BIBLIOTHECA PORTUGUEZA ILUSTRADA XI Antonio FRANCISCO BARATA UM DUELLO EM+AS SOMBRAS OU D. Francisco MANUEL DE MELLO SEGUNDA EDIÇÃO LISBOA EMPREZA DE+A HISTORIA DE PORTUGAL Sociedade editora LIVRARIA MODERNA | TYPOGRAPHIA Rua Augusta, 95 | 45 , Rua Ivens 47 1903 Na ponte de Coimbra São suavissimas as tardes de abril em Coimbra . Meandra o rio suas aguas transparentes em perguiçoso curso por sobre as areias , descantam amores os rouxinoes nos grandes tufos de verdura das margens , rescendem deliciosos aromas os laranjaes propinquos . É formosissima Coimbra n ' aquelle tempo . A vetusta cidade surge elegante em vistosa pinha d' aquelle mar de verdura que a circumda , como da vastidão das aguas surge no mar a fresca Madeira . Atalaiam lhe o saudavel clima a fresquissima ribeira de Coselhas , Santo Antonio dos Olivaes , Cellas , a melancholica Arregaça , a quinta de Villa Franca e toda a margem direita do Mondego , como outros tantos baluartes de defeza em volta de praça d' armas importante . Quem ha ahi , que , ao contemplar tão bellos panoramas , ao respirar tão balsamicos ares não sinta a alma arrobada em sensações deliciosas ? É-se poeta em Coimbra n ' aquelle tempo . Era então no mez de abril -- 1630 . Ao decahir da tarde do dia 12 , tres estudantes sahiam de Coimbra pela ponte em passeio tranquillo e conversação amigavel . Cursavam dois d' elles as cadeiras de direito e o terceiro estudava humanidades ainda . Iam passeiando ao longo da ponte reconstruida por el rei||_D._Manuel D.|_D._Manuel Manuel|_D._Manuel , quando para a cidade entrava uma senhora de meia edade , acompanhada por uma creada ainda nova , não formosura nem belleza mas sympathica como toda a mulher n ' aquella edade , sem embargo da sua cor morena , senão mulata . No passeio da ponte pedia esmola um pobre . Era um válido mandrião . Roto e sem camisa , deixava ver um peito cabelludo e queimado das intemperies . Usava umas longas barbas grisalhas ennovelladas e sujas , e pedia esmola de chapeu na cabeça , cousa vulgar nos nossos dias , em que o mendigo já fala em communismo e conhece Carlos Max . Pediu esmola o pobre á senhora , quando os estudantes passavam . Condoera-se d' elle a boa alma da matrona , mais por lhe ver nú o peito herculeo , do que por ter pedido sem tirar o chapeu , e dissera á creada que lhe desse alguns cobres . Obedecia a creada dando ao pobre , que se levantara e viera ter com ella , uma moeda de cobre , que elle tomou tão apressado e soffrego que não se contentara com a moeda somente , apertando lhe a mão , tremente e lubricitante . A moçoila soltou um grito de dôr , tal fora o aperto ! e o mais novo dos estudantes , ao presenceiar aquella scena , destaca um pouco do grupo , de que fazia parte , perfila-se e exclama : -- Bravo ! Muito bem , Mello , muito bem ! dissera um d' aquelles estudantes , que se apresentara à rapariga , consolando a. -- Viva o nosso poeta ! exclamou o terceiro . A moça passou , e os tres continuaram seu passeio entre alegrias e risos . Proximos do O da ponte os estudantes sentaram-se no bordo , ou guarda d' ella . -- Que te parece , ó Macedo , o improviso trovar de D. Francisco ? -- Bem , muito bem ; e , sem receio d' errar , já te affirmo como a elle que seu talento é para grandes commettimentos . -- Poeta como tu , Macedo , É que te affirmo que nunca serei , acudiu D. Francisco . E não será porque eu menos ame a patria em que nascemos , mas porque o meu estro não é , por certo , para a cantar como tu a vaes cantando . me-hei enganar , mas o poema que compões não será muito inferior ao de Luiz de Camões . -- Obrigado pelos gabos . Devo porém dizer te que não sei mesmo se o termine . Estas materias de Direito por forma me tomam o tempo , que melhor será por- lhe eu um ponto do que pensar em o concluir . -- Será isso um crime de lesa patria que o futuro te não perdoará , como eu começo já por castigar , apodando-te de fraco , respondera Mello . -- Quer isto dizer , acudiu o terceiro , dirigindo-se a Macedo , que D. Francisco nem sequer suppõe quanto seja inimiga das musas uma Instituta de Justiniano . -- Possível será , Soares , o que dizes ; mas o que nós ambos temos a esperar d' elle é o acabamento do poema , que adiantado leva já , como eu tenho direito a esperar de ti , o emprego do talento , que tens , não só em descobrir argucias e subtilezas demandistas como em cantar mil feitos heroicos de nossos maiores . Tendes ambos talentos poeticos notaveis , e não deveis deixar nunca de parte o culto das muzas em proveito da esterilidade de Cujacio . Por mim , vos digo , que siga eu na vida esta ou aquella carreira , queimarei sempre alguns grãos de incenso no thuribulo da poesia . Bem sabeis que : como judiciosamente observou o nosso Antonio Ferreira . Parece-me , porém , que não mais virei a Coimbra . Apezar de vermos a patria sem independencia , entendo ainda que o grande nome de portuguezes , que temos , me convida à gloria das armas , em que nossos maiores se fizeram tão grandes como nem sei se o foram spartanos e athenienses . -- Singular resolução se me afigura essa , tão cedo tomada . Apenas ha mezes que estás em Coimbra ; vaes famosamente nos estudos ; esperaste n ' elles um futuro laureado ... Talvez que alguma nympha do Tejo travessa e feiticeira ... dissera Macedo , sepultando na reticencia os ultimos traços do pensamento . -- No vinte deste com a bola , Macedo , acudiu Soares . Olha D. Francisco como se enleia . Mas não é caso esse para mysterios : antes por melhor tenho eu que tu sirvas . Bellona , Pallas e Venus do que sómente a uma d' essas , concluiu Soares , dirigindo-se a D. Francisco . -- Certo é que o Macedo não fez má pontaria ; e , sem que vos responda enleiado , tenho por certissimo que ambos vós , em contraposição ao terrifico olhar de môcho de vossa Minerva , vos alentaes e bebeis á farta inspiração no olhar mavioso da mulher que amaes . Pois d' onde procedem vossas alegrias , tristezas , esperanças ? Não é da ephemera gloria dos louros colhidos na sciencia ; de não harmonisardes abstrusos principios do que chamaes direito , nem do prazer intimo de attingirdes um dia o acumen das sciencias sociaes . Da mulher vos vem o contentamento ou desprazer ; por ella e para ella trabalhamos . É ella o grande iman que nos aponta sempre o norte da vida , a constellação brilhante dos nossos desejos , o maior florido da nossa primavera . Sem a mulher para nós seria o mundo uma noite perenne , em que jamais brilharia o meigo sol dos affectos . -- Não ha duvida nenhuma , Macedo amigo , D. Francisco está apaixonado ; e , em vez de trabalhar pela mulher idolatrada , elevando-se aos olhos d' ella , na manifestação do seu talento vigoroso em lides scientificas , prefere ir viver na capital vida contemplativa em adoração sua : aconselha , mas executa . -- Mal avisado observas e me argues , respondera D. Francisco . Pódes crêr , e vel- o-has , se do proposito que tenho me não arredar . Tresloucam-me dois amores , força é dizel- o ; o de uma mulher e o das armas : medirei n ' este a minha espada com a dos inimigos do nosso nome glorioso , e terçarei por ellas nas pugnas da sciencia e nas da poesia . Sem competencia com o auctor dos Lusiadas , como elle brandirei a lança ou manejarei a espada , movendo a penna no exaltar e transmittir á posteridade os feitos imperecedores que praticármos . -- Não pelo teu merecimento , já sobejamente provado no Collegio de Santo Antão , nem por tua bravura patenteada no desastre da Corunha , em que te não deixaste sossobrar , nem escarmentar como aventureiro , que foste , mas pela natural antinomia do clarim guerreiro e da frauta pastoril , antes penso que mais pendor tens para armas e amores , do que para lettras e sciencias . -- Mui adrede me contrarias ; conheço a intenção . -- Enganas-te quiçá , D. Francisco : tens dormente a perspicacia d' esta feita . Que alma e vida te dês e votes a amores bem e louvavel me parece , como egual apparencia tem para mim a realisação de tuas idéas litterarias ; o que , porém , se me afigura verdura d' annos são esses pruridos bellicos que te enfeitiçam com o vistoso do trage e o brilhante das armas bem açacaladas . E falaste no amor da patria ! Já não temos patria , D. Francisco ! Já lá vae o tempo em que as quinas do primeiro Affonso tremulavam no tope dos mastros das naus portuguezas no Oriente ; hoje , é somente por vangloria d' elles e afronta nossa que as ensancham no arrogante pavilhão de Castella , esses castelhanos de má morte ! E queres seguir a vida das armas , por defender com teu braço de portuguez lidimo o throno vacilante d' esse imbecil Pilippe ! Olha , D. Francisco , dá de mão a esse projecto , que alimentas , se queres ser genuino portuguez , e credor á posteridade de algum agradecimento . Combate os castelhanos , sim , combate ; mas com a penna , até que um dia , em futuro por ventura proximo , os possas agredir com a espada . Crê tu , D. Francisco , creiam ambos , meus amigos , um pensamento que me salteou desde que o Olivares empolgou o poder : este homem far-nos ha grandes damnos , gravames e offensas , mas trará a liberdade da nossa patria nas ancas do maltratar . -- Muito bem , Soares , muito bem . Comprazem-me esses nobres estimulos , essas patrioticas idéas . Comtudo , cedo me parece para tão ardorosas praticas e jubilosos epinicios . Vae rija a tempestade do nosso captiveiro , e nos cerrados horisontes da patria afigura-se-me que tarde brilhará o sol de nossa liberdade , o dia de nossa redempção , dissera Macedo . -- Não sei se brilhará cedo ou tarde essa luz emancipadora , acudiu D. Francisco enthusiasmado . O que sei já é que forçoso me é rebater as acrimonias do Soares , e não sei mesmo se censuras . Consumado é facto da nossa união politica à Hespanha . Assim o quizeram os imbecis governadores do reino , que nos legara um rei mais imbecil ainda , e não sei mesmo se culpados no delicto politico foram nossos paes , que se abstiveram de cooperar com D. Antonio para a defeza do reino e de nossas liberdades . Oh cardeal , cardeal ! inepto filho de um rei venturoso , que apertadas contas deverás ter dado a Deus do teu doble proceder para com um povo heroico , a quem levaste á condição do escravo , á servidão do helota ! Não temos patria ? Temos , sim , no livro de Luiz de camões , nas Decadas -- Barros , nos escriptos do bispo Osorio . Hemos de ser portuguezes em todos os seculos . Pois que ? Sumiu-se por ventura o nome de Apimano , o de Cesarião , o de Viriato , quando Roma traidora triumphára dos Lusitanos ? Não . Nunca jamais . Brilham hoje como então e como sempre nos fastos do valor humano . Concorrendo para a sustentação do throno de Filipe III mais hei de zelar o meu nome de portuguez immaculado , nas batalhas em que me achar . Sim , reprehensivel desidia fòra a minha se não seguira o pendor de meu genio para as armas . E se um dia vier em que a patria careça de valor dos filhos , ver-me heis combater á sombra do pendão nacional a quantos o pretendem humilhar , e prouvera Deus que fosse a castelhanos , que não me seria desairoso a mim o proceder . Um facto é hoje a nossa união ; um facto poderá ser ámanhã o rompimento d' esse forçado laço que nos prende ha quarenta e tantos annos . Arguis-me ? Com que fundamento o fazeis ? Pois não vos destinaes vós mui breve a servir ao neto do Demonio do meio dia com a toga , a penna e a palavra ? Por certo . Na diplomacia ou na magistratura servos ha grato