Há quatorze anos , numa noite de verão no Passeio Publico , em frente de duas chávenas de café , penetrados pela tristeza da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sono ao som de um soluçante pot-pourri dos Dois Foscaris , deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros , num romance tremendo , buzinado á baixa das alturas do Diário de Noticias . Para esse fim , sem plano , sem método , sem escola , sem documentos , sem estilo , recolhidos á simples " torre de cristal da Imaginação " , desfechámos a improvisar este livro , um em Leiria , outro em Lisboa , cada um de nós com uma resma de papel , a sua alegria e a sua audácia . Parece que Lisboa efetivamente despertou , pela simpatia ou pela curiosidade , pois que tendo lido na larga tiragem do Diário de Noticias o Mistério da Estrada de Sintra , o comprou ainda numa edição em livro ; e hoje manda-nos V. as provas de uma terceira edição , perguntando-nos** o que pensamos da obra escrita nesses velhos tempos , que recordamos com saudade ... Havia já então terminado o feliz reinado do senhor||_D._João_VI D.|_D._João_VI João|_D._João_VI VI|_D._João_VI . Falecera o simpático Garção , Tolentino o jucundo , e o sempre chorado Quita . Além do Passeio Publico , já nessa época evacuado como o resto do país pelas tropas de Junot , encarregava-se também de falar ás imaginações o Sr.||_Otave_Feuilet Otave|_Otave_Feuilet Feuilet|_Otave_Feuilet . O nome de Flaubert não era familiar aos folhetinistas . Ponson du Terrail trovejava no Sinai dos pequenos jornais e das bibliotecas económicas . O Sr.||_Jules_Claretie Jules|_Jules_Claretie Claretie|_Jules_Claretie publicava um livro intitulado ... ( ninguém hoje se lembra do titulo ) do qual diziam comovidamente os críticos : -- Eis aí uma obra que há de ficar ! ... Nós , enfim , eramos novos . o que pensamos hoje do romance que escrevemos há quatorze anos ? ... Pensamos simplesmente -- louvores a Deus ! -- que ele é execrável ; e nenhum de nós , quer como romancista , quer como critico , deseja , nem ao seu pior inimigo , um livro igual . Porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um critico lhe deveria tirar . Poupemos-lo -- para o não agravar fazendo-o em três volumes -- á enumeração de todas as suas deformidades ! Corramos um véu discreto sobre os seus mascarados de diversas alturas , sobre os seus médicos misteriosos , sobre os seus louros capitães ingleses , sobre as suas condessas fatais , sobre os seus tigres , sobre os seus elefantes , sobre os seus hiantes em que se arvoram , como pavilhões do ideal , lenços brancos de cambraia e renda , sobre os seus sinistros copos de ópio , sobre os seus cadáveres elegantes , sobre as suas toiletes românticas , sobre os seus cavalos esporeados por cavaleiros de capas alvadias desaparecendo envoltos no pó das fantásticas aventuras pela Porcalhota fora ! ... Todas estas coisas , aliás simpáticas , comoventes por vezes , sempre sinceras , desgostam todavia velhos escritores , que há muito desviaram os seus olhos das perspetivas enevoadas da sentimentalidade , para estudarem pacientemente e humildemente as claras realidades da sua rua . Como permitimos pois que se republique um livro que sendo todo de imaginação , cismando e não observado , desmente toda a campanha que temos feito pela arte de análise e de certeza objetiva ? Consentimos-lo porque entendemos que nenhum trabalhador deve parecer envergonhar-se do ser trabalho . Conta-se que Murat , sendo rei -- Nápoles , mandara pendurar na sala do trono o seu antigo chicote de postilhão , e muitas vezes , apontando para o cetro mostrava depois o açoite , gostando de repetir : Comecei por ali . Esta gloriosa história confirma o nosso parecer , sem com isto querermos dizer que ela se aplique ás nossa pessoas . Como trono temos ainda a mesma velha cadeira em que escrevíamos há quinze anos ; não temos dossel que nos cubra ; e as nossas cabeças , que embranquecem , não se cingem por enquanto de coroa alguma , nem de louros , nem de Nápoles . Para nossa modesta satisfação basta-nos não ter cessado de trabalhar um só dia desde aquele em que datámos este livro até o instante em que ele nos reaparece inesperadamente na sua terceira edição , com um petulante arzinho de triunfo que , á fé de Deus , não lhe vai mal ! Então , como agora , escrevíamos honestamente , isto é , o melhor que podíamos : desse amor da perfeição , que é a honradez dos artistas , veio talvez a simpatia do público ao livro da nossa mocidade . Há mais duas razões , para autorizar esta reedição . A primeira é que a publicação deste livro , fora de todos os moldes até o seu tempo consagrados , pode conter , para uma geração que precisa de a receber , uma útil lição de independência . A mocidade que nos sucedeu , em vez de ser inventiva , audaz , revolucionaria , destruidora de ídolos , parece-nos servil , imitadora , copista curvada de mais diante dos mestres . Os novos escritores não avançam um pé que não pousem na pegada que deixaram outros . Esta pusilanimidade torna todas as obras trôpegas , dá-lhes uma expressão estafada ; e a nós , que partimos , a geração que chega faz-nos o efeito de sair velha do berço e de entrar na arte de muletas . Os documentos das nossas primeiras loucuras de coração queimámos-los há muito , os das nossas extravagâncias de espirito desejamos que fiquem . Aos vinte anos é preciso que alguém seja estroina , nem sempre talvez para que o mundo progrida , mas ao menos para que o mundo se agite , Para ser ponderado , correto e imóvel há tempo de sobra na velhice . Na arte , a indisciplina dos novos , a sua rebelde força de resistência ás correntes da tradição , é indispensável para a revivescência da invenção e do poder criativo , e para a originalidade artística . Ai das literaturas em que não há mocidade ! Como os velhos que atravessaram a vida sem o sobressalto de uma aventura , não haverá nelas que lembrar . Além de que , para os que na idade madura foram arrancados pelo dever ás facilidades da improvisação e encontram nesta região dura das coisas exatas , entristecedora e mesquinha , onde , em lugar do esplendor dos heroísmos e da beleza das paixões , só há a pequenez dos carateres e a miséria dos sentimentos , seria doce e reconfortante ouvir de longe a longe , nas manhãs de sol , ao voltar da primavera , zumbir no azul , como nos bons tempos , a doirada abelha da fantasia . A última razão que nos leva a não repudiar este livro , é que ele é ainda o testemunho da íntima confraternidade de dois antigos homens de letras , resistindo a vinte anos de provação nos contatos de uma sociedade que por todos os lados se dissolve . E , se isto não é um triunfo para o nosso espírito , é para o nosso coração uma suave alegria . Lisboa , 14 -- dezembro de 1881 De V. Antigos amigos Eça de Queirós Ramalho Ortigão PRIMEIRA PARTE EXPOSIÇÃO DE+O DOUTOR Sr. redator do Diário de Noticias Venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente extraordinário em que intervim como facultativo , pedindo-lhe que , pelo modo que entender mais adequado , publique na sua folha a substancia , pelo menos , do que vou expor . Os sucessos a que me refiro são tão graves , cerca-os um tal mistério , envolve-os uma tal aparência de crime que a publicidade do que se passou por mim torna-se importantíssima como chave única para o desenlace de um drama que suponho terrível com quanto não conheça dele senão um só ato e ignore inteiramente quais foram as cenas precedentes e quais tenham de ser as últimas . Há três dias que eu vinha dos subúrbios -- Sintra em companhia de F ... , um amigo meu , em cuja casa tinha ido passar algum tempo . Montávamos dois cavalos que F ... tem na sua quinta e que deviam ser reconduzidos a Sintra por um criado que viera na véspera para Lisboa . Era ao fim da tarde quando atravessámos a charneca . A melancolia do lugar e da hora tinha-se-nos comunicado , e vínhamos silenciosos , abstraídos na paisagem , caminhando a passo . A cerca de talvez de meia distância do caminho entre S. Pedro e o Cacem , num ponto a que não sei o nome , porque tenho transitado pouco naquela estrada , sitio deserto como todo o caminho através da charneca , estava parada uma carruagem . Era um coupé pintado de escuro , verde e preto , e tirado por uma parelha côr de castanha . O cocheiro , sem libré , estava em pé , de costas para nós , diante dos cavalos . Dois sujeitos achavam-se curvados ao pé das rodas que ficavam para a parte da estrada por onde tínhamos de passar , e pareciam ocupados em examinar atentamente o jogo da carruagem . Um quarto individuo , igualmente de costas para nós , estava perto do valado do outro lado do caminho , procurando alguma coisa , talvez uma pedra para calçar a carruagem . É o resultado das sob-rodas que tem a estrada , observou o meu amigo . Provavelmente o eixo partido ou alguma roda desembuchada . Passávamos a este tempo pelo meio dos três vultos a que me referi , e F ... tinha tido apenas tempo de concluir a frase que proferira , quando o cavalo que eu montava deu repentinamente meia volta rápida , violenta , e caiu de chapa . O homem que estava junto do valado , ao qual eu não dava atenção porque ia voltado a examinar a carruagem , determinara essa queda , colhendo repentinamente e com a máxima força as rédeas que ficavam para o lado dele e impelindo ao mesmo tempo com um pontapé o flanco do animal para o lado oposto . O cavalo , que era um poldro de pouca força e mal manejado , escorregou das pernas e tombou ao dar a volta rápida e precipitada a que o tinham constrangido . O desconhecido fez levantar o cavalo