns com os outros , as iniludíveis exigências dos seus instintos sexuais . Daí a desvirtuação dos sexos ; a obliteração das funções genésicas ; o amor saciado grotescamente , incompletamente ; a luxúria olhada como um fim , como uma regalia sensorial da carne , em vez de ser cultivada na compenetração do seu trabalho sagrado , como um simples meio de provocar a gestação . Na última integração da sua fisionomia social os conventos não foram mais do que isto , -- uma criminosa burla ao dinamismo prolífico da natureza , uma cravagem de centeio mística , um veto espiritual à maternidade . Eram casas toleradas de prostituição , defendidas pelo lema hipócrita do voto . O mundo antigo era mais franco . Na Grécia os efeminados varriam galhardamente com as suas caudas de púrpura as lajes das praças públicas , sob a luz magnânima do Sol ; no mundo latino os tonsurados , do primeiro cardeal ao derradeiro fâmulo , erguiam furtivamente o burel ou a seda na sombra cúmplice dos claustros , e entregavam-se baixando os olhos contritos perante as imagens de Deus . Com a diuturnidade da causa , o mal prosperou , azedou , enraizou-se , alargou sobre a geração de hoje um império feroz e dissolvente . No barão de Lavos confluíam poderosamente as qualidades todas do pederasta . Quando tinha dez anos , entrou para o colégio de Campolide . O seu pai , velho cortesão cheio de tédio e de dívidas , viúvo , refarto de alçapremar traições num sorriso , de farricocar o ódio em graciosas mesuras , de espremer a bolsa em proveito de parentes e caloteiros , resolvera sair de Lisboa , descansar , fugir aos prazeres , à intriga , ao mundo que conhecia de sobra . Foi-se para Lavos , onde possuía excelentes propriedades em salinas , campos e florestas , a refazer a fortuna e a endireitar a espinha . O filho , entregue à douta proteção dos jesuítas , no seu ponto de vista , ficava bem . Por ocasião das férias , acolhia-o com alvoroço , retinha-o com amor , dava-se a estudar-lhe interessadamente os progressos na educação . O rapaz era inteligente , amigo do estudo , -- mesmo talentoso , -- arriscavam-lhe confidencialmente , em breves períodos lardeados de reticências , os astutos precetores . -- E dava-lhes cuidado , -- acrescentavam receosos , -- regurgitava de seiva , precisava ser dominado de princípio , aliás corria o risco de se perder . Mais de uma vez , por noite alta , os prefeitos tinham surpreendido o menino fora da cama , abancado à mesa , a face colada a uma luz asfixiante de petróleo , fumosa e lívida , todo numa febre de improviso , a cara camarinhada , o olhar ardente , a mão trotando no papel , a fazer versos profanos . -- Tinham-no castigado , -- estivesse descansado . A verdade É que D. Sebastião saíra uma organização privilegiada de artista . A uma retina infalível no apanhar o lado belo das coisas juntava uma larga capacidade imaginativa , uma acuidade dilacerante do sentimento plástico e um poder veemente de expressão . Com o penujar da adolescência veio-lhe o impulso de verter nos companheiros as demasias da sua alma generosa e ávida . Amou alguns dos colegiais que lhe orçavam pela idade . Foi excessivo . Destas cenazinhas adoravelmente ridículas , que são triviais nos colégios , -- trocas de solilóquios inflamados , cartas , exorações , amuos , rancores , ciúmes , pugilatos , ensaios precipitados de cópula no palmo quadrado das latrinas , -- de tudo teve o futuro barão num grau exagerado e quente , a que a sua compleição débil e requintada vestia o máximo colorido . Quando o seu desejo se concentrava , inconfessado , tímido , ardente na pessoa de um colega a quem por qualquer circunstância ele não podia ou não resolvia declarar-se , então o desgraçado sofria insónias horrorosas , durante horas e horas intermináveis , de costas na cama , a narina aflante , a pálpebra leve , os olhos arregalados para o teto na escuridão cava da noite , os dentes rangendo rápido e o corpo todo vibrante no arrepio de uma crise nervosa fatal , obsessiva . Quase sempre uma evacuação seminal , provocada por ele próprio , ou , as mais das vezes involuntária , e determinada sem prazer , por uma irritação quase dolorosa , punha termo , no quebramento cortado de sobressaltos da madrugada , a este estado cru de excitação . Depois , pelo dia adiante , era o mau humor , a mudez , as olheiras lustradas de roxo , um pouco de dispneia , o refúgio no isolamento , a repugnância ao estudo , o adormecer nas aulas . Uma vez , um colegial , que ele amava imenso , disse-lhe por fim que sim , que estava pronto a corresponder-lhe , mas por forma que ninguém soubesse , e então -- que fosse de noite ter com ele à cela . Combinado . O Sebastião deitou-se e esperou , todo a tremer , sem poder conciliar o sono , que o seu relógio marcasse as duas da manhã . Então levantou-se , abriu a porta da cela , aventurou um olhar de lince a todo o comprimento do longo corredor deserto , e saiu , cosido à parede , sorrateiro , os pés tartameleando perros no tijolo ... Quando , passada uma hora , regressava ao quarto , pilhou-o a lanterna do prefeito de ronda . Foi castigado rudemente . Nem por isso deixou de continuar . Aos dezasseis anos , saía do colégio para a vida exterior com as propensões viciosas pioradas . Alto , esgalgado , seco , -- ardia-lhe na cintilação febril dos grandes olhos negros o furor perpétuo , mordente , insaciável do Desconhecido ; e a cada um destes incêndios ferozes da pupila correspondia instintivamente um abrir das mãos descarnadas e um trémulo agitar dos dedos , nervoso , inflamado , adunco , uma como ânsia de apalpar a Vida . Conformação feminina : -- cabeça pequena , ombros estreitos e descaídos , bacia ampla , rins muito elásticos , pés metendo para dentro . O rosto , de um alvo rosado lanugento e macio , tinha uma expressão menineira e ingénua , um ar tocante de fragilidade e doçura . Mas não inspirava simpatia ; traía-lhe a inconsistência do carácter a linha apagada , miúda das feições . O olhar era de ordinário baixo ; não cruzava com firmeza ; e sempre que sentia um outro olhar a interrogá-lo fito , as pálpebras desciam logo , a garantir-lhe a inviolabilidade do abismo . Quis estudar mais . Continuou em Lisboa , cursando a Politécnica . No intervalo das aulas , ia pelas bibliotecas ou amarfanhava-se em casa , lendo tudo quanto podia apanhar . À medida que se lhe desdobrava o espírito , definia-se , afirmava-se-lhe a característica , roboravam-se-lhe as predileções plásticas , a qualidade sensorial dominante . No modalismo da natureza interessava-o principalmente o sensível , o tangível , a face pagã , material das coisas . Por isso , a despeito do seu fundo etiológico de pederasta , cultivava com frequência as mulheres . Mesmo entre uma mulher bonita e um efebo atraente , não hesitava : preferia geralmente a mulher . Procurava sempre e acima de tudo a linha , a forma , a beleza emocional aparente , quer fosse num seio virgem , quer num músculo bem fibrinado , quer num cristal perfeito , quer numa florinha delicada , num trecho vivo de paisagem , num encastelamento de nuvens fugidio . Quando contou vinte anos , rogou ao pai que lhe permitisse fazer uma viagem ao estrangeiro . Concedido . E o rapaz partiu , trépido de entusiasmo . De Madrid seguiu a Paris ; depois visitou a Itália . Nesse afortunado passeio pelas civilizações irmãs da nossa , tudo quanto respeitava à Arte constituiu a melhor porção do seu estudo . O maior do tempo gastou-o no interior dos velhos monumentos , nos museus , nas coleções particulares , nos bazares exóticos , nas lojas de bric- à brac . E aí , na religiosa paz desses salões consagrados , que horas de sublimado gozo , de contemplação inefável ! Estátuas e quadros que figurassem a nu belos corpos de