um logar . Ora , dae que eu sirva Portugal com a espada como vós o servireis com as letras , sem que para vossos desejos possa servir de estorvo a falta de independencia , que não temos . -- Não arrasoamos mal , não , D. Francisco . E Soares conseguiu o fim que mirava , arguindo-te . Quiz estimular-te para te ouvir , que bem lhe respondeste . -- Alguma razão tens , D. Francisco , disse Soares ; mas o que te certifico é que não seria eu quem expozesse minha vida aos pelouros inimigos , quando não fosse em defensão do reino em que nascemos . -- Nem sei mesmo se o farias então : noto em ti propensão decidida para a paz e para o socego , e mais facil se me antolha contemplar-te no futuro gordamente vestido de burel em Alcobaça do que sopesando nos combates uma comprida partazana . -- Não me repugna a idéa absolutamente , respondeu Soares . Famosa posição topographica tem Alcobaça , ares excellentissimos , aguas saborosas , coutos e veigas que nem os jardins das Hesperides , vasta , rica e variada livraria ... tudo . Não falta nada alli . Para todos os espiritos tem o D. Abbade alimentação condigna . Confessionario e pulpito . Pulpito ! Que vantagens não póde tirar o homem habil do sermão ! O frade tem sentimento e coração como outro homem , e offensa fôra suppor que no dia da profissão o considerassem morto para o mundo em que nasceu , viveu e sentiu . Homens austeros , totalmente convictos da missão que professaram , verdadeiros crentes , acho que só tivemos ainda um ; foi elle Fr. Thomé de Jesus . De Fr. Bartholomeu dos Martyres suspeito algum tanto . Vês , pois , que não será a vida monastica a peior das que um homem pode seguir n ' esta breve passagem na terra . -- O que é certo , disse Macedo , por fim , é que nós temos discursado á larga e a noite já se approxima para nos atalhar a conversação . Se vos não destôa o meu parecer entremos na cidade . -- Entremos , respondera D. Francisco , que não pouco havemos já taramelado . E os tres estudantes desceram da guarda da ponte e tomaram a direcção da cidade . Cantavam o seu eterno canto d' amores áquella hora os rouxinoes nos sinceiraes do Mondego ; marulhava este suas aguas nos arcos da ponte ; começava a tremeluzir uma ou outra estrella no firmamento ; brilhava já uma ou outra luz na cidade . -- Foi aqui , disse repentinamente D. Francisco , parando , onde ha pouco desfechei sobre a moça alguns maus versos . Tu , Macedo , pois que menos falaste esta tarde , bem podias ir nos recitando as ultimas estrophes do teu poema . -- Dizes bem , acudiu Soares : deletreámos em diversas cousas e preterimos a poesia , que não podemos dispensar . -- Ao contrario do que dizes , affirmo eu que não deixámos de ser poetas e sonhadores . Começámos o passeio com o improviso de D. Francisco , e tanto ramificámos a idéa que não sei se mais borlas terá um chapeu do bispo armenio , respondeu Macedo . -- Pois bem é que termine o passeio como começou , em verso : recita , pois , as ultimas estancias ao menos , se para mais te sentes mal disposto , instou D. Francisco . -- Não me lembro de nada , no entanto ... E parou um instante como por se recordar , proseguindo : -- Ando compondo o canto IX e d' elle me lembram estes versos : -- Bravo , exclamára Soares . -- Muito bem , acudiu D. Francisco . Tens n ' essas instancias formosos versos . Continua . -- Não ha mais : são esses os ultimos que escrevi . N ' isto passavam elles o arco de Santo Agostinho e entravam em Coimbra : era noite . Quem seriam , pois , estes mancebos cultores da poesia ? Eram D. Francisco Manuel de Mello , um dos nossos mais benemeritos escriptores , Antonio de Sousa de Macedo , auctor do poema Ulyssipo e de outras obras estimadas , e Vicente de Gusmão Soares , auctor da Lusitania Restaurada . O fidalgo e o pagem Moravam na Couraça dos Apostolos dois dos estudantes : Macedo e D. Francisco , e eram mesmo companheiros de casa . Na phrase d' hoje , porventura já d' aquelle tempo , Sousa de Macedo era Veterano do Calouro||_Mello Mello|_Mello . Dirigiram se , pois , a sua casa , emquanto , despedido d' elles á porta de Belcouce , Vicente de Gusmão Soares tomava para a rua das Fangas . Já começavam a subir a Couraça quando lá no alto da ingreme rua distinguiram ainda um cavalleiro , que descia e que não podiam conhecer não só pela distancia como pelo escuro da noite que começava a cerrar-se . Prestes , ao aproximarem-se , viram os estudantes parar o cavalleiro , voltar-se para o renque de casas , que se retratam lá em baixo no Mondego , e falar com alguem . Chegavam os estudantes ao cavalleiro exactamente quando uma voz feminina parecia responder a uma pergunta feita . -- Não sei quem é ; não o conheço . N ' aquella pennmbra , já mais trevas do que luz , D. Francisco Manuel conhecera na gualdrapa do sellim as armas do conde de Sortelha , não conhecendo , comtudo , ao cavalleiro . Macedo , que conhecera n ' elle um escudeiro , ou pagem , pela libré que trajava e o ouvira perguntar por alguem á sua porta , interrogou-o : -- Quem buscaes ? -- Um estudante de Lisboa , por nome D , Francisco , que mora n ' esta rua . Será vossa mercê ? D. Francisco Manuel , que se approximára , mal vira as armas da casa de Sortelha no teliz do cavallo e na capa de baeta de cem fios do pagem , tomou á sua conta o responder á pergunta ; -- Eu sou a quem procuraes . Apeou-se immediatamenre o pagem e descobriu-se diante do estudante , accrescentando que para elle trazia de seu amo e senhor uma carta . -- Dae-m ' a , pois , respondeu D. Francisco , trasbordando de um jubilo , que mostrou occultar a Sousa de Macedo . Tomando a , accrescentou , perguntando : -- Ides para Lisboa , ou voltaes a Goes ? -- Hei de esperar em Coimbra a vinda do sr. conde e partir d' aqui com elle para Lisboa . -- Dizei me onde ides pousar . -- Á estalagem do conde de Cantanhede , onde o senhor||_D._Luiz D.|_D._Luiz Luiz|_D._Luiz pernoitará quando vier . -- Fico vos obrigado . Dizei-me ainda o vosso nome . -- Francisco Cardoso , para servir a vossa mercê . E o pagem , que era um esbelto mancebo , airosamente vestido com o seu sombreiro preto , sua capa de baeta de cem fios , gibão de gorgorão de lã , calções de sargeta , meias e escarpins de panno de linho , dando as boas noites e despedindo se dos estudantes , montou a cavallo e desceu a Couraça . Os dois entraram em casa . Antcnio de Sousa de Macedo , a quem não escapara o contentamento de D. Francisco , e cimentando logo na mente duas idêas , para d' ellas tirar alguma illação , disse a D. Francisco : -- Ignorava que houvesses relações com a casa de Sortelha . -- Temos . Desde pequeno que vou com meus paes aos saraus de D. Francisco . Apezar da muita naturalidade e disfarce com que o interrogado respondera , Sousa de Macedo , se apparentemente pareceu acceitar a resposta , no seu modo de ver intimo regeitou a para logo , cada vez mais convencido de que a carta não era do conde de Sortelha . Mas de quem seria então ? O pagem fôra explicito . Antonio de Sousa de Macedo conhecia o conde de Lisboa , mas não era das relações d' aquella casa , nem sabia mesmo de que pessoas se compunha áquelle tempo . Lembrando se , porém , da annunciada saida de Coimbra de D. Francisco , por causa de dois amores : o da patria , que elle collocara depois do de uma mulher , que era o segundo , sendo aos olhos de Macedo antes o primeiro e mais exigente , formára tenção de ir no encalço da idêa até chegar a um qualquer resultado . Assim , redarguira com intuito prescrutador : -- Ouvi em Lisboa falar da belleza de uma sua filha ... -- Duas filhas tem o conde , é certo , respondeu D. Francisco , mas sem essa belleza preconisada . -- Quem desdenha quer comprar , disse comsigo Antonio de Sousa ; e , para D. Francisco , redarguiu : -- Formosas te não parecerão a ti , poeta e sonhador de gregas esculpturaes ; sel o hão talvez para muitos de menos ruim contentar . Mas , continuou o famoso auctor da Eva e Ave , occultando na adversativa a proseguição do seu inquirir , careço de estudar uma corpulenta lição de direito , e , se o julgas acertado , vamos primeiramente ceiar . -- Não tenbo ainda appetite nenhum . Só mais tarde ceiarei . Vou ler esta carta e escrever algumas para Lisboa . Adeus . E cada um entrou no seu acanhado domicilio . Famosos tempos aquelles em que nossos avós não conheciam ainda as virtudes do chá ! Efeminada e delambida potagem , que vieste fazer á Europa vetusta , e viril , e forte e combatente ? Contribuir pára amollecer seus filhos robustos , roubando lhes os doces somnos , com prejudicial excitação nervosa , e , de camaradagem com o tabaco , envenenar os descendentes dos homens fortes que nunca jamais se arreceiaram do mar enfurecido , que rasgavam com a proa de suas naus , nem de mouros , indios , cafres ou chinezes , em cujas terras longinquas , implantavam destemidos a arvore da Redempção , plena de seiva , de rama e de sombra vivificadora ! Nos tempos em que vivemos considera-se o chá como elemento creio até que civilisador , e bem creado , cortez e polido , pois que não é raro ouvirmos do homem menos devotado a modos palacianos , embora honrado portuguez às direitas , -- que não tomàra chá em pequeno ! Mas Affonso d' albuquerque e D. João de Castro , que não consta da historia haverem tomado chá em creanças , avassallaram o oriente que se deliciava com elle ! Mas D. João I e Nuno Alvares , que em menos de meia hora levantaram um throno e collocaram n ' elle um rei , foram modelos de brios e não tomaram chá ! Mas as mulheres da Peninsula , que não tomaram chá , foram collos de garça e chamaram-se formosas como Leonor Telles , sendo as de hoje em dia rosas pallidas de estufa que a mais leve brisa amarellece e desfolha ! Proscripto sejas , ó chá , que me roubaste a portuguesa ceia de meus avós ; nos campos , saboreada ao pé da lareira , onde a labareda e candeia cravada no mancebo enchiam o recinto de luz , com phantasticas historias promiscuamente adubada ; nas cidades á luz de velas em candelabros , pausa e descanço á doce languidez de saraus , com versos e musicas e danças ! Porém , dirá o leitor benevolo e curioso de saber o que diz a carta que o conde de Sortelha enviára ao estudante , que nenhum empenho tem em conhecer a antipathia que eu tenha ao chá , e que melhor avisado andarei proseguindo a narração d' esta veridica historia , do que divagando á larga por episodios fastidiosos . Razão haveis , illustrados ledores . Dir-vos hei , comtudo , que assim como o fructo , se não prohibido , ao menos diffcultado , mais saboroso nos parece e mais ardentemente se deseja , assim mais appetitosa achareis esta narração de factos da vida de um homem importante , nas armas e letras portuguezas . O que dizia a carta não sei , porque se perdeu esse documento ; mas de que fôra lida anciosamente , beijada em seguida e bem guardada depois , vos posso eu dar conhecimento . Irrequieto o estudante depois da leitura d' ella , abrira a porta do quarto , passando pé ante pé pelo de Macedo , descendo a escada e sahindo de casa . Que assumpto seria o d' aquella carta , que tanto parecia haver inquietado a D. Francisco e o forçava a sahir áquella hora da noite ? Sigamos-lo nós , leitor , e vejamos a direcção que toma . Desce a Couraça embuçado na capa , e occultando mesmo o rosto na dobra d' ella , que lhe cobre q peito . Apezar do escuro da noite , a precaução tinha uma razão de ser na sua posição politica de calouro , que o aconselhava a não ser conhecido , para de tal modo evitar as cassoadas , já então muito usadas em Coimbra . Chegado á porta de Belcouce passa o arco romano que alli existia n ' aquelle tempo , segue pela rua das Fangas , dobra o cotovello d' Almedina , atravessa a calçada , entra na Praça , pelo lado dos açougues , e toma a direcção da estalagem do Conde de Cantanhede . Apenas chegado , pergunta por um pagem do conde de Sortelha , que chegara de Goes , pouco havia . Appareceu aquelle , mal soubera ser procurado por um estudante . -- Não vos fiz ha pouco as perguntas que desejava , por não estarmos a sós , e para vol-as fazer venho . -- Prompto para servir a vossa mercê , sr.