Fialho de Almeida A Ruiva e outras histórias Volume de contos Dedicado a Camilo Castelo Branco , Acabo de reler toda a sua obra . Quanto , no artista e no escritor , o talento tem de maleável , de voluntarioso e de grande a ironia na sua expansão facetada e cortante , o estilo na elástica elegância nervosa dos seus moldes plásticos , e a observação no seu processo tenaz de análise e de crítica , tudo nos seus livros se encontra , a mãos plenas , com uma opulência que deslumbra . Não sei negar admiração aos homens do seu tamanho , nem lhe&lhes+a recusarão com sinceridade e justiça os que , como eu , tiverem passado em revista os seus trinta anos de gloriosa e florescente atividade . Peço-lhe que aceite a dedicatória deste livro medíocre , que pude elaborar nos ócios de uma vida cortada de trabalhos e dissabores . Duas coisas me levam a consagrar-lhe&lhes+o o intento de amortizar uma dívida de gratidão pelo que nos seus livros me foi salutar , e o dever honesto de tirar o chapéu diante do que é superior . A RUIVA A taberna do Pescada ficava mesmo em frente ao Cemitério dos Prazeres , e era frequentada pela gente do sítio , especialmente de noite , à hora em que os cabouqueiros e os britadores abandonam os seus trabalhos e entram na cidade , em ruído . Tratava-se então de levantar um muro de cantaria que fosse como a fachada opulenta da gélida cidade de cadáveres ; na planura que medeia entre o cemitério e as terras , o terreno via-se revolto ; os carros de mão jaziam esquecidos ; os montes de pedras miúdas e de argamassas antigas tornavam penoso o trânsito . Na lama constante do caminho , eram profundos os sulcos que as seges de enterro deixavam até à porta do cemitério , escancarada sempre , como a goela de um plesiossauro faminto . Em anoitecendo , tudo aquilo era de uma contemplação lúgubre e misteriosa , em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas ; o ladrar dos cães tinha um eco desolado , que tornava depois mais sinistro o silêncio ; a porta fechava-se sem rumor , girando em gonzos discretos , e uma luz esmaecia na treva , no fundo dos ciprestes e dos túmulos , diante de um santuário deserto , onde o Cristo , do alto , olhava vagamente o guarda-vento . Começavam então a chegar à tasca os guardas encanecidos no mester de receber enterros , graves nos seus uniformes fatídicos , os coveiros angulosos e vesgos lançando-se de si um fétido deletério ; e cada um , dando boas-noites à tia||_Laureana Laureana|_Laureana , ia sentar-se à banca , no seu lugar , chupando pontas de cigarro e pedindo decilitros . Todas as noites a casa se enchia e o aspeto era sempre o mesmo . Ao fundo , encostada ao balcão forrado de zinco , a tia||_Laureana Laureana|_Laureana , mulher de grandes seios e arrecadas , que tinha a especialidade dos pastéis de bacalhau , e pernas másculas saindo de grosseiras saias de baetilha ; ao canto o cego de chapeirão derrubado , atitude fria , faminta , dolorida e apagada , a rebeca nos joelhos , a manta de riscas ao ombro , a eterna noite nas feições . O grupo dos trolhas , junto da porta , discutia o preço das couves e o número de ventres perfurados com facas de ponta , durante a semana . Zé Claudino tinha a palavra ; a sua autoridade indiscutível de orador popular fazia-lhe cair dos lábios , como um rosário de sons , as palavras graves , indecorosas , chulas e poéticas , em misto turbulento e inteligente . Bêbedos extraordinários falam de tudo e descrevem parábolas no solo , com a sombra dos seus corpos embrutecidos . Dois ou três embirram com a sombra . Mete-te comigo resmungam ; cai nessa , minha tirana ! A velhaca comentam tem agora a mania de ir adiante de mim . Esta manhã era atrás . Mas não me larga ! Bêbeda ! Era o que me faltava ! Súcia de marmanjos ! E , insistentes , aos ziguezagues : Persegue-me , anda , persegue-me , que levas dois butes . Lá isso ouve-se outro dizer na rua , lá isso não digo eu ... Que ele há um Deus que nos governa : é boa ! Eu entrava , cumprimentando os velhos conhecimentos . Ditosos olhos , estudantinho ! dizia um . Ó seu casaca ! fazia outro . Seja bem aparecido e pague-me dois dedos de marujo . Um velho fressureiro , com o olho esgazeado de sicário experiente , tocando-me o braço com a sua mão ensanguentada , ia aconselhando baixo : Prove-me do branco , doutor ; prove-me do branco ; que é uma reinação ! Com um pastelinho , não lhe conto nada ... Aqueles eram os meus amigos , perigosos amigos contraídos na intimidade do vício e no surdo deboche das tascas . Sentava-me A Laureana vinha , sorrindo , servir-me ; e o seu olho pardo , sequioso , acariciava a brancura do meu pescoço , apetecia os meus cabelos de um louro-claro , tons insípidos , sob as abas do chapéu esburacado . O seu hálito empestava a dez passos , trazido nas asas do seu amor quente e brutal , de uma infâmia cheia de mercancia . Ouvindo-me pedir qualquer coisa , o olhar adoçava-se-lhe como o dessas gatas a quem coçamos o crânio ; e eu sentia exalar-se dela um fartum de gorduras fundidas , que me perturbava . Nessa noite chegou o tio||_Farrusco Farrusco|_Farrusco . Era coveiro e o mais asqueroso o da vala ; aspeto repelente , perfil áspero e cortante , descarnadas as faces , as mãos aduncas e gastas , cheias de terra e de cabelos . Sobre a testa , de uma polegada de largo , caíam grenhas fermentadas ; as orelhas desapareciam-lhe sob a lã sebácea de um barrete cinzento ; por um rasgão da camisa , furava uma moita de cabelos hirsutos , brancos como um pé de junco seco , nascido entre as pedras de um muro arruinado de azenha decrépita . Quase lhe ficavam pelas esquinas a que se encostava os farrapos em que embrulhava o corpo esquelético e lustroso , como de couro curtido . Um cabouqueiro tostado , perfil adunco de coruja , bateu-lhe no ombro : Tio Farrusco ! O outro tentou aprumar a estatura lassa na moleza da embriaguez , e resmungou : Que é lá isso , patego ? O seu olho envidraçado não podia fitar ; os fios de baba desciam-lhe , lentos , aos cantos da boca . Olá ! fez o cabouqueiro a maré encheu . E sacudia-o . Mais bêbedo é você , grande cavalgadura ! Tentava caminhar ; a sua sombra oscilava , amplificada na parede , como a de um antediluviano fenomenal , e quase se não compreendia bem como aquela coisa era um homem . Arrastou-se custosamente para um canto ; ao passar por Zé Claudino tomou-lhe o copo , levou à boca o vinho e esteve bebendo devagar . As gotas , de um roxo sujo , caíam-lhe pelas barbas . O nó da garganta subia-lhe e descia com vagarosos movimentos de embalo no cilindro de uma bomba . Pousou o copo com ruído , com a manga da jaqueta limpou os beiços . E a filha ? perguntaram-lhe . A Ruiva ... O tempo tem estado famoso para doentes . Um sol quentinho que é um forno . Do fundo , alguém disse para Zé Claudino : A Ruiva ainda é viva ? E o trolha , curioso : Não era essa que deitava sangue pela boca ? Na tenda do Malaquias vi eu ... foi pelo Santo Amaro , faz agora anos ... Mas cada um procurava informar-se : Uma gaja de granha encarnada , um sinalzinho de cabelos no pescoço ... O quê ? Era filha daquilo ? E apontava o coveiro . Bem sei diziam ; que peça ! A que estava com o Nicolas das seges d' enterro . Contem-me cá quem isso era . Bêbeda como ratos ! Ora esperem . Ela era também da súcia da Panasqueira . Lembras-te , Zé Claudino ? Bons tempos fez o interrogado do fundo da sua saudade dissoluta , aquela noite no palheiro do Panelas . Vinte raparigas dos casais , todas pimponas , vieram dormir à granja . Alta noite piscava o olho , alta noite ... Não ponhas mais na carta . Tosquei tudo ! Que bailões ! E a Ruiva também era ... Uma mulher dos diabos ! Enfezadita dos nervos , mas coragem que tinha diabo . Quando ela se deitou ao Nicolau , aquela vez pelo Entrudo , além ao Quintalinho ! Prega-lhe duas taponas , que nem eu sei como o não virou ! O coveiro olhava , sem compreender , um pasmo idiota na face . Na penumbra da taberna , aquele asqueroso vulto tinha uma expressão rembrandtesca e crua , que fazia medo . O deboche nunca se concentrara tanto , podia-se jurar . Mas , tio Farrusco , a Ruiva vai melhor , hem ? Melhor , melhor ... gaguejou ele . Esta manhã via-a estar dormindo ... mais branca ! Pagas cambrainha , ó tirano ? Uma pessoa , cos diabos , gosta de molhar a palavra . Quero lá saber ! ... Tentava apoiar-se na banca , com as duas mãos trémulas . Ouviam-no cantarolar baixo , babando-se : Foi fazer uma caçada A serra de Montalvão ! I Aguardente . E , com risadinhas pequenas e cruas , geladas , doidas , que produziam como o grito do estanho , aconchegou-se ao canto , para dormir , com círculos de cão vadio que se anicha . Todos procuravam espicaçá-lo com uma chufa . Blasfemava-se , em voz alta , uma riqueza inultrapassável de obscenidades . A minha filha resmungou o tio||_Farrusco Farrusco|_Farrusco . Querem saber da minha filha , da Ruiva ... Súcia de tarimbeiros ! ... Foi fazer uma caçada à serra ... Ainda hoje o Nicolau , que atira à vala as reses que se abatem no hospital , me disse que a trazia ali . É boa ! Se eu bem vi o saco ... e cosido que ele vinha . A Ruiva em postas ! Ria-se . Caíra tudo num silêncio álgido . Calou-se , e depois : Também eu hei de morrer . Quero lá saber nada daquela grande velhaca ! Vamos disse eu . Há uma coisa pior que um cão danado : é um coveiro bêbedo . E saí . Um dia antes , o meu escalpelo penetrara o corpo dessa perdida criatura , que veio a