adolescentes , estonteavam-no . Trouxe-o doente da mais cega paixão , dias seguidos , o célebre Antínoo descoberto em Roma no século XVI , no bairro Esquilino , que ocupa hoje no belvedere do Vaticano um gabinete especial , e é das melhores obras da antiguidade que o tempo nos poupou . Maior que o natural , deslumbrante na lisa alvura do mármore , ele inclina a cabeça levemente e dealba no sorriso uma expressão graciosa e fina , que faz um contraste adorável com a vigorosa envergadura do arcaboiço . Misto inexprimível de morbideza e força , de energia e doçura , esta figura preciosíssima realizava para Sebastião em êxtase uma tão perfeita harmonia de conjunto , que ele ficou-a tomando sempre por modelo das boas proporções da figura humana . Mas muitas outras estátuas do belo favorito de Adriano impressionaram fortemente o futuro barão de Lavos . Mesmo no Vaticano , mais duas ainda : uma figurando-o de deus egípcio , o olhar hirto e parado , a curva do lótus no sobrolho , o cabelo todo em anéis colados Ãs fontes , paralelos ; outra singelamente coroada de gramas e nas mãos as insígnias agrárias de Vertumno , fresca e robusta . Uma outra em Roma , no Capitólio , trazida da antiga villa -- Adriano em Tivoli , representando o formoso escravo , que as águas do Nilo sepultaram , com o rosto repassado de melancolia , os olhos grandes e magistralmente desenhados , a cabeça também inclinada ligeiramente , e em torno da boca e da face esvoaçando uma perfeição de contorno ideal . No Louvre , uma com os atributos de Hércules , da mais altiva elegância ; outra com os olhos de pedras finas e sobre as espáduas um manto de bronze , largamente panejado ; e uma terceira , sedutora , com o largo chapéu , redondo e baixo , de Mercúrio , meia túnica deixando descoberto um braço soberbamente modelado , a perna cingida por botinas de coiro , a coxa inteiramente nua , opulenta e suave . Várias figurações de Ganimedes tocaram-no igualmente , a saber : a encantadora estátua em mármore de Carrara , do Vaticano , achada em Óstia em 1800 ; o famoso Rapto de Ganimedes , de Rubens , no museu real de Madrid ; o fresco de Carrache , em Roma ; em Florença , a tela de Gabbiani . O mesmo com o célebre Aquiles , em mármore , do museu do Louvre , soberbo estudo do nu pertencente à época chamada do estilo sublime , e que passa por cópia de um trabalho de Alcamenes , o discípulo predileto de Fídias . O mesmo com os Narcisos , os Batilos , os Hermes , os Adónis , os Evangelistas , as Madalenas , as Fornarinas , -- com os motivos mais humanamente plásticos de todas as religiões e de todos os tempos . De tudo isto comprou quanta reprodução lhe apareceu . Voltou com o gosto educado , apurado , sábio , e com a sede dos largos prazeres ignorados a chamejar-lhe cada vez mais mordente nos grandes olhos negros . A estupidez pacata do nosso meio exacerbava-o , estimulava-lhe a fantasia . O que a contingência externa lhe não dava , D. Sebastião arrancava-o encarniçadamente a um trabalho desfibrinante de evocação interior . Criava , sonhava , concebia caprichos inverosímeis , que ora conseguia realizar a muito custo , ora se limitava a saborear , mercê de um longo dispêndio imaginativo , na solidão da sua alcova . Em 1860 morreu-lhe o pai . Ele era filho único e único representante daquele ramo da família . Tomou conta da casa , -- uns quatro contos de renda , se tanto , -- e continuou desperdiçando loucamente a juventude em aventuras galantes , em pândegas , em devassidões imprevistas . Para mais , um desvio fisiológico , -- uma diátese úrica que lhe espessava e abastardava o sangue , -- dava-lhe uma facilidade simpática de adaptação a todas as vis aberrações da carne . Um dia começou com ele a saciedade , o tédio . Acalmou , viu claro . Conheceu que , a continuar assim , ia entranhar-se , dissolver-se irremissivelmente na treva das ínfimas degradações , como um caminhante que deixa a estrada rútila de sol , lisa e direita , para entrar num emaranhamento negro de floresta . Teve medo . Lembrou-lhe então casar ... Sorriu à ideia . Seria uma emoção nova ; seria principalmente , com a sua imposição de deveres sacrossantos , um freio , uma norma séria e digna de viver . O casamento pois fascinou-o , como variante e como corretivo . Ora , entre as famílias das suas relações , frequentava particularmente o barão a casa do Sr.||_Inácio_Miguéis Inácio|_Inácio_Miguéis Miguéis|_Inácio_Miguéis , antigo negociante de panos , vivendo anchamente do passivo de uma falência fraudulenta . Ele , a mulher e duas filhas casadoiras . Destas a mais velha , Elvira , não deixava de agradar ao barão . Irrequieta , nervosa , branca , pequenina , ressumava de todo o seu ser miudinho e frágil uma complexidade picante de mistério . Era o Desconhecido ; era um problema vivo , -- e delicioso problema ! -- a decifrar . Fez-lhe o barão a corte . A rapariga no fundo não passava de uma burguesita imensamente leviana e sofrivelmente ignorante , extremosa mas fútil , não tendo da moral a compreensão mais estrita , e cultivando assiduamente por igual na janela do seu quarto os namoros e os amores-perfeitos . O natural era excelente , liso na intenção , apontando ao bem , simples , claro . Formada numa educação menos absurda que a lisboeta , podia ter dado uma mulher exemplar . Nem sensual , nem desequilibrada . Alma grande e inteligência estreita . O que queria era que a amassem , era ter que amar ; porém na acanhada circuição do seu espírito este desejo não violava os limites postos ao amor legítimo pela religião e a lei . Assim , ela não namorava por vício , mas por cálculo , na ânsia de realizar perante Deus e os homens a sua inclinação natural . E no namorado não via nunca o macho , não apetecia o homem ; delineava , futurava o marido . Casar era o seu sonho doirado ; casar com um fidalgo , -- a sua primeira aspiração de burguesa . -- Se este barão me quisesse ! ... Isso sim ! Lembrava-se lá ! ... -- Bem lhe tinha ela já feito a diligência . -- Mas qual ! Por isso também , quando percebeu que o barão a requestava , ia estalando de alegria , coitadita . Foi naquela casa uma alegria doida ... Breve , casaram , em S.||_Cristóvão Cristóvão|_Cristóvão , perto do palacete do barão . Julgaram-se felizes nos primeiros tempos ; mas , a pouco trecho , o encanto da novidade tinha quebrado , a etiologia moral do barão seguia fatal na sua escala deprimente . Veio-lhe a fome irresistível dos hábitos antigos . Recaiu neles , agora com todas as precauções tortuosas que o novo estado exigia . A mulher , à força de a ver sempre , ia-a esquecendo . O problema esperava a solução , -- que lhe importava a ele ! -- Assim , o afastamento , a indiferença , o desgosto iam cavando entre os dois , cada vez mais largo e mais fundo ... Não tinham filhos : -- uma orquite dupla anulara no barão , quando solteiro , a faculdade de procriar . E agora , ao cabo apenas de três anos de vida em comum , ele , sentado ali junto da sua pequenina e apetitosa esposa , tinha frio , torcia-se , olhava confrangidamente , num misto de humilhação e de respeito , aquela cabecita luminosa e redonda , enquanto lhe dançava na imaginação o efebo que deixara há pouco no Passeio . Deu uma hora no gabinete ao lado . Ele então , erguendo-se : -- Vou-me deitar . E a baronesa , toda de alma na leitura : -- Vai indo , que eu já vou . O barão saiu pela porta do toilette , num bocejo arrastado , enquanto ela , depois de uma leve expiração de alívio , continuava interessadamente a ler . No dia seguinte , ao almoço , um constrangimento acre molestava os dois esposos , instintivamente . O que quer que era de vagamente arreliador pairava . Uma turbação rebarbativa de desgosto , de mal-estar , de disputa suspensa ensombrava aquela