||_D._Francisco D.|_D._Francisco Francisco|_D._Francisco , e com tanta mais vontade quanto tambem eu tenho empenho em vos falar , respondera o pagem . Entraram na casa de jantar , onde se acabava de pôr na meza a ceia para Francisco Cardoso . D. Francisco , que não ceiara com Antonio de Sousa , achou que devia pedir também ao creado ceia para si . -- Pois quererá vossa mercê comer em minha companhia ? acudira muito admirado Francisco Cardoso . -- Certamente , respondera o estudante . E os dois começaram a comer e a conversar . Fineza grande era , na verdade , a que D. Francisco Manuel de Mello fazia ao pagem . As leis da nobreza d' estes reinos e senhorios de Portugal ainda hoje se oppõem como muito mais o fariam então , a que um pagem qualquer se podesse sentar à meza de seu amo ! Tinha e tem a sociedade em que vivemos , muitos preconceitos ainda , e por vezes cada qual mais ridiculo . Para que distincções no acto mais natural e forçado do ser humano , era que necessariamente se nivelam , n ' aquella exigencia da carne , o fidalgo e o seu pagem ? Envergonhar-se-ha o nobre de que o vejam comer , mastigar e engulir ? Não saberá elle que , pelo menos no phenomeno da mastigação , é similhante ao pagem ? É que D. Francisco Manuel de Mello era republicano utilitario : não direi communista de Paris ou d' Alcoy , mas egoista bem entendido . -- Dizei-me vós uma cousa , Francisco Cardoso , D. Branca de Vilhena , ao dar-vos a carta , nada mais vos disse ? perguntára D. Francisco . -- Se disse ! Eccommendou me muito que buscasse falar a vossa mercê por lhe dizer que fosse mui cauto quando chegassem . -- Notavel cuidado ! Pois não poderei eu comprimentar vossa ama e senhora quando visitar a D. Francisco seu pae ? -- Será que vossa mercê desconheça o projecto que tem o sr. conde de casar a sr.ª||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca ... -- Casar D. Branca da Silveira ? ! exclama pondo-se de pé o estudante . -- E creio ser cousa assente entre o sr. conde e ... respondeu Cardoso . -- E quem ? volveu rapido D. Francisco Manuel . -- Não vol o posso dizer . -- Não podeis ? Haveis de poder : exijo o . -- Porém a sr.ª||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca pediu-me para que o não dissesse a vossa mercê . -- Ha , pois , dobrez em vossa ama para commigo ? ! Oh ! mas não póde ser ! Exclamára o estudante , sentando-se pensativo . -- Socegue vossa mercê , sr.||_D._Francisco D.|_D._Francisco Francisco|_D._Francisco , que vae precipitado n ' esse juizo . A sr.ª||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca ama-vos ardentemente , sei o eu . -- Mas vae desposar a outro homem ! -- Ainda não sei se casará com outro homem , apezar de muito o querer o sr. conde . Bem sabe vossa mercê que esse casamento projectado póde não se ultimar , dado que meu amo saiba da affeição que tendes desde creanças . -- Ultima , porque eu possuo poucos haveres , minguada casa . E depois de breve meditar : Dizei me , porém , quem pretende a mão de Branca de Vilhena , oh ! dizei-m ' o já . -- Direi , se vossa mercê promette occultar esta denuncia . -- Prometto . -- O pretendente é seu tio , o novo conde de Villa Nova, D. Gregorio de Castello Branco . -- O dengoso Thaumaturgo ? ! exclámara rapido o estudante , erguendo se de novo e passeiando agitado . -- Socegue vossa mercê , torno a repetirvol- o . A sr.ª||_D._Branca_de_Vilhena D.|_D._Branca_de_Vilhena Branca|_D._Branca_de_Vilhena de|_D._Branca_de_Vilhena Vilhena|_D._Branca_de_Vilhena será sempre vossa , posso affirmal o eu . -- Como ? perguntara D. Francisco parando , de olhar fito em Cardoso . -- Dizendo a vossa mercê que a sr.ª||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca me tem confiado os segredos de sua alma , como se fôra a um irmão . -- Pois D. Branca disse vos ... -- Tudo , interrompeu Francisco Cardoso . -- Indiscreta foi . -- Vossa mercê offende um amigo com essas palavas . Pois o que monta ser eu seu pagem d' ella para que sua boa alma me não confie um segredo ? Ao contrario do que pensaes , creio eu que de bom aviso foi o confiar-me a sr.ª||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca este segredo de vossos corações , pois que , pelo muito que lhe devo a ella , alma sempre generosa e boa para com os pequenos sobre tudo , vos hei de prestar a ambos alguns serviços por ventura do vosso agrado . -- Não vos julgueis offendido , Francisco Cardoso , que nenhuma intenção tive de vos maltractar . Um pagem confidente dos segredos de sua ama não é , por certo , caso dos mais ordinários , e então ... -- Ao contrario ninguem melhor pode conhecer oviver intimo de seus amos do que o seu criado . Certamente vossa mercê não attentou bem , pois que se o fizera , casos acharia em que um pagem póde salvar ou póde perder e matar . Não conhece vossa mercê o caso do gentil homem Alcoforado ? É bem vivo na tradição ... Foi morto pela lingua de um criado ... -- Não foi . O duque suspeitava , e quem de todo acabou com elle na deliberação , foi ver um dia uma joia que dera à esposa D. Leonor de Mendonça , no chapeu de Antonio Alcoforado . A denuncia do crime foi aquella leviandade . -- Perdõe-me , sr.||_D._Francisco D.|_D._Francisco Francisco|_D._Francisco , mas saiba que de meu avô , que Deus haja e lá foi creado em Villa Viçosa , me veiu essa historia mui certa . Tão nobre e dignamente respondera ás arguições de D. Jayme á offendida esposa , que o duque sairá vencido , e envergonhado mesmo de haver enrostado á mulher tão feia mancha . Á saida , porém , dos aposentos de D. Leonor , foi o creado Pedro Vaz quem taes cousas lhe disse , verdadeiras ou falsas , que D. Jayme retrocedendo enfurecido , a prostrou a golpes de punhal . Bem vê , pois , vossa mercê que eu sei essa historia , e que foi aquelle Pedro Vaz quem perdeu a desditosa senhora . -- Vilão procedimento foi o d' esse Vaz contra a innocente senhora , dissera mal humorado D. Francisco , com aquella narrativa . -- Desculpe-me vossa mercê , se o contrariar , que só por amor da verdade o farei , e pela honra de um dos meus e minha propria . D. Jayme não amava a esposa , com quem casára por não desprazer ao senhor||_rei|_D._Manuel rei||_rei|_D._Manuel D.|_rei|_D._Manuel Manuel|_rei|_D._Manuel , sendo ella creança ainda : a senhora duqueza , nova , linda , não devia viver feliz . Antonio Alcoforado entrava de noite nos paços do Reguengo de Villa Viçosa pelas janellas do jardim : apontavam os bem dizentes para uma dama do paço , de quem não diziam o nome , e os malevolos para a duqueza . Por amor de quem entraria Alcoforado , sr.||_D._Francisco D.|_D._Francisco Francisco|_D._Francisco ? D. Francisco não esperava por certo que tão sabedor fosse um pagem do conde de Sortelha , e cada vez mais se admirava d' elle ao modo por que o ia tractando . Ficara algum tempo silencioso a encaral- o , e dizendo para comsigo : -- Este homem não é desprovido de talento ; póde-nos ser util ou muito perigoso . É preciso cautella . -- Parecendo lhe porém , desairoso não volver resposta ao pagem , disse-lhe apenas como quem deseja pôr termo ao incidente : -- Por quem entrava Alcoforado nos paços de Villa Viçosa a horas mortas da noite , nenhum de nós o sabe , bem como explicar a razão por que D. Jayme tanto se penitenciára depois de assassinar a mulher . Porque se penitenciaria o duque ? Pensae nisto pois que haveis natural esperteza . E mudando logo de rumo , deu velas ao vento para o porto que deixára perguntando a Cardoso : -- Sendo , pois , a senhora||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca vossa amiga , tanto que a desejaes servir , duvida nenhuma tereis em nos prestar , a ella e a mim , que serei lembrado , alguns serviços neste affecto que nos prende desde creanças ? -- Já me disse vosso amigo , por que o sou d' ella : podeis contar commigo . -- Olhae bem : ponderae o que dizeis . -- Póde confiar em mim , sr.||_D._Francisco D.|_D._Francisco Francisco|_D._Francisco . -- Confiarei , e bebamos pela manutenção da promessa . -- O quê ? Pois quereis ? ... Não vedes que sou ... -- Bebamos , foi a resposta de D. Francisco . E beberam . Terminada a ceia D. Francisco pagou as despezas , despediu se do pagem , saindo e tomando a direcção da Couraça . Uma cheia no Mondego Na tarde do dia seguinte áquelle em que os tres academicos passeiáram na Ponte de Coimbra , saía d' esta cidade um cavalleiro garbosamente montado em um formoso mursello , e seguiu a direcção de S.||_José_dos_Mariannos José|_José_dos_Mariannos dos|_José_dos_Mariannos Mariannos|_José_dos_Mariannos , collegio extramuros da cidade contra o nascente d' ella , no monte aureo . Era um moço de pouca edade mas já bem talhado de formas . Vestia calções de melcochado preto , meias de agulha , finas , roupeta e jubão de gorgorão de lã rôxa , capa de crise alienada , apassamanada e bandada , levando na cabeça um chapeu com pluma preta . Descendo sobre a Arregaça atravessou aquella baixa de olivedos a galope , subiu a pequena encosta que lhe vedava na frente a vista do Mondego , e desceu sobre as Torres , pittoresca aldeia na margem direita do rio , perto do ponto em que a barca de passagem dos Palheiros vae reatar na margem esquerda a estrada para Poiares , Arganil e Goes . Apenas avistára o Mondego notára o cavalleiro que suas aguas corriam turvas e barrentas , e parecia encorparem a olhos vistos . Não se admirára , porque tão precipite desabou de madrugada e quasi durante a manhã sobre Coimbra uma forte trovoada , com chuvas torrencialissimas que aquelle avolumar de aguas era natural consequencia no rio que , desde o seu nascimento até áquella cidade , corre sempre entre serras altas e muito escarpadas . Notaveis são as cheias do rio Mondego . Quem o comtemplar no verão , minguado d' aguas , quasi arroio preguiçoso sobre areias amarelladas , mal cuidará como se ostenta temeroso e arrogante no inverno , avassalando insuas , arrancando azenhas , arrebatando vidas , desfazendo açudes , subvertendo bateis ! Se não tem , como o Douro , passos arriscados , tem cheias tão perigosas pelo repentino e traiçoeiro manifestar , que não ha escapar á sua furia . Provêm estas repentinas enchentes umas vezes do desgelo da neve na serra da Estrella , outras das chuvas torrenciaes , que não achando por aquelles montes chapadas que as embebam , as deixam cair sobre o Mondego em catadupas ruidosas , arrastando arbustos e terras dos algares , que vão lambendo e cavando . Estreito á Portella é o leito do rio e piçarroso quasi sempre , por forma que aquellas aguas , comprimidas entre margens graniticas , correm volumosas e precipitadas até que nas alturas de Coimbra se espalham e alargam pelas insuas e campo de Bolão , deixando sepultada a parte baixa da cidade . Occasioes ha em que tão subita se manifesta a enchente