segurando-lhe as rédeas , e , ajudando-me a erguer , indagava com interesse se eu teria molestado a perna que ficara debaixo do cavalo . Este individuo tinha na voz a entoação especial dos homens bem educados . A mão que me ofereceu era delicada . O rosto tinha-o coberto com uma mascara de cetim preto . Entrelembro-me de que trazia um pequeno fumo no chapéu . Era um homem ágil e extremamente forte , segundo denota o modo como fez cair o cavalo . Ergui-me alvoroçadamente e , antes de ter tido ocasião de dizer uma palavra , vi que , ao tempo da minha queda , se travara luta entre o meu companheiro e os outros dois indivíduos que fingiam examinar a carruagem e que tinham a cara coberta como aquele de que já falei . Puro Ponson du Terrail ! Dirá o Sr. redator . Evidentemente . Parece que a vida , mesmo no caminho de Sintra , pode às vezes ter o capricho de ser mais romanesca do que pede a verosimilhança artística . Mas eu não faço arte , narro fatos unicamente . F ... , vendo o seu cavalo subitamente seguro pelas cambas do freio , tinha obrigado a larga-lo um dos desconhecidos , em cuja cabeça descarregara uma pancada com o cabo do chicote , o qual o outro mascarado conseguira logo depois arrancar-lhe da mão . Nenhum de nós trazia armas . O meu amigo tinha no entanto tirado da algibeira a chave de uma porta da casa de Sintra , e esporeava o cavalo estirando-se-lhe no pescoço e procurando alcançar a cabeça daquele que o tinha seguro . O mascarado , porém , que continuava a segurar numa das mãos o freio do cavalo empinado , apontou com a outra um revolver á cabeça do meu amigo e disse-lhe com serenidade : -- Menos fúria ! Menos fúria ! O que levara com o chicote na cabeça e ficara por um momento encostado á portinhola da carruagem , visivelmente atordoado mas não ferido , porque o cabo era de baleia e tinha por castão uma simples guarnição feita com uma trança de clina , havia já a este tempo levantado do chão e posto na cabeça o chapéu que lhe caíra . A este tempo o que me derribara o cavalo e me ajudara a levantar tinha-me deixado ver um par de pequeninas pistolas de coronhas de prata , daquelas a que chamam em França coups de poing e que varam uma porta a trinta passos de distância . Depois do que , me ofereceu delicadamente o braço , dizendo-me com afabilidade : -- Parece-me mais cómodo aceitar um lugar que lhe ofereço na carruagem do que montar outra vez no cavalo ou ter de arrastar a pé daqui á farmácia da Porcalhota a sua perna magoada . Não sou dos que se amedrontam mais prontamente com a ameaça feita com armas . Sei que há um abismo entre prometer um tiro e desfecha-lo . Eu movia bem a perna trilhada , o meu amigo estava montado num cavalo possante ; somos ambos robustos ; poderíamos talvez resistir por dez minutos , ou por um quarto de hora , e durante esse tempo nada mais provável , em estrada tão frequentada como a de Sintra nesta quadra , do que aparecerem passageiros que nos prestassem auxílio . Todavia confesso que me sentia atraído para o imprevisto de uma tão estranha aventura . Nenhum caso anterior , nenhuma circunstância da nossa vida nos permitia suspeitar que alguém pudesse ter interesse em exercer com+nós pressão ou violência alguma . Sem eu bem poder a esse tempo explicar porquê , não me parecia também que as pessoas que nos rodeavam projetassem um roubo , menos ainda um homicídio . Não tendo tido tempo de observar miudamente a cada um , e tendo-lhes ouvido apenas algumas palavras fugitivas , figuravam-se-me pessoas de bom mundo . Agora que de espírito sossegado penso no acontecido , vejo que a minha conjetura se baseava em varias circunstâncias dispersas , nas quais , ainda que de relance , eu atentara , mesmo sem propósito de analise . Lembro-me , por exemplo , que era de cetim alvadio o forro do chapéu do que levara a pancada na cabeça . O que apontara o revólver a F ... trazia calçada uma luva côr de chumbo apertada com dois botões . O que me ajudara a levantar tinha os pés finos e botas envernizadas ; as calças , de casimira côr de avelã , eram muito justas e de presilhas . Tinha esporas . Não obstante a disposição em que me achava de ceder da luta e de entrar na carruagem , perguntei em alemão ao meu amigo se ele era de opinião que resistíssemos ou que nos rendêssemos . -- Rendam-se , rendam-se para nos poupar algum tempo que nos é precioso ! disse gravemente um dos desconhecidos . Por quem são , acompanhem-nos ! Um dia saberão porque motivo lhes saímos ao caminho mascarados . Damos-lhes a nossa palavra que amanhã estarão nas suas casas , em Lisboa . Os cavalos ficarão em Sintra daqui a duas horas . Depois de uma breve relutância , que eu contribuí para desvanecer , o meu companheiro apeou-se e entrou no coupé . Eu segui-o . Cederam-nos os melhores lugares . O homem que se achava em