atmosfera conjugal , na aparência tão calma . Cada um dos dois tinha o pensamento posto num desejo antípoda do seu comensal ; e daí cada um sentir que a tormenta se encastelava rápida e que , inevitavelmente , uma faísca de ódio havia de chispar ao encontro desses dois antagonismos . Ambos , contudo , se empenhavam , mais por um sentimento de decoro doméstico , do que por uma razão egoísta de prudência , em retardar quanto possível a deflagração iminente . A baronesa , com o corpinho roliço e fresco regamboleando num roupão de caxemira cor de grão , enfeitado a renda creme , e a grossa trança castanha presa , em torso negligente , à nuca por um grande prego de níquel , transversal , ora olhava as unhas , ora dava pequeninas ordens ao criado de mesa , ora derivava o olhar num passeio alheado pela sala , toda no cuidado de evitar os olhos do barão . Este , para evitar os olhos da baronesa , achara recurso mais cómodo : ia lendo o Diário de Notícias , posto ao alto contra o centro de mesa -- quatro grifos rompantes de prata suportando uma túlipa de baccarat , muito elançada , em facetas de cujo bordo biselado em ponta se debruçavam , num parapeito fofo de violetas , as primeiras rosas da estação , colhidas no jardim . O barão estava de fraque , vestido para sair . Mais de uma vez tentara travar conversa , sempre sem resultado . Primeiro , leves perguntas banais . -- Mandaste ao encadernador ? -- Mandei -- respondeu ela , distraída . -- O correio não traria nada hoje ? -- Pergunta ao João . Daí a pouco : -- Sempre os Paradelas ontem ... Nada ! Após novo intervalo : -- Não estou hoje nada bem ... Tive palpitações toda a noite . E este meu estômago ... A baronesa limitou-se a sublinhar com um risinho incrédulo . Por fim , quando tomava o café , o barão assentou no jornal a ponta da faca , mantida entre o dedo maior e o indicador da mão direita , e exclamou muito familiar , a querer entrar com sol no diálogo : -- É boa esta ! ... Sempre impagável de tolice este jornal . Queres ouvir ? ... -- E leu alto , com um bom sorriso conciliador , mas sem fitar a esposa : -- Diz hoje o luminária das Cartas do Estrangeiro que visitou em França o Panthéon , " edifício destinado a Santa Genoveva , patrona -- Paris " ! ... e mais abaixo , falando do nosso ministro ali : " é um dos mais esclarecidos e honrados representantes que temos no estrangeiro , e cuja espécie fora bem útil reproduzir para honra do País ... " E boa , não é ? -- comentou , rindo . Porém , malévola , a baronesa : -- Que sensaboria ! -- Achas ? -- Decerto -- confirmou ela num revirar de olhos azedo . -- Nem sei para que te incomodas a ler-me isso ... -- E logo , na previsão do que ia passar-se , para o criado : -- Vá almoçar . -- Cuidei que te interessasse ... -- aventurou o marido . -- Supões-me mais idiota do que sou . -- O filha , não é isso ! -- afagou o barão com a mais afetuosa bonomia . -- Que te interessasse como episódio cómico , simplesmente , como assunto para um bocado de troça , para brincar , para rir . -- Bem ! não faltava mais nada . Agora chamas-me criança ! -- explodiu ela com vivacidade , enquanto arrastava para longe , num sacão de arremesso , a chávena de cujo chá bebia os últimos goles . Desta vez o barão , posto em prova , afastou da mesa o tronco , alto e direito , e cravou na mulher um severo olhar de reprimenda . Mas ela , de cotovelo fincado sobre a toalha , franzir desdenhoso nos lábios , a mão cocegando a ponta da barba num jeitinho impertinente e raivoso , pôs-se a fitar com altiva insolência uma das rosetas do teto e a fustigar o parquet num bater de pé provocante . Uma trepidação elástica e felina corria-lhe o colo , os seios e a face rija e redonda , em cujas vénulas engrossadas se via a fremer e a subir um sangue roxo , irritado . De repente , abate sobre o marido as pupilas , crispantes de desafio : -- Preciso sair hoje ... Não me acompanhas ? -- Logo vi ! ... ou eu não tivesse que fazer ! ... -- respondeu com ímpeto o barão . -- Que marido tão condescendente , tão amável que eu tenho , Santo Deus ! ... Nem de encomenda ! -- E depois de uma pausa , numa irritação crescente : -- Para que me foi tirar a casa dos meus pais ? ... Se me não amava , para que me privou do carinho dos meus ? Para que me foi arrancar ao coração da minha gente , a minha verdadeira e única família , que nunca me contrariaram ... sempre prontos a adivinhar-me as vontades , sempre felizes por me fazerem a vida cor-de-rosa ? ... Casou por conveniência , bem sei ... para me tiranizar absurdamente ! -- E com lágrimas na voz : -- O senhor não procurou em mim uma doce e digna companheira , mas uma estúpida e dócil governanta ! Não me quis para lhe alegrar a existência e entreter a alma , mas para lhe determinar o jantar e pregar os botões das ceroulas ... Bonita vida ! -- Elvira , não me impacientes ! Não me estragues o almoço ... Precisas de sair ? ... Manda recado a tua mãe ou a tua irmã . -- Não são minhas criadas ! -- Nem eu ! E ergueu-se pálido , fulo , assentou com força o guardanapo sobre a mesa , foi tomar o sobretudo e o chapéu ao cabide do corredor , e saiu . Hílares do baralho da contenda , os canários do lindo viveiro dourado tinham rompido numa chilreada escarninha . A baronesa , depois de imobilizada uns segundos num espasmo de cólera impotente , ergueu-se também de repente e foi sepultar-se na chaise-longue do seu cantinho predileto , humilhada , fria na epiderme , a chorar , a tremer . No primeiro momento nem deu bem conta dos sentimentos que a poleavam . A pobre criatura sentia só -- com que violência ! -- que a saída grosseira e brusca do barão lhe caíra na alma com todo o peso de uma afronta , provocando uma dor vagamente cava , indefinível , como o bater de uma lápide fechando um túmulo . Ele desfeiteara-a , insultara-a , atirara-a à margem como uma ponta de charuto -- eis o que era evidente , o que era essencial , o que a dilacerava ... porque motivo ? ... Não lhe importava , não o sabia ; nem , mesmo que o quisesse , conseguiria talvez tentar sabê-lo . De ordinário incapaz de passear muito tempo a atenção sobre um mesmo assunto , a baronesa comprazia-se em acendrar até ao último exagero as consequências de uma emoção . Sobrava-lhe em coração o que lhe faltava em inteligência . Vinha-lhe de sentir muito e pensar pouco o seu adorável feitio de leviandade . Assim , toca a malucar : -- O marido repelira-a , desprezara-a ... que lhe importava o mais ? ... -- E a torturada e voluntariosa burguesita contorcia-se na vergonha da afronta evidente . Aquela alvura leitosa de cútis , que a extrema regularidade da sua vida tingia habitualmente de cor-de-rosa , vincara-se , empanara-se , contraíra-se no engelhamento lívido de um pergaminho velho . As lágrimas gemiam gota a gota , como de um filtro , de cada aproximação das longas pestanas , que palhetazinhas de ouro incrustavam , microscópicas . E as mãos enrodilhavam e retesavam nervosamente o pequenino lenço de esguião e rendas , preso por uma das pontas entre os dentes raivosos . Desprezada , humilhada ! -- ela , cuja suprema ambição , cujo mais almo prazer , cujo mais fervoroso anseio era amar , adorar , dedicar-se , para ser por igual amada , adorada e servida num exclusivismo sagrado e ardente de mutuação perfeita ... -- Que alma ingénua ! Como esta certeza fulminante vergastava cruel o seu modo feminino de sentir as coisas ! Esquecia-lhe mesmo entrar em linha de conta , na liquidação do ultraje , com o ativo não pequeno das suas provocações . Não considerava que o barão , conciliador , paciente , afável , se empenhara bastante em conjurar a borrasca , pelo seu caprichozinho azedo armada , e resolvida em próprio prejuízo . -- Insultada , humilhada ! -- não queria saber de mais . Na sua frente , sobre a mesma mesinha baixa de charão , ficara aberto , da véspera , o romance lido com tanto ardor . A baronesa deu de acaso com os olhos nele ; e então , confusamente , numa teimosia obscura de confronto , por um destes desvios absurdos , mas triviais , nos espíritos pouco reflexivos , começou a achar analogias entre a sua ridícula cena com o marido e aquele episódio sangrante de adultério ... Aí havia por força uma tragédia latente . Iam no prólogo . Vinha encastelando-se a borrasca . Impossível harmonizarem-se ... jogavam falso . -- E um tirano . Não me compreende ... -- Se ele já me não ama ! ? -- pensou a meia voz , aterrada , num rodilhão de ciúme , enquanto os olhos se lhe secavam , muito abertos , a boca se lhe descerrava num pânico , e as mãos lhe caíam sobre o regaço , com o lenço esfrangalhado entre os dedos finos . Mas foi o sonho de um instante ... Breve , uma confiança grande no marido , uma confiança ainda maior na própria juventude , acordaram-lhe um rebate de honra íntimo , chamaram-na à realidade . Clareou então um bom sorriso altivo no marfim do rosto macerado , e aos olhos , vivos como um chilreio de aves , afluíram de novo as lágrimas , agora pulverizadas , cristalinas , doces como um aguaceiro peneirado de sol , na Primavera . Entrou neste momento a curiosa da Doroleia -- de saia de alpaca preta com folho na barra , véstia de briche , cabeçãozinho de renda , cuia enorme de retrós assentando nas costas , e toda impante de curiosidade velhaca no olho pequenino e redondo , na boca rasgada de orelha a orelha , no queixo em arpéu , no nariz esborrachado -- a perguntar : -- A senhora baronesa chamou ? -- Eu não , mulher -- respondeu a baronesa , contrariada e enxugando a furto os olhos , secamente . -- Até me pôs medo ! -- Queira desculpar , pareceu-me ... -- arriscou , toda untuosa , a matreira , baixando o olhar e correndo os dedos da mão direita pela orla do avental , num afago de disfarce , enquanto debruçava o raio visual das pálpebras , a apreender , a saborear o escândalo . E como ela se fosse ficando : -- Vossemecê quer alguma coisa ? -- interrogou , passados minutos , a baronesa , agora nadando nesta voluptuosa lassidão que nos deixa o abalo de um perigo que passou . -- A senhora baronesa desculpará ... mas ... sim , a senhora bem sabe que eu que sou sua amiga e que não me sei calar . E vai por isso não me sofre o interior vê-la assim tristinha , e não lhe dizer cá o que eu entendo ... -- Sim , sim , obrigada ... Eu não estou triste ... Nem alegre ... Aborrecida ! ... Vocês querem ver sempre a gente de carinha na água . -- E pegou no livro , como para ler . A Doroteia porém não se deu por despedida . Continuando a escrutinar felinamente a baronesa , passou com a língua os lábios gretados e prosseguiu : -- Com um dia tão bonito ... a senhora veja ... Tudo por aí na paródia , a passear , a divertir-se , e a minha rica senhora aqui a ralar-se ! -- E , numa torpe bajulice : -- Bem digo eu que não é como as mais ! -- Lá vem vossemecê com a tolice do costume . Cale-se ! -- O senhora , isto não é ser má-língua , é a pura da verdade ... Tenho servido em Lisboa , antes desta , seis casas ... tudo gente casada ... que isto é , uns deles desconfio que não , porque nunca saíam de braço dado ... Seis casas ... Pois juro-lhe que em todas elas , quando os maridos saíam para a rua , cuida que as senhoras que se punham assim , metidas a um canto ? ... Tó rola ! ... Iam mas era para a janela , fazer frente a outros . -- Não diga isso , mulher ! -- reprimindo , súbito indignada , a baronesa , a cuja lisura de ânimo repugnava a calúnia . E quis ler ; mas a maligna observação da criada interpôs-se ... Na sua cabecita oca infiltrara rápido , como em areia , a babugem da alcoviteira . -- Havia pois mulheres que ... Ora ! -- E a inteireza da sua alma entrou em luta com a inconsistência do seu espírito . Bem fitavam os olhos a página ; bem queria a vontade acorrentar o pensamento , que remoinhava , remoinhava ' em crepitações de bandeirola ao vento da fantasia . A Doroteia , observando sempre a ama , tomou um leque de penas de cima de um móvel e exclamou : -- Que ventarola tão bonita ! -- Bonita -- respondeu Elvira , muito breve , sem desfitar o livro , a afugentar . -- Minha senhora , deram-lhe&lhes+a ? -- Deram . Parenteseou-se um silêncio . Fora , no largo , um malandro pregoava cautelas ; da raiz do monte do Castelo vinha , amortecido na distância , um arranco de bigorna batida ; longe a longe , uma carruagem passava . Passados minutos , soaram horas no escritório do barão . E logo a baronesa , que não conseguia ler e a quem o silêncio molestava : -- Olhe lá : que horas deram ? -- Para não mentir à senhora -- respondeu a criada salivando os beiços -- direi que não botei sentido ... Que eu , a bem dizer , não me entendo com os relógios de Lisboa . Têm dois ponteiros , não sei para quê ... Lá na minha terra , o relógio da torre da igreja tem só um ponteiro , de lado a lado , e a gente governa-se com ele , e regula muito bem ... Agora isto de dois é uma confusão ... -- São precisos , já lhe tenho explicado : um marca as horas , e o outro os minutos . -- Não me entra cá ... Endróminas ... -- E voltando à carga : -- Mas que dia tão lindo ! Agora a baronesa , ainda ao seu pesar alheada da leitura , encarou numa pontinha de cólera a causa do seu desassossego e ordenou : -- Não tem que fazer lá dentro ? ... Não preciso de vossemecê aqui . Um despeito rancoroso fuzilou nos olhos da megera , que resmoneou , humedecendo as ravinas dos lábios : -- És como as mais ! ... -- E saiu de olho de través e cabeça baixa , com a ponta da cuia , retesada do muito cabelo , erguida em curva sobre o ócciput , a modo de uma grande figa . Apenas ela desapareceu , a cabecita redondinha e leve da baronesa largou a remoinhar com fúria . Ergueu um olhar interrogativo para o espaço -- que dia formosíssimo ! ... Aquela hora o sol não entrava já no aposento , mas metalizava em lampejos de bronze as folhas negras da grande magnólia que do jardim subia , encostada a uma das sacadas , toda viçosa e nítida num azul claro e manso de lago adormecido . A baronesa , fascinada , atirou com o livro , aproximou-se da janela e olhou ... A frente da casa , que deste lado virava ao sul , ficava o jardim , camarinhado de um verde tenro e diáfano , e depois , para lá do muro , estendia-se o Largo do Caldas , com o basalto ainda envernizado da névoa matutina , as trapeiras dos altos prédios espumantes de sol , e à direita , aberta no flanco onde um vidro de lampião centelhava , a Rua da Madalena , descendo ao rio em declive rápido , num alinhamento arquitetural pombalino . O ar estava lavado , clemente , doce , bondoso e húmido como um sorriso . Na lisa fluidez do céu , onde raro vogavam os últimos algodoamentos da chuva da noite , sentia-se correr , luminoso e breve como um bater de asas brancas , o arranque da Natureza que acordava . A mesma luz suavemente dourada , a mesma petulância de seiva , a mesma comunhão de vida acariciava os aspetos cambiantes da rua : a blusa de um cocheiro que fumava a um portal , a canastra de uma peixeira que , de rins quebrados e braços erguidos , falava para um 3.