que mal deixa tempo ao moleiro , á lavadeira e ao pastor para se lhe escaparem , não podendo salvar das aguas o pão , a roupa e o gado . Espectaculo imponente é então o comtemplar da ponte de Coimbra uma d' essas enchentes . Contorcendo-se como uma serpente monstruosa , e revoluteando em cachões medonhos , á flor dos quaes ora apparece uma trave , ora um moinho inteiro , ora um animal morto , quando promiscuamente se não avista com aquelles destroços o cadaver de um ser humano , o Mondego é , na verdado , pavoroso . O cavalleiro , depois de contemplar parado por alguns segundos o rio , chegou as esporas ao cavallo e continuou caminho das Torres . Seriam seis horas da tarde . Alli chegado , atravessou a aldeia e foi parar ao porto do embarque ou desembarque de quem vae ou vem das terras da margem esquerda do rio , ou das da direita para aquella . Apeando se , e prendendo o cavallo a uma arvore , começou de passeiar , parando de espaço a espaço a olhar para a estrada , que da elevada serra do Carvalho baixa para o Mondego , como quem espera ver descer por ella a alguem . E o rio cada vez mais formidavel e temeroso . Do lado opposto avistavam se no porto algumas pessoas , que pareciam altercar com os barqueiros , talvez porque estes se escuzavam a passal- as para cá , receiosos da cheia , que já apavorava . Decorrera uma hora . Passageiros havia já em ambas as margens do rio , que pretendiam atravessal- o . No porto em que se achava o cavalleiro , nenhum barqueiro estava , mas do lado opposto , para onde haviam passado , e onde permaneciam , áquelle tempo temerosos do rio , como até então á espera de passageiros . Haveria hora e meia que o cavalleiro avistára o Mondego , e , por tal modo tinha elle engrossado n ' aquelle tempo , que alargava em suas aguas espumantes os salgueiros e sinceiraes das margens . O dia , que se conservava escurecido por grossas nuvens , principiava áquella hora a tornar-se mais escuro ainda , com a approximação da noite ; e na impossibilidade de poderem passar para a margem esquerda retrocederam para as Torres alguns homens que , perto do cavalleiro , esperavam debalde pelos barqueiros , deixando o só . Este , cravando sempre a vista na escarpada descida da serra do Carvalho , e como desenganado de que por ella não descesse a pessoa ou pessoas que esperava , tomára a deliberação de montar a cavallo e de voltar à cidade . Mal desprendera o andaluz mursello e pozera o pé esquerdo no estribo , avista elle na margem opposta uma cavalgada de dez a doze pessoas , que da aldeia dos Palheiros já descia para o rio . Prendeu de novo o cavallo e esperou . Depois de alguns minutos de demora viu o cavalleiro desprender-se da margem de la o barco , guiado por seis homens com varas , tres por banda , trazendo , ao que lhe parecia , parte da comitiva , que vira chegar a cavallo . O barco fez-se ás aguas morosamente , tomando logo um andamento rapido , antes mesmo de vadear metade da largura do rio , como convinha quasi em linha recta , para depois aportar em qualquer ponto da margem direita . Inuteis eram os esforços dos seis barqueiros por lhe retardar a marcha , tal era a corrente impetuosa ! Observava o cavalleiro aquella marcha do barco sem d' elle tirar a vista , com uma anciedade de quem n ' elle vê pessoa que lhe seja querida e por cuja existencia tenha grande cuidado . Ao porto em que se achava impossivel era já o vir aportar o barco , tanto se afastara na descida ; sem conseguir rasgar ao menos meia corrente . N ' isto , chegam a seus ouvidos os sons de um vozear no barco , que se afastava rio abaixo levado das aguas , e nota que os esforços dos seis tripulantes haviam conseguido ganhar meia largura do rio com o barco , que principiára a resvalar para a margem em que se achava . De grande perigo estava salva aquella gente . Passando da anciedade ao contentamento , o cavalleiro desprende o cavallo , monta rapidamente e galopa na direcção das Torres , para ir ao encontro dos passageiros . Chegado proximo do ponto em que o barco aproára a terra , parou alguns instantes como quem procura reconhecer aos que desembarcam . De repente , sem se approximar d' elles , retrocede em mais rapida carreira e vae de novo parar no porto d' onde sahira pouco antes . Mal elle chegára , eis que do porto da margem esquerda se desprende outro barco , tripulado por maior numero d' homens do que o primeiro . Pelas varas o conhecia o cavalleiro , sem poder distinguir quem fossem os passageiros , não só pela distancia como por falta de luz . A noite descia precipitada sobre o rio . O batel , preso por mais varas , não se deixava levar como o primeiro , pela corrente das aguas , mas não conseguia também vadear aquelle leito caudal , ou attingir metade da distancia , ponto em que a força era maior . A proa tentava cortar as aguas e a corrente arrastar comsigo o barco . N ' estas circumstancias , indo agua abaixo como o primeiro e deixando para traz o cavalleiro , tomou este o expediente de ir seguindo o barco pela margem direita . Chegado era este defronte do sitio em que desembarcaram os primeiros passageiros , sem conseguir dobrar o leito do Mondego . A noite cerrava-se . Os primeiros passageiros que alli esperavam pelos segundos , vendo que o batel já não podia aportar áquelle sitio , montaram tambem a cavallo e foram-no seguindo com a vista . O cavalleiro fazia o mesmo a distancia . Teriam decorrido dez minutos . Notavam-se os esforços dos tripulantes nas vozes mal distinctas com que se animavam quando o barco começou a cortar a corrente . Grande era o perigo que corria aquella gente se não conseguiam dobrar o mais grosso das aguas : dobrado que fosse , o barco deslizava então como o primeiro até aportar a algum ponto da margem . Era quasi noite escura : o batel conseguira attingir o meio das aguas e já escorregava para o lado de Coimbra . -- Estão salvos ! exclamou o cavalleiro , que não despregava os olhos do barco . De facto , emquanto os que primeiro passaram se apeavam e corriam para o ponto em que o barco abicasse a terra , para auxiliar o perigoso desembarque , e emquanto o cavalleiro a distancia , por não ser visto , moderava o passo ao cavallo , o barco entrava n ' uma horta da margem , já completamente invadida pelas aguas . Ao dobrar os salgueiros e estacadas , que resguardavam aquella insua das enchentes ordinarias do Mondego , ouviu-se de repente no barco um grito enorme formado por muitas vozes afflictas , e logo aquelle tombou para um lado , como se perdêra o equilibrio sobre uma haste que o sustivesse . Resvalára a proa sobre uma grande estaca por modo que quando o meio do fundo chato já não podia ceder á pressão das varas de oito barqueiros , o barco aos movimentos de um dos cavallos que nelle vinha , desequilibra se , mette uma borda na agua e deixa escapar de si a um vulto , que os de terra já não distinguiam se era homem se mulher . Um grito dolorosissimo se eleva repentinamente do barco . As aguas na insua nem eram muito altas nem tão correntias . Um homem corajoso podia nadar n ' ellas . Ao presenciar aquella scena , o cavalleiro prende o cavallo ao primeiro tronco que achou , corre precipite ao logar do sinistro , onde alguns homens de terra se aprestavam já para entrar n ' agua , passa correndo por elles , como se fôra uma sombra , e precipita se a nado nas aguas , demandando o barco . O Cavalleiro , que mal houvera tempo de prender o cavallo e de tirar a capa que mais o poderia embaraçar para voar em auxilio dos naufragos , não mais attentára no destino do barco . Este ao tombar-se , resvalára de todo pela estaca e conseguira equilibrar-se novamente . -- Salvem-no ! salvem-no ! brada uma voz para quantos a escutavam . Mais do que um barqueiro tivera saltado ás aguas , se não fôra perigoso ainda deixar o barco sem boas amarras . O cavalleiro , mal distinguindo já os objectos nada para um ponto em que lhe parecia descobrir um vulto escuro , emquanto um dos que primeiro desembarcaram o vae seguindo mais de vagar , por menos bom nadador . O barco conseguia embicar em terra . Estavam salvos aquelles ! Já mais do que um dos barqueiros , posto a salvo o batel , nadava tambem para o ponto do sinistro , quando a alguns metros de distancia d' elle ouviram todos exclamar ao cavalleiro : -- Salvo ! Bem hajas , meu Deus ! Animo ! Está salvo ! Com uma coragem inaudita e uma força sobrenatural o cavalleiro toma nos braços o corpo de um homem semi morto , levanta-o por modo que a cabeça ficasse fóra das aguas , sustentasse nadando com as pernas e demanda a margem , como se nos braços levasse a uma creança ! Corre toda aquella gente ao ponto para que se dirigia o cavalleiro , bemdizendo cada qual a seu modo o homem forte , quando este , de facto , chega a terra e lhes entrega o corpo que salvára das aguas . Rapido , como ao entrar n ' ellas se afasta , sem que ninguem o podesse conhecer , nem elle mesmo buscasse reconhecer a quem salvára ! Ao caminhar para o cavallo que havia deixado preso , encontrou o cavalleiro um grupo de homens e de mulheres de Torres , que perto demoravam e que alli tinham corrido ao saberem do perigo . Voltavam para a aldeia e levavam nos braços a uma senhora completamente molhada e desmaiada . -- Por Deus ! boa gente , parae um instante ! exclamára o cavalleiro , encarando de perto o rosto da mulher desmaiada . Parecendo conhecer aquelle rosto , o cavalleiro soltára um grito singular , mixto de dor e de satisfação , que áquella gente não entendera e correu rapido ao cavallo , que montou , galopando para Coimbra . Já haviam entrado nas Torres os que levavam nos braços a senhora desmaiada , quando o desconhecido passou a galope . Depois que o cavalleiro soltára junto da mulher desmaiada aquelle grito que só d' ella podia ser entendido , voltou esta a si , procurando nos que a cercavam a alguem conhecido . Perguntou por seu pae , indagou se ninguem tinha perecido no rio e pediu para andar por seu pé , até á aldeia , onde minutos depois entrava em casa de uma familia das mais abastadas do logar , que sabendo do perigo que correra uma senhora , e do estado em que se achava lhe offerecera a sua casa , e o conforto de que precisava . Haveriam decorrido cinco minutos quando á mesma casa chegavam os demais passageiros , trazendo com vida o homem salvo pelo cavalleiro , que ninguem conheceu e lá se ia a caminho de Coimbra . Quando o cavalleiro já atravessava os olivaes da Arregaça notou que após de si alguem corria a cavallo em brida desesperada . Parou . O que vinha , ao chegar ao cavalleiro que parára , exclamou perguntando : -- És Gonçalo Gomes ? -- Ide vosso caminho , que não vae aqui Gonçalo Gomes , respondera cavalleiro , proseguindo sua marcha . Já perto da cidade notou o desconhecido que d' ella saía uma liteira a toda a pressa , e que tres homens a seguiam a cavallo . Attentando bem nos cavalleiros reconheceu em um d' elles ao pagem Francisco Cardoso , conjecturando que os dois fossem o Gonçalo Gomes e o que lhe perguntára por aquelle . O medico Boccarro Se a perspicacia do leitor não descobriu ainda quem fossem os passageiros da Barca dos Palheiros , e quem o audacioso cavalleiro que se precipitára no Mondego por salvar a um d' elles , siga-me e suba commigo á Estalagem do conde de Cantanhede , no bairro baixo da cidade -- Coimbra . São dez horas da manhã . O nosso conhecido Francisco Cardoso annuncia á porta de uma sala ao physico Bocarro Francez , que se achava por aquelle tempo n ' aquella cidade , o qual foi logo introduzido . Jazia n ' um leito um homem de vinte e cinco annos , e perto d' elle , sentado em um tamborete , um outro de quarenta e oito a cincoenta . Erguendo-se este , quando Francisco Cardoso annunciára o physico , foi ao encontro d' aquelle , risonho e satisfeito : -- Ora viva o meu caro Bocarro , exclamou , abrindo-lhe os braços . Com que então , por Coimbra ? E eu que o não sabia ! -- Assim é , sr. conde ; mas , se na qualidade de medico aqui venho , como se me afigura , confesso que magoado sou . -- Amigo sois , conheço ; não ha porém , que receiar . Branca está boa , e D. Gregorio com vossas mesinhas prestes o será . E indicava ao medico o homem que jazia deitado . E os dois caminharam para o doente . -- Sabeis do caso , não é verdade ? Tem sido ruidoso em Coimbra . -- Tudo ignoro . Apenas chegado de Lisboa , seriam cinco horas , jantei ; e , porque enfadado vinha , deitei-me e adormeci . O vosso chamamento foi hoje para mim completa surpreza . Fazia-vos na vossa casa de Goes . -- Em breves termos conhecereis o modo desastrado como iamos sendo victimas do Mondego . Tomae lá o pulso ao doente , e vêde se tem febre . -- Não está mal : alguma prostração ... -- Embora ! Pois conheça o meu caro fi Boccarro que esteve quasi afogado . -- Então a sr.