NOVA COLLECÇÃO PORTUGUEZA II O ANEL MYSTERIOSO SCENAS DE+A GUERRA PENINSULAR ROMANCE ORIGINAL DE ALBERTO PIMENTEL 3.ª EDIÇÃO , ILLUSTRADA , REVISTA POR+O AUCTOR LISBOA EMPREZA DE+A HISTORIA DE PORTUGAL Sociedade Editora LIVRARIA MODERNA Rua Augusta, 95 TYPOGRAPHIA 45 , Rua Ivens, 47 1904 Este é um dos romances da minha mocidade . Foi publicado pelos editores da Bibliotheca Universal , de Lisboa , em 1873 . precederam-n* ' o os Idyllios á beira d' agua , ( 1870 ) , a minha primeira tentativa no romance , e O testamento de sangue , escripto aos vinte e trez annos . Estas datas desculpam hoje , aos meus proprios olhos , tudo quanto ha de hesitante e incorrecto em todas as trez novellas , que foram as primicias litterarias de um rapaz educado n ' uma terra essencialmente commercial , avessa a idealidades romanescas e ao convivio e apreço de escriptores , bons ou simplesmente toleraveis . Pelo que especialmente respeita ao Annel mysterioso , se quando agora o reli me não descontentou a acção dramatica , achei-lhe comtudo algum excesso de floração declamatoria , que é um defeito peculiar a todos os estreantes . A grande arte de escrever está na ponderada sobriedade da expressão , no equilibrio estavel entre a phrase e o pensamento . Fóra d' isto ha rhetoricos , mas não ha escriptores . Se eu , no decorrer dos annos , consegui aproximar-me d' este requisito essencial , não perdi de todo o meu tempo . Mas , ainda n ' esse caso , é defensavel a reimpressão de uma novella , que póde fornecer elementos de confronto entre duas épocas da vida de um escriptor . Como quer que seja , o Anel mysterioso agradou quando foi publicado em 1873 . A breve trecho sahiu a segunda edicção . E os mesmos editores me convidaram a escrever logo em seguida outro romance , que foi A Porta do Paraizo . . Ambos estes livros me abriram caminho entre o publico de Lisboa . O exito da Porta do Paraizo explica-se facilmente pelo interesse que inspirava ainda então o reinado de D. Pedro V. Quanto ao Annel mysterioso , que não é senão a biographia de uma celebridade das ruas do Porto , parece que foi o entrecho commovente que no espirito dos leitores lisbonenses suppriu a falta de conhecimento directo do protagonista . Quando eu escrevia este romance , muitas pessoas d' aquella cidade se lembravam ainda de ter visto frequentes vezes o Desgraça . Uma d' essas pessoas era Camillo Castello Branco , que , seis annos depois da publicação do Anel mysterioso , dizia a pag. 296 do livro Sentimentalismo e historia : " A um canto ( do botequim da Aguia d' ouro ) estava um velho de semblante livido , muito desgraçado , com um chapeu enorme de sêda d' um azulado decrepito , com um grande cigarro no canto da bocca . Ao lado , sobre um mocho , via-se uma guitarra com manchas gordurosas de suor que punham brilhos , e aos pés um cão d' agua com o felpo encarvoado , cheio de torçidas , encaroçado , dormia , e acordava de salto , apanhando com muita furia , no ar , as moscas que lhe picavam as orelhas . Era o José das Desgraças , o legendario mendigo , que morreu de saudades do seu cão , aggravadas pela fome " . Esta referencia authentíca hoje o retrato de uma individualidade popular , cujos contemporaneos dormem , como ella , o somno eterno da morte . Lisboa , 10 -- abril de 1903 . Albert Pimentel O Desgráça Entre os typos populares , que pouco a pouco vão rolando a sepulturas ignoradas , deixando após si o rasto de uma vida sobremodo accidentada de peripecias quasi sempre sombrias -- rasto que só um ou outro escriptor se compraz em prucurar desde a cadeia ao degredo , do albergue ao cemiterio -- avulta na tradição portuense um homem que por longo tempo ahi foi o alvo das assuadas do rapazio e dos chascos dos frequentadores de botequim . Uns chamavam-lhe o " José das Desgraças " , outros simplesmente o " Desgraça " . Parece dever inferir-se de tão lutuosa alcunha que a população da cidade lhe conhecia a biographia exuberante de lastimosos lances . Tal não ha . Quando elle passava coxeando arrimado ao seu bordão , sobraçada a guitarra inseparavel , de velho chapéo alto amassado , sobrecasaca abotoada , pendente a medalha de prata da guerra peninsular , annel d' ouro na mão esquerda , na bocca o enorme cigarro que elle proprio manipulava com pontas de charuto , seguido do cão fiel , que se chamava " Junot " , por motivos que mais tarde desvelaremos , o gentio das ruas ou sorria alvarmente da pittoresca pobresa do excentrico mendigo , ou rompia em apostrophes de " Ó Desgraça! Ó Desgraça! " que elle parecia não ouvir ou despresar em sua imperturbavel serenidade . E a populaça , sem sequer suspeitar da tenebrosa origem do cognomento , quedava-se a ouvil- o , calmadas as arruaças com que era saudado , quando elle , sentado á porta de um café , especialmente o do Jardim de S. Lazaro , começava a tanger melancolicamente a sua guitarra , na qual executava operas completas , queimando o seu enorme rolo de tabaco e contemplando , de cabeça inclinada , o cão que parecia escutal- o attentamente ... Depois , quando a mão caía extenuada sobre as cordas silenciosas , affigurava-se , tão alheado ficava , que estava rememorando maguas intimas , segredos da sua vida obscura , sem que parecesse dar tento das esmolas que lhe atiravam ao regaço os que entravam ou saíam a porta do botequim . Ás vezes , como se não houvesse conseguido linimentar com a musica as recordações dolorosas acordadas no imo peito , voltava a tanger na guitarra uns dulcissimos arpejos que finalmente lhe serenavam a alma tempestuosamente alanceada , chorando por elle , que não tinha lagrimas . Restituido á realidade da sua resignada nobresa , erguia-se firmado no bordão , sobraçava a guitarra , e continuava a peregrinação , vagueando pelas ruas da cidade , sem todavia dirigir-se aos transeuntes e recebendo impassivel os óbolos que jámais solicitava . E o cão , o leal companheiro de infortunio , seguia egualmente resignado seu dono , e quasi sempre indifferente ás provocações do rapazio que se divertia em apedrejal- o e açulal- o . Frequentemente intervinha o " Desgraça " ameaçando com o bordão os perseguidores do seu dedicado companheiro ; mas como o inquieto rapazio conhecesse que a velhice lhe desnervava o braço , entrava de levantar celeuma atroadora , em que , ainda assim , quasi sempre se distinguiam vozes de " Morra o " Desgraça " e o " Junot " ! Vende o annel e não andes a pedir ! " Estranho homem devia de ser esse , que parecia guardar grande mysterio , e tinha por unico amigo , entre uma população inteira , que o apupava , o cão fiel , e por consolação unica a sua guitarra , e por unica protecção a piedade dos seus conterraneos , que elle não implorava . O povo não suspeitava sequer que a biographia d' aquelle homem justificasse o appellido . Quando o " Desgraça " fazia chorar a guitarra entre os dedos , e o cão denunciava comprehender a guitarra , como que ligeiramente se commovia a turba acatasolada , mas d' ahi a pouco , quando estrondeavam os apupos , era o cão o unico espectador que mostrava lêr na physionomia do velho o mysterio de uma vida tormentosa . Ria a gentalha torpe d' aquella intima convivencia de homem e cão . E todavia não saía d' entre a arraia miuda o mais desgraçado dos populares a dizer ao pensativo guitarrista : " O teu cão sente e não fala ; eu falarei por elle . Soffres decerto muito e precisas consolação . Eu sou tambem muito infeliz , muito mais do que tu , porque não tenho guitarra nem cão . Deixa-me pois compartir do teu cão e da tua guitarra , que eu te darei o que tu não tens , dois ouvidos que te escutem , uma voz que te responda . " Não . A desgraça é tão infeliz , que se ri da desgraça ; é ella que se desauctorisa a si mesma . Só lhe falavam para chasqueal- o , para lhe cuspir na face a zombaria que elle , absorto no seu continuo cogitar , deixava resvalar aos pés . E todavia aquelle homem era um grande desgraçado , que só tinha no mundo a sua guitarra , o seu cão , e as suas recordações . O annel , que trazia na mão esquerda , podia matar-lhe talvez um dia de fome , mas não haveria miseria que lh'o arrancasse do dedo , porque as suas recordações estavam n ' aquelle annel . Na quinta das Chãs Na noite de 17 de fevereiro de 1809 , a morgada viuva da quinta das Chãs conferenciava gravemente com o seu capellão n ' uma das salas terreas do solar , a duas leguas de Braga , sobranceiro á aldeia -- Carvalho d'Éste . A morgada , senhora de uns sessenta annos , deixava entrever nas sombras da physionomia a tempestade que lhe agitava a alma ; o capellão , passeando de um para outro lado , enviesava á morgada olhares investigadores , que para logo revelariam perfidia e cupidez . -- É preciso partir , padre capellão , dizia afflictivamente a morgada . Se os francezes logram atravessar o rio Minho , estarão brevemente em Braga . A mim pouco me importaria a vida se não fosse Augusta , que a esta hora está dormindo na serenidade da sua innocencia . Tomára que chegasse o Teixeira para contar o que se passou . Diga o que disser , padre capellão , é preciso pensar maduramente . Meu genro fez-me depositária de um thesouro , que eu hoje quero salvar de todos os perigos , custe o que custar , porque se me affigura que já estimo mais Augusta do que aos seus proprios paes , e a seu irmão . Recebi minha neta aos 5 annos , porque á luz da consciencia conheci que melhor poderia eu sustentar uma criança , apesar das hypothecas da minha casa , do que um pobre capitão do exercito poderia sustentar dois filhos . O padre capellão administrava as propriedades . Que me restava a mim para não morrer de aborrecimento durante o dia ? Augusta , a criança que me tinha sido confiada . Era ella a minha unica distracção , o meu unico amor ; ha dez annos que este tecto lhe abriga a innocencia , e ha dez annos que eu abençôo a resolução de a chamar para amparo da minha velhice . Olhe que os annos tornam a gente egoista , padre capellão ; a abnegação é só apanagio da mocidade . Não pense que me bastava a unica distracção do voltarete ; é sempre a mesma cousa ! Quando eu " peço licença " o padre capellão " prefere " , e o Teixeira dá-lhe " codilho " . Tambem é boa embirração a sua de " preferir " sem jogo . Nem que tivesse vontade de fazer mal ... E o dia , estes longos dias da provincia , que não teem fim ! Era morrer de fastio . Augusta trouxe-me cuidados e variedade . A principio com as suas exigencias de criança ; agora com as suas ingenuidades de donzella . Vi , anno a anno , desabotoar a flôr . A flôr , disse bem , porque Augusta é realmente uma rosa ... de quinze annos . E é que eu a estimo como seu jardineiro que sou . Instantemente lhe pedi que se deitasse para que não ouvisse dizer ao Teixeira as proezas que os senhores francezes teem feito lá para esse rio Minho . Mas , padre capellão , o que é certo é que eu já haveria partido para o Porto , se n ' esta occasião estivesse prevenida com recursos . O padre capellão bem sabe ... -- Sei , sei , senhora morgada , que a occasião é má para todos . -- Se os caseiros pudessem pagar o resto das rendas ... -- A senhora morgada devia conhecer o que é guerra sobre guerra . Tivemos esse excommungado Junot , mais as suas aves de rapina , a comer-nos os olhos da cara . Nem as egrejas respeitou , o maldito ! A senhora morgada ainda fala em pedir o resto das rendas aos caseiros ! E para quê ? Para fugir para o Porto , para casa de seu genro , para abandonar as suas propriedades ! -- O padre capellão velará por ellas . É que eu bem sei os sustos que curti aqui durante a primeira invasão . Se no Porto não estivesse a soldadesca do Taranco , teria fugido para lá . -- E que teima essa de me querer confiar as suas propriedades , capacitado como estou de que a senhora morgada suppõe que lh'as administro mal ! Administro mal , administro , porque não forço os caseiros a pagarem o resto das rendas para vossa senhoria o ir gastar no Porto com a familia de seu genro . Depois de uma guerra e em vesperas de outra é que a senhora morgada fala em pagar ! -- Pagar é um dever , padre capellão , e quanto mais nos apressamos a fazer o que devemos tanto maior é o repouso do espirito . Bem sei que são más as circumstancias , mas é que tambem esta pobre gente se importa pouco com o calendario , e acha que todo o tempo é tempo . É que tambem não imaginam que se esconda a pobresa detraz de pergaminhos e genealogias . Pois esconde , se esconde ! Sabe o padre capellão que eu falei no resto das rendas porque n ' esta occasião não ha dinheiro