fornecer subsídios notáveis à minha tese inaugural . Inquiri pormenores . Disseram-me que o tio Farrusco fora casado com uma vendedeira , a Marta , muito conhecida por Buenos Aires . Soube-se depois que as hortaliças que esta mulher vendia eram pelo marido plantadas no cemitério , para lá da vala e longe das vistas dos indiscretos , hortaliças que com o tempo e o belo tempero da terra adquiriam grande desenvolvimento . Se lhe&lhes+as gabavam , Marta retorquia : Ai ! bom dinheiro custam , freguesa . Vêm todas as manhãs de Odivelas , uma estopada que eu sei ! ... E explicava que um cunhado , da quinta do senhor marquês de Borba , tinha seu vintém e um bocadinho de terra . É no Alto de S. João que se sepultam os cadáveres do hospital ; para o nosso caso , porém , isso não importa onde se faziam os belos nabos e aquelas lombardas folhudas . Caro , tudo pelas últimas , dizia pondo a sogra , os cordões a luzir no peito . Carolina nasceu no dia da morte da mãe . Até ali , o coveiro vivera sem misérias , mas , morta a mulher , descobriu-se donde vinham as couves e ninguém mais lhe&lhes+as comprou . Não se sabe como a pequena se criara , mas aos doze anos era bonita , franzininha , o nariz arrebitado , descalça e cheia de remendos . E , sem consciência do que via , acompanhava o pai na sinistra ocupação de sepultar os mortos . Assim crescera . Naquela miseranda existência entrara a criar predileções . Começou a amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas berlindas douradas , entre filas de gatos-pingados lúgubres , de tochas acesas , e puxadas por seis parelhas cobertas de crepes . Visitava-os na casa das observações , acocorada a um canto , com o olhar absorto , durante as vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos , e onde contemplava , deitados na pétrea imobilidade derradeira , os que na sua vaidade egoísta , corruptos e miasmáticos , iam habitar em sepulcros de mármore , com figuras sentimentais na fachada e pomposas inscrições nas lápides . Pode dizer-se que aprendeu a ler no cemitério , quando curiosa na sua pobreza esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca cidade de mármores , de que se julgava rainha . Uma tarde , passeando na grande rua que corre ao longo da fachada do cemitério , tinha parado a contemplar , no alto de um pedestal glorioso , a estátua do conde das Antas . E falava ' ainda , nos seus últimos dias , daquela enérgica figura de soldado , grande barba sobre o peito e cabeça de um vigor leonino , a mão apertando o punho da espada ... e , desde então , a sua ânsia pedia-lhe militares , que arrastam nas ruas os sabres prateados e destacam , na agitação dos enterros , dentre os graves toilettes negros com a alegria embriagadora dos seus vivos rutilantes e das suas divisas sanguíneas , cor dos desejos insaciáveis . Nos seus devaneios passavam pálidas figuras de alferes , dos que tilintam esporas no lajedo dos passeios e retorcem bigodes frisados , contemplando as janelas , em domingos de procissão . Todos os dias visitava a casa das observações : ali , sobre bancas , expunham-se caixões abertos ; ela mesma metia nas mãos dos mortos as argolas de alarme , e tal emprego quotidiano permitia-lhe ver gentes de todas as castas e profissões . Meninas ricas , filhas de milionários e nascidas entre veludos , áureas meninices em berços de renda , acalentadas por amas normandas de cachos louros , iam ali dormindo nos seus caixões de cetim , vítimas de tísica galopante , olhos vítreos e face cavada , lábios brancos em listras lívidas e o gelado sorriso dos mártires , clareando em reflexos os rostos , de uma rigidez de escultura . Rapazes pobres , dos que ao clarão das forjas crestaram a vida , figuras secas de famintos , torciam nos rostos expressões de sofrer infernal e gelavam-se na nudez miseranda da morte , ao lado de reverendos , com a barba bem feita , a batina nova e grave , quebrada em pregas simétricas , finas camisas de bretanha , tiras de folhos e sapatos de fivela , cingindo , à força de apertadas com uma fita contra o peito , cruzes de marfim bento , símbolo de uma fé que nunca os caracterizou na vida . E os grandes devassos , os magros adúlteros que nos foyers das óperas e nos camarins das cantoras , nas casas de batota e nas alcovas fáceis fazem pública a sua dissolução e desonra , vinham também , diante da pequena , exibir a última elegância . Carolina , pelo número e aspeto dos convidados de um enterro , chegara à perfeição de fixar a posição social de qualquer defunto . Os conselheiros reuniam graves figuras circunspectas de velhotes de luva preta e grandes pés , folgados em botas macias . Os condes faziam-se acompanhar dos coches da casa real , riqueza oxidada e rota , em que se sentiam os anos , os ratos e o óleo dos cabelos reais . Os escritores arrastavam figuras chupadas , de luneta , vastas cabeleiras polvilhadas de caspa , expetoração de discursos com gestos amplos e eloquência estrondosa . Conhecia o bombeiro , o polícia , o correio e juiz de irmandade . E odiava quem vinha só para entrar na cova , os que embarcavam para o outro mundo sem deixar , na gare , alguns amigos da infância , ou herdeiros de guardar conveniências . Ouvia nesses momentos dizer ao pai : Súcia de vadios ! quando tinha de abrir cova sem receber gorjeta . E aprendera a dizer com ele esta frase profunda : Até morrem pelo amor de Deus ; cambada ! Havendo enterro grande , punha uma garihaldi vermelha , azeite nos cabelos ruivos , sapatos de duraque preto , sem tacões e chatos como linguados . Toda risonha , ajoelhava na passagem do préstito , movendo os lábios como quem reza . Depois , na volta : Uma esmolinha por aquela alma de Deus ! E comprava pevides , amendoim torrado e alféloa , à tia||_Palma Palma|_Palma , uma de capote verde , sem um olho , que vinha vender à porta , num tabuleiro velho , secas gulodices de arraial . O que a abalava era aquela vida na casa das observações . Olhava já sem terror os cadáveres , como se fossem pessoas adormecidas no mesmo quarto , cada qual na sua maca de estalagem . Os homens , sobretudo . Alguns eram ainda novos , louros , pálidos e bem-feitos ; alguns , ricos , tinham a pele fina , de um contacto cetinoso e bom . Nas horas de calor , de Verão , quando sob os ciprestes os empregados do cemitério dormiam , ia devagarinho , sem ser pressentida , à casa dos depósitos , escolhia os cadáveres dos moços , dos belos , se os havia , e como um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas , despregando com uma navalhinha as camisas ; metia a mão devagarinho pelo peito , metia , escorregando-a ao longo das carnes , beliscando-as levemente , com prazer ; o olhar dilatava-se-lhe , havia na sua face uma mancha de excitação , mordia os lábios , exaltada ; e , palpando , estudando , compreendendo e adivinhando , ficava absorta , um pouco curvada sobre os corpos , o hálito ardente , uma palpitação larga e cheia de ímpeto . A sua imaginação rasgava as névoas indecisas que , diante da inteligente maldade , a sua inexperiência despregava como uma máscara casta e límpida cheia de placidez . Estas explorações fizeram-na muito cedo mulher , preparando-a a compreender mistérios e umas meias frases que ouvia aos gatos-pingados , se passavam por ela . Às vezes , eram rapazes de quinze a vinte anos que jaziam . Carolina em os vendo exaltava-se , todos os nervos se lhe distendiam na ânsia de um desejo que jamais formulara . Duma vez tinha beijado sôfrega uma cara , com balbuciações aflitas , ardendo em pecado , como uma alma de réprobo . Não conhecera mãe , nunca uma boa mulher a beijara e o coveiro não reprimia diante da filha as suas expansões brutais . Entregue a si própria , chamuscada por carícias pérfidas de homens entregues à rota corrente da sua bestialidade , fizera-se nisto . Havia no entanto dentro dela , ainda , uma coisa ideal e inexplicável , certa virgindade infantil : de noite rezava ! Vinham-lhe tristezas íntimas , a insónia triturava-lhe por vezes a saúde como num almofariz de bronze . Sem saber porquê , era desgraçada . Desejaria ser como uma pequena que vira um dia costurando à porta de uma carvoaria , com uma rosa nas tranças . Mas , de súbito , alguma coisa a arremessava à lembrança condenada dos homens adormecidos na casa das observações , e via-os surgir das suas mortalhas alinhavadas , sorrindo , com vida ; estendiam os braços a procurá-la ; roídos de vermes , muitos vinham , como na dança do Roberto , roçar-lhe pelos quadris os membros esquálidos e podres . E estonteada , fitando no vácuo aquela visão candente , miserável nos seus quinze anos , sentava-se , extenuada e languescida , à sombra dos ciprestes anosos e dos túmulos soberbos , com a cabeça aos baques , revolta a alma por criminosas comoções . Era já noite , muitas vezes , quando ia só para casa , fora do cemitério . O pai ficava embrulhado num cobertor com um gorro de lã preta , por cujos rasgões lhe furavam os cabelos ; deitava-se no côncavo de algum velho túmulo vazio ; se caía geada , erguia a tampa de um jazigo de família para ir estender-se nas gavetas , entre caixões de chumbo . Já estava acostumado Ãquela folia , e depois , assim , não dormia as manhãs na cama , e podia começar cedo o trabalho , regando logo de madrugada os canteiros dos túmulos das famílias que lhe pagavam esse trabalho , varrendo dos pedestais as folhas secas que o vento despregava dos ramos , e alta