frente da parelha segurou os nossos cavalos ; o que fizera cair o poldro subiu para a almofada e pegou nas guias ; ou outros dois entraram com+nós e sentaram-se nos lugares vizinhos aos nossos . Fecharam-se em seguida os stores de madeira dos postigos e correu-se uma cortina de seda verde que cobria por dentro os vidros laterais da carruagem . No momento de partirmos , o que ia guiar bateu na vidraça e pediu um charuto . Passaram-lhe para fora uma charuteira de palha de Java . Pela fresta por onde recebeu os charutos lançou para dentro da carruagem a mascara que tinha no rosto , e partimos a galope . Quando entrei para a carruagem pareceu-me avistar ao longe , vindo de Lisboa , um ónibus , talvez uma sege . Se me não iludi , a pessoa ou pessoas que vinham na carruagem a que me refiro terão visto os nossos cavalos , um dos quais é russo e o outro castanho , e poderão talvez dar notícia da carruagem em que íamos e da pessoa que nos servia de cocheiro . O coupé era , como já disse , verde e preto . Os stores , de mogno polido , tinham no alto quatro fendas estreitas e oblongas , dispostas em cruz . Falta-me tempo para escrever o que ainda me resta por contar a horas de expedir ainda hoje esta carta pela posta interna . Continuarei . Direi então , se o não suspeitou já , o motivo porque lhe oculto o meu nome e o nome do meu amigo . Julho , 24 de 1870 -- Acabo de ver a carta que lhe dirigi publicada integralmente por V. no lugar destinado ao folhetim do seu periódico . Em vista da colocação dada ao meu escrito procurarei nas cartas que houver de lhe dirigir não ultrapassar os limites demarcados a esta secção do jornal . Por esquecimento não datei a carta antecedente , ficando assim duvidoso qual o dia em que fomos surpreendidos na estrada de Sintra . Foi quarta feira , 20 do corrente mês de julho . Passo de pronto a contar-lhe o que se passou na carruagem , especificando minuciosamente todos os pormenores e tentando reconstruir o diálogo que travámos , tanto quanto me seja possível com as mesmas palavras que nele se empregaram . A carruagem partiu na direção de Sintra . Presumo porém que deu na estrada algumas voltas , muito largas e bem dadas porque se não pressentiram pela intercadência da velocidade no passo dos cavalos . Levaram-me a supô-lo , em primeiro lugar as diferenças de declive no nível do terreno , com quanto estivéssemos rodando sempre num a estrada macadamizada e lisa ; em segundo lugar umas leves alterações na quantidade de luz que havia dentro do coupé coada pela cortina de seda verde , o que me indicava que a carruagem passava por encontradas exposições com relação ao sol que se escondia no horizonte . Havia evidentemente o desígnio de nos desorientar no rumo definitivo que tomássemos . É certo que , dois minutos depois de termos começado a andar , me seria absolutamente impossível decidir se ia de Lisboa para Sintra ou se vinha de Sintra para Lisboa . Na carruagem havia uma claridade bassa e ténue , que todavia nos permitia distinguir os objetos . Pude ver as horas no meu relógio . Eram sete e um quarto . O desconhecido que ia em frente de mim examinou também as horas . O relógio que ele não introduziu bem na algibeira do colete e que um momento depois lhe caiu , ficando por algum tempo patente e pendido da corrente , era um relógio singular que se não confunde facilmente e que não deixará de ser reconhecido , depois da noticia que dou dele , pelas pessoas que alguma vez o tivessem visto . A caixa do lado oposto ao mostrador era de esmalte preto , liso , tendo no centro , por baixo de um capacete , um escudo de armas de ouro encobrado e polido . Havia poucos momentos que caminhávamos quando o individuo sentado em frente de F ... , o mesmo que na estrada nos instara mais vivamente para que o acompanhássemos , nos disse : -- Eu julgo inútil asseverar-lhes que devem tranquilizar-se inteiramente em quanto á segurança das suas pessoas ... -- Está visto que sim , respondeu o meu amigo ; nós estamos perfeitamente sossegados a todos os respeitos . Espero que nos façam a justiça de acreditar que nos não têm coatos pelo medo . Nenhum de nós é tão criança que se apavore com o aspeto das suas mascaras negras ou das suas armas de fogo . Os senhores acabam de ter a bondade de nos certificar de que não querem fazer-nos mal : nós devemos pela nossa parte anunciar-lhes que desde o momento em que a sua companhia começasse a tornar-se-nos desagradável , nada nos seria mais fácil do que arrancar-lhes as mascaras , arrombar os stores , convida-los perante a primeira carruagem que passasse por nós a que nos entregassem as suas pistolas , e relaxa-los em seguida aos cuidados policiais do regedor da primeira paroquia que atravessássemos . Parece-me portanto justo que comecemos por prestar o devido culto aos sentimentos