em casa . Ninguem melhor o sabe , porque lhe passam os negocios pela mão . O que é certo é que eu sinto ameaços de pobresa ... -- Nem tanto ao mar , senhora morgada ... -- Se presinto ! Vivo modestamente n ' estas solitarias Chãs , encantada nas graças d' Augusta , cerrando ouvidos ao bulicio da cidade que está proxima . Não posso fazer despezas extraordinarias , é preciso não largar a brida da mão para costear as indispensaveis . -- Os chás não são indispensaveis , senhora morgada ... -- Magôa- me a sua ironia , padre capellão ! Tanto mais que sabe como é limitado o serviço da nossa mesa de jogo . E depois queria que eu fechasse as minhas portas na face do velho Teixeira , amigo leal da nossa casa desde a mocidade de meu marido ? Sabe o padre capellão como o morgado deixou as propriedades sobrecarregadas de hypothecas . Mal tenho podido rehabilitar o casal , apesar de todas as economias e da maxima abstenção d' obras de beneficencia ... -- Maxima abstenção ! ... -- É injusto , padre capellão ! Refere-se talvez á Augusta ... Não sabe que é filha de minha filha , casada por inclinação com um honrado militar do exercito portuguez , a quem não basta unicamente a sua immaculada honradez para ser feliz ! Era-me impossivel soccorrer a mãe ; soccorri a filha . Eu não podia ir mais longe , senão teria ido . Sempre contrariedades ! Sempre o padre capellão a annunciar-me algum novo desastre ! Ah ! mas d' esta vez creia que não haverá desastre nem contrariedade que me véde o tirar dos hombros uma enorme responsabilidade , levando Augusta para a companhia dos seus , e minha tambem , porque ella é minha , e muito minha , pelo sangue e pelo coração ... Em ultimo caso , recorrerei ao emprestimo ... -- Outro ? -- É minha filha e meus netos que eu prejudico ; o padre capellão , não . Todavia , como é para bem d' elles , elles m ' o perdoarão . O padre capellão por sua propria mão recebe os juros das quantias que tem desembolçado , e creio que as propriedades que conservo fartamente abastarão ao pagamento do capital , no momento em que queira usar dos seus direitos de crédor . -- Eu não quero ... -- Deixe-me figurar a peior hypothese , e evidenciar-lhe que lhe não causam detrimento os seus desembolços . -- Falando francamente , senhora morgada , sou a dizer-lhe que o juro é pequeno ... -- Augmente- o como lhe apraza . Não é meu costume questionar cinco réis ao padre capellão . -- Eu sou tão pobre como a senhora morgada , tartamudeou o reverendo com um frouxo de tosse que denunciava estar providencialmente entalado com o osso da mentira . A morgada gesticulou de incredulidade e enfado . -- Eu sou tão pobre como a senhora morgada , reatou o capellão ajudando-se a engulir a falsidade com um sorvo de rapé -- e é á custa de trabalho que tenho recolhido escassas mealhas ao canto da gaveta . De inverno arrosto as neves da madrugada para saír aos campos a espionar os trabalhadores no interesse de vossa senhoria . No verão aguento as calmas do meio dia para os estimular ao trabalho . As horas feriadas de canceiras externas passo-as á banca a fazer a escripturação ou no quarto a rezar as minhas orações . Tenho envelhecido ao serviço de vossa senhoria , e o magro peculio do pobre padre ao trabalho o devo . E o mais é que já vou achando ser horas de descançar ... Vejo porém que não seria facil encontrar quem com zelosa dedicação governasse a casa alheia , e , se me é canceira o dirigil- a a despeito da velhice , tambem me é consolação o ouvir dizer-me a consciencia que devo trabalhar por não ver quem facilmente me substitua . Digam embora o senhor seu genro e a senhora sua filha o que quizerem , e me consta que dizem : a verdade é esta ... -- Convenho , padre capellão , e é por conhecer a sua desinteressada -- a morgada deu a esta palavra uma inflexão sensivelmente ironica -- desinteressada dedicação , que tenho batido á sua porta sempre que a necessidade me obriga a incommodar alguem . Se lhe pedia agora para passar aviso aos caseiros , era porque não queria importunal- o com repetidas mercês ... -- Nunca me incommodaram as ordens de vossa senhoria , atalhou o padre , curvando-se respeitosamente a meio da sala . -- Eu é que a mim mesma me incommodo com a ideia de incommodal- o , posto que eu não seja dos devedores que mais devem aborrecer por egoistas ... -- Creio que já tive a honra de dizer á senhora morgada que a occasião é má para todos . -- E proseguiu mirando ao alvo que elle queria attingir : Era porém grande a quantia que vossa senhoria desejava ? -- A sufficiente para me transportar ao Porto com a menina , e para não tornar pesada a hospedagem que minha filha haja de dar-me . É preciso partir , padre capellão , se os francezes não forem repellidos na fronteira . Entrarão por esse Minho dentro furiosos , e eu não respondo só pela minha vida , que já pouco vale , mas tambem pela de Augusta , que me foi confiada em deposito . Que valeria a minha presença aqui ? Os criados fugiriam decerto , e a edade do padre capellão não lhe permittiria defender duas mulheres , ambas timidas , uma porque é velha , e outra porque é nova . Além de maior segurança que offerece o Porto , como grande cidade que é , Augusta poderá d' ali seguir melhor a sorte de seu pae e seu irmão nos combates . Não estará para aqui anciosa sem receber noticias que a tranquillisem . Aqui , quando ha guerra , apenas se sabe que ha guerra , e mais nada . O padre capellão offereceu-se para ficar ; desappareceram todas as difficuldades . Sem o seu offerecimento eu não poderia deixar desamparado o solar de meus avós . Teria de luctar angustiosamente entre o amor d' Augusta e o respeito á memoria de meus paes e meu marido . Se os invasores entrarem , respeitarão porventura a sua velhice e as suas vestes , padre capellão , se é que elles respeitam alguma cousa ... O padre capellão , julgando haver já simulado a precisa resistencia á partida da morgada , apostrophou de golpe : -- Mas , voltando ao caso , senhora morgada , ponhamos os pontos nos i i . Quanto desejava vossa senhoria ? -- Eu ... cem moedas talvez . -- Cem moedas é muito , senhora morgada , e eu não estou prevenido . -- Pois veja o padre capellão se póde obter essa quantia , que eu cederei a qualquer exigencia de juro . -- menos de 15 por cento não será possivel , senhora morgada ... -- Pagarei os 15 por cento ; trate o padre capellão de negociar sem demora as cem moedas . -- Hum ! rouquejou o padre . Veremos . Póde ser que se abra alguma porta ao homem honrado que só em grande estreiteza deixa d' abrir a sua . Ámanhã falaremos , senhora morgada . Vou fazer as minhas rezas emquanto não chega o palrador do Teixeira com noticias dos francezes ... E saíu da sala em direcção ao seu quarto . A morgada , vendo-se só , pareceu respirar com sofreguidão , como o encarcerado que conquista a liberdade e , como elle , pareceu conversar comsigo mesma : -- Que alma de marmore a d' este homem ! É um inimigo que tenho de portas a dentro e que conservo porque me não permitte o animo nem a edade travar lucta com tão arteiro contendor , que apara todos os golpes na batina com beatitude irritante . Depois levantou-se , agitou a campainha , e esperou com os olhos fitos na porta que apparecesse a criada . -- A menina dorme ? perguntou . -- Dorme , senhora morgada . -- Accende o candieiro e abre a mesa . Quando bater o sr.||_Teixeira Teixeira|_Teixeira , manda entrar . Palavras não eram ditas , resoou a aldrava do portão . Momentos depois entrava á sala o velho Teixeira , fidalgo retirado das pompas da côrte por conselho da consciencia que o advertia de que estava a empobrecer d' um dia a outro . N ' aquelles tempos que precederam a retirada da familia real para o Brazil , as tentações de Lisboa eram tantas , e tão dispendiosas , que não admirava que um cortezão immolasse a celebradas damarias o seu opulento morgado do Minho . Alguma coisa salvára porém o velho aulico do muito que na côrte consumira . Trouxera de lá a palaciana compostura que realça até mesmo na decadencia . Maneiras e palavras , pesadas com fina discreção , estavam desculpando a cada passo as sombras que por mais d' uma vez denunciavam não ser impeccavelmente crystalina a reputação das açafatas da rainha||_D._Maria_I. D.|_D._Maria_I. Maria|_D._Maria_I. I.|_D._Maria_I. Entrou o fidalgo e logo correu a morgada a perguntar-lhe anciosamente : -- Que noticias nos traz vossa senhoria ? -- Boas , senhora morgada , se póde haver boas noticias quando a tempestade , que se descondensa n ' um ponto , ameaça n ' outro . -- Inda bem ! inda bem ! apostrophou a morgada relanceando um olhar d' alegria á porta do quarto onde estava descançando a neta . O padre capellão , sem se dar o incommodo de desculpar a ligeireza com que alinhavara as suas orações , appareceu mordido de curiosidade . -- E o caso é que pensei que das indagações já não sobrava tempo para o nosso voltarete ! -- disse o Teixeira sentando-se a um gesto da morgada . -- Venho tarde , e porei por desculpa da demora o bom empenho que tinha em poder satisfazer a justa anciedade de vossa senhoria . -- Não obstante serem boas as informações , supplico- lhe que não aggrave as côres do quadro , dado que entre por ahi de improviso a minha neta , que se recolheu aos seus quartos , por ordem minha , para não ser testemunha auricular da narrativa no caso de que fosse lugubre . -- Os francezes foram repellidos heroicamente , disse o fidalgo baixando a voz . -- Vamos a isso ! atalhou o padre capellão fungando uma pitada . O fidalgo proseguiu : -- Os francezes não ousaram metter-se ao Minho , que vae de monte a monte , com a agua que tem caído , por se arreceiarem da cheia . Trouxeram por terra os barcos que puderam obter na Guardia , e puzeram-n* ' os a nado no Tamuge . -- Que artes teem os malditosl exclamou o capellão lembrando-se de que não haveria thesouro que resistisse á astucia franceza . -- Deixe ouvir ... observou a morgada . -- Eram vinte e tantos os barcos , que pretendiam abicar á praia do Camarido . Trez separaram-se , ao descer o rio , e chegando primeiro á praia , os soldados desembarcaram . Os outros barcos tiveram que luctar , e muito , contra a maré que lhes era adversa . Isto durou toda a noite . Só hontem de madrugada foi que o Champalimaud percebeu claramente a tentativa do inimigo , e que mandou fazer fogo de fuzilaria . Um dos barcos foi a pique ; outro despedaçou-o o mar . Os francezes dos trez primeiros barcos refugiaram-se no Camarido . Estes desastres deram alento aos paisanos , que se embarcaram para atacar o inimigo no rio , protegidos pela artilharia da Areia Grossa e da Insua , e pelos soldados do 21. Os francezes , contrariados pela correnteza das aguas e pela resistencia dos nossos , retrocederam para a margem direita do Minho , desesperando d' atravessal- o . Então bateram os nossos a matta do Camarido , encontrando dentro mais de trinta francezes , um dos quaes consta ser capitão e haver declarado o nome do general em chefe de todo o exercito . Chama-se Soult o general ... -- Elles tambem escolhem-n* ' os pelos nomes ! interrompeu o padre para quem toda a prosodia era difficil , incluindo a latina e a ... portugueza . -- Os paisanos , segundo se dizia em Braga , fizeram proezas , continuou placidamente o fidalgo . Até as mulheres acudiram com fouces roçadouras e forcados . -- Nunca as mãos lhes dôam ... observou impudentemente o capellão -- Pelo meio dia atacaram os francezes Villa Nova da Cerveira , sendo ainda repellidos brilhantemente pelos nossos , tropa e povo . Mas , senhora morgada , o que mais dava que falar era a coragem de trez rapazes de Valença , que se arrojaram a ir encravar um morteiro , que os francezes tratavam de assestar contra a praça . Isto é o que se sabe desde manhã ; o que já se terá passado pertence a Deus e aos que estão em armas . -- Mas que lhe parece a vossa senhoria : entrarão ou não entrarão ? perguntou a morgada . -- Para que nos havemos de illudir com mentirosas esperanças ? Os invasores são poderosos e por mais d' uma parte poderão entrar , ao passo que os nossos , divididos para guarnecerem as fronteiras , perdem muito de sua força n ' essa mesma divisão . -- Com que então não se fala por ora em guerra ! disse de improviso a morgada ouvindo abrir a porta do quarto d' Augusta . O fidalgo já não teve tempo de responder porque sentiu na sala os passos da menina . -- Então não ha guerra ? exclamou Augusta com graciosa innocencia . -- Não ha , não ha , respondeu amavelmente o fidalgo ; a não ser a do nosso