noite , com passadas lentas e lúgubres , nas trágicas encruzilhadas dos ciprestes , reanimando ou acendendo , com o rolo metido nos dedos , as lâmpadas extintas pelas lufadas do nordeste . Nem uma vez se lembrou de Carolina que ficava de noite , na cidade , separada dele , a sua filha , entregue à leviandade dos seus quinze e aos furores de coração de um aprendiz de marceneiro que a perseguia , preso de maus instintos . Carolina era branca , delicada e nervosa ; o seu sangue tinha originalidades singulares , inquietações de luta e o furor da aventura , e do seu seio dimanava essa ânsia ardente de que se fazem os gozos , ansiava como uma sede antiga . Dormiam numa casita arruinada e miseranda , oculta no fundo de um pátio sem luz de lampião , para onde abriam as janelas de tabuinhas de casas suspeitas , em que marinheiros tocavam guitarra . A história das suas exaltações enraizava também , como uma hera , naquelas más janelas , pelas noites escuras de Verão , quando , encostada ao peitoril da janela , escutava altercações , descantes e venalidades , na confidência de carroceiros . Nestas disputas Carolina entrevia uma coisa , que se apoderava rapidamente do seu organismo , enroscando-se-lhe no corpo como serpente com frio , amarrotando e poluindo no amplexo alguma , ainda que pouca , dessa adorável modéstia que é o tesouro das mulheres honestas . Viam-na de manhã , quando saía , dar bons-dias à vizinhança e sorrir Ãs pecadoras mendigas , que nas tabernas jantavam gravanzos por qualquer pataco , ter com elas palestras . Desassombradamente olhava para os homens , tinha desdéns para uma ordem de gente e criara predileções pelos louros ; nos seus trapos escolhia sempre cores que dessem na vista ; e , calculista , com o olho febril , arquitetava aventuras : seria de noite , uma chuva miúda peneirar-se-ia do alto , sobre as calçadas ; fugiria embrulhada no xalito com um louro ... Hem ? Da janela da sua mansarda , empinada sobre um banco de pinho , podia ver o que se passava na alcova de um pobre bordel carairo . Apagava a luz para não ser vista , subia ao banco , encostada à janela ; e ali , durante horas , passava a espreitar o que fazia a vizinhança . Cenas equívocas desenrolavam-se por lá . Era tão curioso ! A nudez impura dos contactos fazia-lhe regurgitar de dentro uma seiva cuja plenitude a estonteava . Era a febre do sangue inficionado pelos microzimas do vício e o desejo de cadela nubente que uma força espicaça de irritantes curiosidades e terrores deliciosos . Aquilo vinha-lhe Ãs ondas , como a babuge das praias contra fraguedos solitários . Coroas de padres esverdeados mostravam-se à luz de candeeiros de petróleo ; no espelhinho dos toucadores das cómodas refletiam-se grupos sombrios , estranhas fantasias das encarnações de Vixnu . E alguém , dedilhando guitarras , entoava com voz rouca fados rasteiros do conde de Vimioso e da Severa , entre exalações de aguardente . E tiniam garrafas , sentia-se o cheiro das sardinhas assadas . Toasts desbragados expluíam claramente . As vozes das mulheres guinchavam . Alguém rolava pelo sobrado e rimas de pratos caíam , com estrondo , em migalhas , no meio de pragas de raios de uma vez , tresloucada , descera à rua . Domingos de Inverno . A noite lôbrega alonga-se . Alguém gritava " Jornal da Noite " , traz ; a lista de Espanha ! O frio penetrava as carnes . Carolina tremia , lábios secos , uma aflição enorme subindo-lhe do estômago . Não sabia para onde ir . Quereria as coisas mais violentas , amplexos de ferro , beijos de lava , o vasto oceano de um amor sem fim e sem felicidade . Mas o aprendiz de marceneiro , um rapaz atlético e sanguíneo , apetites excêntricos , saía da oficina , dava com ela , aproximava-se com uma piada ... Carolina recuava , humilhada e cheia de vergonha . E , sem uma palavra deitava a correr para a mansarda , subia a escada sem parar , fechava-se por dentro , e atirando-se para cima do leito desatava a soluçar sem remédio a desconsolação daquela vida , que flutuava sem linha de conduta . O candeeiro apagava-se no alongamento da noite . Das torres da Estrela uma badalada caía sobre a cidade adormecida , a vibração enorme alongava-se num círculo infinito ... E , no silêncio da mansarda , Carolina abria os olhos com um terror em que dançavam fantasmas sardónicos com a cara do aprendiz . Era a tarde da nossa Senhora||_dos|_Prazeres dos||_dos|_Prazeres Prazeres|_dos|_Prazeres . O tempo serenara , o céu não tinha nuvens e no azul espiritualizado os voos brancos dos pombos davam uma inocência casta ao ambiente . Havia arraial nessa tarde . A procissão , saída da igreja de Santos , por entre farrapos de bandeiras e verdores de buxo , devia entrar na capela do cemitério , à noitinha , no meio de foguetes e aromas do peixe frito , cuidadosamente consumido pela fome do povoléu curioso . Na esplanada que vai terminar à porta dos Prazeres , as pequenas barracas de lona enchiam-se de grupos ; filhas de saias engomadas , olheiras fundas , com fadistas de calças esticadas sobre alpargatas de linho . As mulheres gordas , lenço vermelho , os grossos braços nus , refogavam mexilhão , vermelhas de calor ; em torno os soldados passavam , de chibata , rostos vulgares e bestiais , dilatados em risos enormes ; e , abanando-se , diziam brutezas Ãs pequenas ovarinas sujas . Na confusão dos grupos os garotos sujos , vivamente alegres , corriam relanceando olhares famintos sobre os bolos secos das vendedeiras ambulantes , e de passagem pediam cinco réis . Aqui e além viam-se sobre a relva , petiscando , famílias de operários , pequenas louras e limpas , tipos de costureiras futuras , traços finos , cismadores e delicados . Os vadios esqueléticos , de calções em frangalhos , apregoavam água . No ar os ruídos multíplices abafavam-se uns aos outros , e das contínuas pulsações resultantes elevava-se um ruído uniforme e indistinto , como de ebulição longínqua . Os municipais da patrulha iam atravessando devagar , nos seus cavalos negros , e os capacetes esguios , de cuja crista jorrava a branca cabeleira dos penachos de linho , salpicavam de originalidade e paisagem . Eram um enlevo . As criadas olhavam-nos suspirando . O ruído crescia . O sol mergulhava com uma pompa escarlate no silêncio do rio , e o poente inflamado era de uma amplidão sem balizas . Dentro do cemitério o mesmo movimento de quem ia e vinha . Pessoas fornidas de carnes , esposas espessas de oleiros , capelistas de chapelinho , laços escandalosos e sombrinha , liam , soletrando , as inscrições tumulares . Admirava-se o mármore , as fachadas . Os pequenos , vagarosos , colhiam alfazema e sardinheiras . Alguns olhavam através das rótulas , o interior dos jazigos , a ver quem tinha berloques de contas e figuras bordadas de lã em molduras ricas . Alguns ferreiros de mãos calosas descansavam na borda dos pedestais , tasquinhando as suas merendas ; muitos bebiam pelas garrafas , fazendo saúde aos compadres . E todo o mundo ria a sua pândega , a fazer arraial com grossas bobages cruas de taberna e de oficina . As mulheres , de vestidos de merino , com folhos , mantas de lã com borlas caídas atrás , xale bem dobrado no braço , olhavam pasmadas . Os fragmentos das palestras , apanhados de passagem , eram os mais originais e contrastantes . Veteranos procuravam o túmulo do conde das Antas . Explicavam os emblemas , a atitude fera da estátua . Portugal velho ! comentavam . Ele e o Saldanha ! ... E familiares , um clarão purpúreo na face : O nosso velho ! diziam . No dezanove de Maio ... E outros queriam ver o túmulo do Palmela . Uma velha de Aveiro ouvira dizer na terra que era obra famosa . Alguém explicava as riquezas do duque , as suas quintas , dois contos diários de rendimento ; a duquesa era bonita , e um pouco gorda ; ele tinha sido da Marinha . De resto , boas pessoas e fidalgos da gema ; pela Semana Santa pediam na Sé para os pobres e sustentavam asilos . E iam semeando o chão de espinhas de peixe , de cascas de laranja , e os ares de rumores de palestra . Mas estrondeavam foguetes . Uma filarmónica sentia-se ao longe . Corriam . Era a procissão . À frente um marceneiro espadaúdo trazia o pendão , pomposo na sua capa de seda vermelha . Virgens de branco , rosas na cabeça , tipos de gaiatos disfarçados em saias , vinham gravemente , acertando o passo . E sobre as cabeças um andor de pau dourado e pequeno trazia a imagem , cheia de flores de papel . Carolina com a garibaldi melhor , uma rede de contas nos cabelos ruivos , fora também à festa . O coveiro embebedava-se em casa do Pescada , com a barba feita , o seu carão anguloso e miserável , inerte sob as abas de um chapéu de Braga . Carolina vestira-se logo de manhã , toda brunida , botas de duraque sem tacões , brincos de vidro prateado , arzinho alegre , o branco apetite da sua carne anémica , feminil e débil . E fora ao cemitério espairecer um bocado , com um farnel no lenço , laranjas , duas queijadinhas da tia||_Palma Palma|_Palma . A senhora||_Marcelina Marcelina|_Marcelina , que fora ama do padre||_Anselmo Anselmo|_Anselmo e agora arranjava criadas e consertava cadeiras , tinha prometido a Carolina ir lá ter com ela mais a mulata , que saíra do hospital havia uma semana e lhe estava devendo coisa de quatro moedas . A Marcelina morava no pátio também , no primeiro andar , tinha arranjos de casa e barbicas pela cara , sua meia dúzia de lenços , um rico cordão de ouro