ª||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca tambem ... -- Essa desmaiou apenas , acho que por ser rebaptisada , como eu e os demais que no barco vinhamos . -- Historiae , pois , o caso : bem sabeis que quem promette faz divida , como disse Thales , o sabio . E os dois sentaram-se perto do doente . -- Tão forte e chuvosa passou hontem por Coimbra uma trovoada que produziu no Mondego uma cheia grande . Chegavamos de Goes a uma barca de passagem que demora a uma legua d' esta cidade . Temiam-se os barqueiros da enchente , negando-se a passamos . Emfim , deante de melhor paga que lhes propuz , partiu o primeiro barco com alguns pagens e cavallos : luctaram seis homens com o rio , mas vadearam-no e chegaram a porto de salvamento . Partimos nós depois ; e se bem que um maior numero de tripulantes levava o barco , desesperada foi a lucta por domar o collo ao soberbo rio . Entramos uma insua já na margem direita , e iamos prestes a desembarcar quando de repente o fundo do barco dá n ' uma estaca , oscilla sobre ella , pende desequilibrado a um dos lados e arroja de si ás aguas ao sr.||_D._Gregorio_de_Castello_Branco D.|_D._Gregorio_de_Castello_Branco Gregorio|_D._Gregorio_de_Castello_Branco de|_D._Gregorio_de_Castello_Branco Castello|_D._Gregorio_de_Castello_Branco Branco|_D._Gregorio_de_Castello_Branco , correndo perigo egual os que oo barco iamos . -- Notavel é que ninguem mais cahisse ! -- Ha males que vêm por bens . Com aquelle desequilibrio do barco escorregou seu fundo pela estaca onde encalhára , e eil- o prestes equilibrado de novo , depois de ter mettido dentro grande quantidade de agua . -- Fortuna foi , realmente . D. Gregorio salvou-se , pois , a nado ? -- O inesperado da queda acho que por fórma o perturbou , que se não fôra um desconhecido que prestemente se arremessou ás ondas para o salvar , D. Gregorio teria sido victima do Mondego . -- Um quid , tem de novella o caso , respondera Boccarro . -- Tem , certo é ; e tanto mais que ninguem conheceu ao cavalleiro , o qual , nadando para terra com D. Gregorio nos braços de bronze , montou a cavallo e desappareceu , rapido como uma xara , deixando-nos semi-morto o joven conde . -- Bisarro cavalleiro , que não esperou agradecimentos ! -- Certo que sim ; pois tel- os-hia se conhecer se deixasse , e sinceros , e leaes ; que não vi ainda por vida minha o juro , tão desinteressado feito . Sem hesitar um instante , precipita-se ás aguas temerosas , busca no escuro da noite aquella vida em perigo e vem restituir-nol a tão nobremente , que não sei bem que mais deva admirar n ' elle , se a coragem , se a força de seus braços . Nobre façanha ! Aquelle homem é , de certo , um homem forte , que se já não contar muitas acções d' aquellas , é , sem duvida nenhuma , capaz de iguaes commettimentos , se não maiores . -- É , respondeu Boccarro , porque bem sabeis , conde , aquelle principio de Sophia -- o que produz a causa isso a conserva . -- Dizeis bem ; mas , observae melhor o conde , agora que sabeis a causa de seus males . Acho-o prostrado , abatido ... Os dois ergueram-se dos tamboretes e foram-se para o leito de D. Gregorio . Boccarro perguntou , tateou , observou e disse risonho ao conde de Sortelha ; Não ha que receiar pelo doente : dentro em pouco restabelecido será : conheceis o aphorismo : In commotionne et profluvio alvi non mediocri et vomitibus ultro abortis , etc , o estomago bolsou as aguas superfluas , repousa agora para voltar ao seu funccionar ordinario . -- Não prescreveis então nenhum medicamento ? -- Preciso não é . Natura prestes fará a sua obra . Se fôra caso para remedios já sabeis que não hesitaria em sua applicação : Extremis morbis , extrema exquisitè remedia optima sunt . Aqui não carecemos d' esta verdade do mestre . -- Que dizeis com respeito a alimentos ? -- Caldos por hoje : depois vá-se alimentando consoante o exigir o estomago , mas sem abuso . Conheceis a sentença : Si quis á morbu cibum capiens non confirmatur , pleniore id arguit corpus nutricatu uti . -- E achaes que poderemos sair para Lisboa depois d' ámanhã ? -- Não me desconformo , com tanto que hajaes a bastante cautela com o doente , não obstante o aphorismo : circa initia , et finis , etc. -- Isso faremos . Mas , dizei-me : ficaes por Coimbra ou podeis acompanhar-nos para Lisboa ? Iamos bem comvosco . -- Não posso , pois que forçoso me é o demorar-me aqui uns quinze dias . -- Porém , volveu o conde semi-risonho , dizei me sempre o que annunciam os astros no tocante á nossa jornada . É bom apparelhar para ella , e vós bem entendido sois no assumpto . -- Mais grave consulta me fazeis , senhor conde . Falliveis são nossos juizos em tão alto sugeito . No emtanto direi : Os astros dominantes inclinam ao Lethes alguns monarchas , affirmando que domina varia excentricidade do sol claro , no qual um pequeno circulo declina : a roda da fortuna lhe chamamos . A conjuncção aquatica favorece nos , e a fortuna no quadrante e conjuncção de fogo . O Orbe magno , cujas causas naturaes de ligamento governa immortal Omnipotencia , propicio é , accorrentada ainda a canicula ardente . Nada temeis pois . E assim continuaram a conversação por algum tempo o conde de Sortelha e Manuel Boccarro Francez , seu medico em Lisboa e accidentalmente em Coimbra . Não estranhe o leitor aquella resposta do oraculo astrologico , por menos clara e intelligivel . No seculo XVII teve grande voga a astrologia . Homens de verdadeiro merito e de talento se devotaram áquelle estudo improficuo e palavroso , em que a cega ignorancia e atrazo scientifico plenamante criam , e não sei mesmo se os astronomos . Assim foi que , não só a rude gente dos campos senão a que mais culta se dizia , por vezes consultava os entendidos em antever e rasgar futuros ! André de Avellar , Manuel de Figueiredo e Boccarro passavam por Astri-peritos . O movimento dos astros , phases da lua , brilhar de cometas , influencia de signos , mysterios da geração , pedra philosophal , tudo devassavam os astrologos dos seculos XVI e XVII . O medico do conde de Sortelha dizia d' este modo , falando da pedra philosophal : O enxofre e o azougue , como femea e macho , mettidos n ' um vidro forte bem tampado , cozido com um fogo philosophico , que ardia sem queimar , trausmutava-se em licor lacteo , depois negro , por fim branco de neve , verdadeira quinta essencia , de que se fazia prata . Continuando o a cozer no fogo philosophico , tomava a côr do rubi e ficava prompta . E deliciaram-se nossos avós com estas cousas ! Melhor elles cuidassem na conservação da pedra philosophal que do meio das aguas lhes tirara Pedro Alvarez . Em tudo se convertia aquella pedra . Desde a cana de assucar até ao ouro de Minas Geraes e aos brilhantes , que variada collecção de transmutações ! Ainda assim parece que a chimica alguma cousa deve áquella illustre avoenga , a alchimia , prima com+o irmã da astrologia . Deixemos , porém , aos homens da sciencia o aquilatar aquelles servidos , e vejamos se os nossos dois personagens já terminaram a conversação . De facto persuadido de que propicios lhe seriam os astros , o conde de Sortelha despedira-se de Boccarro , depois que este comprimentara a filha , D. Branca de Vilhena da Silveira , e se despedira tambem do conde de Villa Nova, D. Gregorio Thaumaturgo de Castello Branco , cuja vida estivera jogada ás aguas do Mondego e perdida , se um desconhecido cavalleiro lh'a não salvasse denodadamente . Como dissera o conde ao medico Boccarro , não se falava em Coimbra senão no grande perigo que correra o conde de Sortelha e o de Villa Nova , na passagem do Mondego à barca dos Palheiros . O caso do desconhecido era phantasiado por modos varios , chegando alguem a dizer que elle era nem mais nem menos um estudante e que fora conhecido de alguem da comitiva . São notaveis estes juizos do povo em casos similhantes . Sem dados nenhuns , além dos que lhes offerece sua imaginação caprichosa , tantas conjecturas fazem encarando por mil modos um negocio qualquer , que por vezes deixam de ser o vox populi para ser o vox Dei . No caso presente attingiriam aquellas conjecturas a verdade ? Sabel o-hemos . Diversos estudantes das relações de amizade do conde em Lisboa o procuraram durante o dia . Não viera , porém , D. Francisco Manuel de Mello . Seria que D. Branca desviasse o estudante de um acto de cortezia por evitar suspeitas de seus amores no pae , que a queria casar com o conde de Villa Nova ? Mas não é de presumir tal resolução . Se os dois se amavam com a effusão de corações virgens não haveria obstaculos que evitassem a approximação d' elles . Pois é lá possível impôr leis aos affectos ? E n ' aquellas idades ? Não é . Passára o dia . Por onze horas da noite um vulto dirigia seus passos para a Estalagem do conde de Cantanhede . Outro vulto o esperava alli . Approximaram se e cooheceram-se . -- Como está vosso amo ? perguntára o recemchegado . E a sr.ª||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca ? -- Já repousa o sr. conde e espera-vos ella . -- Mas não presentirá o conde a minha visita ? -- Descance vossa mercê . Um creado amigo póde salvar ou perder ; já vol o fiz notar . Subi , sr.||_D._Francisco D.|_D._Francisco Francisco|_D._Francisco . Subiram ao segundo andar da estalagem . Francisco Cardoso bateu mansamente à porta de um quarto , que se abriu , e á qual appareceu uma creada de D. Branca de Vilhena . D. Francisco entrou com a creada nos aposentos da fidalga ; a porta cerrou-se e , Francisco Cardoso ficou de fóra passeando no corredor . -- Obrigada , D. Francisco Manuel . Foram as primeiras palavras de D. Branca ao estudante . Este beijou-lhe a mão jubiloso , respondendo : -- Não haveis de quê , formosa minha . Pertence-vos a minha vida : e , vendo eu a vossa em perigo , pois que fatalmente o pensei , tentei salval a , ou perecer comvosco . Felizmente para nós nenhum perigo correstes . De que me servira ficar na terra sem vós ? Estiolaria como a planta sem o sol do vosso amor . -- Obrigada , obrigada meu D. Francisco , repetiu D. Branca amorosissima . Porém ... Uma vaga inquietação me assalta de tempo em tempo . O dever , a obediencia a meu pae , as exigencias da sociedade ... Ai ! meu D. Francisco que não sei se seremos felizes ? -- Que quereis dizer , Branca da minh ' alma ? Acaso a revelação de vosso pagem ... -- Pois já elle vos disse alguma cousa ? atalhou D.