da amabilidade , pura e simples , que nos tem aqui reunidos . Doutro modo ficaríamos todos grotescos : os senhores terríveis e nós assustados . Com quanto estas coisas fossem ditas por F ... com um ar de bondade risonha , o nosso interlocutor parecia irritar-se progressivamente ao ouvi-lo . Movia convulsivamente uma perna , firmando o cotovelo num joelho , pousando a barba nos dedos , fitando de perto o meu amigo . Depois , reclinando-se para traz e como se mudasse de resolução : -- No fim de contas , a verdade é que tem razão e talvez eu fizesse e dissesse o mesmo no seu lugar . E , tendo meditado um momento , continuou : -- Que diriam porém os senhores se eu lhes provasse que esta mascara em que querem ver apenas um sintoma burlesco é em vez disso a confirmação da seriedade do caso que nos trouxe aqui ? ... Queiram imaginar por um momento um desses romances como há muitos : Uma senhora casada , por exemplo , cujo marido viaja há um ano . Esta senhora , conhecida na sociedade de Lisboa , está gravida . Que deliberação há de tomar ? Houve um silêncio . Eu aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude daquele problema e respondi : -- Enviar ao marido uma escritura de separação em regra . Depois , se é rica , ir com o amante para a América ou para a Suíça ; se é pobre , comprar uma máquina de costura e trabalhar para fora numa água furtada . É o destino para as pobres e para as ricas . De resto , em toda a parte se morre depressa nessas condições , num cottage á beira do lago Genebra ou num quarto de oito tostões ao mês na rua dos Vinagres . Morre-se igualmente , de tisica ou de tédio , no esfalfamento do trabalho ou no enjoo do idílio . -- E o filho ? -- O filho , desde que está fora da família e fora da lei , é um desgraçado cujo infortúnio provém em grande parte da sociedade que ainda não soube definir a responsabilidade do pai clandestino . Se os pais fazem como a legislação , e mandam buscar gente á estrada de Sintra para perguntar o que se há de fazer , o melhor para o filho é deita-lo á roda . -- O doutor discorre muito bem como filosofo distinto . Como puro médico , esquece-lhe talvez que na conjuntura de que se trata , antes de deitar o filho á roda há uma pequena formalidade a cumprir , que é deita-lo ao mundo . -- Isso é com os especialistas . Creio que não é nessa qualidade que estou aqui . -- Engana-se . É precisamente como médico , é nessa qualidade que aqui está e é por esse título que viemos busca-lo de surpresa á estrada de Sintra e o levamos a ocultas a prestar auxílio a uma pessoa que precisa dele . -- Mas eu não faço clinica . -- É o mesmo . Não exerce essa profissão ; tanto melhor para o nosso caso : não prejudica os seus doentes abandonando-os por algumas horas para nos seguir nesta aventura . Mas é formado em Paris e publicou mesmo uma tese de cirurgia que despertou a atenção e mereceu o elogio da faculdade . Queira fazer de conta que vai assistir a um parto . O meu amigo F ... pôs-se a rir e observou : -- Mas eu que não tenho curso médico nem tese alguma de que me acuse na minha vida , não quererão dizer-me o que vou fazer ? -- Quer saber o motivo porque se encontra aqui ? ... Eu lhe&lhes+o digo . Neste momento porém a carruagem parou repentinamente e os nossos companheiros sobressaltados ergueram-se . Percebi que saltava da almofada o nosso cocheiro . Ouvi abrir sucessivamente as duas lanternas e raspar um fosforo na roda . Senti depois estalar a mola que comprime a portinha que se fecha depois de acender as velas , e rangerem nos anéis dos cachimbos os pés das lanternas como se as estivessem endireitando . Não compreendi logo a razão porque nos tivéssemos detido para semelhante fim , quando não tinha caído a noite e íamos por bom caminho . Isto porém explica-se por um requinte de precaução . A pessoa que nos servia de cocheiro não quereria parar em lugar onde tivesse gente . Se tivéssemos de atravessar uma povoação , as luzes que começassem a acender-se e que nós veríamos através da cortina ou das fendas dos stores , poderiam dar-nos alguma ideia do sítio em que nos achássemos . Por esta forma esse meio de investigação desaparecia . Ao passarmos entre prédios ou muros mais altos , a projeção da luz forte das lanternas sobre as paredes e a reflexão dessa claridade para dentro da carruagem impossibilitava-nos de distinguir se atravessávamos uma aldeia ou uma rua iluminada . Logo que a carruagem começou a rodar depois de acesas as lanternas , aquele dos nossos companheiros que prometera explicar a F ... a razão porque ele nos acompanhava , prosseguiu : -- O amante da senhora a quem me refiro , imagine que sou eu . Sabem-no unicamente neste mundo três amigos meus , amigos íntimos , companheiros de infância , camaradas de estudo , tendo vivido sempre juntos , estando cada