com medalha e uma Senhora||_das|_Dores das||_das|_Dores Dores|_das|_Dores com olhos de vidro , mesmo viva , a olhar para uma pessoa . E falava-se : que havia papéis , uma panela de dinheiro no quintal , ricos manteletes nas cómodas , que tinham pertencido à irmã do padre||_Anselmo Anselmo|_Anselmo . Marcelina era uma pessoa baixa e vagarosa , aspeto redondo e roxo de hemorroida , feridas na perna emplastada , anéis pelos dedos e o vozeirão de um quartel-mestre saindo do capote d' alcoviteira . A sua história apoiava o enredo principal no governo civil , no hospital e na Rua das Atafonas . De resto encontrara o padre||_Anselmo Anselmo|_Anselmo capelão da Guia e tomara-lhe amizade . Boa pessoa , o padre||_Anselmo Anselmo|_Anselmo , amigo do seu amigo , boas manhãs na cama , de Inverno , beberricava-lhe um quase- nada , ratão , pregando belas peças ; manhã cedo , ela ainda na cama , e vinha ele da missa , descobria-a zás , uma palmada . E morrera . Tudo quanto é bom acaba . A gente fala , fala ... um dia chega . E dava suspiros . Carolina conhecia-a . Mal luzia o buraco , já a senhora||_Marcelina Marcelina|_Marcelina corria a vidraça e vinha , de coifa branca , espanejar o peitoril . Tinha um sorriso agradável ; um dente trôpego , único e esquecido , esverdinhava-lhe na boca desmobilidada ; as barbicas hirsutas recordavam uma gata mansinha que se corcova , elétrica , sob as festas do dono . Era-lhe demais a mais muito obrigada De rastos que eu ande , dizia , de rastos que eu ande , não lhe pago as obrigações que lhe devo . Quando estivera doente , com tosse e muita febre , ninguém dizia que ela escapava , a senhora||_Marcelina Marcelina|_Marcelina vinha dar-lhe caldos e fazer meia junto do seu leito de proletária . Havia dois anos . Mas não se davam muito ; a Marcelina era mais das outras em frente , falava com elas de janela para janela , grossos risos e pesadas graças . E ratona , então , como nunca se vira . O que sabia de frades , e do poeta Bocage ! ... Era arrebentar de riso , senhores . Além disso andava sempre ocupada na vida , uma azáfama , xale traçado e sapato d' ourelo , a massa dos seios papuda e molemente batida por mais de meio século , arrotos estrondosos ... Saíam de casa dela pessoas lúgubres . de uma vez a polícia fora ali . Enfim , falavam-se coisas , ela sabia de facadas , e Carolina ouvia dizer isto arranja pequenas a velhos . E no fundo da sua alma branca e suscetível experimentara horror . Na tarde anterior a filha do coveiro recolhera com ares de dia , a Marcelina estava à janela ; falaram-se , como estava , como não estava , o pai como ia e que ela ia vivendo com o seu padecimento de entranha , amargos de boca , uma canseira , uma canseira ; mesmo mortinha de todo ! Tinha posto bismas de confortativo que era muito bom , andava agora tomando poses caras com a fortuna , mas o fastio era grande , aflições por dentro ... O pior eram as noites , contava todas as horas . E depois as pulgas . Ai ! , dizia , quem tem mazela , tudo lhe dá nela . Que é feito , que é feito ? Não havia olhos que a lograssem . De resto amava as criaturas sérias como Carolina ; nunca fora de tricas , louvado Deus . E arrotava . Tinha almoçado uma açordinha , com o seu ovo ; tudo lhe fazia mal . É caruncho , é caruncho , comentava . E convidara Carolina a entrar , descansar um pouco , tinha rosas no quintal , uma franga preta que já punha ovos , manto novo na Senhora||_das|_Dores das||_das|_Dores Dores|_das|_Dores minha rica mãe do céu ! Carolina subiu , beijocaram-se , ricas filhas para um lado , abraço para outro . Carolina sentia-se contente , uma quietação plena , chocada pela sinceridade da outra . A senhora||_Marcelina Marcelina|_Marcelina olhava para ela de face . E largou daí a nada este dito : Há de ser um peixão ! E piscava o olho pardo com ares de entendedora . Andaram vendo o quintal ; Marcelina fazia-lhe um ramilhete de rosas . Dali a nada veio a mulata , encostada Ãs paredes , uma cuia enorme de postiços e fundas olheiras , olhos de carneiro mal morto , um cheiro a cigarro e a cânfora . Mas foi-se logo encostar . Com o tempo húmido , tinha dores do diabo nos ossos . Desejaria morrer já raio de vida ! Carolina dizia-lhe palavras comovidas ; que aquilo não havia de ser nada , em o tempo limpado já a coisa era outra , que tivesse paciência , coitadinha que tivesse paciência . E a mulata arrastava-se , com um sorriso em que havia alta percentagem de amargura , aspeto chato e esmagado , como saco vazio de roupa velha . E o seu crânio pequenino de estúpida , de grande bestiaga , tinha a calva depressão idiota de uma cabaça oca . Quando ficaram sós , a senhora||_Marcelina Marcelina|_Marcelina , abaixando um pouco a voz , disse à filha do coveiro : Tenho uma coisita para lhe dizer , seu interesse . Sim ? fez Carolina . Não é coisa nenhuma má , não senhor . O seu ao seu dono ! o que é então ? Não se zanga , não ? Por que havia de zangar-me ? Mas diga . Há aí um rapazola que dá um cavacão pela menina . Um cavacão , cos diabos ; um cavacão ! Carolina teve um sobressalto . O coeficiente das suas orgulhosas alegrias traduziu-se num sorriso . Está a gozar disse . Palavrinha , é coisa séria . Ele falou-me nisso . Para quê ? disse ela , trémula , penetrada . Ora ! Namoricos ; não sabe como as coisas são ? Rapaziadas . Todos nós temos disso . Enfim , falar não ofende . Carolina estava pálida , sentia-se vagamente num deleite , curiosa e cheia de excitações . A senhora||_Marcelina Marcelina|_Marcelina , de olhos no chão , mordia o lábio inferior , como quem reflete . Com que então disse Marcelina , gosta ? Hi ! ... E , passado um momento : Um rapaz com umas casas , forte , loiraço e bom trabalhador . Hem ? Sua sonsinha ... Hem ? E , insinuando-se , velha toupeira : Tendo juízo , minha riquinha , é uma mina . Nada de cair antes de tempo , percebes ? Carolina estava rubra , com palpitações doidas . E quem é ? Como se chama ? Isso queria você saber , isso queria você saber ! Não , sério , diga . E , mais resoluta : Há de dizer ! Aqui , em frente do beco , há uma loja de marceneiro . Sabe . A do Ferreira , um de óculos . Ah ! fez Carolina . Já sei . Há um oficial , o João , bonitote , muito claro . É esse . É esse então ? Pois senhores ... Um belo moço ! É vê-lo além na loja , a camisa arregaçada ; que braços , hem ! Carolina adivinhava-o , sentindo-o na sua imaginação com um vigor de pintura . E depois ? disse ela . E ele pediu-me que arranjasse a coisa , que lhe falasse ; tinha vergonha de vir ele mesmo ... Ganha seis tostões , vive só ; bom rapaz no fundo . E o meu pai ? Ora ! Nem o adivinha . Vive sempre lá em cascos de rolhas . Quer lá saber ... É vinho e deixa andar . Nem sei , nem sei ... Isso , o resto arranja-se . Amanhã há festa nos Prazeres , percebes ? Ele vai por ali . Tu vais comigo . Entendam-se lá como quiserem . Gostas dele ? Sei lá , sei lá ! Não é feio ... Entendo . Amanhã vamos ao arraial . O dia deve estar bonito . Olhe , vou de manhã . Lá a espero de tarde . Vá feito . Valeu . Faço os meus arranjos e vou depois . Adeusinho , adeusinho . Desceu a escada . No portal gritou para cima : E obrigada por tudo , obrigadinha por tudo . Não dormiu toda a noite . Uma turbulência de ideias desencontradas agitava-a . Havia dentro dela alguma coisa explosiva que rebentava , que se dilatava com um volume maior que o do seu cérebro e do seu coração . Tinha projetos , predileções , vaidades . Iria comer petisqueiras de truz na frescura dos retiros , sob parreiras verdes , enquanto , na encosta , lavadeiras batem roupa . Teria vestidos azuis , de merino , ricos lenços de seda com ramos , uma sombrinha e anéis , alguma coisa como uma opulência . A tia Palma não a reconheceria tão liró , feita uma rainha -- Nantes , com botas de biqueira . E mirava-se no espelho , embevecida , desvanecimento pelintra , a admiração de si mesma . Surpreendia-se a murmurar baixinho . O meu João . O meu João está na oficina . O jantar do meu João . Em o meu João vindo . O meu João saiu . E orgulhava-se : ter um homem , ter um amigo ... Diriam dela as vizinhas a que está com o João na oficina , uma ruiva . Via-se aos domingos no passeio da Estrela com ele , em roda de coreto , fazendo volutas por entre os soldados de Caçadores , vestido de merino azul , de folho , arregaçado atrás , a saia branca , um lenço nas mãos suadas e gravatinha encarnada , de borlas . E dali a um ano , quem sabe , broche de ouro , de moeda ! Os pequenos é que tinham de ser o diabo , ranhosos , cheios de birras , cuecas vestidas , cuecas amareladas , de rastos , fazendo galos nas testas . Deixá-los ! Também as outras se aguentavam : ora ! Mas um loiro , um loiro ; que bom ! Sempre tinha dito Deus não me mate sem um loiro . Às vezes , ao acordar , na moleza lassa do corpo tépido e aconchegado , espreguiçava-se pensando : Ai ! um loiro ... E lembrava as primeiras linhas do pescoço do aprendiz , linhas fortes e firmemente contornadas , tons rosa no sanguíneo da epiderme , pequeninas espirais de cabelinhos louros , de um macio quente e provocante . E depois a sua imaginação , no delírio , na incoerência , prolongava nitidamente essas linhas , harmonizando-as , moldando-as , curvas suaves e veludíneas , cheias de saúde , aqueles brancos braços hercúleos e sem um pêlo , que lhe via na oficina , um peito amplo , cheio e poderoso , em que se sentissem vagas ondulações viris de seios , altas pernas nervosas , esculturais , direitas . E diante dela surgia aquele corpo lutador , de atleta , grandes traços magistrais e simples , de um pureza de academia . E penetrava-se da cor da pele , fresca e clara , sob que se sentiam correr ímpetos de sangue rico , jovem , virginal , fremente . Tomá-lo-ia pelos ombros , redondos como os de uma estátua , e erguida nos bicos dos pés , como era baixa , lhe-pequenos beijos furiosos na boca , sorvendo o seu hálito , estrangulando-lhe os arquejos , dominando-o e confundindo a sua na alma dele . Seria assim eternamente , sem nunca se fatigar , e no alongamento das noites de Inverno , como grandes coroas que se rezam , deixariam cair as horas no silêncio . No turbilhão dos seus devaneios sucediam-se rápidas as cenas , vibrantes como kolpodes que tumultuam na fermentação . Quereria a vida das vizinhas , agitações constantes da negociação dos corpos , que transformam a vida em sonho ou quimera . Via saias de goma arrastando , botinas vermelhas de roseta e tacão alto , os altos penteados característicos . As caras angulosas com manchas vinolentas sorriam para ela , deitando línguas negras de fora . E sem explicar porquê , como um ritmo original , ouvia as pancadas de uma enxada na terra do cemitério . Gelava-se . Era o pai que estava abrindo sepulturas ! No fundo sentia-se infeliz e flutuante numa grande incoerência . Agitada como estava , o sono fugia-lhe , e as ideias , desviando-se pouco a pouco do primeiro intuito , marchavam já , como raios que se refrangem , pelo vasto plaino das recordações . Pensava na vida do cemitério , o amor medonho dos cadáveres , em cuja gélida intimidade vivera tanto , abrindo mortalhas e erguendo tampas de caixões . Na sua sinceridade confessava-se horrível , cheia de afinidades com a hiena . Nunca mais iria exaltar-se perante homens sem vida . Que infâmia ! Agora tinha o seu João , carnes brancas , de semideus . Era feliz então , sentindo na alma aquela irisação de paz que a perfumava toda como num banho voluptuoso . Ser amada por aquele forte , apertada e vencida nos seus braços esculturais , parecia-lhe uma ventura , um milagre , alguma coisa como um sonho febril . Dar-se-ia-plenamente e sem reservas , com uma abundância louca de contactos , frenética e possuída de um alto desejo de o possuir . A sua vida condensava-se-lhe , colorizada numa recordação deliciosa , sem compreender no deleite a saciedade , a inanição , o desprezo de si mesma por fim . No fundo do espelhinho estanhado , a sua figura iluminada pela vela de sebo tinha uma curva nítida e delicada . Sorriu-se para mostrar os dentes , pequeninos e miúdos , de gatazinha branca . E dilatou-se num vasto contentamento interior : era bela , de uma compleição tenuíssima e nervosa , toda feita de anemias . Com a mão torceu de leve , sobre a cara , uns cabelinhos ruivos , foi desabotoando , pouco a pouco , o corpete ... O seio era branco , assim descoberto , estreito e apetitoso como uma miniatura , mas incapaz de amamentar um filho . Todas as linhas harmoniosas do busto , de fragilidade suave , pareciam moldadas num espartilho e realizavam uma elegância moderna , boa para ensaiar figurinos nos ateliers da Maria Cecília . Ia desabotoando : uma saia caiu , outra e outra , e a camisa envolveu-a , como uma túnica que se desaperta . Era magra e branca . Na harmonia dos quadris , na expansão geral das proeminências , exalava-se a idealidade das organizações virginais . Trivial e pequena como era , excitava assim mesmo . E ela mesmo se devorava com o olhar , examinando , ensaiando atitudes , cheia daquela forte figura do aprendiz de marceneiro . Na tarde do dia seguinte deviam encontrar-se , à noitinha , quando os pássaros se amam no mistério das ramarias ; o que iria suceder ? Sentiria a sua respiração ardente , com um cheiro a decilitros de Torres , queimar-lhe a face . Falariam embevecidos e frementes , cheios da mesma ideia profana , olhando em torno , receosos de quem passasse . Ele lhe-o olho maganamente ; entender-se-iam-, e , como na membrana de um fonógrafo , na sua alma vinham arfar todas as vibrações daquela loucura de prazer , em que palpitaria no dia seguinte . Que farta estava daquela pobreza , comer açordas com alho , andar feita chineleira , aí como um diabo , com as saias todas rotas ! Raio -- vida ! Ao menos , em ele sendo o seu João , a coisa ia melhor . E depois ... uma pessoa não sabe para o que está guardada neste mundo . A tia||_Marcelina Marcelina|_Marcelina conhecia uma que fora peixeira , pé descalço por essas ruas , a vender carapaus , um fedor a peixum de seiscentos diabos , e agora estava uma opiniosa com um fidalgo , num primeiro andar , ricas cortinas de rendas nas janelas . Podia bem ser que nem sempre estivesse com o João que ele era bom rapaz , coitado , mas diz que de sete em sete anos mudam as naturezas , salvo seja . A variedade atraía-a . A Marcelina tinha-lhe falado nos padres como bons patrões , unhas muito limpas , sua palma benta pelo Domingo de Ramos , cotos de cera pelas Endoenças , bom lugar na capela-mor , onde se podia estar refestelada a ouvir a música do lausperene . E certos particulares , nos priores principalmente , um respeito , belos lençóis de linho , almocinhos que era um regalo , nunca recolhiam tarde , muito limpos e pés lavados todos os dias . Divagava pelos braços dos desembargadores , dos soldados e dos marujos ingleses . Conhecia uma da esquina , a Polónia , que até tinha inscrições ; todos os seis meses ia receber seu milho , que lhe pagava o governo , ou que raio era . Outra , a Libânia , um diabo bexigoso , tinha dinheiro a razão de juros , seu grilhão com medalha , anel de luzeiro . E fulana e sicrana , que tinham do seu umas casitas , seu estanco , nunca tinham ido ao Desterro , viviam à barba longa e andavam gordas . Assim como assim , era boa vida ; deixem lá falar . Para pessoa pobre não havia outra . Que ser séria era bem. bom falado , mas o resto , tudo patacoada . Havia tolos que davam vestidos , ricos xales de caxemira , pagavam a ceia , sua noite ao Price os babosos ! Depois não se cansa a gente . Quem tinha juízo , sempre ia bem . Havia tal que era mesmo pelo beiço . E citava exemplos . A prostituição desenhava-se-lhe como a solução natural no problema da vida de uma rapariga pobre , que todas amam , umas mais , outras menos . E a sua ardência aligeirava-lhe as dificuldades . Pão , pão ; queijo , queijo que ela não era lá de meias- medidas . E deixou cair a camisa . Entrou a lavar-se com pequeninos estremecimentos de frio ; os cabelos ruivos desnastravam-se-lhe pelas espáduas , embaraçando-a ; chapinava na água com ruído , rápidos movimentos cheios de graça , como frémitos de diapasão . Ouviu chorar de repente , na calada noturna , um sino , de uma tristeza de morte . E depois houve ruído na rua , os candeeiros mostravam-se pelas janelas ; um grupo de tochas , sinistro e lento , passou no meio de pessoas descobertas . Era Nosso Pai , a alguém que estava agonizado . Carolina viu . E pôs-se a recordar a vida do pai , pelo cemitério Ãquela hora , gelado no silêncio noctâmbulo , enquanto os mochos deixam cair notas agudas , sinistramente escarninhas . Ele estava talvez dormindo nos seus farrapos , no coração de um velho túmulo profanado , entre caixões esquecidos . Ou perseguido pela insónia talvez não tivesse ido ao Pescada pensava nela porventura , na sua solicitude de pai , porque também têm coração os coveiros , mercê de Deus ! E ela , sua filha , pensava em abandoná-lo , em fazer-se servir como uma isca de fígado aos cocheiros e aos trabalhadores , com redução de preços ! Roçava então pela miséria do coveiro a sua piedade como uma asa de gaivota , e pensava : Pobre velho ! Vinham-lhe subitâneas ternuras , vibrações de lágrimas íntimas , uma desconsolação patética de tudo quanto a cercava . A ideia de morrer aparecia-lhe difusamente , envolta numa fotosfera de sofrimentos . Lembravam-lhe irmãs de caridade , jovens e pálidas , um rosário na cinta , o negror do hábito amortalhando corpos de virgens maceradas . E longas penitências no mármore das clausuras , entre açoutes de martírio , ao rumor dos confiteor . Ia arrepender-se , pedir perdão ... Mas o corpo do aprendiz aparecia-lhe numa tentação hilariante , branco , moço , potente e triunfador ! Esmaecia , como um vago luar que empalidece . A Marcelina apareceu à tarde , depois da procissão , afogueada , cheia de esfalfamentos ; que arrebentava se a não deixassem sentar um bocadinho , e que ia muito mal ; a noite passada não tinha podido pregar olho ; tudo eram bonecages diante dela , uma confusão , uma algazarra de meter medo . E estava ainda com febre dava o pulso que vissem , que vissem Nunca fora esmorecida , louvado Deus , lá isso não ; que até pela febre-amarela ... ai ! nem se queria lembrar . Águas passadas ... Tinha ido ao banco do hospital , explicado o que sentia , e desconfiava que aquilo era coisa de um rapazote novo , que parecia ainda estudante , torcera a venta , e ela bem vira ... ai ! tomara já morrer ; que andar uma criatura a penar por esse mundo e depois marchar da mesma maneira ... ora ! ... que lhe faltava ! Antes ir de uma vez . E que Deus lhe perdoasse , que Deus lhe perdoasse ! ... Carolina sorria-se compassiva e cheia de interesse , tinha ternuras pelintras , roçava o seu rostinho branco pelo queixo barbado da inculcadeira , chamando-lhe Li-Li com