||_Branca Branca|_Branca ! -- Já , infelizmente já . E o que pensaes vós , minha querida ! -- Hesito entre o dever e a affeição : não sei que faça . -- Não sabeis ? Pois eu vol o digo . Antes , porém , certificae me que me amaes como eu vos amo . -- Inutil exigencia , D. Francisco . Crêde , porém , que jamais se apagará em meu peito a vossa imagem , quer vossa esposa venha a ser , quer o seja de outro homem . -- Oh ! nunca sereis de outro , nunca ! Dizei m ' o dizei m ' o . -- D. Francisco , socegae , respondeu D. Branca , e vêde bem que vos não posso affirmar tal cousa . Tenho pae , D. Francisco , e cumpre me ser filha obediente . Sois cavalheiro como poucos ; bem vêdes que não posso desviar-me do caminho da obediencia sem infamar o meu nome e de meus avós . E mal sabeis vós , meu D. Francisco , que quem podéra ter aniquilado essa difficuldade , que se oppõe á nossa ventura , ereis vós mesmo . -- Eu ! Não vos comprehendo ! Procedendo como ? -- Não procedendo , como procedestes , respondeu D. Branca . -- Por Deus ! anjo meu idolatrado , explicae-vos prestes . -- Não tendo arriscado vossa vida por salvar , como salvastes , a do esposo que me quer dar meu pae . -- Que dizeis , D. Branca ? ! Pois elle era ? Oh ! maldição , maldição para mim ! exclamára afflictissimo o estudante . -- Allucina vos a paixão , D. Francisco . Maldição , dissestes ? Nunca maldito sereis . Ainda se não conhece o salvador valoroso de D. Gregorio , e já mil louvores lhe cobrem e bemdizem o nome . D. Francisco , meu D. Francisco , aquietae-vos , e vede bem que salvastes a um homem prestes a morrer . Pois não vos consola este feito ? a vós , tão brioso ! tão cavalheiro e tão meu ? E D. Branca , falando assim ao abatido amante , sem notar que a creada a observava , tomou as mãos a D. Francisco , trouxe-o brandamente para si e abraçára- o terna e amorosamente , continuando : -- Aqui tendes a paga do vosso procedimento brioso . Regeitaes esta maldição ? -- Oh ! Deus vol o pague , sonho meu constante , respondera D. Francisco , reanimado por aquelle primeiro abraço , e depondo na fronte d' ella um pudico e primeiro beijo . -- As fidalgas como a sr.ª||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca pagam assim aos seus servidores , disse a creada para o estudante . As creadas felicitam-no contentes , como eu faço . Aquellas palavras de Isabel da Silva , que tal nome era o seu , arrancaram dos braços de D. Francisco o corpo esbelto de sua ama , roubando lhe a elle uma ventura apenas antevista e que desejara mais prolongada , interminavel até . Já não fôra , porém , pouco o que D. Branca concedera deante de uma creada confidente e amiga . Cumpre agora apresentar ao leitor a filha do conde de Sortelha , como nol- a descrevem physica e moralmente as memorias d' aquella epocha . D. Branca de Vilhena da Silveira era senhora de mediana estatura . Delicada de formas sem ser debil , era forte e vigorosa como as portuguezas d' então , mais affeitas do que as senhoras d' hoje á educação physica , nos passeios a cavallo , nas caçadas e nas danças dos saraus . D. Branca era um bem caracterisado typo de mulher peninsular : era uma andaluza . Rosto sobre o comprido , bocca e dentes lindissimos , nariz levemente aquilino , testa rasgada , olhos e cabellos negros como o ebano . Extremamente bondosa , D. Branca era como a flôr sempre aberta tanto para os raios do sol , como para os affagos da brisa e orvalhos da madrugada . Nunca jámais lhe estendera a mão a indigencia que não fosse soccorrida , a orphandade que não fosse amparada , a dôr que não achasse n ' ella um allivio . Tal era a mulher , que D. Luiz , conde de Sortelha , destinava para esposa do conde de Villa Nova . Dois dias depois dos narrados acontecimentos , por oito horas da manhã , sahia da Estalagem do conde de Cantanhede em Coimbra na direcção de Lisboa uma liteira , e pouco mais tarde uma brilhante cavalgada com os condes -- Sortelha e de Villa Nova , D. Branca de Vilhena da Silveira , e suas aias , e pagens e peões de ambas as casas . No Alto das Calçadas parou a cavalgada para volver á cidade um olhar de despedida , e contemplal a princeza elegante da Beira , recostada no pendor do monte sobre o Mondego . Das muitas vistas encantadoras de Coimbra a que mais formosa se ostenta é , sem duvida , a que d' alli se gosa . Quadro imponente de magestosa poesia ! Aquella pinha de edificios , remirando-se nas aguas trementes do rio , occupa lhe o primeiro plano : campeiam no segundo os mosteiros de Sant'Anna e Therezinhas , a povoação -- Cellas , e Mont ' arroio , avistando-se no campir d' elle a cordilheira accidentada do Bussaco até Pena cova . O contraste de alvura dos edificios e do sempre verde-escuro dos montes por fórma nos impressiona a alma de risonha alegria e de maga tristeza " que é um ficar-se a gente preso alli n ' aquelle encanto ! dizem os hespanboes d' aquella notavel cidade -- Andaluzia sobre o Guadalquivir ; mas nós , sem embargo da falta de palacios mouriscos em Coimbra e da celebrada cathedral , bem podemos dizer : A queda de virgem Na rua de S. Thiago , ou do Limoeiro em Lisboa , existia em 1630 o palacio do conde de Villa Nova , e na rua de Pero Esteves , perto de S.||_Vicente_de_Fóra Vicente|_Vicente_de_Fóra de|_Vicente_de_Fóra Fóra|_Vicente_de_Fóra , o do conde de Sortelha . Ás trindades do dia 19 de abril pela porta de Arroyos entrava na capital a comitiva , que de Coimbra sahira no dia 15 . Iam na frente alguns pagens a cavallo , seguiam duas liteiras com D. Branca de Vilhena e com suas aias , logo após os condes , e por fim a restante creadagem . Chegados ao palacio do conde de Sortelha alli se apearam todos e entraram . Ficaram sómente á porta os creados de D. Gregorio á espera d' elle , que subira por se despedir e beijar a mão de D. Branca . Anoitecêra entretanto . Ainda não era illuminada Lisboa áquelle tempo . Foi só no reinado de D. José que o intendente Pina Manique introduziu na capital aquelle melhoramento . Assim a curtas distancias mesmo , em " noites sem luar , era difficil conhecer um vulto ou outro . Haveria um quarto d' hora que os creados de D. Gregorio esperavam , quando um cavalleiro , passando pelo palacio do conde de Sortelha a se internar na cidade , fizera uma leve paragem a pouca distancia . O cavallo em que montava , parando em logar que parecia conhecer , nitrira contente e escarvára o chão . A uma janella do palacio assomara um vulto e se recolhera prestes . O cavalleiro partiu . Minutos depois montava a cavallo D. Gregorio de Castello Branco , e , seguido dos seus , trotava para a rua do Limoeiro . Ou fosse porque D. Gregorio levasse marcha mais acelerada ou porque o cavalleiro , que vimos parar á porta da casa de Sortelha e marchar antes d' elle , intencionalmente ou sem proposito marchasse a passo , é certo que foi alcançado de D. Gregorio . O cavallo , em que montava , ao sentir perto de si o tropel da comitiva do conde de Villa Nova , começára a jogar inquieto e aos galões aprumando-se com o cavalleiro . Este conseguiu refreal- o ; e , desviandose a um lado para que passasse D. Gregorio , exclamou em voz que podera ser ouvida dos que passavam : -- O jogo é de um az contra um dous . Quem ganhará , D. Gregorio ? Temos em Lisboa alguns heroes d' esta historia . Cumpre seguil os de perto , agora que nos achamos n ' esta cidade . Tem decorrido um anno : estamos em 1631 . Governavam Portugal por Castella n ' este tempo os condes -- Castro Daire , D. Antonio de Athayde , e o de Valle de Reis , Nuno de Mendonça . Por um fatal concurso de circumstancias , ao modo porque o sol parece atufar-se cada tarde no vasto pelago do Oceano , o da gloria das conquistas portuguesas caminhava fatalmente tambem desde 1880 para um occaso que não promettia aurora . Só pensava o governo de Hespanha em nos enfraquecer , embora com detrimento seu , apagando o nome portuguez que tanto a assombrára nos volvidos dias da nossa gloria . Sem defensa , as nossas conquistas estavam á mercê do hollandez ambicioso , do pirata destemido . Scintiliava apenas um ou outro lampejo de heroismo portuguez em Colombo e nas proezas de Ruy Freire de Andrada . Era o vasquejar da luz antes de extincta . A Bahia retomada carecia de soccorro prompto ameaçada continuamente dos Hollandezes invejosos . Aparelhava-se então á custa de Portugal em Lisboa a armada em que o almirante Oquendo devia ir expulsar dos nossos mares do Brazil o almirante hollandez Heyn . Apezar do revez da Corunha , em que melhor fôra deixar-se ir na voragem dos mares o bravo D. Manuel de Menezes para não ser victima da Hespanha , e do qual escapára D. Francisco Manuel de Mello e poucos mais aventureiros , que de Lisboa sahiram na breve armada em 1626 , este , como todo o homem forte , correu a alistarse de novo , sendo já militar efectivo desde 1628 . O estudante de Coimbra , como dissera na ponte d' aquella cidade a Macedo e a Gusmão Soares , sahira da notavel Athenas no mesmo dia em que o fizera o conde de Sortelha ; e , como sombra do corpo esbelto de D. Branca de Vilhena , fôra a seguindo até Lisboa , onde , como ha pouco se viu , outro não era o cavalleiro , que , defronte do palacio d' ella fizera parar o cavallo fogoso e nitrente . Dois amores o fascinavam , como elle manifestára a Antonio de Sousa Macedo . Pelo de uma mulher deixara deixára o remançoso viver de Coimbra , o estudo e gloria das letras : pelo das armas , ia pôr de novo a vida á mercê dos mares revoltos , em favor da patria de seus avós , pois que o nome da d' elle fôra apagado com a ponta da espada do duque d' Alba , na carta da Europa , do dia em que o desventuroso prior do Crato tivera de franquear Lisboa ao inimigo , sem forças para defender a ponte d' Alcantara em que foi derrotado . D. Francisco era descendente dos homens fortes , que abriram de par em par as portas do Oriente e do novo mundo á velha Europa . Aspirava como elles á gloria militar e a ir provar nas affastadas terras , que conquistámos , o seu valor , por se tornar digno da dama de seus pensamentos . Assim foi que a nobreza do reino correra á conquista , e depois em defensa de Ormuz , e de Diu , e da India , voltando á patria ennobrecidos , os que não voaram com os pannos dos muros , nem foram engulidos pelos mares do cabo tormentoso , a depôr a coroa do marcio louro aos pés d' aquellas que lhes davam como galardão de seus feitos a mão de esposas , como lhes haviam deixado levar o coração enamorado . Antes d' estas provas não consentiam os civicos costumes d' aquelle tempo que uma dama se unisse ao homem efeminado e indigno d' ella , que não fosse e voltasse d' aquella sorte de baptismo de valor ao menos com uma nobre cicatriz no rosto varonil . Aprestava-se , pois , a armada de Oquendo , e D. Francisco para ir n ' ella . Como explicar , porém , esta sahida de D. Francisco , deixando D. Branca de Vilhena prestes a ser esposa de D. Gregorio de Castello Branco ? Elle , que não havia muito lhe lançára perto do Limoeiro , como o leitor ouviu , aquella luva do jogo de um az contra um dois ? Seria que muito crêsse na fidelidade do coração d' ella ? Mas a obediencia filial ? A brandura de seu genio ? Os mares que interpunha a dois corações ? Se o amor é como a lua , no dizer do grande Antonio Vieira , que ao metterse-lhe a terra de permeio se eclipsa , o que succederá se for o mar ? ! Possivel será que um dia atinjamos o porquê exactissimo da sahida de D. Francisco , e continuemos a historiar . Morava elle então no Rocio . Depois das trindades do dia 9 de abril , subia a rua da Ourivesaria um pagem a cavallo , que foi seguindo para o Rocio . Era Francisco Cardoso , creado da casa de Sortelha , o qual , apenas cbegado á casa de D. Francisco , entregára para elle uma carta de sua ama , partindo logo sem resposta alguma , para a rua de Pero Esteves , a S.