voltarete . E continuou , convidando a morgada a sentar-se : -- Permitta-me vossa senhoria , senhora morgada que eu continue a assestar a bateria dos codilhos contra a muralha de " preferencias " do nosso reverendo . Então , padre capellão , quer sentar-se ? ... Em que estava pensando tão absorto ? -- Estava pensando que se não puderem entrar pelo litoral , poderão entrar por Chaves , porque o castello está desmantelado , disse o capellão com a maxima impudencia ou com a maxima velhacaria . -- O quê ? ! perguntaram todos a um tempo , incluindo Augusta , que pareceu fulminada de raio . -- Ah ! sim ... isto é quando elles entrarem . Vamos lá fazer a partida . Pomba que presente sangue A morgada das Chãs passou agitadamente essa noite , e do inquieto cogitar na solidão do seu quarto resultou levantar-se decidida a partir n ' esse dia com a neta . O padre capellão negociou as cem moedas ... comsigo mesmo , dizendo que as obtivera d' um proprietario mediante o desconto dos juros d' um semestre adiantado . Partiu a morgada , de manhã , para o Porto , acompanhada por Augusta , depois de haver entregado as chaves da sua casa ao capellão , que tinha nos labios um sorriso de alvar alegria . Tambem a morgada estava radiosa do duplo jubilo de poder respirar desopprimida da sombra d' aquelle homem , e de ir collocar sob o amparo paternal a neta querida do seu coração . Nas faces d' Augusta havia egualmente um reflexo d' intimo contentamento , não só porque a aproximavam dos paes , mas porque a levavam para os braços do irmão , a quem ternamente estremecia , e com o qual permutava cartas diarias perfumadas das mais suaves fragrancias do amor de familia . A menina contava quinze annos , como já sabemos ; o irmão , que se chamava José Maria , tinha dezeseis . Estas duas creanças eram filhas do capitão do exercito Graça Strech , que em 1809 morava á rua nova do Almada O appellido Strech inculca á primeira vista procedencia estrangeira , e realmente é d' origem germanica . O pae do capitão||_Graça Graça|_Graça , allemão de nascimento , fôra capitão de navios , e tivera por ultimo um modesto estabelecimento commercial em Cima do Muro . Os dois filhos de Graça Strech nasceram porem á rua Direita , na casa que divide a rua de Santo Ildefonso da rua de Santo André , e onde elle morára durante os annos de 1793 e 1794 . Augusta era tudo o que se póde imaginar de graciosamente feminil na época em que nos é dado conhecel-a . O pintor que quizesse retratal-a facilmente lançaria á tela os cabellos loiros , naturalmente annelados ; os olhos d' um azul suavissimo como os mais formosos horizontes ; as faces d' uma brancura levemente rosada ; a estatura " mignonne " , -- tudo quanto póde haver de mais correcto e dôce em figura de mulher . Mas a difficuldade estaria seguramente em reproduzir no retrato a meiga morbidez dos lirios que se abrem ao desabrochar da manhã . E n ' ella brotava a mulher das graças da creança , como um lirio á luz da aurora . José Maria era uma organisação inteiramente opposta á de sua irmã . Dir-se-ia-que ella havia nascido para rosa , e elle para roble ; ella para succumbir , e elle para luctar . Desenhavam-se no seu corpo de dezeseis annos os contornos athleticos d' um spartano . Olhos vivos , e pretos como os cabellos ; talhe esbelto , maneiras sacudidas e ageis . Pois que elle era a força e Augusta a brandura , affigurava-se providencial essa disparidade de constituições , e até de genios , para que a flôr pudesse ser protegida pela sombra do roble . Quando a morgada das Chãs chegou ao Porto , entrou-se de profundo arrependimento por ter feito vingar a sua resolução . Em casa da familia Strech era grande a tristeza . O pae e o irmão , estavam no exercito , e portanto a tristeza provinha da anciedade com que o azar dos combates alvoroça sempre as familias dos militares . -- Eu trouxe Augusta , dizia a morgada , chorando , á filha , para que , se houvesse de correr perigos , não ficasse o meu coração atormentado de medonha responsabilidade ; porque mais facilmente saberia aqui noticias do pae e do irmão do que nas Chãs ; e porque finalmente o Porto offerecia maiores garantias e segurança do que qualquer outra terra . De feito , a cidade do Porto era julgada inexpugnavel , e a ella se acolhera grande parte da população do Minho , á medida que os acontecimentos da guerra se iam desdobrando . Tratemos de saber quaes foram . Os francezes , impossibilitados de seguir o caminho do litoral , que lhes tinha sido ordenado , marcharam para Traz-os-Montes no proposito de entrar em Portugal pelo valle do Tamega . No dia 8 de março estavam as avançadas francezas á vista de Chaves , que no dia 10 foi sitiada , rendendo-se no dia 12 . O marechal||_Soult Soult|_Soult , vendo-se impossibilitado de guardar os prisioneiros , despediu as milicias e as ordenanças , que estavam dentro da praça , depois de lhes exigir juramento de que nunca mais pegariam em armas . As praças da tropa de linha convidou-as a bandearem-se no seu exercito ; ellas unanimemente aceitaram com o proposito de desertar , como aconteceu . O sonho de Soult era tomar o Porto , e para o realisar tinha nada menos que dois caminhos : o que vae a Villa Real e o que vae a Braga . O marechal preferiu o segundo , por ser o menos accidentado . Chegado que fosse a Braga , só encontraria no caminho do Porto a difficuldade da passagem do Ave em Santo Thyrso . Seguiu , pois , o exercito francez para as alturas de Barroso no dia 14 . O general Bernardim Freire d'Andrade , tendo noticia de que os piquetes francezes escaramuçavam na Portella de Avado e em Villarelho da Raia com as avançadas do general Silveira , commandadas pelo coronel Magalhães Pizarro , tomou desde logo todas as medidas possiveis para salvar o Porto , repartindo as suas pequenas forças por Salamonde , Ruivães , Salto e Ponte do Cavez , guarnecendo a raia , e mandando occupar Amarante o brigadeiro Victoria , a cujas ordens militavam o capitão||_Graça_Strech Graça|_Graça_Strech Strech|_Graça_Strech e seu filho . No dia 15 foi Freire de Andrade insultado pela população de S.||_Gens Gens|_Gens , quando voltava de visitar os postos entre Braga e Ruivães . O fim a que avisava o general portuguez era retardar a marcha do inimigo sobre Braga , quanto lhe fosse possivel , para dar tempo a que d' aquella cidade saíssem para a defeza do Porto as munições e o laboratorio . Depois de haver expedido ordem ao brigadeiro Victoria para se internar no Porto , recolheu-se Freire d'Andrade no dia 17 a Braga , encontrando por todo o caminho vestigios da grandissima exaltação popular , que se levantára mal que soou a noticia da aproximação dos francezes . Dado o signal de rebate , o povo do Minho saíu em turbamulta a esperar o inimigo em Carvalho d'Éste , e outros logares convisinhos , armado de chuços , fouces roçadouras , e mais instrumentos proprios do seu uso . Em Carvalho d' Éste houve brodio geral , constante de pão e vinho , a expensas d' alguns particulares patriotas , o que não obstou a que um dos membros da sordida junta de segurança apresentasse o rol das despezas . Procedendo-se a uma collecta geral , que foi voluntariamente paga , ficou o povo duplamente esfomeado , porque a contribuição parece que só aproveitou á junta de segurança . Avisinharam-se , finalmente , os francezes da cidade -- Braga , e conhecendo Freire d'Andrade , no dia 17 em que ali entrou , que era impossivel qualquer defeza , mandou retirar pela estrada do Porto , resolvido a embargar denodadamente o passo ao inimigo n ' essa marcha . Todavia o povo , suppondo-o traidor por não se haver empenhado em acção geral com os invasores , saíu-lhe ao encontro em Carapoa , e já ahi seria morto se lhe não valesse Antonio Berardo da Silva , commandante de uma brigada de ordenanças . Removido o inesperado perigo , seguiu o general seu caminho , mas encontrando-o as ordenanças de Tabosa , prenderam-n* ' o e conduziram-n* ' o a Braga , onde , chegado que foi é prisão do Aljube , a populaça desenfreada o arremessou pelas escadas abaixo , acabando de matal- o ás chuçadas . Subsequentemente foram tambem immolados á sanha popular , em Braga , o quartel-mestre general de Bernardim Freire , Custodio Gomes Villas Boas , o corregedor da cidade , Bernardo José de Passos , e outros ; e em Santo Thyrso , D. João Correa de Sá e Manoel Ferreira Sarmento . No mesmo dia da morte do general Bernardim Freire de Andrade tomavam os francezes posição em frente de Carvalho d'Éste , sendo repellidos no primeiro ataque . O barão d' Eben commandava as nossas tropas , com as quaes se havia bandeado a gente das aldeias convisinhas . Entre a populaça contavam-se os criados da quinta das Chãs que desampararam o padre capellão , sempre prompto a castigal-os , e odiado por elles . Pelas onze horas da noite chegaram , para reforçar o posto , a legião de Salamonde e duas companhias do regimento de Vianna . Soldados e povo estavam famelicos . Durante a noite um magote de populares , engrossado pelos criados da morgada , bateu ao portão da quinta . Ao primeiro chamamento não respondeu ninguem ; ao segundo assomou a uma das janellas a cabeça silicosa do padre capellão . -- Pão e vinho ! gritou a turba . -- Não está cá a senhora morgada , tartamudeou o reverendo . -- É o mesmo ; abra a porta , contestou o gentio . Como porém a impaciencia da turba fosse muita , a populaça metteu a porta dentro a tempo que o padre atravessava o pateo de lampeão em punho . Um dos populares vibrou-lhe uma chuçada que o prostrou , e logo outro , que era criado da casa , acrescentou : -- Vamos á " burra " do padreca ; no que fôr da senhora morgada não se toca . No dia seguinte atacou o inimigo novamente Carvalho d'Éste , e no dia 20 voltou ao ataque , apparecendo em grande força . Parece que a Providencia havia aconselhado a morgada das Chãs a fugir de um ponto onde a lucta foi mais renhida , porque , posto que os populares a respeitassem , o inimigo caiu no dia 20 em forte columna sobre Carvalho d'Éste , empenhando-se ataque geral , e sendo desesperada a posição dos nossos , que fugiram em grande confusão , acossados muito de perto pela cavallaria franceza . No pateo da quinta das Chãs tinham os nossos quinze barris de polvora que , não podendo ser salvos , por estar muito proximo o inimigo , foram incendiados por ordem do barão d' Eben , perecendo oito homens na execução d' esse serviço . As chammas , enleiando-se pelos alpendres encostados ao edificio , acabaram por envolvel- o , e , horas depois dos francezes entrarem em Braga , e a tempo que o povo enfuriado matava os presos encarcerados no Aljube , ardia , chammejando como fornalha enorme , o solar das Chãs , a duas leguas de distancia da cidade invadida . A noticia da tomada de Braga só se soube no Porto no dia 22 , quer dizer , quarenta e oito horas depois . Havia dias que o brigadeiro Victoria se tinha internado n ' esta ultima cidade com as suas forças , por ordem do agora fallecido Bernardim Freire de Andrade . Como já sabemos , o capitão Graça Strech e seu filho militavam ás ordens deste brigadeiro . Portanto , teve Augusta occasião de abraçar o irmão e o pae , que procuraram serenar com palavras de carinho e conforto os receios do angustiado coração da menina . A morgada , quando soube que os francezes tinham rompido por Carvalho d'Éste sobre Braga , apesar de ignorar os pormenores da lucta , a morte do capellão e o incendio do solar , agradeceu ao anjo da guarda a inspiração da resolução tomada . N ' esse mesmo dia foi o Porto theatro de lastimosas scenas . Conhecida a derrota de Braga , dirigiu-se a populaça á cadeia da Relação , reclamando a entrega dos presos da Inconfidencia , e arrancando para fóra dos muros do carcere o brigadeiro Luiz d'Oliveira e mais quatorze infelizes , que foram arrastados pelas ruas até Villa Nova de Gaya , d' onde a gentalha ensanguentada os precipitou , do Caes da Bica , á corrente do Douro , por haverem sido condemnados á morte pelo tribunal popular constituido na " Porta do Olival " . Só o bispo , D. Antonio José de Castro , poderia , por muito respeitado que era , conter a furia dos cannibaes das ruas , mas , provavelmente para não incorrer no desagrado da canalha contrariando-lhe os brutaes instinctos , deixou-a espostejar á vontade os presos da Inconfiencia . Sua excellencia reverendissima é que se não arriscou a ser conceituado de jacobino . Quando a turba descia com os presos a calçada dos Clerigos , ouvia-se na rua Nova do Almada a celeuma das victimas e dos algozes . Augusta , tremula de horror , acolheu-se nos bracos do irmão , que obtivera licença para sair por alguns momentos do seu posto na linha de defesa , e poz as mãos supplicando a Deus que a tirasse do mundo onde os homens se estavam despedaçando como feras no sertão . Só as caricias de José Maria lograram aquietal-a , quando a vozeria soava mais longe , porque já a multidão havia enveredado pela rua das Flores , caminho da Ribeira . A mãe e a avó pareciam agonisar abraçadas em estreito amplexo . O marechal||_Soult Soult|_Soult , senhor -- Braga , podia recuperar as suas communicações com Tuy ou marchar sobre o Porto , mas , como era natural , attenta a importancia d' esta cidade e a fama das suas riquezas , optou pelo segundo dos caminhos a tomar , porque melhor realisaria assim o seu sonho de conquistador . Ouçamos o sr.