um constantemente pronto a prestar aos outros os derradeiros sacrifícios que pode impor a amizade . Entre os nossos companheiros não havia um médico . Era mister obtê-lo e era ao mesmo tempo indispensável que não passasse a outrem , quem quer que fosse , o meu segredo , em que estão envoltos o amor de um homem e a honra de uma senhora . O meu filho nascerá provavelmente esta noite ou amanhã pela manhã ; não devendo saber ninguém quem é sua mãe , não devendo sequer por algum indício vir a suspeitar um dia quem ela seja , é preciso que o doutor ignore quem são as pessoas com quem fala , e qual é a casa em que vai entrar . Eis o motivo porque nós temos no rosto uma mascara ; eis o motivo porque os senhores nos hão de permitir que continuemos a ter cerrada esta carruagem , e que lhes vendemos os olhos antes de os apearmos em frente do prédio a que vão subir . Agora compreende , continuou ele dirigindo-se a F ... , a razão porque nos acompanha . Era-nos impossível evitar que o senhor viesse hoje de Sintra com o seu amigo , era-nos** impossível adiar esta visita , e era-nos** impossível também deixa-lo no ponto da estrada em que tomámos o doutor . O senhor acharia facilmente meio de nos seguir e de descobrir quem somos . -- A lembrança , notei eu , é engenhosa mas não lisonjeira para a minha discrição . -- A confiança na discrição alheia é uma traição ao segredo que nos não pertence . F ... achava-se inteiramente de acordo com esta maneira de ver , e disse-o elogiando o espírito da aventura romanesca dos mascarados . As palavras de F ... acentuadas com sinceridade e com afeto , pareceu-me que perturbaram algum tanto o desconhecido . Figurou-se-me que esperava discutir mais tempo para conseguir persuadir-nos e que o desnorteava e surpreendia desagradavelmente esse corte imprevisto . Ele , que tinha a replica pronta e a palavra fácil , não achou que retorquir á confiança com que o tratavam , e guardou , desde esse momento até que chegámos , um silencio que devia pesar ás suas tendências expansivas e discursadoras . É verdade que pouco depois deste diálogo a carruagem deixou a estrada de macadam em que até aí rodara e entrou num caminho vicinal ou num atalho . O solo era pedregoso e esburacado ; os solavancos da carruagem , que seguia sempre a galope governada por mão de mestre , e o estrepito dos stores embatendo nos caixilhos mal permitiriam conversar . Tornámos por fim a entrar numa estrada lisa . A carruagem parou ainda uma segunda vez , o cocheiro apeou rapidamente , dizendo : -- Lá vou ! Voltou pouco depois , e eu ouvi alguém que dizia : -- Vão com raparigas para Lisboa . A carruagem prosseguiu . Seria uma barreira da cidade ? Inventaria o que nos guiava um pretexto plausível para que os guardas nos não abrissem a portinhola ? Entender-se-ia-com os meus companheiros a frase que eu ouvira ? Não posso dize-lo com certeza . A carruagem entrou logo depois num pavimento lajeado e daí a dois ou três minutos parou . O cocheiro bateu no vidro , e disse : -- Chegámos . O mascarado que não tornara a pronunciar uma palavra desde o momento que acima indiquei , tirou um lenço da algibeira e disse-nos com alguma comoção : -- Tenham paciência ! perdoem-mo ... Assim é preciso ! F ... aproximou o rosto , e ele vendou-lhe os olhos . Eu fui igualmente vendado pelo que estava em frente de mim . Apeámo-nos em seguida e entrámos num corredor conduzidos pela mão dos nossos companheiros . Era um corredor estreito segundo pude deduzir do modo porque nos encontrámos e demos passagem a alguém que saía . Quem quer que era disse : -- Levo a carruagem ? A voz do que nos guiara respondeu : -- Leva . Demorámo-nos um momento . A porta por onde tínhamos entrado foi fechada á chave , e o que nos servira de cocheiro passou para diante dizendo : -- Vamos ! Demos alguns passos , subimos dois degraus de pedra , tomámos á direita e entrámos na escada . Era de madeira , ingreme e velha , coberta com um tapete estreito . Os degraus estavam desgastados pelos pés , eram ondeados na superfície e esbatidos e arredondados nas saliências primitivamente angulosas . Ao longo da parede , do meu lado , corria uma corda , que servia de corrimão ; era de seda e denotava ao tato pouco uso . Respirava-se um ar húmido e impregnado das exalações interiores dos prédios desabitados . Subimos oito ou dez degraus , tomámos á esquerda num patamar , subimos ainda outros degraus e parámos num primeiro andar . Ninguém tinha proferido uma palavra , e havia o que quer que fosse de lúgubre neste silêncio que nos envolvia como uma nuvem de tristeza . Ouvi então a nossa carruagem que se afastava , e senti uma supressão , uma espécie de sobressalto pueril . Em seguida rangeu uma fechadura e transpusemos o limiar de uma porta , que foi outra vez fechada á chave depois de havermos