° andar , a chapa do boné de um carteiro , o tejadilho de um trem , os letreiros de uma carroça , a barba de um mendigo . Um rejuvenescimento brincava na aragem . Via-se o beijo da Primavera no brilho estimulado das coisas . -- Oh ! Fazia bem quem se chegava à janela em dias como este ... A vida era deliciosa ... Embriagava como as plantas dos trópicos ... A questão estava em saber colher-lhe a flor a tempo ! -- E a baronesita , perturbada , alucinada um tantinho , vencida de um delíquio mole , com um desmaio de volúpia a molhar-lhe as pálpebras amortecidas , fantasiou que via também , subindo e crescendo para ela na sombra da rua , um belo Rodolfo de jaquetão de veludo preto , bota de vitela té ao joelho e calção de malha branca , montado num soberbo cavalo negro e trazendo outro pela mão , em que ela ia montar , igualmente negro , com um selim de pele de gamo , e na testeira graciosamente postos dois topes cor-de-rosa . Entretanto , o barão tinha entrado no Grémio e sentara-se a ler jornais ; mas , no grau de excitação em que se achava , nem conseguia prender-lhe o espírito o canalhismo picante da literatura francesa de bulevar , tão sua predileta . Percorria num ar vago as colunas , sem lhes apreender o sentido , perro no atrito de uma apatia mental pesada , imbecilizante . O jornal tremia-lhe na mão sem firmeza , e as pernas cruzavam-se , descruzavam-se , erguiam-se em ângulo muito agudo , com a rótula à altura do estômago , alongavam-se direitas num arrastamento do calcâneo ao longo do tapete , a dar o síndroma de uma impaciência fatal , irreprimível . Consultou o relógio : -- uma hora . Tinha marcado o encontro para as duas ... -- Ainda uma hora , que inferno ! ... Saiu ; e vagaroso , negligente , a iludir o tempo , olhando o céu , parando Ãs montras , tomou Chiado acima , Rua Larga de S. Roque , e à Travessa da Queimada . Depois , ao cruzar com a Rua da Atalaia , deu dois passos nesta e subiu , à esquerda , pela Travessa dos Inglesinhos , até à Rua da Rosa , pela qual enfiou a ângulo reto , sobre a direita , entrando , por fim , sorrateiro , quase a meio da rua , numa casinha pequena , de três janelas de frente , branca , dois andares e platibanda . Prédio banal e anónimo , porém denotando a benfeitoria de uma restauração recente , na balaustrada , nos caixilhos grandes das vidraças , nas padieiras levemente ogivadas , nas varandas de ferro fundido ; e pavoneando-se portanto num legítimo orgulho de destaque , entre a pelintra sucessão de casebres daquela rua estrangulada e imunda . Na loja acomodava-se um cafarnaum poeirento de bric- à brac mesquinho ; o primeiro andar , com as tabuinhas verdes sanefando em toldo para fora de duas das sacadas , e umas toalhitas brancas , postas na outra a enxugar , tinha a impudência clássica do bordel tolerado e regulamentado na lei ; o segundo andar , todo corrido de uma varanda , andava por conta do barão . Tinha à frente dois aposentos . Uma saleta esguia , nua de mobília : e uma pequena sala , com duas portas sobre a sacada , de stores brancos descidos ; esteira ; um toucador-cómoda de espelho , com bacia e jarro , escovas , pentes , sabonetes ; canapé e cadeiras italianas ; divã de base de mogno e repes verde ; uma mesinha de pé-de-galo ; na escaiola cinzenta da parede duas " anatomias " , a óleo , de adolescentes , colhidas em baixo no bric- à brac , sobre uma mísula floreteada um frasco com água fénica ; e -- detalhe curioso -- , a um canto , contra a luz , um estrado de pinho com um bastidor cinzento ao alto . Abria-se nesta sala um arremedo de alcova , que mais parecia um armário , escaiolada a cor-de-rosa e mal comportando uma cama larga de mogno , à francesa , irrepreensivelmente feita , convidativa , luzente . Um corredor conduzia à sala de jantar , do outro lado , sem um único móvel , toda alagartada em paisagens de um grotesco inverosímil , e com duas janelas dominando um trecho do Bairro de Jesus e apanhando ainda ao longe a curva elegante do zimbório da Estrela , sobre um anfiteatro loução de casaria . A par ficava a cozinha , com a chaminé virgem de fumo , e com porta para uma outra alcova , onde havia uma tina , um lavatório de ferro , um bidé e uma esponja num prego . Um ar bafiento e frio ensopava todo este interior mercenário , em cujo arranjo não palpitava a menor emoção da vida de família . Faltava o fogo e o pão , as duas primeiras condições na existência de um lar . Nada havia de quente , de irregular , de buliçoso ; nada surpreendido num gesto de afago , nada marcando a evolução de um afeto , nada acusando esta honesta desordem que é o selo confiante da intimidade , nada amotinado nestas adoráveis confusões de coisas que as criancitas levantam , como um rufio de asa na pelugem de um ninho . Antes tudo ordenado , espanado , a postos , na cumplicidade passiva do prazer Ãs horas ; tudo pronto a garantir nos gozos de um sibarita a segurança do mistério . Assim que entrou , o barão fechou cuidadosamente a porta por dentro e fez num exame rápido uma inspeção à casa . Tudo em ordem ... A água corria no contador , havia roupa lavada nas gavetas ... bem ! Não poderia tardar . E deixou-se cair no canapé , alquebrado , numa languidez pungente de ansiedade , a cabeça contra a parede , os olhos cerrados , as mãos cruzadas sobre o ventre , e as pernas estendidas com os pés de calcanhar sobre a esteira , firmes ao alto . Era a sua posição habitual em situações análogas . Lá estava a confirmá-lo , manchando a parede , uma gorduragem negra mesmo no ponto em que ele agora encostava a cabeça . Era assim , nesta impassibilidade ostensiva , que o pobre doente devorava os minutos de inquietação expectante , enquanto lhe devorava os nervos um trabalho de extermínio . Mesmo esta posição inerte e na aparência tranquila era filha espontânea do seu ânimo hipócrita , era a que mais convinha ao seu jeito habitual de disfarçar . E que a sala em volta se apropriara à hipocrisia do dono , via-se na ordenação pautada , quase severa , do seu arranjo . O sol , que luzia de chapa nos prédios fronteiros , coava pela trama dos stores corridos uma luz uniforme , pacífica , suave , de atelier ou de templo , mascarando , por uma anomalia picante , com a sua meia-tinta parada e discreta aquela estância cachoante de paixão . Por forma que esse corpo humano , ali mineralizado , imóvel , devastado interiormente por uma turbamulta de desejos , dava a aparência calma e solene de uma estátua ou de um deus . Tinha 32 anos o barão , e contudo dir-se-ia-ao vê-lo que orçava já pelos quarenta . A sua finíssima pele , que fora tão alva , lanugenta e macia , perdera toda a mimosa frescura da adolescência . Endurecera , espessara , asperizara-se , granulara em concreções de tofus , orografara-se em vermelhidões de urticária , deixara roer toda a suavidade feminil da sua cor dos 15 anos pela erupção pintalgada e luzente da dermatose que lhe envenenava o sangue . Via-se a magreza estirando e cavando em volta dos malares salientes a face desfibrinada . Os olhos , grandes e negros , conservavam a mesma cintilação ardente ; mas uma leve tinta cor-de-rosa lhe debruava as pálpebras , em cujo ângulo exterior uma purulência branca se pusera a ressumar , teimosa ; e a descamação farelenta da pityriasis polvilhava-lhe abundante o bigode e as sobrancelhas . Uma calvície prematura começava a despovoar-lhe a frente e os lados da cabeça , rasgando uma testa larga , dominadora , inteligente , que seria formosíssima se não aparecesse mordida amiúde por vários botões acnosos , fugazes e incertos mas persistentes , picados ao centro em pustulazinhas duras , brancas e brilhantes como lâminas de arsénico . De cada lado do mento , escoltando a pêra , erguia-se um grosso afloramento irregular de placas avermelhadas , papulosas , estaladas , secas , largando um desagregado contínuo de películas pulverulentas . E uma oleosidade sebácea e lustrosa porejava constante da base do nariz e das glândulas temporais subcutâneas , dando a este pobre rosto , bariolado de herpetismo , o aspeto repugnante e mole de um morango sorvo . Num sobressalto repentino , o barão estremeceu e endireitou-se , despertado pela instintiva noção do tempo , que é peculiar aos linfáticos . Olhou o relógio : -- duas horas precisas . Ergueu-se num