voz de criança amuada . Ia caindo a tarde . O sol mergulhava no mar , acharoando de tons metálicos e cúpricos as nuvens do ocidente , em gradações insensíveis , de uma grande riqueza de pinturas . Por entre túmulos , os ciprestes antigos erguiam-se como sentinelas imóveis , armadas de capacetes pontiagudos . Fora , as guitarras rumorejavam fadinhos tristes , do Calcinhas e do João Brandão ; um trolha cantava rouquejando , com voz expetorada : Habitantes deste lugar Se m ' alegra ó coração ... E vozes de garotos apregoavam vai água ou não vai água ! no meio do vasto rumor de quem saía . Sabes segredou a Marcelina ao ouvido da pequena que ele vem ao anoitecer ? Teve hoje de trabalhar na oficina ; sempre são seis tostões ... Está mesmo parvo , pelo beiço . Demais uma criancinha dezoito anos ainda a fazer pela Santa Maria ! Podes fazer dele gato-sapato . E depois de um silêncio : O que aquilo quer é roupa branca , jantarinho Ãs horas , festinhas e deixa andar . Vocês não sabem do mundo ; ainda ontem largaram os cueiros . O primeiro que nos regala é o único asseado e de quem toda a vida se tem saudades . Que os mais tudo gajões que a pregam na menina-do-olho ! ... E que visse , que estudasse a coisa : quando se tem na mão o pássaro , é que se não deve deixá-lo fugir . E rindo , dilatada numa hilaridade de velhaca , de rameira bêbeda , mãos nos quadris , roncava , afetando lubricidades : Ai ! ... Tivesse ela os seus vinte , e quem o lograva era ela . Só aquelas carnes , em que se podia lamber mel . E , sordidamente mordida de apetites , agarrava-se a Carolina , fazia-lhe cócegas , dizendo-lhe muitas vezes : Ricas filhas , ricas filhas ! E rolavam ambas pelos sepulcros rasos , rindo soltamente , com um prazer de barregãs . Dali a pouco chegou o João . Trazia a blusa de riscado vestida debaixo do jaquetão , e os cabelos crescidos e encarniçados , cheios de aparas de casquinha . Era quase imberbe ainda , branco e sanguíneo , de uma compleição hercúlea , em que se adivinhava a seiva fértil e jamais esbanjada dos corpos encouraçados na própria virilidade , e no trabalho absorvidos até à idade dos loucos amores de bordel . O seu tipo era de criança e pressentia-se o fadista mais tarde , amanhã mesmo . Ora graças comentou a Marcelina graças que nos aparece ! Uma coisa assim ! Fazer esperar esta menina ! e recriminava-o , enchia-o de censuras : que para o futuro queríamos homem mais aquele ; que quem esperava desesperava ; era uma verdade ! Mas nada daquilo era morte de homem , louvado Deus ! E fazia as apresentações . Carolina , não to dizia eu ? Um rapagão capaz de arrombar o Castelo ; e que lindo , mesmo de regalo ! Mencionava pormenores , nunca tinha tido uma doença , benza-o Deus , nunca tomara remédios de botica , nem sequer uma purga . E que mãos de prata ! Fazia cadeiras de polimento como o primeiro ; um armário , que acabara pelo S. Pedro , tinha sido vendido a um homem de fora tinha aquela de francês , uma fala a modos esquisita por belos mel réis . E mais coisas ainda que se não diziam . O João , inchado , meio confuso , sorria , dizendo com inflexões variadas Homessa ! Homessa ! ... E , aquecido , trescalando a carrascão , a perna bem desenhada na calça de boca de sino , cambada um pouco para dentro e afeita Ãs escovinhas , chapéu arremessado com um piparote para a nuca , fitava Carolina , mordendo-a com os olhos e resmungando : Deixe falar , deixe falar , que isto sabe-a toda . A Marcelina declarou que estava com a telha , uma alegria mesmo lá dentro , e dizia : Viva a borga ! em estrépito . E , tomando Carolina pela cintura e agarrando o braço do aprendiz para aproximá-los : E que canta você cá da pequena , seu petiz ? Olhe que nem mandada vir de encomenda . E então esta carinha , que parece de seda ... Maganão ! Bem sabia que a não merecia , um chichisbeco daqueles ! ai ! mas queria ser generosa ... E que tratasse de a estimar , melhor que o pai a tinha estimado ; que a queria ver uma senhorita toda de fitas a voar e casibeques de pano fino , pelo Inverno ; conhecia casadinhos que era mesmo uma gracinha , mais unidinhos e mais guapos que era uma providência . E que fossem assim toda a sua vida . Ambos eles sorriam , corados . Nos seus olhos húmidos , em cujas íris de inquietadas fibrilhas havia um contrair de comoções refreadas , luzia a cáustica lascívia do desejo incendido . Carolina sentia um quebrantamento fundi-la toda ; era do calor , da fadiga da tarde , talvez da contemplação do sítio . E a sua alma perdia-se em grandes esquecimentos ; alongava o olhar de encontro Ãs vastidões do céu e da paisagem , como se toda ela se expandisse naquela área sem termo , alada no vago de uma impressão que até ali não soubera formular . Viu-o preguiçosamente estendido na pedra branca de um túmulo . Era numa das ruas afastadas . Naquela posição de madraço , a vigorosa expansão do seu corpo ressaltava em linhas magníficas , de animal contente e são , que descansa . Tinha-lhe caído o chapéu , e deitada para trás , nas duas mãos sobrepostas , a cabeça parecia-lhe esbatida no fulvo dos cabelos , que à luz poente faziam um desenho de juba . Via-se-lhe o tronco oscilando , a camisa tufada por baixo do colete , uma das pernas fletida sobre o coxa e a outra estiraçada , com bestial franqueza para diante . Carolina devorava-o : era assim que ela sonhara o outro , nos seus delírios histéricos de virgem reclamando direitos de mulher fecunda em noites de entrecortada alucinação . E via-o deslocar-se aos círculos por diante dos olhos , sentindo um tremor de mãos e frialdade mortal nas pontas dos dedos . pelo seu lado , o João fitava-a com fúrias de novilho que desperta . E , velhacamente , um riso nervoso nos cantos da boca , piscava-lhe os olhos , desafiando . A noite tombara das encostas , pelo céu , e uma sineta batida pelo guarda do cemitério mandava sair . Barras -- nuvens tranquilas estendiam-se ao oriente , aspetos esbatidos , de vaga melancolia contemplativa . A lua , de um branco baço flutuava como uma boia de cristofle , e tristes raios quiméricos mal podiam coar-se pelos galhos corpulentos dos ciprestes antigos . Via-se pouco pelas ruas do cemitério ; na ventana da capela um mocho narrava , sarcástico , em notas vibrantes , legendários terrores ; um vento passava vagaroso , como vigia de arraial adormecido , varrendo o pó das brancas sepulturas glaciais . A Marcelina ergueu-se para pôr o xale rico e ia andando . Carolina ergueu-se para seguis-la . Mas João agarrou-a pela cinta e , com voz alterada , quase gutural , dizia-lhe , atraindo-a si , corpo a corpo : Olha lá , espera , olha lá . Erguera um pouco o busto , e com inabalável teimosia puxava as saias da rapariga . Esteja quieto , podem ver . Mau ! Ele porém não a escutava . Não te vais daqui , não te hás de ir daqui murmurava-lhe ao ouvido . Todo o seu esforço era para apanhar-lhe a cara ; tinha a respiração sifilante , e um tumulto de sangue turgescera-lhe as cordoveias do pescoço . E o beijo que me deves , o beijo que me deves ? Dá-mo ! Tinha-a agarrado pelas costas , metendo-lhe as mãos por debaixo dos braços , e com uma força cruel conservava-a apertada sobre o peito , enquanto lhe premia ! : Os seios crespos e redondos , de mulher inviolada . Carolina tentava embalde arrancar-se ao amplexo . Conservava os olhos cerrados , um bater de narinas , a boca escarlate como a ferida de um fruto tórrido , palpitações . E dizia : Mau ! Olhe que eu chamo , olhe que eu grito ! E , num tom choroso : Ora isto , ora isto ! Ele não dizia palavra ; apertava-a na cinta uivando com fome , e beliscando-a na redondeza dos quadris e na curva marmórea das espáduas . A sua exaltação crescia , e lutava a seno , arrancos de besta na quadra fatal do cio . E , erguendo de repente o braço , forçou-a a voltar a cabeça para trás , despenteando-a um pouco na frente . Mau ! dizia ela . Rasgar não vale ! Olhava-o com os seus olhos velados , que tinham uma condensação de amor voluptuoso , essa expressão parada e lúbrica que nasce dos espasmos profundos e desolantes . O João dobrou-a vigorosamente , como se quisera partir-lhe os ossos . Cala-te , cala-te ! dizia-lhe . Os seus olhos ressaltavam , havia um arrepio de fibrilhas nos ângulos das órbitas e sentia-se o estertor da sua respiração estrangulada . Então , curvando-se sobre ela , com os seus lábios ardentes sorveu-lhe a boca palpitante , e furioso tirou-lhe o lenço para meter-lhe as mãos no seio . Ao contacto das epidermes a descarga dos fluidos deu um frémito de corpos , e Carolina esticando os braços atirou-lhe as duas mãos aos ombros , murmurando : Oh , matas-me ... E , como na corrente múrmura de um rio que vai fugindo , entregou-se-lhe toda , sonhando com esses fiordes serenos e brancos das regiões onde os êxtases , como as noites , duram meses , sempre iluminados por um íris de aurora polar . João agarrou na rapariga ao colo , como a uma criança , foi pela rua adiante ao encontro da Marcelina , que não estranhou se houvesse demorado . O João dava-lhe quatro pintos de comissão ; era para comprar aviamentos para um vestido de fazenda , azuloio , que tinha ganho quando fora do alferes Sarmento . Andava precisada de botinas ; as dos domingos , de polimento , tinham uma fendazinha no joanete e via-se a meia . Não podia ir a parte nenhuma que se não envergonhasse . Falara nisso ao João , mas ele enfadava-se . Já lhe tinha dado para umas camisas e