||_Soriano Soriano|_Soriano historiando o roteiro que o marechal||_Soult Soult|_Soult seguiu de Braga ao Porto : " Deixando portanto em Braga a divisão do general Heudelet , para lhe defender a rectaguarda contra as incursões do general portuguez , José Antonio Botelho de Sousa e Vasconcellos , que commandava as forças da divisão da raia , entre os rios Lima e Minho , dividiu o seu exercito em trez columnas , a primeira marchou pela estrada de Guimarães a S. Justo , com ordem de forçar a passagem do Ave de Cima e occupar o campo do lado de Pombeiro ; a segunda , commandada pelo proprio Soult em pessoa , marchou logo direita á Barca da Trofa ; e a terceira , deixando Barcellos , para onde de Braga tinha sido mandada , tomou a estrada da ponte do Ave . A passagem d' este rio foi fortemente disputada pelos portuguezes , sendo a columna da esquerda obrigada a bater-se renhidamente em Guimarães , Pombeiro , Negrellos , e sobretudo n ' este ultimo ponto , onde morreu o bravo general Jardon , cuja falta muito sentida foi pela totalidade do exercito inimigo . A marcha da columna do centro foi interrompida na Barca da Trofa , por se ter n ' ella cortado a ponte do Ave ; mas Soult , vendo o grande cumulo das nossas forças ali , forçou a passagem em S. Justo , ganhando a margem opposta . Desde então facil lhe foi a columna da direita fazer o mesmo , ficando assim vencida a passagem do Ave em todos os pontos , e portanto aberto inteiramente o caminho em direitura para a cidade do Porto , a cujos entrincheiramentos o exercito francez chegou no dia 27 de março . " Na tarde d' esse mesmo dia a guarda avançada do inimigo , acampado em S.||_Mamede_de_Infesta Mamede|_Mamede_de_Infesta de|_Mamede_de_Infesta Infesta|_Mamede_de_Infesta , adeantou-se até um quarto de legua das baterias do Porto . Ouviu-se na cidade o fogo indicativo da aproximação dos francezes . Para logo se espalhou o terror , não obstante terem sido organisados alguns elementos de resistencia . As familias que tinham os seus empenhados nas linhas de defeza , afflictivamente receiavam os perigos de uma grande catastrophe , pois que ainda quando a lucta fosse coroada pela victoria , havia de interpôr-se aos primeiros combates e aos louros do triumpho um mar de sangue portuguez . Que dolorosa commoção não seria a de Augusta , que torturado soffrer nas vascas da anciedade não seria o seu , ao ouvir estrondear á distancia o fogo que os invasores assestavam contra as linhas de defeza , onde combatiam o pae e o irmão ! Aquellas trez mulheres , a avó , a mãe e a filha , ajoelhadas deante de uma imagem de Nossa Senhora , cerrando convulsamente os olhos a cada detonação longinqua , dir-se-iam-outros tantos authómatos , empedrados pelo terror , se não fôra o ciciar dos labios e o abrir e fechar nervoso das palpebras . Sabem como baloiça a haste do lirio , quando o sopro calido da tempestade proxima passa esfuziando por entre a folhagem das plantas que lhe offereciam resguardo ? Tal era Augusta , lirio vasado em moldes de mulher , entre os dois corações amigos , o da avó e o da mãe , que já não podiam garantir-lhe protecção . Conhecera o marechal||_Soult Soult|_Soult que era má a fortificação da cidade e má a guarnição , e expediu no dia 28 um emissario propondo capitulação . O emissario , para se não arriscar á morte , serviu-se de um ardil de guerra e disse-se incumbido de negociar a entrega do exercito francez mediante condições favoraveis . Entrou o bispo em negociação , cuja má fé , por parte dos invasores , estava manifesta na circumstancia de continuar a ser intenso o ataque durante todo o dia . N ' essa tarde ouviu-se subitamente grande celeuma nas ruas . Recresceu a anciedade no presupposto de serem as avançadas francezas . A morgada das Chãs teve a coragem precisa para se aproximar da vidraça , e viu um militar francez rodeado de grande turba de populares que gritavam enfuriadamente : " " Morra o Maneta ! Morra ! " " Adivinhou-lhe o coração que era um emissario , que provavelmente ia á bateria de S. Francisco a parlamentar com o bispo . Quasi defronte das janellas , como augmentassem as vozes de : " Morra Loison , morra o Maneta " , o militar francez levantou ambos os braços para desfazer o equivoco . Não obstante , a populaça arremettia contra o cavallo em que elle vinha montado , e a celeuma rugia temerosamente . A morgada correu a abraçar a filha e a neta , ajoelharam orando fervorosamente , e longo tempo supplicaram que um raio da Providencia illuminasse o coração do povo , para que á desgraça da invasão não sobreviesse a furia da represalia . O emissario francez não era effectivamente o general Loison , mas o general Foy ; com blandicias e ameaças , escriptas por Soult , vinha propôr a rendição , que foi recusada . Com este acontecimento fechou a tarde do dia 28 tempestuosa e triste , como se o céo compartisse do luto da terra . Ás detonações do trovão respondiam as detonações da artilharia . Horrores da invasão Durante a noite de 28 para 29 continuou tão rijo o fogo , que o inimigo logrou forçar a bateria da Prelada . Grande era o pavor da cidade , e maior foi quando se soube que sua excellencia o bispo generalissimo se havia retirado para a Serra do Pilar . Este facto demonstrava não só a descrença do prelado na defeza do Porto , senão que tambem punha a descoberto a intenção de fuga , no caso de perigo , o que realmente aconteceu . Não lastimemos a impiedade deshumana do pastor , que abandonava em tão dolorosa conjunctura o rebanho indefeso , porque basta a historia a stygmatisal-a , mas calculemos a funesta impressão que semelhante noticia causaria nos animos desalentados dos portuenses . A familia do capitão Graça Strech foi seguramente uma das que mais succumbiram n ' aquella tormentosa noite . As trez mulheres estavam entregues ás suas orações e angustias , inabalaveis no proposito de esperar a pé quedo a desgraça , verdadeiramente sós , porque os criados , que foram os primeiros a dar rebate , fugiram , durante a noite , bandeados com outros habitantes , para Gaya . O capitão e o filho combatiam ás ordens do brigadeiro Victoria , na linha do Bomfim , posto defensivo que , á hora da invasão , veiu a nobilitar-se com esforçados prodigios de coragem por parte do intrepido brigadeiro e dos seus . Umas visinhas da familia Strech , já preparadas para a fuga , instaram com as pobres senhoras para que as acompanhassem . Segundo o seu plano , acoitar-se-iam-em Gondomar , onde diziam ter parentes lavradores . Augusta , lavada em lagrimas , e offegante de commoção , reagiu energicamente . -- Se meu pae e meu irmão morrerem -- dizia ella -- deixemo-nos morrer tambem , porque o viver sem elles seria peior que a morte . Se vencermos , seremos as primeiras a abraçal- os , a agradecer-lhes por nós e pela patria . Elles cumprem o seu dever ; e nós tambem . Elles estão no seu posto ; nós estamos no nosso . O meu coração revolta-se contra a ideia de levarmos o egoismo da nossa vida até ao esquecimento de que temos dois soldados nas linhas de defeza . Muito obrigada , minhas amigas , mas minha mãe e minha avó são da mesma opinião , e ficaremos todas . O perigo , se o houver , repartido por trez será menor . Vão , não percam tempo ; oxalá que nos tornemos a vêr ... E despediram-se , chorando e soluçando , como se se despedissem para a eternidade . Ao alvorejar da manhã forçaram os francezes as baterias de Santo Antonio , Pedral e Aguardente . A cavallaria inimiga , entrando a dois de fundo pelas ruas da cidade , correu a atacar pela rectaguarda as baterias que resistiam ainda . Uma das que por mais tempo , e mais heroicamente resistiram , foi a do Bomfim . Já quando era grande a confusão em todo o circuito , destacou o brigadeiro Victoria para o exterior da linha a gente que lhe restava da legião lusitana , e mais duas partidas na força total de cem homens . O brigadeiro , o tenente coronel Champalimaud , o ajudante da praça de Valency , Antonio de Azevedo , e o capitão Graça Strech corriam denodadamente de um lado a outro animando o povo , que ali confluira , e que esperava poder fugir protegido por duas baterias , as quaes não só defendiam a rua do Bomfim mas até as baterias de Campanhã . Outro tanto não aconteceu no lado esquerdo da linha , commandado pelo brigadeiro Antonio de Lima Barreto . Logo pela manhã o immigo começou a atacal- o com energia ; Barreto , perdendo algumas baterias , voltou-se para os artilheiros dizendo-lhes : -- Encravem as peças . Retirem-se . Estamos perdidos . Os soldados , ouvida a ignara apostrophe , metteram-lhe duas balas no corpo , e despejaram a ultima polvora contra o inimigo . Quando a cavallaria franceza , forçando a bateria d' Aguardente , entrou na cidade , as ordenanças , desamparados os postos , fugiram tumultuariamente para a ponte pelas ruas da Sovella e nova do Almada . A morgada , ouvindo o estridor dos fugitivos , ainda longinquo , correu á janella , e reconheceu á distancia as ordenanças . -- Que é ? perguntaram-lhe anciosamente a filha e a neta . -- Não é nada ; é o povo que se affez a correr e a gritar , respondeu a morgada , tranquillisando ambas . Como porém a massa enorme rolasse já mais perto , ouviram-se distinctamente vozes de : -- São os francezes ! -- Vem ahi ! -- Fujam ! fujam ! -- Á ponte ! á ponte ! -- Não ha outro caminho ! -- Depressa ! Augusta , que tinha chegado a meio da sala , recuou espavorida , e deixou-se cair nos braços da mãe , gritando dolorosamente : -- Ah ! meu pae ! ... meu irmão ! Os francezes , entrando na cidade , levaram de roldão adeante de si a onda allucinada dos fugitivos que procuravam salvar-se . D ' elles , uns tomavam a direcção da Foz , outros , em maior numero , corriam para a Ribeira , na ancia de atravessar para Villa Nova . Alguns passaram o rio a nado ou em barcos . Mas o grosso da multidão , enovelando-se n ' uma vertiginosa confusão de pavor , rolou sobre a ponte , cujo taboleiro assentava , de espaço a espaço , sobre um renque de lanchões . E as primeiras pessoas que conseguiram transpol- a abriram , logo que se julgaram a salvo , os alçapões da ponte -- systema de defesa empregado em casos extremos -- pensando preparar assim um desastre aos francezes que as perseguiam . Novos fugitivos , onda sobre onda , empurrando-se uns aos outros , cegos de desespero , loucos de medo , iam caindo pelos alçapões ao rio , e a dizimada cavallaria portugueza , fugindo tambem , e procurando a ponte , maior pressão fazia ainda sobre a grande massa de povo , pisando-a , atropellando-a , empurrando-a com os cavallos para o sorvedouro hiante onde centenas de pessoas desappareciam , ao mesmo tempo que as baterias de Villa Nova , vendo os francezes descer a rua de S. João , iam metralhando a Ribeira , e augmentando involuntariamente o terror e o morticinio . Diz-se que eram tantos os mortos , que , empilhados no vacuo dos alçapões , nivelaram o pavimento da ponte , facilitando passagem aos ultimos fugitivos por cima de rumas de cadaveres sobrepostos uns aos outros . Os proprios invasores se commoveram com esta horrorosa tragedia , e ainda puderam salvar da morte algumas pessoas . Depois , lançando pranchas sobre os alçapões , passaram para Villa Nova , d' onde facilmente desalojaram as nossas baterias . Saibamos agora qual seria a sorte do capitão Graça Strech e da sua familia n ' essas crudelissimas horas da invasão . Esteve o capitão ao lado do brigadeiro Victoria , na bateria do Bomfim , até aos ultimos momentos em que a ambos , e a poucos mais , foi dado combater pela patria . O que é certo , e a historia o refere , é que puderam proteger a retirada de mais de seis mil pessoas , que se evadiram por aquelle