prurido de impaciência . Começou medindo a casa em passos largos , a todo o comprimento . Ia de uma das portas da sacada , pelo corredor adiante , a direito , até ao extremo da sala de jantar , e voltava ao ponto de partida . Depois que fez três vezes este passeio , afastou o store ligeiramente com a mão , a interrogar a rua ... Cintilavam os olhos , e sob a língua crescia-lhe um excreto guloso de saliva . -- Mas que arrelia ! Nem uma nesga se via de calçada ! . . -- O pavimento da varanda projetava-se sobre o primeiro andar vizinho . Continuou então o passeio , e a cada três voltas , invariavelmente , volvia a arredar o store , para ver ... na casa da frente as volutas de uma parreira e a ginástica adunca de um papagaio . De vez em quando , parava a colar o ouvido contra a porta da escada . Meia hora passou assim ... -- Se o cachorro faltava ! ? -- Ao pensar isto , interrompeu brusco o passeio e uma onda lhe tumultuou no cérebro , congestivamente . -- Era o mais certo ... -- comentou descoroçoado , raivoso ; e recomeçou a passear , com o mar nos ouvidos , vermelho , tonto , agitando os braços num vaivém de cólera . Nisto , um espatinar surdo de pés descalços vinha crescendo na escada , vagarosamente . Duas pancaditas tremidas na porta ... Era o rapaz ! Então , ao tê-lo ali bem vivo e bem completo , o barão sentiu-se iluminar todo numa exultação imensa , ao passo que o amolecia uma frescura de alívio ; como se os seus nervos tivessem amansado de repente e lhe normalizasse agora o temperamento uma tonalidade tranquila . Estava alegre , mas senhor de si , calmo ; parecia indiferente . E todavia a excitação não amainara ; acendera-se mais , pelo contrário . Mas a certeza , a evidência na posse do prazer próximo operara o derramamento da sua ideopatia luxuriosa num doce equilíbrio de distribuição por todo o corpo , dando uma impressão serena e mansa de conjunto . Disse-lhe , pois , naturalmente : -- Já cuidava que não vinhas . E como o efebo se amarfanhasse tímido junto da porta , cosido à ombreira , o boné de alpaca torturado entre as mãos : -- Está à tua vontade ... -- acrescentou . O rapaz , perturbado por esta insistência de atenção na sua pessoa , espirou um monossílabo intraduzível . O barão estudava-o , media-o de longe , com entusiasmos de artista . -- Olha para mim -- pediu-lhe . O rapaz mal ergueu os olhos , coçando a cabeça , sorrindo contrafeito ; e relanceou-os logo obliquamente , numa visagem desconfiada , a todo o comprimento do corredor ao lado . A isto , o barão aproximou-se , e familiarmente , descansando-lhe o braço sobre o ombro , fê-lo correr a casa toda , a mostrar-lhe que não havia lá mais ninguém . -- Estás agora descansado ? -- Estou , sim , meu senhor . -- Bem ! -- E tomando-lhe a mão , carinhosamente : -- Anda cá ... -- Levou-o para junto do canapé , sentou-se e meteu-o entre os joelhos , pondo-se a contemplar , a beber amorosamente , numa expansão febril de concupiscência , aquele maltrapilho adventício das ruas , que permanecia de pé , vagamente assustado , aturdido , estúpido , mas ainda assim com um leve traço de malícia a apontar-lhe no rosto lascarino . Vestia um pedaço de jaqueta de casimira castanha , pendendo das costuras em farrapos , encodeada , lustrosa , ignóbil ; e um colete larguíssimo de lã , que fora azul-claro e agora era cinzento-sujo , sem botões , sobreposto na cinta , paradoxalmente engelhado e preso por uma correia de fivela , que servia também para segurar as calças , de cotim em xadrez miudinho , talhadas " à faia " , afuniladas , cerces , a trama esfiada e lassa mantendo-se num prodígio de resistência , num joelho um rasgão fechado por um alfinete , e incrustações altas de lama nas aberturas farpadas . O barão , vestido no Catarro , perfumado , correto , limpo , saboreava um requinte supremo de luxúria naquele abandalhar-se ao contacto da ínfima porcaria . Sofria o aviltamento da sua diátese aberrativa . Com os longos dedos trémulos afagava e corria demoradamente aquele sórdido personagem , cuja refratária imundície largava a mesma aspereza crassa que nos deixa na mão o correr do pêlo a um cão vadio . Por fim , foi ao trapo engordurado e negro que o rapaz trazia a fazer de camisa , e quis despregar o alfinete que lhe&lhes+o cingia ao pescoço . Mas logo o efebo , acudindo também com a mão e corando : -- Deixe estar ... -- Tolo ! -- insistiu a meia voz o barão , teimando . E abriu-lhe a camisa , que deixou ver um colo alvo , carnudo , cheio , de gordos peitorais amplos , saltantes , e de uma bela cor veludosa e macia , como de fruto que amadura . O barão inflamou-se . Um calor de brasa mal apagada subia-lhe aos olhos , mordia-lhe sob a epiderme , latejava-lhe nas pontas dos dedos , tumultuariamente ... Colheu , espremeu com fúria um dos refegos desse peito apolíneo , e cravou-lhe um beijo sôfrego , ardente , bárbaro , um destes beijos decisivos , formais , que despertam um amor incondicional ou uma inimizade eterna , beijo em que ele estilara toda a ânsia da sua alma , e que era a síntese das suas turbulências fatais de sodomita . Aquela carne oleosa e suja , para quem a água fora sempre um mito , deu-lhe uma gustação salgada , que o estonteou . -- Despe-te lá ! -- ordenou , largando o efebo e erguendo-se num ímpeto irresistível . O rapaz , sinceramente envergonhado , recusava-se ; mas o barão , imperioso , breve , todo vibrante na tirania de um destes desejos cegos que levam Ãs maiores audácias , insistiu . Ele mesmo lhe desafivelou a correia , para o obrigar . Então o rapaz , vergando segunda vez ao império daquela tenacidade de aço , obedeceu ; e aborrecido , resignado , confuso por aquele vexame de exibição da sua miséria repelente , começou despindo os andrajos , que cada empuxão mais dilacerava , e atirando-os uns após outros , amarfanhados em rodilha , para trás do bastidor . Quando o viu nu inteiramente , disse-lhe o barão : -- Põe-te em cima daquele estrado ... Anda ! -- O rapaz subiu , sem perceber nada , começando a desconfiar que caíra nas mãos de um doido . -- Põe-te direito ... Assim ... As pernas bem unidas ... Dobra um pouco a perna direita ... joelho para dentro . -- Numa passividade idiota , o rapaz obedecia . -- Agora está bem ! ... Perfeito . E toca de ir sentar-se-lhe na frente , a distância , a cavalo numa cadeira , o queixo fincado nos braços assentes sobre o espaldar , concentrado numa alta contemplação de escultor estudando o modelo que vai reproduzir . A cada segundo de exame , o entusiasmo e o prazer cresciam . -- Admirável ! admirável ! ... -- exclamou num flamejo de êxtase . -- Finalmente ! ... Não te mexas ! -- Num relâmpago arrastou a mesinha de pé-de-galo para o meio da casa , trouxe papel e lápis de uma gaveta , e sentou-se a copiar a formosa figura que tinha diante de si . O rapaz vestia , com efeito , uma plástica opulenta e firme de mármore antigo . Devia ter 16 anos , a julgar pela indecisão do buço e pelo frouxel topazino da sua virilidade , mal apontando ainda . A luz dava-lhe a três quartos , uniforme , pacífica , suave , destacando do bastidor o seu belo torso flexuoso e forte . Um cabelo curto , abundante , seco , todo revolto em crespos do estilo grego mais puro , coroava-lhe a cabeça , de uma oval harmoniosíssima , cujas faces pomejavam sangue , e cuja extensa e enérgica linha de sobrancelhas , cobrindo uns longos olhos rasgados em amêndoa , com o brilho do ónix na sombra dos grandes cílios , fartos e sedosos , mais idealmente fina tornava a terminação da barba , picada , como um fruto tocado de um pássaro , por uma covinha cor-de-rosa . A epiderme , áspera e trigueira das intempéries , passava cruamente , da gargalheira torrada e negra da base do pescoço , a amaciar sobre o tórax num branco