para a ajuda de uma medalha , e certas miudezas , lenços de seda , um casaco de pano , bordado a trancinha , que tinha comprado à Francisca adela , com jeito no olho , um pouco gaga . E a sua tagarelice , mal apanhou quem a escutasse , entrou a estafar a paciência alheia , de comentários nunca levados ao fim , historietas afogadas no prólogo e logo preferidas a outras não menos interessantes . Ai , filhos , que se vai fazendo noite , negro tudo como breu . A mulata devia estar em cuidado já . E não comprara os carapaus para o bichaninho , o Pimpão , eram mais de sete horas ! Não tinha sustância no estômago , mas havia sua vontadinha de comer . Tivera fressura para o jantar , umas ervilhazinhas com presunto que as podiam comer os anjos . Mas a fruta cara ; a hortaliça estava para a gente rica . E então as mulheres da venda pelas portas , uma pouca-vergonha ! Quarteirão de laranjas , dois tostões ! Nunca se vira tal nesse mundo de Cristo . E com a guerra , dizia , é com a guerra . E que andavam os papéis cheios dessas coisas , mais de duas mil pessoas mortas cada dia na Estranja , a tiro . E que Deus nos livrasse , que Deus nos livrasse , cá de levantamentos . Quando fora pela revolta do quatro , ainda os dois não eram nascidos , tinham corrido rios de sangue , gente fugida por esses campos , até os santos andaram numa alhada . O nosso Senhor nos perdoe pelas suas cinco chagas ! E persignava-se , dando beijos na unha do polegar , com ruído . Saíram do cemitério . Carolina não dizia nada , apertava o braço do aprendiz . A velha estava mesmo a cair , e queixava-se . Estavam-lhe lá por dentro a remoer , a remoer ; a modos que coisa assim de bicha . Tinha tomado as pevides de abóbora nada de resultado ! Ai , mas ia mesmo mortinha ; e que fossem enxugar uma pinga com uma iscazinha sem elas ... Já não estava em idade de folias , bem lhe&lhes+o estava dizendo aquele esfalfamento . E os seus intestinos roncavam , ameaçadores . Tinha sina de morrer cedo ; então ! ... Toda a sua gente murchava ainda nova . O seu pai , um homenzarrão com a um raio , tinha saído bom , com uma capa de briche novinha , para casa do regedor , e à noitinha dá-lhe a febre-amarela , e agora o vereis a vomitar ... mandaram chamar o médico Cansado parecia-lhe que o estava a ver , luvas de casimira , um caixa-d' óculos corcovado , barbicas loiras , arrastando de uma perna ... Receitou para ali umas berundangas , ela foi à botica , noite fechada . Enterros por cada canto , padres a cantarem responsos . Nem ela sabia dizer bem . Quando chegou a casa , a mãe estava num berreiro : Ai , meu homem da minha alma ! Ai , meu rico amor do meu coração ! ... E escarapelava-se pelos cantos em saias de estamenha , sapateando as grossas solas cardadas pelo sobrado . A sua mãe fora lavadeira da infanta , muito estimada das açafatas e aios ; levava e trazia segredinhos , bilhetinhos , do Ramalhão para a Bemposta e da Bemposta para o Ramalhão . Chamavam-lhe a Angelca ; um cabo da guarda apaixonara-se pelos seus belos olhos e cantava-lhe modinhas . Mas ela , esperta que tinha raio ! moita carrasco ! de uma vez , numa devesa , dois ganhões atiram-se a ela . Mas ena , pai ! ... se vocês querem ver o que era dar lambada , com os serões ; andava tudo numa dobadoura , quando veio gente que apaziguou a faina . Quando não , era mulher capaz de dar cabo deles . E havia de se ralar muito . Enfim , filhos , enfim era de faca na perna resumia com pompa , cheia de vaidade . Manda Nosso Senhor os bons à sua santa vista , que dos maus nem quer saber o diabo . Uma tarde a minha mãe apareceu com tosse , tossinha de gato engasgado , dores pela espinhela , calafrios ... veio-lhe uma pulmonia da fortuna ... pulmonia foi ela que a raspou até hoje . Foi em quinta-feira de Corpo de Deus , moravam aí para as bandas da Sé , numa barraquinha velha ; todo o dia a música a tocar ; tropa para : lá e para cá ; a pretalhada tá ti ti tá ; tá ti ti tá ; tá tara tá ! Gentalha de pagode , o rei , os ministros , a procissão , o S.||_Jorge Jorge|_Jorge ; e a mãe para ali amortalhada em chita velha , à espera do padre , para ir para debaixo da terra . Nem um coto de cera , nem uma fita , nem um véu de escumilha . As bilhardeiras das fidalgonas , enquanto a Angelca pôde servir-lhes de alcoviteira , fizeram-lhe festa , sim senhor . Mas quando fechou o olho diabo que te carregue ! São uma coisa que eu cá sei , aquelas peças . Não é lá dizermos , andam na berzundela um dia ou outro , mas sempre , sem nunca parar . E cheia de reticências procurava incitar o interesse . Baixava a voz , com uma confidência obscena em que figuravam infantas de capote e lenço , passeando pelo Campo de Sant'Ana com o Chico Belas , charuto na boca , uma gazua no cinto do vestido e viva a reinação ... E fulana e fulana que aí estão casadas com sicrano e sicrano , sonsinhas de uma figa , já se não lembravam de quando escreviam cartas a este e Ãquele , para que viessem às tantas horas ... sempre se viam coisas neste mundo ! Uma lástima , filhos , uma lástima ! E que havia sécia que era mesmo para ali , para quem queria ver , na cocheira com os trintanários . Conhecia boa meia dúzia dessas tipas ; algumas eram damas dó paço . E que o mundo era todo assim . Mas o que a raivava era quererem ser grandes santarronas , que nem quebram um prato , e no cabo deitavam abaixo a cantareira ! Iam passando diante do Pescada A casa estava cheia de gente ; rumores de guitarras bordavam finos arabescos sonoros de fados corridos ; vinha lá de dentro um burburinho de gente avinhada ; o fumo dos cachimbos azulava o ambiente , empestando , e grossos risos estalavam brutais entre histórias alegres do arraial , e largas digestões de mexilhão e pimentos . Via-se a tia||_Laureana Laureana|_Laureana , papuda e quente , encostada ao balcão , entre bojos de garrafas pretas e tabuleiros de queijos frescos . Um aguadeiro deitava ao longe o pregão monótono ; para o interior da cidade , rumores de carruagens amorteciam gradualmente na morna sonolência quebrada da hora . O João lembrou que fossem comer alguma coisa . E mais aberto com as mulheres contava os seus apetites e as suas valentias ; de uma vez tinha tosado um gajo , na Perna de Pau ; já aquilo chuchou cascudos ! ... E vai , quando mal se descuida , o outro tinha passado as palhetas . Era agora de uma sociedade Esperança e Harmonia ; tinha alugado casa na Rua dos Quelhas e tratavam de arranjar filarmónica ; ele tocava pratos . Havia um barbeiro na Rua das Trinas , o Lopes , que fazia comédias , galegos que namoravam as sopeiras e cantavam versos da sua terra : era reinadio ! Ele fazia de polícia , tinha comprado uns bigodes de crepe ... E dizia as suas boas intenções em que se havia uma pessoa de entreter ; andar para aí perdido de bêbedo ? Assim sempre era mais decente . E que ela , Carolina , havia de ir Ãs comédias ; não era verdade ? Para o Verão queriam dar bailes campestres numa horta , com balões de cores . Iam entrar no Pescada , mas Carolina puxou a manga do aprendiz , pediu que não fossem para ali ; tinha lá o pai , se ele visse , santo Deus , era capaz de fazer alguma . Aquilo , juntava Marcelina , em estando pingado , era o diabo mais ruim da cristandade . E , prudente , aconselhava o Manei do Altinho ; ia ali gente mais pacata , havia quartos particulares , seus reposteiros de chita , um rico cozinheiro , e , enquanto ao sumo , era por conta do lavrador , sem confeição . Uva e ' mais nada ! resumia . Carolina sorria benevolente , sem dizer nada . Entraram no Manei do Altinho , para um quarto . O João bateu com ostentação de ricaço na mesa , perguntou Ãs mulheres o que queriam ; a Marcelina apetecera um bifezinho . Carolina não tinha vontade e o João quis salada de camarões . E rindo , todo corado , olhava para a pequena , abanando a cabeça , dizia vagamente para achar pelestra : Com que sim senhor , com que sim senhor ! E confidencialmente , inclinado para Carolina : Não come mesmo nada , mesmo nada ? Mesmo nada dizia ela sorrindo , embevecida nele . Nem tanto como isto ? E mostrava a ponteira da bengala . Homessa ! Olhe que entisica . Piscava o olho . Riam baixo . Velhaco ! segredava ela , vermelha , tocando-lhe a face . Pois há de comer , há de comer por força ! E , lentamente : E camarões , para abrir o apetite . O olhar do aprendiz penetrava nela como um estilete . Miravam-se com curiosidade petulante , adivinhando-se . O olhar dela afogava-se num langor amoroso e húmido , de uma simpatia impura . O João chegou-se mais e com voz quase impercetível : Hoje , lá para a tarde , vou , sim ? disse ele . Hoje não disse ela . Porquê ? Que tem ? A vizinhança deita-se altas horas . É gente má , percebe ? Podia falar-se , o meu pai sabia ... Hoje não . Depois . Mas se eu não posso , vê ? suplicou o João , com voz piegas de criança . Então ? ... E tímido , uma doçura insistente na boca : Vou , sim ? Não pode recusar . É má ! Carolina deixava-se penetrar daquela imploração toda incendida de amor desonesto . E sem resolução : Pois sim , pois sim disse ela , mas Ãs duas horas , ouça bem , Ãs duas horas , quando não houver luz nas janelas , das tais . A Marcelina , um pouco afastada , tinha adormecido . O rapaz chegou com a ceia . Carolina gostava mesmo muito dos camarões . E bebia , toda palreira já . Ao outro dia o aprendiz apareceu mais tarde na loja , tresnoitado e cheio de fadiga . Era a primeira vez que ele