entrado . -- Podem tirar os lenços , disse-me um dos nossos companheiros . Descobri os olhos . Era noite . Um dos mascarados raspou um fosforo , acendeu cinco velas numa serpentina de bronze , pegou na serpentina , aproximou-se de um móvel que estava coberto com uma manta de viagem , e levantou a manta . Não pude conter a comoção que senti , e soltei um grito de horror . O que eu tinha diante de mim era o cadáver de um homem . Escrevo-lhe hoje fatigado , e nervoso . Todo este obscuro negócio em que me acho envolvido , o vago perigo que me cerca , a mesma tensão de espírito em que estou para compreender a secreta verdade desta aventura , os hábitos da minha vida repousada subitamente exaltados , -- tudo isto me dá um estado de irritação mórbida que me aniquila . Logo que vi o cadáver perguntei violentamente : -- Que quer isto dizer , meus senhores ? Um dos mascarados , o mais alto , respondeu : -- Não há tempo para explicações . Perdoem ter sido enganados ! Pelo amor de Deus , doutor , veja esse homem . Quem tem ? Está morto ? Está adormecido com algum narcótico ? Dizia estas palavras com uma voz tão instante , tão dolorosamente interrogativa que eu , dominado pelo imprevisto daquela situação , aproximei-me do cadáver , e examinei-o . Estava deitado numa chaise-longue , com a cabeça pousada numa almofada , as pernas ligeiramente cruzadas , um dos braços curvado descansando no peito , o outro pendente e a mão inerte assente sobre o chão . Não tinha golpe , contusão , ferimento , ou extravasamento de sangue ; não tinha sinais decongestão , nem vestígios de estrangulação . A expressão da fisionomia não denotava sofrimento , contração ou dor . Os olhos cerrados frouxamente , eram como num sono leve . Estava frio e lívido . Não quero aqui fazer a história do que encontrei no cadáver . Seria embaraçar esta narração concisa com explicações científicas . Mesmo sem exames detidos , e sem os elementos de apreciação que só podem fornecer a análise ou a autópsia , pareceu-me que aquele homem estava sob a influência já mortal de um narcótico , que não era tempo de dominar . -- Que bebeu ele ? perguntei , com uma curiosidade exclusivamente medica . Não pensava então em crime nem na misteriosa aventura que ali me prendia ; queria só ter uma história progressiva dos fatos que tinham determinado a narcotização . Um dos mascarados mostrou-me um copo que estava ao pé da chaise-longue sobre uma cadeira de estofo . -- Não sei , disse ele , talvez aquilo . O que havia no copo era evidentemente ópio . -- Este homem está morto , disse eu . -- Morto ! repetiu um deles , tremendo . Ergui as pálpebras do cadáver , os olhos tinham uma dilatação fixa , horrível . Eu fitei-os então um por um e disse-lhes serenamente : -- Ignoro o motivo porque vim aqui ; como médico de um doente sou inútil ; como testemunha posso ser perigoso . Um dos mascarados veio para mim e com a voz insinuante , e grave : -- Escute , crê na sua consciência que esse homem esteja morto ? -- Decerto . -- E qual pensa que fosse a causa da morte ? -- O ópio ; mas creio que devem sabe-lo melhor do que eu os que andam mascarados surpreendendo gente pela estrada de Sintra . Eu estava irritado , queria provocar algum desenlace definitivo que cortasse os embaraços da minha situação . -- Perdão , disse um , e há que tempo supõe que esse homem esteja morto ? Não respondi , pus o chapéu na cabeça e comecei a calçar as luvas . F ... junto da janela batia o pé impaciente . Houve um silêncio . Aquele quarto pesado de estofos , o cadáver estendido com reflexos lívidos na face , os vultos mascarados , o sossego lúgubre do lugar , as luzes claras , tudo dava Ãquele momento um aspeto profundamente sinistro . -- Meus senhores , disse então lentamente um dos mascarados , o mais alto , o que tinha guiado a carruagem -- compreendem perfeitamente , que se nós tivéssemos morto este homem sabíamos bem que um médico era inútil , e uma testemunha importuna ! Desconfiávamos , é claro , que estava sob a ação de um narcótico , mas queríamos adquirir a certeza da morte . Por isso os trouxemos . A respeito do crime estamos tão ignorantes como os senhores . Se não entregamos este caso á polícia , se cercámos de mistério e de violência a sua visita a esta casa , se lhes vendámos os olhos , é porque receávamos que as indagações que se pudessem fazer , conduzissem a descobrir , como criminoso ou como cúmplice , alguém que nós temos na nossa honra salvar ; se lhes damos estas explicações ... -- Essas explicações são absurdas ! gritou F. Aqui há um crime ; este homem está morto , os senhores , mascarados ; esta casa parece solitária , nós achamo-nos aqui violentados , e todas estas circunstâncias têm um mistério tão revoltante , uma feição tão criminosa , que não queremos nem pelo mais leve ato , nem pela