lácteo , pastoso e cheio , que pelos antebraços descia adelgaçando e esbatendo-se té um azul tenro e diáfano de porcelana , cortado bruscamente nos pulsos por um outro círculo queimado . Depois , na região abdominal , a cor bistrava ao de leve , gradativamente ; sobre as colunas das coxas altas e redondas reaparecia o branco luminoso e macio , mordido por um leve formigueiro de sangue ; uma rugosidade escura enfarruscava os joelhos ; daí para baixo , duas finas linhas lustrosas e brilhantes definiam a aresta das tíbias ; e logo a pele tornava a asperizar-se e a queimar-se , numa abundância de cor nojosamente progressiva , feita de cieiro e de surro , terminando nuns pés enormes e sórdidos , negros de todas as escoriações e todas as imundícies . -- Não te mexas ! -- repetia o barão , todo na cópia , delirando . -- Finalmente ! É que este rapaz viera trazer-lhe a particularidade anatómica que o barão procurava há muito , afincadamente , com a tenacidade mansa dos linfáticos : -- um comprimento exagerado de fémur , uma distância relativamente grande entre a região púbica e o joelho . -- Isto devia dar ao corpo um ar elançado e leve , um alongamento gracioso , um afinamento supremo de elegância , delicioso à retina de um artista . O barão morria por ver com os seus olhos , uma só vez que fosse , esta particularidade realizada . Em telas , gravuras , mármores , estava farto de a observar ; mas queria encontrá-la no domínio da Natureza , flagrante , palpável , viva . Por isso havia anos que corria pertinazmente em cata do seu capricho . Dezenas de rapazes , de mulheres , de rapariguitas mesmo , tinham vindo Ãquela casa poisar perante a sua obstinação doentia . Perscrutinava ele na rua uma mulher fácil ou um garoto complacente que lhe parecesse deviam ter aquele desvio anatómico ? ... Não os largava enquanto não conseguisse , a impulso de astúcia e de dinheiro , conduzi-los à Rua da Rosa e analisar-lhes a nudez . Mas a realização da sua fantasia era por extremo difícil neste nosso país de atarracados . Lá nas extensas regiões planas , por onde o corpo segue direito , e onde portanto a função locomotora se exercita desembaraçada e leve , numa mediocridade inalterável de esforço e numa igualdade sóbria de movimentos , que as leis do equilíbrio não obrigam geralmente a exceder , lhe-fácil surpreender essa expansão vertical , tão idealmente apuradora da figura humana . Já não assim nas agruras das nossas terras montanhosas , em que o pé tem de ser garra , e em que a tirania dos bruscos e altos desníveis derreia a espinha e retesa os músculos em contrações violentas , tendo por consequência a espessidão e o encurtamento dos ossos em que se apoiam . Também , de há muito que o barão porfiava no seu sonho , sempre sem resultado . A veemência deste desejo irrealizado enquistara mesmo numa fixidez sinistra de mania . Referia-lhe incondicionalmente as suas relações todas com o mundo exterior . Ao primeiro encarar com um desconhecido , o seu olhar baixava logo , numa avidez sombria , a medir-lhe as relações de comprimento entre o tronco e os membros inferiores . Quando vira na véspera o rapaz que lhe pedia a senha , relanceou-o logo ... pareceu-lhe que ele devia corporizar excelentemente a sua ideia . Daí aquele fervoroso empenho em trazê-lo a este exame extravagante . E -- finalmente ! -- acertara desta vez . Mas a cópia levava tempo . O rapaz impacientava-se . Não saía bem o desenho , embrulhavam-se os traços ... A hiperestesia sensual , que cumulativamente com a obsessão artística trabalhava o barão , começara a preponderar . O apetite carnal cresceu , irreprimível . Num dado momento , parou a olhar o modelo , com a pupila empanada , o lápis caiu-lhe dos dedos trémulos , as maxilas oscilaram-lhe num jeito de carnívoro , e então foi tomar o efebo nos braços e refugiou-se com ele na penumbra da alcova ... Uma hora depois , o barão , vagaroso , lasso , neste abandono que nos adormenta os nervos que um largo dispêndio de gozo extenuou , dizia para o efebo , que acarreava o colete e as calças , atabalhoado : -- E gostas desse modo de vida ? -- Não desgosto . -- Vender jornais e cautelas ... Pobre rapaz ! -- É reinadio -- comentou o efebo num encolher de ombros despreocupado e alegre . -- Farta-se a gente de berrar . -- A polícia conhece-te ? -- Já fui preso uma vez ... -- respondeu baixando os olhos . -- Porquê ? -- Não tinha feito mal nenhum ! ... Foi de uma vez que deitaram a rede à gatunagem . -- E então é bonito isso ? -- Ora adeus ! ... Eu não tinha roubado nada a ninguém . -- Nunca tiveste fome ? -- Às vezes tenho ... mas tenho também a minha liberdade , que vale mais que pão ! -- afirmou convicto o garoto , num aprumo altivo . -- Mas eu já te disse ... Continuas na tua liberdade e não tornas a ter fome , querendo ficar pela minha conta . -- O senhor está a gozar ... -- insinuou a meia voz o lascarino , abrindo a expressão num sorriso malicioso de suspeita . -- Ficas nesta casa e tens dez tostões por dia ... Que mais queres ? E como a desconfiança acabasse de acentuar-se nas feições do rapaz : -- Desconfias ? ... É natural ; não me conheces ... Ora , já que sabes ler , lê lá . -- E , tirando da carteira um bilhete-de-visita , o barão estendeu-o ao rapaz . Sobre um -- Barão de Lavos -- descrito em cursivo largo e elegante , reluzia a miniatura de um símbolo heráldico , policromada em relevo com rara perfeição . Escudo bipartido . A metade da direita esquartelada , tendo no primeiro e último quartel as armas reais com um filete em contrabanda , e no segundo e terceiro , em campo de prata , um mantel sanguinho com um castelo de ouro , entre dois leões sanguinhos batalhantes ; tudo cingido numa finíssima orla , composta de dezasseis peças , oito de ouro lisas e oito de azul , cada uma com a sua vieira de prata . -- Era o escudo dos Noronhas , precioso tronco de que derivavam os condes -- Valadares , Arcozelo e Paraty , e os marqueses -- Angeja . -- Na metade esquerda do escudo brilhavam as armas dos Castros -- seis arruelas de azul , em duas palas , em campo de prata . Da coroa do timbre nascia , arrogante e minúsculo , um leão sanguinho . O rapaz ficou deslumbrado . Evidentemente , estava tratando com um alto personagem ! Fidalgo e rico , não havia dúvida . -- Deixar de farófias ... era aproveitar , antes que outro o fizesse . Baguinho e boa vida , vinha do céu ! -- E o malandrete , com o olhar hipnotizado na pinturilagem do escudo , baixou o pescoço em sinal de submissão . O barão disse : -- Que dizes ? -- Estou por o que o senhor quiser . Então o barão , abocando um tubo acústico pendente ao lado da cama , chamou para baixo . Daí a minutos , entrava uma figura inexpressiva e reles de velha alcoviteira , corcunda e gotosa , os olhos sumidos na papujem flácida das pálpebras garatujadas de pés-de-galinha ao infinito , um sorriso perpétuo estereotipado nos lábios negros , as mãos cruzadas em aspa debaixo do avental . Era a mulher do dono do bric- à brac da loja . Tinha ao seu cargo a conservação e arranjo da casa alugada pelo barão , que lhe disse , apenas ela entrou : -- Ouviu , Sra.||_Ana Ana|_Ana ? ... De hoje em diante este rapaz fica a morar nesta casa . -- Sim , senhor barão . -- A senhora cumpre as ordens dele como se fosse eu que lhe&lhes+as desse . -- Sim , senhor barão . E logo este , colhendo o rapaz a um lado , a meia voz : -- Tomaste sentido ? ... E a tua criada ... Podes combinar com ela para te fazer a comida . Toma lá , para os primeiros dias . -- Meteu-lhe na mão duas moedas de ouro ; depois concluiu : -- E , primeiro que tudo , tens aí água , coco e sabão ... lavado , muito bem lavado , hem ! ... amanhã iremos ao alfaiate . Até amanhã . Quando passou pela frente da Sra.