faltava aos seus deveres e o patrão , o Ferreira , velho direito e tostado , fisionomia vulgarmente honesta , nada lhe disse . O João era destes filhos que os pais , viciosos e desleixados , abandonam pequenos a uma vadiagem perigosa . Aos dez anos meteram-lhe umas cautelas na mão . De manhã cedo , ainda escuro , ia descalço e cheio de lama Ãs redações comprar os jornais do dia , numa pasta sebenta , que encontrara numa escada . E , caminho dos bairros distantes e ainda adormecidos , sob a luz vacilante dos lampiões , lá ia apregoando o Diário de Notícias e o Popular que saiu agora a dez réis . Gastava assim a manhã . Algumas vezes , pequenino e todo roto , a carne suja transida do frio , deixava-se dormir nas escadas , com a pasta por travesseiro . E esquecia-se , no sono , da venda dos Populares . Recolhia a casa carregado , com os jornais intactos ; davam-lhe tareias monumentais , com uma corda molhada , nos rins. de uma ocasião perdeu as cautelas , pôs-se a chorar na rua , cheio de medo . Quem passava queria saber o que era ; ele , soluçante , dizia a sua desgraça , estorcendo as mãos . Alguns davam dez réis . Mulheres de ricos vestidos de cauda compadeciam-se : Coitadinho , coitadinho ... As crianças olhavam-no comovidas , esmolando-o . Um velho alto , barba toda , de bengalão , ao passar disse azedamente : Parece impossível que a polícia consinta este desaforo numa cidade civilizada ! E ele envenenava o seu ânimo numa aflição profunda , expressa em lágrimas sem remédio . Ninguém tinha achado as cautelas ; ia passando cada vez menos gente , menos gente ; perguntava a todos , uns riam-se , outros diziam que não ! Alguns nem respondiam : todos iam andando ! As lojas fechavam : uma tristeza parda fazia-se na rua , obscura e fria . Os pianos choravam nas salas medíocres dos terceiros andares , velhas romanzas de Bellini e Weber , em desafinação sentimental , e , através das janelas unidas , vozes de meninas líricas diziam em italiano barbaresco afetos candentes de heroínas tísicas , com gestos cavos e baladas entorpecedores , cheias de pecado e ofensas à moral pública . Ele sentia , no meio da felicidade dos outros , pesar-lhe a sua miséria , como um globo de chumbo do pesa-mundos . Era bonito e loiro ; os cabelos crescidos , anelados , revoltos e cheios de terra , davam-lhe um doçura tranquila e casta , cheia de encanto e inocência , o ar de um leãozinho amamentado num viveiro . Tinha nos olhos um azul-escuro de safira , de uma profundeza de Bambino , no fundo dos quais se sentia dormir a sua almazinha angélica , sofredora e cristalizada , como uma fina joia , desconhecida e brilhante . Não conseguira fazer com as esmolas nem metade do custo das cautelas ; todo o mundo era feliz e sorria ; muitos gastavam em ninharias , em bonecos e em fitas , um dinheiro louco . Só ele não tinha ninguém que lhe desse o quartinho dos seus bilhetes perdidos . Mas um homem vinha envolto no seu casaco de Inverno ; ele chorava ! Encheu-se de valentia e chegou-se ao transeunte : Meu rico senhor começou ele , eu tinha umas cautelas , que o meu pai me tinha dado para vender . E vai , ali na Calçada dos Caldas , perdi-as , meu rico senhor . Se eu não levar o quartinho , o meu pai é capaz de me enforcar , meu rico senhor . Tenha compaixão ... Passa fora , gatuno ! O que tu querias nesse espinhaço bem sei eu . Ele recuou aterrado , convulso . E varado por aquela violência ficou soluçando no meio da rua solitária . Se fosse para casa , o pai , um pedreiro incorrigível e bêbedo , tinha-lhe preparada a corda , num alguidar cheio de água . Lembrava-se que a mãe , triste criatura amarela , resignada , loira e cheia de privações , eia meiga para ele e clemente , ocultando-lhe as faltas , vestindo-lhe a nudez com os seus trapos , contemplando-o em certas noites com um amor , uma tristeza e uma suavidade toda . feita de sacrifícios , de dores e apreensões . Essa pobre mulher imploraria de joelhos o seu perdão , quebrando nas suas costelas as pancadas que o pedreiro atirasse ao filho , calada e paciente , de uma humildade evangélica e de uma vileza sublime ! E uma ideia cortava-lhe de repente este referver de recordações , de vacilações , de receios se ele não fosse para casa ? A tunda adiar-se-ia-para o dia seguinte com acumulação de juros ; a mãe , tão mesquinha e tão boa , pagaria por ele , levando puxões de cabelos , picadas de alfinetes , socos pelo vazio e pimenta pela boca , que o pedreiro , em estando com ela , era um dragão em casa . A vizinhança às vezes apitava ; ele quebrava vidros , dizia impropérios , atirava-se à patrulha , à dentada , como um danado . Era no Inverno , altas horas . Começou a chover , a chover . O vento , encanado pelas ruas , ao longo das altas casas , agitava os lampiões com estalidos secos . Dois ou três coupés passaram a toda a força . Um deles levava crianças e era tirado a quatro . Era o rei que voltava de S. Carlos , com a família . João ficou parado , a seguir aqueles trens opulentos , de gente que podia perder cautelas sem levar tareias , e sem passar noites fora de casa , com medo das cordas molhadas . Ser rei era para ele muito mais que ser Deus ; e fantasiava uma existência inaudita e fenomenal , se fosse rei . Teria camisas de chita , de quadradinhos , camisolinhas de flanela , boas botas de Inverno , um relógio , cadeia com pingentes , mais cara ainda que a do vizinho Maurício o da tenda de S.||_João_da_Praça João|_João_da_Praça da|_João_da_Praça Praça|_João_da_Praça . E lhe-: Vossa real majestade senhor rei , vossa real majestade ... E ele daria a mão a beijar , com um grande anel , melhor que o do senhor Parreira , o comissário de polícia do seu bairro . E ajoelharia diante dele , repetindo : Vossa real majestade , vossa real majestade ... E marcharia à frente dos esquadrões de lanceiros cheio de medalhas , uma banda , de bigodes retorcidos e tirando o chapéu armado ao povo , no meio dos hinos das bandas marciais , ou então na procissão de S.||_Jorge Jorge|_Jorge , de manto e debaixo do pálio , iria descoberto , acertando o passo , com ares majestáticos . As beiras dos telhados deixavam cair as suas lágrimas monótonas com um ruído metódico e gelado . No céu escuro e forrado por igual , nuvens brancas , como de algodão fofo , esbarravam , acossadas pela nortada . Os passeios desertos , nus de transeuntes , ofereciam à claridade triste do gás o seu esguio e pálido espinhaço , que recordava o de um peixe antigo , dos que se fazem admirar em esqueleto , fossilizados , nos museus . Recortavam vagamente no ar os tetos negros a sua dentadura de pentes partidos ; nas fachadas imbecis , que os reflexos mosqueavam de um livor doentio , cortadas por filas escuras de janelas toscas , as tabuletas faziam nódoas de luto , ensanguentadas por letreiros vermelhos , de modistas e de armazéns de fazendas . Ao fundo da rua , num terceiro andar , uma parteira tinha uma lanterna rubra , de aviso . Dois gatos seguiam ao longo das paredes , miando a sua paixão nervosa e excêntrica . E por sobre a cidade os aguaceiros esfarrapavam-se lentamente na sua caminhada fatal , fazendo nos confins dos edifícios afastados , longes indecisos e lúgubres , linhas frias de mausoléus um abandono do campo-santo , desconsolado e fatídico . João pôs-se a andar vagarosamente , cabeça baixa , as mãos remexendo o forro das algibeiras , transido do ar da madrugada . Não tinha senão um pensamento não ir para casa . O mais , que lhe importava ? Mas sentia-se cansado e triste , como quem vai partir para um país ignorado , dos Brasis . Sentiu uma coisa dura no bolso das calças : não se lembrava do que seria . Tirou para fora : era um vidro cheio de facetas , uma rolha de garrafa que encontrara na rua . Com a curiosidade natural de crianças , aplicou o olho a uma das faces e pôs-se a mirar a luz de um candeeiro , através do poliedro . Experimentou deslumbramentos . A luz multiplicava-se no seio do cristal em centos de imagens fulgentes e irisadas , vívidas numa saturação de amarelo-pálido . E o cristal dilatava-se como uma arcaria fantástica em mil sentidos opostos , onde cintilas cruzavam as suas linhas coriscantes , com uma abundância embriagadora . João nunca olhara coisa assim : era como um mundo de diamante e de luz , salas desertas e imensas , iluminadas como para um sarau . A sua alma , como uma borboleta fascinada , ia , em lufadas de gozo , penetrar essa vasta habitação principesca e oriental feita do que há mais puro e mais comovente : a luz , a alegria , a glória ... Novamente apeteceu ser rei e viver naquele palácio , num trono . Tinha fome , desde pela manhã não comia , as pernas vergavam-lhe . Encostou-se ao umbral de uma porta , olhando sempre os seus salões mágicos vestidos de tapeçarias iriantes , em que a luz incidia polvilhada em átomos de glória . Mas a fadiga oprimia-o . Curvou os joelhos na pedra húmida de chuva , absorto na luz . Os olhos carregados de chumbo , cerravam-se . Mas abria-os devagarinho , para mirar . E sem sentir , uma tranquilidade emoliente nos membros , adormeceu . De manhã acordou , admirado de haver dormido fora de casa e surpreso mesmo da proeza heroica que o expunha Ãs cóleras do pai intratável . Corria um arzinho cortante que esburacava a névoa do rio e dava comoções fantásticas Ãs nuvens húmidas do ar . Uma parte da cidade envolvia-se em grandes vapores translúcidos , em que se perdiam as torres das freguesias .