||_Vicente_de_Fóra Vicente|_Vicente_de_Fóra de|_Vicente_de_Fóra Fóra|_Vicente_de_Fóra . Ás onze horas da noite d' aquelle dia , subia a rua Direita da Sé , seguido de um creado e ambos a cavallo , o nosso D. Francisco Manuel de Mello . Levava a direcção de S.||_Vicente_de_Fóra Vicente|_Vicente_de_Fóra de|_Vicente_de_Fóra Fóra|_Vicente_de_Fóra . Já na extremidade da rua notou D. Francisco que para si tomára a direcção um homem que vinha a pé . Quando este , de facto , embargára o passo ao cavallo , bradou-lhe D. Francisco : -- Desvia , peão ! -- Peão sou , senhor||_D._Francisco D.|_D._Francisco Francisco|_D._Francisco , e cavalleiro tambem se fôr mister , respondeu o homem , continuando : -- Agora serei o que a vossa mercê aprouver . -- Ah ! vós sois , Francisco Cardoso ? Alguma nova boa ou má me trazeis sem duvida . -- Certo é , e para vol-a dar vim vindo , apenas receioso de que nos não encontrassemos , dado que vossa mercê viesse pela rua de S. Jorge e se embrenhasse em Alfama . Quereis , pois , attender-me ? -- Sim , quero . E desviando-se do creado , e inclinando o corpo sobre a direita a que lhe ficava Cardoso , attendeu ao pagem de D. Branca de Vilhena . -- Apeae-vos ao Arco de S. Vicente e não passe vossa mercê d' alli a cavallo . -- Porque ? -- Porque o estrepido de cavallos não acorde suspeitas nos visinhos . -- É , pois , tão pouco o que tendes a dizer ? -- Mais ainda : Entre vossa mercê hoje pela porta do jardim . Pela costumada não póde ser . Ha lá no palacio sarau esta noite . -- Bem sei : D. Gregorio está n ' elle ? -- Está . Nada quereis de mim ? -- Obrigado . E aprumando-se no cavallo , D. Francisco buscou nas algibeiras algum dinheiro , que deu a Francisco Cardoso , accrescentando : -- Se fôrdes ainda n ' esta noite á Estalagem Negra , bebei lá á minha saude e á de ... -- Graças , sr.||_D._Francisco D.|_D._Francisco Francisco|_D._Francisco . Afastaram-se . D. Francisco e o creado seguiram para o arco de S. Vicente , e Francisco Cardoso para o lado opposto . D ' este breve dialogo , trocado a meia voz entre os dois , resulta que D. Francisco tem tido entrada no palacio do conde de Sortelha , ao menos de noite , e que Francisco Cardoso era o medianeiro amigo dos amores de D. Branca . Mas , observará o leitor , sendo das relações do conde o ex-estudante de Coimbra , como faltou elle ao sarau ? Lá se devêra achar , que não ha ahi quem evite a approximação da amada , com musicas e danças . Pondera bem ; mas , qual nas circumstancias d' elle , anteporia a etiqueta das salas á doce conversação dos dois a sós ? Tenho para mim que nenhum . D. Branca , mandára dizer a D. Francisco que não fosse ao sarau , mas que a buscasse a ella , que precisão tinha de lhe falar ; e additára ao pedido por escripto aquellas palavras de Cardoso , especie de modificação de plano . Vae-se-nos mostrando tanto no correr d' esta historia aquelle Francisco Cardoso , que bem é apresental- o melhormente ao leitor . Era elle um homem de mais alguma edade que D. Francisco . Fôra creado desde menino na casa de Sortelha , onde muito lhe queriam e da qual alguem o suppunha filho natural . Ora se mostrava conformado com a sua sorte de pagem do conde , ora reagia contra a injustiça da sorte e dos homens , no soltar de uma phrase , no elevar da cabeça , no volver do olhar altivo . Facil era o perceber-lhe talento natural e perspicacia , não lhe faltando audacia e coragem . Tudo isto conhecera n ' elle em Coimbra o heroe d' este livro . Vira um homem que podia ser amigo e salvar , ou perigoso e perder . Qual seria , porém , o movel do seu proceder de medianeiro ? podia escusar-se a D. Branca ; podia denunciar aquelle amor ao conde de Sortelha , amor que tão cego começava e tão inconsequente podia ser ; podia avisar a D. Gregorio ; podia , finalmente , levar ao coração do conde um gravissimo desgosto . E do muito que podia não fazia nada . Talvez elle se julgasse irmão de D.||_Branca Branca|_Branca ! Talvez ... Ha mysterios tão grandes na vida , segredos tão bem guardados , arcanos tão escondidos , que melhor será interromper a serie de perguntas conjecturaes que a mente começava a formar . Talvez que no futuro saibamos explicar o que agora não podemos . Com effeito , D. Francisco não passára a cavallo além do arco de S. Vicente , e o creado retrocedeu um pouco , apeou-se e esperou . Deixemos aos dois amantes no jardim , onde D. Branca , pretextada no sarau natural razão para se retirar por um pouco , pontualissima foi em ir ao encontro de seu amante . O conde de Sortelha não suspeitava de similhante paixão na filha , e D. Gregorio de Castello Branco , se bem que não sentia grande paixão por sua futura esposa , não lhe era comtudo indifferente . Estimava a por seus encantos e por sua bondade . Assim , podia estar com D. Francisco , meia hora pelo menos , sem que a menor desconfiança adejasse sequer no pensamento , ainda da mais desconfiada das muitas fidalgas que no sarau se achavam . Era mais de meia noite quando D. Branca voltou ás salas , acompanhada de Isabel da Silva , aquella que o leitor já viu em Coimbra . Vinha levemente desbotada , como se alguma dôr moral ou physica , lhe tentasse apagar das faces as rosas d' aquella sua florida edade . Tambem se não attentou em tal circumstancia . As danças continuaram , e as musicas , e os cantos . D. Branca não dançou mais , nem mais cantou n ' aquella noite , desculpando-se com uma leve dôr de cabeça , que a salteára ao chegarse ella a uma varanda que olhava para o Tejo . Acceitára- se naturalmente o caso . D. Francisco voltára a casa feliz . Mocidade , mocidade quem te podéra gosar sempre ! Magicos devaneios , douradas illusões , fugitivos momentos de prazer se davam D. Francisco e D. Branca . Eram venturosos n ' aquella fascinação mutua , n ' aquelle incoercivel affecto , que os attrahia como se foram duas correntes magneticas . Tres pessoas já estão de posse d' este segredo amoroso : Francisco Cardoso , Isabel da Silva e o leitor . Oxalá que o não revelem . Dois philosophos Não mui longe da egreja de Santa Justa corria a rua de Lopo Infante , distribuindo travessas e beccos a um lado e a outro . Antigo era o chamado Becco da Estalagem Negra , assim denominado de uma celebre estalagem que alli havia . A rua de Lopo Infante , as mais proximas , e as travessas e ruas de todas ellas tinham por grande maioria de habitadores officiaes mechanicos e alguns homens do mar . Aquella estalagem , situada em um becco , só tinha da casa que inculcava o nome e pouco mais . Alli vinham pousar ainda grandes recovas dos almocreves da Estremadura principalmente , que traziam á capital cargas de azeite e levavam outras de géneros differentes . Recoveiros do Alemtejo e das Beiras alli pousavam tambem . Era , portanto , casa onde se reuniam homens portadores algumas vezes de sommas importantes . A sua visinhança da parte baixa da cidade , onde se mercadejava , como actualmente , e onde se cuidava de negocios pendentes de tribunaes publicos ou de secretarias do governo , elegiam-n* ' a para aquelles individuos , que , por tratar de negocios sómente , buscavam então Lisboa . Havia , porém , alli dentro , n ' aquelles casarões afumados , uma tavolagem notavel e afamada em Lisboa . Depois de nove horas da noite de cada dia começavam a entrar para ella homens de todas ou quasi todas as camadas da sociedade , para se darem ao jogo de parar até alia noile , e por vezes até madrugada . Um velho portão lhe dava entrada para um pateo vasto , com pias de pedra em volta , onde bebia o gado das cavallariças proximas , estendidas na frente do portão por grandes lojas contiguas e successivas , como as casas que por cima lhe ficavam . Sabia-se para estas por duas escadas de pedra , uma de cada lado , que tinham por patamar commum uma comprida varanda de madeira , já muito velha , em toda a largura d' aquella casa na frente . Vou convidar o leitor a ir commigo visitar a Estalagem Negra , e a entrar na casa de jogo , ou de tavolagem como então se dizia . Lá no interior d' aquelles corredores , e salas , e quartos adedalados jazia a mesa do jogo . Mais de cincoenta homens de todas as gerarchias a circomdavam , sentada uma primeira fila de jogadores , em pé , por detraz d' aquelles , outra fileira d' elles curvada sobre a primeira , por melhor ver o jogo , e ainda por detraz das duas uma terceira , de pé tambem , mas já sobre cadeiras e bancos . Curvados aquelles homens uns sobre os outros , mostrando no rosto cada qual um sentimento diverso , filho da cubiça , colericos uns , famintos outros , risonhos pouquissimos , mas com esperança todos , quadro era aquelle para muito estudar , muito observar e muito aprender . Alli se perdia a honra de esposas , o pão de filhos , o credito de todos . Era meia noite . -- Deixae-me sahir gritava por mais de uma vez um dos jogadores , ou dos mirões da primeira fila para os que , sobre si curvados , o não deixavam levantar ao menos . Depois de não pequeno trabalho , conseguira dar aquelle logar a outro e sair da mesa o homem . Ganhára d' aquella vez , ou perdera ? Conseguindo livrar-se d' aquelle supplicio de Sisypho , e pondo as mãos nas ilhargas aprumou-se todo como quem destorce e alinha o corpo que , por muitas horas , permanecera contorcido ; viu depois o relogio d' algibeira que lhe administrava o tempo , por elle tão mal baratado , e tomou a direcção de um determinado quarto ao fundo de escuro e mal soalhado corredor , bateu-lhe á porta , que se abriu , e entrou n ' elle . Pouco espaçoso era o quarto e pouco mobilado . Um velho canapé a um lado ; defronte , uma pequena mesa com um candieiro acceso , algumas cadeiras em volta , e nada mais . -- Já vos esperava , meu amigo , haverá boa meia hora . -- Perdoae vossa mercê , descuidei-me algum tanto sem vontade . Mas , eis me aqui . -- Manuel Boccarro falou-vos ? -- Não estava em casa ; ficou lá a vossa carta . -- Pouco passa da meia noite : se a recebesse não poderá tardar . -- Não , decerto , que , como mathematica que é , ainda não vi ninguem mais regular e pautado nas acções . -- Predicado é esse para o estimarmos , que melhor é ser relogio do que conego de S.||_Thomé Thomé|_Thomé . Mas ide vós ver se o homem chega , que possivel é não ter vindo nunca a esta casa e não dar n ' ella rego direito . E o jogador , ou mirão saiu , atravessou aquelles corredores mal allumiados e foi até ás escadas de pedra , que davam para o pateo . Ainda bem não assomára á velha varanda , eis que vê entrar o portão a um homem , envolto n ' uma capa , como para não ser conhecido , que se dirige a uma das escadas . Foi-lhe ao encontro o jogador . -- Será o Doutor||_Boccarro Boccarro|_Boccarro , quem sobe esta escada ? perguntou o que esperava . -- Este é , respondeu o recemvindo . E conhecendo a pessoa que lhe dirigira a pergunta , accrescentou : conduzi-me , pois , á casa que me foi indicada . Internando se n ' aquelle labyrinto de casas chegaram ao quarto nosso conhecido já . Entraram . O individuo que alli esperava ao medico Boccarro , apenas este entrára , disse para o jogador : -- Agradeço vos os bons officios : agora preciso ficar com o sr.