||_Ana Ana|_Ana , que lhe fora abrir a porta , recomendou ainda : -- Sirva-mo e trate-mo bem , veja lá ! -- O menino fica ao meu cuidado ; vá descansado , senhor barão . O pederasta desceu rápido a escada , leve desta alegria efémera que segue de perto a satisfação de um capricho . Mas em baixo , à porta , a luz forte do exterior cegou-o , acendeu-lhe num clarão doloroso a consciência ... Então invadiu-o uma impressão de cobardia e de desgosto , caiu na fase do tédio , e foi seguindo pela rua estrangulada e suja , a que uma faixa límpida de azul fazia tampa , medroso e triste , quase arrependido , a malucar em mil preocupações funestas que o seu hipocondrismo desatara a sugerir-lhe . Quando os barões -- Lavos entraram na sala dos seus amigos Paradelas -- Rua de S. Filipe Nery -- , um silêncio de troça reprimida imobilizava os íntimos daquela noite em volta a uma pequena mesa , em que o coronel Militão se sentara a escrever . Apenas pressentiu a sua querida amiga , D. Leonor correu a abraçá-la , toda efusiva e alegre . -- Chegas na melhor ocasião ! -- segredou-lhe logo que trocaram o último beijo . -- O coronel está-me escrevendo uma poesia no álbum . -- Oh ! Que bom ! -- comentou D. Elvira , com uma faúla escarninha a camalear-lhe o âmbar dos olhos translúcidos . -- Para estros como aquele é que os álbuns foram inventados -- disse o barão , irónico . -- Está bem . -- Anda ver -- disse D. Leonor para a amiga , impaciente ; e conduziu-a , num enlace afetuoso de cintura , para junto do grupo que rodeava o coronel . Todos se voltaram , a cumprimentar os recém-vindos ; só o coronel se não mexeu . Com o cotovelo esquerdo firmado sobre a mesa e a mão rodilhando a pêra luzidia e negra numa abstração romântica de poeta que arma o laço a um verso rebelde ; os olhos piscos e erguidos num gesto pedante de preciosa elaboração interior ; e a mão direita , de pena enclavinhada , imóvel , implorando que alguma coisa descesse para ser escrita , o bom do velho , cheio de si , numa auréola de glória , sorridente , realizava um destes tipos imensamente patuscos de cretinos que se julgam génios , e de cuja desopilativa assistência anda a sociedade tão rica , para bem de quantos não podem ir a Arcachon ou a Vidago desengrossar humores ... Tinha mais de 60 anos ; bastava a confirmá-lo a patente que alcançara no exército . No descalabro marcial do rosto , caparrosado e flácido , papejando engelhado e mole aos lados das maxilas , negrejava , num destaque ridículo de fazer dó , a juventude artificial das sobrancelhas ramalhudas e do espesso bigode , lustroso , erguido caracolado nas pontas por escamas de cera . O cabelo , raro , mas povoando-lhe ainda toda a cabeça , igualmente lustroso , cor de crina , formava ao alto da testa uma poupa galinácea e empastava-se depois sobre o crânio numa aderência lambida e crassa de pomadas , afastado por uma grande risca que seguia do temporal esquerdo , alinhada como um pelotão , irrepreensível , larga , a perder-se , transposta a nuca , na fímbria do colarinho . -- Como estás , minha filha ? -- disse para D. Elvira a mãe , escoldrinhando com olho amoroso a baronesa . -- Bem , e a mamã ? -- respondeu a baronesita , chamando à expressão a mais branca e mimada alegria . -- Quis vir pela tua casa ; mas tua irmã -- não imaginas ! -- , hoje não acabava de se vestir ! ... Cada vez mais toleta ... Tu em solteira não eras assim . -- Credo ! Também a mamã agora deu em embirrar comigo ! -- acudiu , a fazer beicinho , a Julita , pequenina e redonda como Elvira , mas trigueira , inflamada , forte . E logo , ao ouvido da irmã : -- E que o Frederico tinha-me ido falar hoje -- sabes ? -- , e custava-me despedi-lo . Estavam mais naquela sala fresca e simples -- de papel dourado , alcatifa em cornucópias , mobília trivial de mogno , piano vertical , lustre de pingentes , damasco vermelho no sofá , nos fauteuils e nos reposteiros ; a Sra.||_Reodades Reodades|_Reodades , viúva de um desembargador , biliosa e hidrópica , de bigode , uma grande verruga a um lado com um pincel de cabelo ; uma filha desta grave matrona , que vinha a ser a jovem e escanifrada D. Aurélia , uma das meninas mais prendadas do sítio , pois bordava a froco , pintava pratos , cantava por casas particulares e versejava no Almanaque de Lembranças ' , um estudantinho da Politécnica , abrejeirado , caspento e verde , com olheiras ; a Sra.||_D._Plácida_do_Rio D.|_D._Plácida_do_Rio Plácida|_D._Plácida_do_Rio do|_D._Plácida_do_Rio Rio|_D._Plácida_do_Rio , espadanando em sedas berrantes , viúva inconsolável de um banqueiro honrado ; um soberbo e simpático homem , o Sr.||_Alípio_Vieira Alípio|_Alípio_Vieira Vieira|_Alípio_Vieira , de ombros largos , moreno , insinuante , ser misterioso e açucarado , sem modo de vida certo , sem domicílio conhecido , abotoado sempre numa impecável correção de diplomata , e que as más línguas diziam viver de complacências junto da inconsolável D. Plácida ; Henrique Paradela ; Inácio Miguéis ; o barão de Lavos ; e a filhita mais velha dos donos da casa , de 6 anos apenas , mas já cordata , ponderada , séria , compondo gestos , medindo palavras , observando as toilettes , toda a viveza e turbulência mortas nesta precocidade pretensiosa e doentia que forma a base da educação das crianças de Lisboa . Como o coronel não desatasse do improviso , D. Leonor e D. Elvira acercaram-se dele , troçando : -- O coronel , falta-lhe hoje a veia , que vergonha ! -- Pronto , pronto ! -- explodiu ele , numa radiação de triunfo . Escreveu a correr um último verso , ergueu-se , encavalou a luneta na base do nariz , chegou da luz o álbum , afastado a todo o comprimento dos braços , tossicou , e leu alto esta quadra : Um coro de gargalhadas acolheu a parturição grotesca daquele avariado cérebro . -- Bravo , coronel , muito bem ! -- É madrigalesca , maganão ! E maliciosa , vamos lá ! ... -- Sabe a pouco , é o defeito que tem . -- Parece-me que o terceiro verso está errado -- criticou a meia voz para a mãe a linear D. Aurélia , cuja boca enorme , sem mucosa labial , fendida em costura , parecia estirada ao peso do corpo , como um rasgão de farrapo espetado ao alto de um pau nas searas , para espantalho . E a mãe apoiou : -- E um idiota ! -- , enquanto o bom do homem , derretido e grato , de gravata encarnada , sobrecasaca preta , a calça de pano fino , larga e embalonada , caindo em refego sobre as esporas , e qualquer coisa de couraçado e cingido como um espartilho a definir-lhe o abdómen e a quebrar-lhe a cinta sobre os quadris , balbuciava numa opressão de modéstia , as brotoejas rosáceas da testa roxas da comoção : -- Ó minhas senhoras , confundem-me ! ... Eu não sou poeta ... Apenas um simples jeitoso . Entrava ao tempo , dandinante , viçoso e fresco , todo numa preocupação barulhenta de ser notado , o formoso Xavier da Câmara , pastinhas à petit-crevet , monóculo , polainas , e uma enorme gardénia , que parecia talhada em jaspe , brilhando na botoeira do fraque verde , muito curto , de botões de madrepérola . Era a figura dominante do sport lisboeta , o estalão da moda para os marialvas , o galanteador mais afortunado dos salões . -- Que belo ar de festa aqui vai hoje ! -- exclamou logo ; depois , cumprimentando a dona da casa : -- Felicito-a , minha senhora ... Pelo que vejo , trata-se de coroar de louros o nosso coronel ... Pois vem-me tout à souhait a oportunidade ; há muito que eu ardo no empenho de lhe fazer também un petit bout de apoteose . -- E sacudindo muito a mão do coronel , com o pé esquerdo leve e o corpo todo cambando à direita , num exagero pretensioso : -- Parabéns , coronel , muitos parabéns ! Entretanto a baronesa , levemente afogueada , levava-lhe obsequiosamente o álbum aberto e convidava : -- Pois não é bonito ? ...