lado da cidade . Abrigados os restantes valentes por um muro , que se levantava no outeiro do Bomfim , lograram continuar o fogo com desesperado denodo . Foi realmente heroico esse render-se de heroes , quando , desamparados de todo o soccorro , enviaram ao inimigo a ultima metralha que lhes restava . O brigadeiro Victoria , conhecendo insustentavel a posição , apertou a mão do tenente coronel Champalimaud , do ajudante Antonio de Azevedo e do capitão Graça Strech , dizendo-lhes com voz tremula de commoção : -- Meus amigos , meus bravos amigos , o sacrificio da nossa vida nada aproveitaria á patria , que está invadida . Fizemos o nosso dever ; pelejámos emquanto pudemos . Agora que cada um procure salvar a sua vida para quando mais util possa ser á terra em que nascemos . Mal acabava de dizer estas palavras cahiam feridas duas pessoas das que rodeavam o brigadeiro : o commandante dos artilheiros e o capitão Graça Strech . -- Que foi ? perguntou Victoria . -- Foi a ultima arcanhadura dos francezes , responderam a um tempo os dois bravos militares . Era necessario retirar ; por Campanhã já não podia ser . Optaram por atravessar o Douro , que o brigadeiro e alguns officiaes conseguiram passar defronte d' Avintes . N ' esse numero porém não podemos incluir o capitão Graça Strech . Ferido no peito , se bem que houvesse dissimulado a gravidade do ferimento , conheceu que era perigoso o seu estado . Foi então que se lembrou da filha , da esposa , da sogra , e do filho , que havia duas horas tinha perdido de vista . Que seria d' ellas , pobres mulheres , entregues sem protecção aos horrores d' aquelle dia ? E o filho , que se batera como valente na bateria do Bomfim , haveria ficado entre os muitos que lá succumbiram , e adormeceram sobre a terra embebida no sangue de seus irmãos ? Não sabia . Oh ! mas era preciso que o soubesse antes que se lhe fechasse em torno a noite escura da eternidade . Pouco lhe importava morrer ; o que elle queria era obter a certeza de que a embriaguez da victoria não tinha desvairado os invasores ao extremo de não respeitarem fracas mulheres indefesas . Ainda se restasse vigoroso o braço do filho para amparar o golpe que fosse vibrado contra ellas ! Não o pôde suppôr ; julgou-o morto nos derradeiros momentos da refrega , por que o não tornou a vêr . Atravessar o Douro era arriscado ; tentar internar-se na cidade , tambem . Todavia o primeiro meio era a morte no desespero ; o segundo podia ser a morte com a esperança . Abraçou-se pois a esse unico esteio que lhe restava -- a esperança , de poder abraçar os seus . Arrancou os vivos da farda , e , esquecido de si , e do sangue que cada vez lhe repuxava do peito com maior intensidade , tentou descer a rua do bomfim e bandear-se em logar azado com a turba dos que percorriam as ruas desvairadamente . Do militar que fôra , arrancados os vivos e emblemas , só lhe restava a alma . Poucos passos andados , sentiu porém que lhe ía fugindo a vista , á medida que empenhava as ultimas forças para adiantar caminho . Ainda mais uma vez enganára a coragem do soldado o coração do pae . Quiz andar . Fraquejaram-lhe as pernas , e Graça Strech procurou com a mão um amparo que não encontrou . Após um momento de oscillação , ruiu em terra . Estava morto . Entretanto havia occorrido a enorme desgraça da ponte , e os invasores , enfurecidos pela resistencia que encontraram , iam encetar as tremendas represalias que estão na memoria de todos os portuenses . Infelizes os que tiveram de assistir hora a hora a esse drama de sangue e terror que teve por bastidores os muros d' uma cidade inteira . Infelizes os que viram despedaçar-se momento a momento nas garras dos cannibaes os até então immaculados thesouros do seu coração . Infelizes , finalmente , os que viram cavar-se a seus pés a sepultura ingente de milhares de familias e não puderam enchel- a com o sangue dos que assassinavam em nome da victoria . José Maria da Graça Strech pertence ao numero d' estes grandes desgraçados , que foram muitos . Quando a bateria do Bomfim protegeu a fuga de seis mil pessoas , já quando , depois das oito horas da manhã , era desesperada a situação dos portuenses , duas senhoras , que se destacaram da multidão desorientada , acenaram ao denodado moço que por acaso olhára na direcção que ellas seguiam . Elle reconheceu-as . Eram as duas visinhas que horas antes tinham convidado Augusta a acompanhal- as na fuga e que , arrastadas pela onda impetuosa dos que procuravam salvação , chegaram até ao Bomfim . Abeirou-se o moço a falar-lhes , por um momento radioso de felicidade , porque lhe acudira a lembrança de que as pessoas da sua familia as haveriam acompanhado . Oh ! se sua irmã , se a estremecida menina estivesse ali , poderia fugir incolume aos horrores que elle presagiava imminentes , attenta a vantagem do inimigo em toda a linha . -- Ellas vieram ? perguntou açodadamente José Maria . -- Não , teimaram em ficar , respondeu confrangida uma das senhoras . -- Oh ! meu Deus ! exclamou o filho do capitão||_Strech Strech|_Strech levando a mão ao coração . -- Veja se póde salval-as , salve-as por Deus , que estão sósinhas , desampadas de criados ... -- Mas como ? Como ? ! articulou o moço estendendo o braço para a posição do inimigo , como se quizesse indicar que era preciso combater a todo o transe . -- Augusta , a pobresinha , fazia dó ! Oh ! salve-a , salve-a , que ella morrerá de pavor ! acrescentou a outra visinha . -- Augusta ! Augusta ! repetiu José Maria , perplexo , olhando para as duas lacrimosas mulheres e para os seus companheiros d' armas que defendiam á distancia a unica bateria que não se tinha rendido . E , sem se mover do sitio em que empedrára , dizia com desalento : -- Pobresinhas ! E meu pae ali , exposto á morte a todo o instante , e ellas sem defeza , sem ninguem ! ... Então , aproveitando a opportunidade d' um momento , ordenára o coronel Champalimaud que se désse+esse passagem ao magote dos fugitivos que mais se tinha adiantado . -- Vão , vão , gritou o moço affastando com o braço as duas mulheres -- Salvem-se ao menos , e obrigado , muito obrigado . Eu verei se as posso salvar ... a ellas , a Augusta . O troar proximo do canhão pareceu chamal- o á realidade do perigo . -- São elles , disse de si para comsigo , correndo na direcção da bateria , os poucos que n ' esta hora se sacrificam pela patria . E tambem hão de ter mãe , e irmã ... e estão ali , firmes , corajosos , heroicos . Oh ! cobardia do meu coração , não , não te posso , não te devo ouvir ... E não tardou que se collocasse ao lado dos seus esforçados companheiros . Todavia cada vez se aproximava mais o lastimoso desfecho d' aquella desesperada resistencia . Começava a lavrar a confusão na bateria , fustigada por violento fogo dos francezes -- indomito ataque , de que em breve foi victima , como já dissemos , o proprio capitão Graça Strech . Tamanha era a fumarada , que já se tornava impossivel verem-se uns aos outros . Foi então que José Maria , involto na cerração da metralha , conhecendo que era impossivel prolongar por mais tempo aquella proeza de bravos patriotas , se lembrou de que nada aproveitaria á causa da patria o sacrificio da sua vida . E soaram-lhe aos ouvidos as palavras afflictivas das duas mulheres , e sonhou ver estenderem-se para elle os braços tremulos d' Augusta , que pedia soccorro . Então , como se o coração houvesse decretado uma sentença irrevogavel , cortou resolutamente o fumo da polvora , e affastou-se da bateria , murmurando os nomes de sua mãe , de sua irmã , de sua avó . Momentos depois Foi que o brigadeiro Victoria fugiu tambem , e que o capitão Graça Strech caiu morto na rua do Bomfim . Trabalhoso e arriscado foi o abrir caminho por entre a multidão que , semelhante a um grande mar , ondulava no vertiginoso fluxo e refluxo do desespero . Algumas vezes teve de se esconder , outras de retroceder , e só pela tarde chegou á rua nova do Almada . Abroquelado pela energia da coragem , e mais feliz ou mais infeliz que seu pae , venceu todas as contrariedades , até que finalmente , escoando-se por entre os grupos desvatrados , entrou em casa no momento em que ao fundo da rua assomavam tropas francezas que , senhoras de toda a cidade , continuavam o saque , as violações e a carnificina que tristemente assignalaram esse dia memoravel nos fastos da nossa historia . O juramento de vingança As casas da rua nova do Almada estavam pela maior parte desertas . Foi esta uma das ruas que mais lutuoso espectaculo offereceram . Os habitantes fugiram deixando abertas as portas , de modo que , á hora em que começou o saque , os francezes se locupletaram tranquilamente . Poucos foram os predios que lhes deram o breve incommodo de forçar a entrada . A este numero pertenceu , porém , a casa onde se conservou , entregue aos seus pavores , a familia Strech . José Maria , ao entrar açodado pela aproximação dos invasores , appellou para o ultimo recurso de defeza que lhe restava : fechou a porta . Lembrou-se de que os francezes se domiciliariam nos predios devolutos e de que não porfiariam em forçar uma entrada encontrando abertas tantas portas . Não pôde imaginar n ' esse momento de suprema preoccupação que meditassem a pilhagem e a carnificina que , passadas horas , consummaram . Correu , pois , a procurar a irmã , a mãe e a avó , que , ouvindo passos apressados , e no presupposto de serem os de algum soldado francez , romperam em gritos angustiosos , traindo d' este modo o segredo dos seus esconderijos . -- Augusta ! Augusta ! Minha mãe ! Avósinha ! apostrophou precipitadamente José Maria para serenal-as e correndo pelo corredor . -- José ! José ! exclamou uma voz que parecia soar das profundezas de um tumulo . E logo dois braços tremulos de commoção enleiaram o moço , e uns labios gelados de mortal frialdade lhe procuraram as faces , e um novo grito de dolorida alegria lhe estrugiu aos ouvidos . E immediatamente soaram passos , que elle conheceu : a mãe e a avó , seguindo a pobre menina que as precedera , correram ao encontro de José Maria . Augusta , apertando-o contra o peito , alternando beijos e olhares por egual frementes , porque o sangue congelado no coração parecia , acordado de subito , correr em turbilhões ao cerebro , não lograva articular palavra , tão violenta era a sensação que estava experimentando . Não assim , porém , sua mãe , que , parando como que fulminada á porta , tivera comtudo voz para perguntar ao filho enleiado pela irmã : -- E ... teu pae ? -- Lá ficou ainda a combater com os ultimos valentes . Bem póde ser que a Providencia o tenha salvado como a mim me salvou . O cobarde fui eu , sim , fui eu , porque me lembrei de ti , minha irmã , e de si , minha mãe , e ... Não pôde completar a phrase , porque de repente foi chamado á realidade pelo estrepito que a soldadesca franceza fazia na rua . -- Retirem-se ! escondam-se ! gritou elle . São os francezes , bem os vi , são elles ! Esconde-te , Augusta , minha mãe , minha avó ... N ' este momento estremeceu o predio nos alicerces como se a porta tivesse soffrido o embate de um ariete . -- Que é ? Onde é ? perguntou offegante a menina , que de novo descorára até á lividez do cadaver . -- São elles que forçam a porta , naturalmente ... Eu fechei-a quando entrei , sim , eu fechei-a . -- E estava aberta ! Foram os criados quando fugiram ! acrescentou a avó . -- Escondam-se , escondamo-nos todos . Viram-me decerto entrar . Perseguem-me ! tornou afflicto José Maria . E , após segundo estrondo , soaram no portal e na escada os passos da soldadesca que entrava . Das quatro pessoas que estavam na sala , nenhuma pôde fugir ; todas como que ficaram chumbadas ao pavimento . E os francezes entraram vozeando , praguejando , e logo assomaram á porta muitas cabeças cujos olhos chammejavam de cubiça e sensualidade . Então José Maria , como galvanisado de subito , adeantou-se para a porta , estendendo o braço para defender as trez mulheres e , quando ia talvez a balbuciar uma supplica , caiu desamparado , vibrando um grito e recebendo no peito a ponta de uma bayoneta , cujo golpe fôra mais doloroso que profundo . As vozes das trez mulheres , conglobadas n ' uma só , soltaram uma d' essas exclamações impossiveis de descrever , apenas comparavel ao grito lamentoso da araponga no deserto , quando encontra vazio o ninho , porque uma ave de rapina lhe arrebatou a prole . E a soldadesca entrou de roldão na sala , affastando com o pé o corpo de José Maria , sedenta de prazer e rapina . Para os que suppozerem que exageramos com toques demasiado sombrios os horrores que se succederam á invasão do Porto , vamos copiar apenas algumas linhas da " Historia da guerra civil " , de Soriano : " Para cumulo de todas estas desgraças a cidade foi posta a saque , por castigo da sua resistencia , como em casos taes se costuma praticar , saque que começou pelas onze horas do dia , levando os vencedores a todas as casas de habitação , a par do terror que infundiam , o roubo , a violação e a morte , excitados de mais a mais para isto por encontrarem , segundo alguns dizem , varios prisioneiros francezes sem olhos , com linguas cortadas , e os membros truncados ou rasgados . " Alguns escriptores o dizem , em verdade ; um d' elles é o sr.