||_Boccarro Boccarro|_Boccarro . Francisco Cardoso , porque era este , saiu ficando os dois . Sentaram-se . -- Saberá porventura o meu caro amigo Boccarro o para que o convidei a encontrar-me n ' esta casa ? -- Certo que não , respondeu o medico . -- É o medico como um confessor exactamente . Segredos ha na vida , que só a elle se podem e devem confessar . Para me ouvir de confissão o convidei a vir a semelhante casa . Quereis , pois , ouvir me ? -- Falar podeis , D. Francisco : sabeis que vos estimo além do ser amigo e admirador . -- Amo loucamente a D. Branca de Vilhena . É sem duvida , este o meu amor primeiro . Havendo entrada n ' aquella casa desde menino foi aquella encantadora creatura a que primeiramente me chamou á vida de homem , despertando em meu peito sentimentos que não conhecia , por seu estranho manifestar . Quiz e quero desposál-a ... Oppõe-se o conde de Sortelha , que por melhor julga entregal- a ao conde de Villa Nova , seu tio . -- Ao tio ! Não me frisa esse proposito . -- Ao Thaumalurgo , sim , ao homem que ella não ama nem poderá amar nunca jámais , porque o amor de um tio a sobrinha rica é como o de ichacorvos ás imagens : pancadas na devoção , echos no seu proveito . -- Mas deveis falar a D. Luiz e pedir-lhe a senhora||_D._Branca D.|_D._Branca Branca|_D._Branca em casamento . Entendo que vos deve attender , porque me recordo agora de um facto que por si só , além do vosso sangue tão nobre como o d' elle , e do vosso maior merecimento , bastará a de todo acabar com elle . -- Não attinjo ao que possaes alludir : affirmo-vos , porém que já lhe falei . -- E que resposta vos deu ? -- Ficando indeciso como a questão entre Burgos e Toledo , terminou por me negar sua mão , adduzindo conveniencias de familia e outras razões tão caroaveis como esta . -- Pois heis de lhe falar outra vez . Á maravilha me recordo eu do seu contentamento e admiração por um homem que salvou a vida a D. Gregorio , no Mondego enfurecido , e que , certamente , poderia ser e devia o esposo de sua filha . -- Que dizeis , Boccarro ! acudiu D. Francisco , É certo então que D.Luiz conhece que fui eu quem ... -- Não sei ; antes creio que não , aliás ... -- Mas como o sabe o doutor ? -- Em Coimbra ouvi que fostes vós , e par||_Dios Dios|_Dios que vos admirei ! -- E nunca lhe falastes no caso , doutor ? -- Nunca . Sou , porém , de parecer que D. Francisco lhe fale outra vez e lhe recorde mesmo aquella proesa . -- Jamais ! -- Não digaes tal cousa : aquelle caso e os cupidissimos costumes de D. Gregorio ... -- É escusado , interrompeu D. Francisco , como panno azul que nem serve para bodas nem para doridos . -- Sem embargo , ou vós lhe falaes ou lhe falo eu . -- Obrigado . Poderei buscal- o ainda , porque uma razão ha mais forte do que pensaes para que me prefira ao rediculoso Thaumaturgo . Receio , comtudo ... -- Rasão mais poderosa , dizeis ? Qual ? -- Batemos á porta de minha confissão , que até aqui para ella caminhavamos . D. Branca de Vilhena já me pertence , e possivel será que ... -- Em tal caso vossa deve ser perante a egreja apostolica e romana , atalhára Boccarro . -- Impossível por esse meio ! Jurei a D. Branca que não faria valer esta falta de ambos deante do conde de Sortelha . D. Branca prefere a morte a que seu pae tome conhecimento da queda de uma virgem . -- Que fazer então ? -- Eu vos digo o meu parecer , caro doutor . Oquendo faz se á vela depois d' amanhã . Eu vou na frota . Antes irei a casa do conde e por ultima vez lhe pedirei a mão de D. Branca . Se m ' a recusar , como creio , partirei para a Bahia deixando o corpo de D. Branca á mercê do pae utilitario , levando commigo o seu coração . É possivel que eu fique n ' ella , Boccarro ; e , para que isto se não saiba , sereis vós o medico , e o amigo , e o confidente d' ambos , salvando-a da deshonra aos olhos d' esse mundo preconceituoso . -- Explicae melhor vosso pensamento , D. Francisco Manuel . -- É preciso que se o conde detestavel obstinar em casar a filha com um seu tio , este não seja o pae de um filho de D. Branca . -- Não comprehendo , em verdade ... -- Eu termino : D. Branca não póde casar com o Thaumaturgo , levando-lhe no ventre um successor . Forçoso É que D. Branca adoeça de uma doença qual entenderdes , e que só no campo e longe da capital achará cura , indo acompanhada por vós . -- Mendaz proceder me propõe D. Francisco , ou , melhormente , seus verdes annos ! -- Sim , falaz haveis de ser , Boccarro . Possuis um segredo d' honra ; vol-o como a um confessor , e não só haveis de guardar sigillo por dever de vosso grau , se não que buscareis remedio como medico que sois , e amigo d' ella e meu . -- Porém ... objectou Manuel Boccarro , talvez que do proximo enlace de D. Branca com D. Gregorio se não possa occultar este segredo . Pater is est quem nuptiae demonstrant . -- Mais falso alvitre é esse , caro doutor ! Se eu não casar com D. Branca não darei a minha mão a outra mulher , como a um falso pae um filho que fôr meu ! Ninguem como o medico , a quem se faz depositario de um segredo semelhante , póde salvar uma reputação . E , dado que por humanidade o não queiraes fazer , fal- o-heis por dever de vosso moisterio porque o é . Amanhã buscarei falar ao conde e vos-hei depois para vos entregar uma somma de dinheiro quiçá precisa , e uns esclarecimentos necessarios . -- Vede , porém , D. Francisco , se aquelle homem que me conduziu a esta casa será sabedor ... -- Não é , atalhára D. Francisco : conhece apenas a mutua affeição como o conde de Sortelha e mais alguem . -- Salvaremos , pois , D. Branca de Vilhena da Silveira . -- Obrigado meu amigo . -- Nada haveis que me agradecer : sem embargo de que eu pudera regeitar a doente , guardando o segredo cural-a-hei , e cura será até agora não achada na minha empelota . -- Esse é o siso , doutor , e tudo o mais é ser escudeiro do Fernão da Acha . -- Não tanto como dizeis , D. Francisco Manuel . Mais siso houvera eu se vos respondesse , que por minha fé vos promettia guardar o sigillo da confissão feita , abstendo-me de medicar a doente , quem sabe se para dar uma falsa virgem ao ludibriado esposo ! Enfim , valha nos Lucina , pois que na minha alçada de physico cabe , sem desdouro para mim e para os meus , o serviço que vos farei . -- Quizera-vos , Boccarro amigo , mais philosopho . Pareceis não conhecer o mundo . Quantos casos d' estes , escondidos em brancos trages , em véos alvissimos e coroas de flôres não guardam a sociedade e o tumulo ? Ora dae que eu seja como o sabio de Abdera , e me ria da humanidade . -- Ride , sim , que eu por mim chorarei como o d' Epheso , esses enganos envenenadores da felicidade do coração -- Deixae tal proposito , Boccarro , e dae- vos ao estudo da humanidade , em suas aspirações e nas suas fraquezas , que mais proveito vos advirá da observação . Debalde opporeis um codigo de deveres sociaes ás exigencias do coração humano . Para affectos e repulsões incoerciveis não ha comportas nem diques ; ha victimas . A historia da humanidade é uma historia d' hecatombes . Ouviu-se n ' isto soar uma hora da madrugada . Os dois não philosopharam mais , dando por terminada a conferencia e por assentado o proceder ulterior de cada um . Pedido de casamento Morava D. Francisco n ' aquelle anno de 1631 na Casa dos Bicos , á Ribeira . São dez horas da manhã de quatorze de maio . Desde as nove e meia que um seu lacaio o aguarda á porta com dois cavallos . Apenas , porém , no relógio da Magdalena soára a ultima d' aquellas horas assomou á porta principal o ex-estudante de Coimbra , montou a cavallo , e , seguido do lacaio a cavallo tambem , tomou a direcção do Terreiro do Paço , e atravessando o mercado da Ribeira e Praça do Pelourinho , passou pela Misericordia e foi-se apear a Porta da Capella , logar em que , annos depois , se reuniram os fidalgos da acclamação . Deixando o creado com os cavallos á porta da casa da India , n ' ella entrou e lá se demorou meia hora , volvendo a montar de novo a cavallo . D. Francisco Manuel de Mello entrando logo na rua das Virtudes , atravessou o Terreiro do Pelourinho velho , cortou pelas ruas de Gilanes e da Padaria , chegou á Sé , entrou na rua do Limoeiro e lá se foi caminho de São Vicente . Ia vestido com aceio e montado com elegancia e garbo . De tafetá de Serpa era o gibão , com suas orladuras d' ouro , roupeta de vintadozeno preto apassamanada e bandada , os calções de melcochado verdemar , meias de seda côr de carne e sapatos com um só botão , gorgueira bem encanudada , chapeu com cintilho e plumeiro preto . Deixara aquelle dia o militar e pesado uniforme , que no dia seguinte o cobriria , para ostentar as galas do fidalgo enamorado , que vae pedir por ultima vez ao pae a mulher dilecta de seu coração . O proprio escudeiro ia mais loução , com o seu pellote de baeta de cem fios , roupeta de catasol côr de pinhão , calções de perpetuaba azul ferrete , meias de agulha , escarpins de linho e chapeu desabado . Chegado á rua de Pero Esteves e ao palacio do conde de Sortelha , D. Francisco apelou-se , e conduzido por um pagem a uma sala de espera , alli se conservou até que o pagem volveu , depois de haver dado parte ao conde , que se não fez esperar muito . Ornavam a sala cadeiras de couro com pregaria dourada , contendo nas espaldas as armas de Sortelha em relevo , consistentes n ' um escudo esquartelado ; no primeiro se viam as armas dos Goes , seis crescentes de prata postos em pala , e no segundo as dos Silveiras , tres faixas vermelhas orladas de uma silva , e assim nos contrarios , havendo por timbre nm drago azul . Quatro ricos bufetes de castanho com seus lavores , e dois bellos contadores de pau preto , tauxiados de madreperola ; alguns paineis com retratos de familia e dois espelhos de Veneza emmoldurados em dourados festões de flores completavam a mobilia d' aquella sala . Mirava-se a um espelho D. Francisco , como tão proprio é de um moço enamorado , quando o Conde de Sortelha assomára a uma porta que dava para outra sala mais interna . -- Adeus , D. Francisco Manuel ! dissera o conde , com ar muito paternal e risonho . Hoje por esta casa , é certamente uma despedida que nos vindes fazer , não é verdade ? Ouvi que levantava ferro amanhã a armada d' Oquendo . -- Levanta , se não houver contraria ordem , respondeu D. Francisco . Venho realmente por me despedir , e por vos fazer um pedido . -- Falae ora D. Francisco , que sereis servido . Mas , entremos para esta casa onde melhor estaremos . E os dois entraram para a sala contigua d' onde saira o conde . Era ella um pouco mais vasta do que a primeira e mais ricamente adornada . Dois grandes espelhos de Bohemia havia nas paredes lateraes ; ricos paineis com as façanhas de D. Affonso V em Africa ; contadores preciosos de pau preto constelados de madreperola e marfim , e prata , em volta ; cadeiras baixas de braços , forradas de velludo carmesim com espalda oval , tambem estofadas do mesmo veludo ; grandes jarras da china e tapetes de raz . -- Mui hei que vos ralhar , D. Francisco , proseguiu , o conde . Pois occultais me ha mais de um anno já um segredo , uma proesa vossa !