||_Claudio_de_Chaby Claudio|_Claudio_de_Chaby de|_Claudio_de_Chaby Chaby|_Claudio_de_Chaby que , nos seus " Excerptos historicos " , refere : " No transito das ruas e praças encontraram os soldados de Soult alguns dos seus camaradas , que nas differentes refregas tinham os nossos aprisionado , exercendo n ' elles as sevicias da mais repugnante crueza : a uns tinham cortado a lingua , arrancado a outros os olhos ou decepado os membros ! -- O effeito natural da observação de taes crueldades , junto á tambem natural disposição de espirito dos invasores em taes circumstancias , levou estes á pratica de vingativos e deploraveis excessos , de " assassinato , roubo , violencia e profanação " ! " O mais que se passou na casa da rua nova do Almada , depois que a soldadesca entrára , não o soube exactamente José Maria que , ao cerrar da noite , tornára a si , depois de haver perdido muito sangue pelo golpe que recebera no peito . Foi de tempestade na terra e no céo essa noite , como podem confirmar os poucos que se lembrarem d' ella . Tamanho era o temporal havia dias imminente ao Porto , que trinta navios inglezes , carregados de vinho e outros productos , impedidos de sair das aguas do Douro pelo mau estado da barra , caíram em poder do marechal||_Soult Soult|_Soult , bem como a polvora guardada n ' um vasto armazem , e 196 peças de artilharia , recolhidas nas differentes baterias da cidade . Algum tempo esteve José Maria firmado sobre o braço direito , que d' instante a instante fraquejava , procurando orientar-se e recordar-se . Era profundo o silencio na casa toda . Dir-se-ia-que despertava n ' um tumulo . Assim que pôde rememorar o que se passára até ao momento de ser ferido , entrou de chamar em altas vozes a irmã , a mãe e a avó . Apenas porém respondia ás suas afflictivas exclamações o chofrar dos aguaceiros nas vidraças . Ergueu-se com muito custo , atabafando o sangue com a roupa , e começou a sondar a escuridão , procurando alguem . Não tardou que tropeçasse n ' um obstaculo que os pés encontraram . Curvou-se e tacteou . Encontrou vestidos de mulher . Estendeu a mão e apalpou um rosto . Até pelo tacto conhecemos os nossos . José Maria estremeceu como se tivesse recebido em pleno peito um novo golpe de ferro , e rugiu d' afflicção e desespero . Não podia duvidar . Era o rosto de sua irmã . Parecia morta ! Entrou de agital-a , de chamal-a . O mesmo silencio , a mesma immobilidade ! -- Mortal morta ! rouquejava elle convulso . -- Minha mãe ! minha avó ! E unicamente lhe respondia a chuva a fustigar a vidraça . Occorreu- lhe porém que , como se deu com elle , podia ser que sua irmã estivesse apenas adormecida em deliquio . -- Ella é tão delicada ! apostrophou-se elle . Desmaiou talvez . julgaram-n* ' a morta . deixaram-n* ' a. Mas minha mãe ? E minha avó ? Era preciso tirar-se d' aquella duvida horrivel . Sondando as trevas , saíu tremendo , a procurar luz . Momentos depois voltava cambaleante á sala e , levantando una candieiro de latão á altura da cara , reconhecia trez cadaveres . N ' essa mesma noite , e a essa mesma hora , ruidosamente se banqueteavam n ' uma taberna do largo da Lapa , ebrios de vinho e victoria , alguns soldados da divisão Delaborde . Comia-se , bebia-se , fumava-se , cantava-se . Era a celebração solemne d' um dia de saque , que requeria uma noite d' orgia . Algumas vivandeiras francezas cantavam em côro , no idioma patrio , e reclinadas aos hombros dos soldados , uma canção marcial , cujo estribilho podia ser traduzido d' este modo : Viva a França ! viva a França ! Que triumpha na matança ! Rataplan ! Um dos soldados ; de olhar scintillante e fartos bigodes retorcidos , chasqueava na sua lingua natal com uma das vivandeiras que se lhe queria escapar dos braços : -- Oh ! Por Deus , que era bem mais bonita do que tu ! -- Quem ? perguntou d' esguelha a vivandeira . -- A portugueza que me resistiu . -- E que tu mataste ? -- E que eu matei para que não deixasse de resistir a outro . -- A pobre rapariga ! -- Pobre rapariga ! d' aquella edade deve ter morrido pura ! Tu não morres assim , " ma petite chienne ! Par||_Dieu Dieu|_Dieu ! " -- Cruel ! -- E o caso é que quasi do mesmo golpe derrubei as duas mulheres que a defendiam e abraçavam . Um soldado do imperador livra-se depressa ainda que seja d' um cento de mulheres . -- Cheiras a sangue ! exclamou a vivandeira forcejando por desprender-se dos braços do soldado . -- Acodes pelo teu sexo ! O que me não perguntas é quantos homens matei ! Por Deus ! que era precisa a vingança . Estes perros d' hespanhoes , que se chamam portuguezes , não nos queimaram a alma porque não puderam . Atiravam-nos desesperados ! E matavam os nossos emissarios ! e mutilavam os nossos irmãos ! Quantos centos de francezes imaginas tu que morreram hoje ? Não se mata impunemente um francez como se mata um cão . E desde que entrámos em Portugal quantos não teem ficado para nunca mais voltar a França ! Vingámol-os ; estão vingados ! " Vive l ' empereur ! Vive le marechal ! Vive la France ! " E voltando-se para outra das vivandeiras , que estava proxima , jogou-lhe esta phrase intimativa : -- Esta é minha ; canta tu . E logo , por entre a vozeria , se ouviu cantar ; Viva a França ! viva a França ! Que triumpha na matança ! Rataplan ! Aquelles cadaveres eram os das trez senhoras da familia Strech . José Maria esteve contemplando-os mudo , absorto , authomatico . Dir-se-ia-que a intelligencia se lhe havia paralysado , e o coração havia adormecido . Era um deliquio , como o que fôra consequencia do ferimento , mas muito mais horroroso de certo , porque os olhos tinham vista para a realidade , embora o cerebro não tivesse actividade para comprehender . Parecia que as trez pobres senhoras dormiam tranquillamente , se bem que o desalinho dos vestidos e dos cabellos fosse claro indicio de lucta . José Maria ajoelhou-se , poisando a luz , a contemplal-as e , porque o coração humano é tão valente às vezes que se excede a si mesmo , resistiu áquella dôr incomparavel e quiz ainda procurar nas ruinas do seu pensamento o auxilio de uma ideia . N ' aquella immensa e tenebrosa cerração era preciso um raio de luz , ainda que fosse sinistro como os clarões sulphureos dos mysticos paineis que representam o inferno . E verdadeiramente infernaes foram os horrores d' esse dia . Se o leitor , apesar das indicações historicas de que me tenho soccorrido , imagina que estou phantasiando negruras para architectar um romance tenebroso , achará no seu proprio espirito a convicção da verdade , se se concentrar por um momento deante do tosco e funebre quadro , allusivo á invasão dos francezes , que pende da muralha da Ribeira , a dois passos da ponte pensil . Ahi , á luz das lanternas que descrevem na escuridão da noite duas zonas luminosas , ouvindo o ruido triste do Douro que lhe rola aos pés , vendo a pequena distancia erguerem-se ao ar , como outros tantos espectros sombrios , as armações dos navios fundeados , ahi , dizia eu , comprehenderá todas as angustias , hoje esquecidas , d' essa epoca de horror , traduzidas na concisa simplicidade d' esse piedoso monumento . A inscripção do quadro nem por singela deixa de convidar á meditação : " Pelas almas dos que falleceram na ponte do rio Douro na entrada dos francezes no anno de 1809 , um Padre||_Nosso Nosso|_Nosso e uma Ave-Maria . " Ali fui eu muita vez , pela calada da noite , como a procurar a triste inspiração para escrever as primeiras paginas da historia da familia Strech . Estes horrores poderão hoje parecer sinistramente romanticos , mas uma hora só de recolhimento em face do quadro da Ribeira basta a acordar em nós a consciencia historica d' essa epoca calamitosa . Para os que morreram na catastrophe da ponte pede o rotulo uma oração , mas quantos não morreram então sem oração e sem mortalha , quantos não agonisaram em ancias que não foram mortaes , sem a mortalha que desejariam , e sem uma oração de que blasphemariam ! Ó Providencia ! só tu sabes o segredo de todas as maguas , só tu podes contar as bagas de suor que ressumbram na fronte dos infelizes que tu não matas logo , para que não morram em desespero sacrilego ! E José Maria não morreu . Por um esforço intellectual , que só a Providencia podia permittir a um soldado ferido , quando já as trevas da loucura procuravam cingir-lhe o cerebro escandecido , conseguiu encontrar uma recordação , se bem que a principio tibia e vaga como o diluculo que se vae alargando e colorindo pouco a pouco até chammejar no céo . E tambem essa luz que se fez no espirito do pobre moço lhe queimára a intelligencia , como se fosse labareda , mostrando-lhe as ruinas do passado ainda fumegantes de um incendio recente . Eram aquellas as cinzas da sua felicidade ... Estavam ali espalhadas pelo turbilhão da guerra , retintas de sangue , a clamar vingança . E os seus beijos cariciosos e ardentes , e as suas palavras ao mesmo passo desalentadas e calorosas não puderam , depois que inteiramente se recordou da realidade , galvanisar os trez cadaveres , animar os trez corações paralysados , descerrar os labios da mãe , da irmã e da avó , para sempre mudos , para sempre adormecidos . -- Pobresinhas ! -- pensava elle -- deixaram-se talvez morrer por me supporem morto ! E antes eu o estivesse , que já teria soado a ultima hora da minha triste mocidade . E mata-se assim a mãe , a dois passos do filho ! E não se respeitam os cabellos brancos da velhice ! nem a belleza e a virtude que teem duplo direito á vida ! Mas , agora reparo eu , aqui estão patentes e irrecusaveis os signaes da lucta ... é que se disputavam o sacrificio da morte ... ou ... suspeita horrivel ! morreram talvez para defender a virgindade de uma só ! Dize-me , ó minha boa irmã , ó minha doce amiga , se isto não é um sonho atroz da minha desvairada cabeça ! Responde , Augusta , sou eu que te peço , eu , o teu irmão , o teu José ... E não fala , e não responde ! Está morta ! mataram-n* ' a elles , os malditos soldados d' esse leão indomavel da Corsega para quem todo o mundo é pequeno , todo o sangue pouco ! Acaso não se saciava a tua sanha , leão , sem a vida d' estas trez pobres mulheres , que nunca te amaldiçoaram , que nunca levantaram um brado de justa indignação contra a tua ambição desmedida ! Eu é que devia morrer , sabes tu ? Eu sim , porque fiz guerra de morte aos teus soldados , porque as minhas mãos cheiram ainda a polvora com que os fuzilei . Eu sim , porque a minha morte seria uma represalia ; mas a morte d' estas trez mulheres , timidas e indefesas , não foi uma represalia , foi uma infamia ... E , extenuado d' esta subitanea exaltação , pendeu a fronte , como se lhe faltasse a vida para tamanha angustia , porque o sangue perdido era copioso . Entretanto continuava a tempestade e , confundido com o estrepito da chuva , começou-se a ouvir o toque dos clarins nos postos dos invasores . José Maria pareceu despertar de subito , acordado por essa sinistra linguagem dos acampamentos : -- Sois vós ! Podeis estar tranquillos , que a esta hora não haverá um só braço que tenha a energia de vos acommetter no vosso glorioso descanço . Tudo são orphãos e viuvas , que pranteiam cadaveres . Descançae , descançae , que muita coragem vos deve ter custado o assassinio de mulheres inoffensivas como estas ! como todas ! Oh ! mas ámanhã a vingança acordará terrivel , e então vos pedirá contas das vossas atrocidades e das vossas infamias . Sim , ámanhã , nós todos , unidos por commum desgraça , seremos um só inimigo , porque a nossa vingança é uma , mas não imagineis que tendes a derrubar um só inimigo , porque serão muitas as cabeças a decepar , muitos os portuguezes a vencer ... Onde houver um portuguez , haverá um soldado , porque elle pelejará por desaffrontar a memoria dos seus parentes , dos seus amigos , d' um filho , d' uma irmã ... E curvando-se carinhoso para o cadaver d' Augusta , e tirando-lhe delicadamente do dedo o annel com que ella havia morrido : -- E eu vingarei a vossa memoria , minhas santas amigas , e vingarei a tua innocencia , minha querida irmã ... Por este annel o juro , que será o meu fiel companheiro , talvez o unico que me seja dado conservar até a hora da morte ... Beijal- o-hei antes d' entrar em combate , e elle me dará a coragem dos valentes ; elle será a minha égide protectora se a morte me quizer arrebatar a minha vingança . Que Deus me oiça , Augusta . Sobre o teu annel , que nunca te desacompanhou , faço este juramento solemne , que jámais quebrarei ... A mariposa do acampamento Fôra demasiado esforço para tão melindroso estado . O corpo , alquebrado pela dôr physica , parecia vergar ao peso d' aquella grande alma . Graça Strech caminhou em direitura á porta , vacillando a cada passo , e deixando após si um rasto de sangue . Antes de sair , volveu ainda um ultimo olhar aos trez cadaveres , e levantou por um instante a mão de sobre o ferimento , apalpando o peito n ' outro sitio , como para se certificar da existencia d' alguma coisa que lá trazia occulta , e que pareceu encontrar . Era o maço das cartas d' Augusta , escriptas da quinta das Chãs , e que elle conservára no seio durante as mais perigosas refregas na bateria do Bomfim . Desceu vagarosamente as escadas , amparado ao corrimão , e conseguiu a muito custo chegar á rua . Uma lufada de vento , humida e fria , momentaneamente refrigerou o cerebro d' aquelle moço , em quem as mais violentas congestões parecia succederem-se rapidamente . Onde ia elle , ferido , cerrada a noite ? A esta pergunta , que muitas vezes se fez no decurso de sua vida , nunca pôde achar resposta satisfatoria . O que parece mais proximo da verdade é que , não sentindo já forças e coragem para demorar-se ali , luctasse por arrancar-se de ao pé dos trez cadaveres . Chegado ao limiar da porta , e recebendo de subito uma lufada de ar , impregnado d' humidade , reconheceu-se , no meio da cerrada escuridão d' aquella noite tenebrosa , inteiramente carecido d' alento para dar um passo . N ' essa conjunctura ouviu estrepito de cavallos . Sentiu de novo affluir-lhe o sangue ao cerebro . Eram de certo elles , os assassinos da sua familia , que patrulhavam a cidade invadida . Não se enganou . Os cavallos que se aproximavam eram os d' uma ronda franceza . Graça Strech estava porém desarmado , ferido , impossibilitado do menor esforço . A ronda acercou-se , e um dos cavalleiros , que era um official portuguez obrigado pelo direito de conquista ao triste mister d' interprete , perguntou com voz tremula : -- Quem está ahi ? Graça Strech ficou surprehendido d' ouvir falar-lhe na lingua nacional , e respondeu : -- Um soldado portuguez , ferido . Demorou-se o official a falar á patrulha franceza , e apeando-se dois dos cavalleiros ergueram o corpo de Graça Strech até a altura precisa para poisal- o entre o arção da sella e o corpo do official portuguez . E monotamente continuou a eccoar na rua o estrepito da ronda . Não pareça extraordinaria esta piedade dos invasores para com os invadidos no mesmo dia de tão sanguinosa victoria . O marechal||_Soult Soult|_Soult , que entrára no Porto na tarde d' esse dia , puzera desde logo todos os seus cuidados em serenar os animos da população por actos ostensivamente meritorios . Era este um procedimento por ventura aprendido na lição da historia romana -- o da benevola protecção aos vencidos . Manda porém a verdade que se diga que , mal que entrou na cidade , expediu ordens terminantes ás tropas para que , sob pena de austera correcção militar , respeitassem a população , e até a protegessem em caso de conflicto . Assim foi que , reprimindo os abusos da soldadesca , logrou restabelecer o socego em toda a cidade trez dias depois da invasão , procurando insinuar-se na opinião publica , abstendo-se de impôr contribuiçoes de guerra , nomeando pessoas idoneas para os logares vagos , e soccorrendo os habitantes completamente privados de recursos . O partido anti-patriotico , subitamente creado em redor do marechal||_Soult Soult|_Soult , para logo fundou um orgão jornalistico , denominado " Diario do Porto " , porque a imprensa tem sido desde tempos immemoriaes o respiradouro aberto a todas as paixões , justas e injustas , nobres e mesquinhas . O leitor deve ficar conhecendo uma pequena amostra , sequer , da linguagem empregada no supracitado diario . Oiçamos o falsario redactor no supplemento ao n.º 2.º : " Este paiz tão bello , e tão favorecido pela natureza , parecia no passado governo tocado de paralysia ; mas , graças aos céos , que se lhe prepara um novo futuro , que os bons conhecedores já tinham d' antemão entrevisto ! Nada terá o Principe que dizer sobre a nossa fidelidade ; nos lh'a guardamos emquanto existiu entre nós ; mas uma vez que nos deixou , uma vez que desdenhou lançar mão das redeas do governo , que largára quando as circumstancias lh'o permittiam , renunciou todos os seus direitos , e nada é já para os portuguezes , que deixou ao desamparo . Em uma palavra , a casa de Bragança já não existe ; aprouve aos céos que os nossos destinos passassem a outras mãos , e foi particular predilecção da Divina Providencia , que impera sobre o universo , o ter-nos enviado um homem isento de paixões , e que só tem a da verdadeira gloria ; que se não quer servir da força , que o grande Napoleão lhe confiou , senão para nos proteger e livrar-nos do monstro da anarchia , que ameaçava devorar-nos** . As palavras que elle nos dirigiu , e as promessas que nos fez desde que entrou n ' esta cidade , tudo se tem cumprido á risca , muito mais do que o poderiamos esperar , e do que as circumstancias pareciam promettel- o : porque tardamos , pois , em congregar-nos ao redor d' elle , a proclamal- o nosso pae e nosso libertador ? Porque tardamos a exprimir o nosso desejo de o vermos á testa d' uma nação , cujo affecto soube tão rapidamence conquistar ? O soberano de França prestará ouvidos aos nossos clamores , e se lisonjeará de ver que desejamos para nosso rei um logar-tenente seu , e ao mesmo tempo um grande general , que a seu exemplo soube vencer e perdoar . Seja , pois , esta grande e interessante comarca , já que tem experimentado os effeitos da sua clemencia , e a quem elle tem prodigalisado os seus beneficios , seja uma das primeiras , que se glorifique de o reconhecer e de lhe offerecer os seus braços , os seus bens e o seu patrimonio todo . " Não ficaram simplesmente em louvaminhas de gazeta os salamaleques feitos ao duque de Dalmacia . De Braga veiu ao Porto no dia 25 d' abril uma deputação composta de trinta e seis membros do clero , nobreza e povo , a pedir ao marechal que se dignasse fazer ver ao imperador a necessidade de collocar um principe de sua eleição no throno que a dynastia de Bragança deixára devoluto . No dia immediato entrou egualmente ao palacio do duque de Dalmacia outra grande deputação , constituida por todas as autoridades civis , clero , deputados , nobreza , cidadãos , corporações judiciaes e militares da cidade do Porto , a repetir o pedido com viva instancia . A deputação , acompanhada desde a casa do conselho pelos officiaes do estado-maior general , era esperada no atrio do palacio dos Carrancas pelos ajudantes de ordens do marechal||_Soult Soult|_Soult . Foi o general de divisão Quesnel , investido nas funcções de governador militar do Porto e da provincia do Minho , quem a introduziu na sala de recepção , onde o corregedor da comarca botou fala consoante ao estylo dos supplementos do " Diario do Porto " . O marechal devia estar sorrindo interiormente da versatilidade dos portuguezes , que lhe atiravam aos pés nuvens d' incenso , recebendo-o dias antes nas trincheiras com nuvens de polvora . Força é assoalharmos as nossas glorias , para sermos portuguezes , e as nossas manchas , para sermos justos . E esta é realmente uma lamentavel nodoa que macula as paginas da historia portugueza . Se nos não respeitámos , durante a invasão , a boa policia de guerra , tambem a soldadesca franceza não respeitou , na victoria , os direitos individuaes . Saldada a divida , estavamos quites . Para a atrocidade , filha da revolução , a represalia , irmã do triumpho . A attitude do Porto , depois de vencido , e em presença do cavalheiroso procedimento de Soult , devia ser a da resignação reconhecida , nunca a do servilismo infamante . Agradecer é das boas almas ; ajoelhar aos pés do usurpador é dos maus cidadãos . E nós fomos então maus cidadãos . Ainda bem que redimimos as nossas culpas d' um dia com a heroicidade de cinco annos , que tantos são os que vão desde a invasão do Porto até ao regresso das nossas tropas , coroadas de loiros . Se o throno portuguez tinha sido abandonado pelo rei , estava porém encimado ainda pelas armas da nação ! Se não se podia amar o rei , que fugira , devia-se defender a patria , que ficára . Mas , disse-o Camões , e é uma profunda verdade , que O fraco rei faz fraca a forte gente Perdoemo-nos a nós , porque nos rehabilitamos depois , e perdoemos ao rei , que já hoje é do tumulo , e que no triste curso de sua attribulada existencia mais inspira por vezes compaixão do que odio . Mas tornemo-nos a Graça Strech , que deixámos ferido em companhia da ronda franceza . Fôra elle transportado a um dos muitos hospitaes de sangue que se estabeleceram nos conventos do Porto : -- o convento de S. Francisco . O serviço cirurgico , na maior parte d' estes hospitaes improvisados , era feito , por ordem do marechal||_Soult Soult|_Soult , pelas mulheres que acompanhavam o exercito invasor . Uma d' ellas , conhecida entre os seus pela alcunha de " lá gentille vivandière " , recebeu o ferido e , ajudada por outras , deitou-o no catre e começou o curativo do ferimento com certo carinho , que só a ordem do marechal||_Soult Soult|_Soult não explicaria cabalmente . É que fez impressão a Rosina a physionomia , posto que dolorosa , serena , do soldado portuguez . Pareceu-lhe um roble que baqueára magestosamente . Não havia a menor contração n ' aquelle corpo athletico ; por entre os labios , descórados e immoveis , não se coava um gemido . Verdade era que não era desesperado o ferimento , e que mais para recear parecia a gravidade da prostração que a do golpe . Não obstante , o soldado , que a espaços abria os olhos , nem uma gota d' agua pedia . Durante a noite a vivandeira acercou-se do catre , por muitas vezes , a escutar . Pela madrugada sobreveiu o delirio ao abatimento , e o ferido dizia com manifesta difficuldade algumas palavras que ella não entendia . Como , porém , de uma das vezes o visse febrilmente apalpar o peito , comprehendeu-o , e , tirando do forro da fardeta , que lhe tinha despido , o maço de papeis , insinuou-lh ' o entre as mãos . O ferido , conhecendo-o provavelmente pelo tacto , abriu por algum tempo os olhos , e demorou em Rosina o doce e apagado olhar . Talvez fosse este um acto puramente mechanico e talvez não ; a verdade , melhor que os medicos , a sabe Deus . A vivandeira ficou sobremodo commovida do que a ella lhe pareceu intencional . Apiedou-se do soldado , que tinha porventura a sua mesma idade , e parecia guardar n ' aquelles papeis uma querida memoria , como ella , como ella n ' aquella madeixa de cabellos que possuia ... Aqui entra o leitor a sentir desejos de saber a historia da madeixa . Rosina era a filha adoptiva d' um dos regimentos da brigada Arnaud . Por seu pai , moribundo , um dos bravos militares do exercito francez , natural das Ardennas , aquella vasta floresta , " Arduenna sylva " , golpeada por quatro rios , o Semoy , o Lesse , o Ourthe e o Sure , fora confiada como precioso deposito , no campo de batalha , á velhice d' um camarada fiel , soldado do mesmo regimento . O bom velho , que penhorado acceitára tão grave legado , era só , e n ' uma época em que o exercito francez estava em continua mobilisação , achou que o melhor meio de velar pelo destino da creança era trazel-a sempre ao pé de si . Assim foi que Rosina , então de quatorze annos , estivera em pessoa , se bem que entre a bagagem e mantimentos , na batalha de Austerlitz , em 1805 . Vira por seus proprios olhos , a distancia , o imperador||_Alexandre Alexandre|_Alexandre e o imperador||_Francisco Francisco|_Francisco . Nos breves instantes de repouso que n ' essa arriscada campanha tinha o exercito francez , era sempre Rosina o assumpto das conversações do acampamento , a mariposa inquieta que passava sorrindo de umas correias a outras , de um soldado a outro soldado . D ' essa campanha ficou até na memoria do regimento uma agudeza da pequena vivandeira . Estavam os soldados chasqueando uma vez da fealdade de certo camarada . -- Que tal te parece , Rosina ? perguntou um á pequena . -- Parece-me mal , respondeu ella , porque já vi " os trez imperadores " . Como se sabe , é esta uma designação vulgar da batalha de Austerlitz , onde estiveram os dois imperadores já nomeados , completando Napoleão a trindade coroada . Rosina seria pois a andorinha da caserna se não fosse antes a mariposa do acampamento . Tinha um pouco da floresta , seu berço , e um pouco do quartel , seu ninho . Estes poucos fizeram o todo . Tinha a pureza da vegetação virgem , a suavidade inculta da floresta , e ao mesmo passo o destemor da vivandeira , a facilidade de morder um cartucho de polvora e de cantar uma canção marcial . Na alma tinha os murmurios das correntes patrias ; nos olhos o brilho da polvora . Era , n ' uma palavra , a pastora tornada vivandeira . Respeitava-a todo o regimento e conhecia-a todo o exercito . Quando o seu velho protector morreu , um anno depois de Austerlitz , ella acompanhou-o com os camaradas á sepultura , e , como limpasse furtivamente duas lagrimas , disse-lhe um dos soldados : -- Pois tu choras , Rosina , tu , a que viste os trez imperadores ? ! E ella , voltando-se de subito , respondeu : -- Não choro eu , chora a França . Porfiaram os soldados em escolher-lhe novo protector ; todos a estimavam a ponto de querer adoptal- a . Por fim decidiu-se que Rosina cortasse o nó gordio . Ella observou : -- Os meus paes eram os que morreram ; já não posso ter outros . Serei portanto de hoje em deante filha do regimento . Para onde elle fôr , irei eu ; onde estiver , estarei tambem . E assim foi . Era quasi um soldado ; muitas vezes dizia que a sua morte havia de occasional-a uma bala perdida . Viera com o exercito a Hespanha e Portugal , com a mesma facilidade com que iria , licenciada pelo commandante do regimento , visitar as Ardennas , sua patria . Contava agora dezoito annos , e estava em todo o vigor da sua gentil formosura . Gentil é a palavra ; por isso lhe chamavam " lá gentille vivandière " . E o caso é que á sua origem e á sua formosura devia por certo as immunidades que lhe outhorgavam os superiores . Era ella o melhor intercessor do regimento ; requerimento que ella levasse á chancellaria militar , trazia sempre bom despacho . É que as flôres ... Ora a historia da madeixa é muito mais breve que a historia de Rosina , e por isso ficou para o fim . Seu pae , o bravo official das Ardennas , sentindo-se morrer dos graves ferimentos que recebera , pediu ao velho camarada , no momento de confiar-lhe a filha , que lhe entregasse aquella madeixa que elle cortára do seu proprio cabello , para que ella possuisse sequer alguma coisa que o tornasse lembrado . E como entre os cabellos alguns apparecessem já grisalhos , acrescentou o militar moribundo : -- Dize-lhe que alguns d' elles embranqueceram a pensar no destino d' ella ... O soldado , com os olhos marejados de lagrimas , respondeu commovido : -- Vá descançado , meu capitão . Emquanto Jacques Regnau tiver vida , o paiol não ha de arder . Depois que vier a metralha da morte , o Deus dos exercitos velará por ella ... O soldado Jacques estava na confidencia do nascimento de Rosina . Fôra elle que , annos antes , saltára ao jardim de uma casa da rua das Tournelles , para receber dos braços de uma criada uma creança , cuja mãe procurava assim occultar o segredo da sua deshonra . Jacques Regnau atravessou com ella nos braços o " boulevard " da Bastilha , e ia dizendo comsigo : -- O caso é que ainda tenho geito para estas aventuras mysteriosas . Suppunha-me velho e levo aqui esta creança mais como pae do que como avô . E todavia o que decerto vem a acontecer é que eu seja o avô , e o meu capitão o pae ... E assim , em verdade , aconteceu , com uma unica differença . Se Rosina , no decurso de sua vida , precisasse de nobilitar-se com um appellido , o pae , ao invés do que acontece em todas as familias , não lhe daria o seu appellido , mas sim o do leal camarada . Diria provavelmente : -- Põe lá : Rosina Regnau . Ella porém não precisava de appellido paterno . Era a filha do regimento . Chamava-se simplesmente Rosina , " lá gentille vivandière " . Esta era a enfermeira do nosso ferido . No hospital de sangue Oito dias transcorridos , vamos encontrar Graça Strech , sentado no catre , convalescente , se bem que muito debilitado ainda , a relêr algumas das cartas que , por piedoso interesse de Rosina , pudera guardar debaixo do travesseiro . Os successos de tão breve curso de tempo pequena chronica requerem . Rosina tem sido para o soldado portuguez carinhosa enfermeira . Chasqueam-n* ' a as outras mulheres , encarregadas do serviço do hospital , de extremamente compassiva para o prisioneiro , e zombeteiramente aventam que , a julgar pelos prolegomenos , lhes não parece impossivel que o exercito portuguez inteiramente se deixe desarmar pelas vivandeiras francezas . As almas das restantes mulheres não se levantam do nivel commum ao femeaço que segue tropa . São grosseiras , sensuaes e malevolas . Rosina respira melhor entre os soldados do que entre ellas . D ' aqui uma certa rivalidade apenas contida pelo respeito com que todo o exercito acata á filha do bravo militar das Ardennas . Todavia a " gentil vivandeira " , como mariposa que é , não se demora no ambiente infeccionado em que ellas respiram ; evita-as como a pantanos miasmaticos , sem lhes dar a conhecer que o muladar unicamente é povoado por vermes . Passa inquieta e ao mesmo tempo cautelosa , agitando as suas azas iriadas . Atravessa o lodaçal sem tocar-lhe . Guarda para si o nectar que vae libando nas flôres perfumadas da sua phantasia . É mariposa ! dizem . Concentra-se nos circulos caprichosos em que doideja . Quer adejar e sorrir . Mas para esta , como para todas as mariposas , depois do jardim , cujas flôres beijou , ha de crepitar a chamma , que será o seu ultimo beijo . Beijo de fogo , que mata . E chamaes felicidade a isto ! Olhaes sómente á superficie ; a mariposa não é feliz porque passe adejando ... Graça Strech fez reparo no carinho da enfermeira , mórmente comparando-o ao desamor com que eram tratados os demais feridos . Não poria duvida em beijar a unica mão caridosa que se estendia para elle na solidão do mundo , se não receiasse que o odio que lhe refervia no coração contra a França lhe envenenasse os labios . E aquella mulher era franceza . Parecia-lhe que dos seus vestidos se exhalava ainda o cheiro da carnagem . Por ventura o soldado que assassinára sua irmã , sua mãe e sua avó viera adormecer tranquillo nos braços d' aquella mulher , se é que não fôra mais d' um soldado , com as mãos ainda tintas das nodoas do crime . Via n ' ella a creança corrompida pela lascivia da soldadesca , e , ao mesmo passo que lhe era reconhecido , tinha por ella o desprezo que se tem pelo vicio precoce . Considerava-a uma das victimas arrastadas pelo carro triumphal do Cesar francez . Bem podia ser que n ' aquelle corpo vendido ao prazer germinasse uma alma boa logo corrompida pela putrefação contagiosa da caserna . Se não tivesse por mãe uma mulher devassa , uma vivandeira , uma meretriz de soldados , que não faria mais que atirar sua filha ao berco em que ella propria nascera , poderia encontrar um marido honesto , ser o anjo do lar , divinisar-se no altar da familia , porque as mães podem considerar-se as santas da religião domestica . Mas não . Graça Strech suppunha- a a flôr do paul . Tinha para elle a belleza maculada da vegetação dos charcos . Não sabia o que era o azul do firmamento , porque só os lagos , de superficie crystallina , são espelho do céo . As flôres do paul querem viver no lodo ; ella queria viver no prazer . Os beijos que recebia tresandavam ao acre do tabaco e da aguardente . Não dulcificavam ; queimavam . E assim como a gente se admira de ver uma flôr , por mais desbotada e menos formosa que seja , á beira d' um monturo , assim elle se admirava de que aquella mulher tivesse nos olhos um relampago de compaixão estando habituada a viver entre soldados e concubinas . Era , a seu juizo , o ultimo lampejo da alma que bruxoleava apagada pelo vicio . Extincto o derradeiro clarão , ficaria apenas a lampada -- o corpo . E elle não queria gosar ; queria vingar-se . O prazer da vingança , se o ha , esse anhelava-o . Mas uma mulher corrupta não podia ser-lhe instrumento sufficiente a sacial- o . Nenhum dos generaes que capitaneavam o exercito invasor teria uma filha innocente , candida , formosa ? decerto não ; se a tivesse , não consentiria que a soldadesca violasse as alheias . Mas se a tinha , trouxessem-lh ' a , pura como estava , bella como era , que a queria polluir , e dizer depois ao pae exasperado : " Os teus soldados mataram minha irmã , que tambem era virgem ; eu matei tua filha , porque a encontrei no estado de minha irmã . Ambas são mortas : isso que ahi está já não vive . " A toda a hora , tudo ali lhe recordava esse horrivel drama de sangue , que reputaria ainda sonho infernal , se a memoria de trez cadaveres o não chamasse á realidade . Tudo eram mulheres mancommunadas com os invasores , tudo feridos e prisioneiros , que de continuo amaldiçoavam , esporoados pela dôr physica , a França e o Corso . A lingua que se falava era a d' ellas , mesclada de raras palavras hespanholas para melhor se fazerem entender dos que não tinham a illustração bastante para comprehendel-as . Não será preciso observar que Graça Strech não desconhecia o idioma francez . A principio confundiam-se-lhe no cerebro enfraquecido todas as sinistras visualidades d' aquella tormentosa phase de sua vida . Depois , á medida que ia cobrando forças , não só entrou de raciocinar ácerca de Rosina , como lhe acudiu a lembrança de seu pae , cuja morte só o tempo comprovára , e a consciencia da sua propria situação . Estava prisioneiro , guardado á vista por sentinellas francezas , e todavia havia jurado vingar a morte da sua familia . Esta idéa infernou-lhe as primeiras horas de lucidez . Era impossivel despedaçar as cadeias , romper por entre as sentinellas ; não queria de modo algum expôr-se á morte que o roubaria á vingança . E o sentir no dedo o contacto do annel , em que se coagulára uma gota de sangue seu , ou de sua irmã , exasperava-o ao extremo de cair prostado no leito . N ' estes lances acudia meigamente Rosina Regnau , chamemos-lhe assim , a soccorrel- o com notavel dedicação . Umas vezes a repellia elle com ingratidão brutal , quando a accentuação franceza lhe coava ás entranhas estremecimentos de raiva , outras fitava na vivandeira o olhar amortecido como a dizer-lhe que a prostração seria passageira . Na vespera do dia em que estamos , teve Graça Strech uma idéa que para logo reputou auxilio providencial . Lembrou-se de que só por intervenção de Rosina poderia evadir-se do hospital de sangue . Tratou pois de corresponder á solicitude com que ella o distinguia , de se mostrar reconhecido , de occultar o seu pensamento de vingança sob a mascara de ternura . Immediatamente o dominou este proposito , e a si mesmo prometteu nunca mais receber Rosina com intermittencias de rancor ou azedume . Difficil era o cumprimento d' esta promessa . Não se mascára facilmente o coração . Relia elle , como dissémos , as cartas de sua irmã . Umas eram queixumes de rôla solitaria confrangida da tristeza alpestre das Chãs ; outras eram hymnos de esperança , votos de felicidade commum , vagas alegrias dos sonhos dos quinze annos ... N ' umas denunciava-se a mulher ; n ' outras a creança . Umas eram a lagrima ; outras o sorriso . Aquellas tinham a tristeza d' uma nuvem em céo d' abril ; estas eram um raio de sol doirado pela primavera ... Ou antes , como o leitor poderá classifical-as , as primeiras eram o presentimento da desgraça imminente , as ultimas eram o cantico do anjo que punha os olhos no céo , sua patria . Vejamos : " " 30 de novembro de 1807 . " -- Meu irmão . -- Não sabes como soffro horrivelmente , receiosa dos perigos que virão . A avosinha tambem está muito afflicta depois que os francezes entraram em Abrantes . Já cá sabemos da partida da familia real , apezar de tu , grande dissimulado , m ' o não haveres dito ! O padre capellão anda sempre a contar dinheiro e a ralhar com os abegões .