mais involuntária assistência , ser parte neste negócio . Não temos aqui nada que fazer ; queiram abrir aquela porta . Com a violência dos seus gestos , um dos mascarados riu . -- Ah ! os senhores escarnecem ! gritou F ... E arremessando-se violentamente contra a janela , ia fazer saltar os fechos . Mas dois dos mascarados arrojaram-se poderosamente sobre ele , curvaram-no , arrastaram-no* até uma poltrona , e deixaram-no* cair , ofegante , trêmulo de desespero . Eu tinha ficado sentado e impassível . -- Meus senhores , observei , notem que enquanto o meu amigo protesta pela cólera , eu protesto pelo tédio . E acendi um charuto . -- Mas com os diabos ! tomam-nos por assassinos ! gritou um violentamente . Não se crê na honra , na palavra de um homem ! Se vocês não tiram a mascara , tiro-a eu ! É necessário que nos vejam ! Não quero , nem escondido por um pedaço de cartão , passar por assassino ! ... Senhores ! dou-lhes a minha palavra que ignoro quem matou este homem ! E fez um gesto furioso . Neste movimento , a mascara desapertou-se , descaindo . Ele voltou-se rapidamente , levando as mãos abertas ao rosto . Foi um movimento instintivo , irrefletido , de desesperação . Os outros cercaram-no , olhando rapidamente para F ... , que tinha ficado impassível . Um dos mascarados , que não tinha ainda falado , o que na carruagem viera em frente de mim , a todo o momento observava o meu amigo com receio , com suspeita . Houve um longo silêncio . Os mascarados , a um canto , falavam baixo . Eu no entanto examinava a sala . Era pequena , forrada de seda em pregas , com um tapete mole , espesso , bom para correr com os pés nús . O estofo dos móveis era de seda vermelha com uma barra verde , única e transversal , como têm na antiga heráldica os brasões dos bastardos . As cortinas das janelas pendiam em pregas amplas e suaves . Havia vasos de jaspe , e um aroma tépido e penetrante , onde se sentia a verbena e o perfume de marechala . O homem que estava morto era novo , de perfil simpático e fino , de bigode louro . Tinha o casaco e colete despidos , e o largo peitilho da camisa reluzia com botões de perolas ; a calça era estreita , bem talhada , de uma côr clara . Tinha apenas calçado um sapato de verniz ; as meias eram de seda em grandes quadrados brancos e cinzentos . Pela fisionomia , pela construção , pelo corte e côr do cabelo , aquele homem parecia inglês . Ao fundo da sala via-se um reposteiro largo , pesado , cuidadosamente corrido . Parecia-me ser uma alcova . Notei admirado que apesar do extremo luxo , de um aroma que andava no ar e uma sensação tépida que dão todos os lugares onde ordinariamente se está , se fala e se vive , aquele quarto não parecia habitado ; não havia um livro , um casaco sobre uma cadeira , umas luvas caídas , alguma destas mil pequenas coisas confusas , que demonstram a vida e os seus incidentes triviais . F ... , tinha-se aproximado de mim . -- Conheceste aquele a quem caiu a mascara ? perguntei . -- Não . Conheceste ? -- Também não . Há um que ainda não falou , que está sempre olhando para ti . Receia que o conheças , é teu amigo talvez , não o percas de vista . Um dos mascarados aproximou-se , perguntando : -- Quanto tempo pode ficar o corpo assim nesta chaise-longue ? Eu não respondi . O que me interrogou fez um movimento colérico , mas conteve-se . Neste momento o mascarado mais alto , que tinha saído , entrara , dizendo para os outros : -- Pronto ! ... Houve uma pausa ; ouvia-se o bater da pendula e os passos de F ... , que passeava agitado , com o sobrolho duro , torcendo o bigode . -- Meus senhores , continuou voltando-se para nós o mascarado -- damos-lhe a nossa palavra de honra que somos completamente estranhos a este sucesso . Sobre isto não damos explicações . Desde este momento os senhores estão retidos aqui . Imaginem que somos assassinos , moedeiros falsos ou ladrões , tudo o que quiserem . Imaginem que estão aqui pela violência , pela corrução , pela astucia , ou pela força da lei ... como entenderem ! O fato é que ficam até amanhã . O seu quarto -- disse-me -- é naquela alcova , e o seu -- apontou para F. -- lá dentro . Eu fico consigo , doutor , neste sofá . Um dos meus amigos será lá dentro o criado de quarto do seu amigo . Amanhã despedimo-nos amigavelmente e podem dar parte á polícia ou escrever para os jornais . Calou-se . Estas palavras tinham sido ditas com tranquilidade . Não respondemos . Os mascarados , em quem se percebia um certo embaraço , uma evidente falta de serenidade , conversavam baixo , a um canto do quarto , junto da alcova . Eu passeava . Numa das voltas que dava pelo quarto , vi casualmente , perto de uma poltrona , uma coisa branca semelhante a um lenço . Passei em frente da poltrona , deixei voluntariamente cair o meu lenço , e no movimento que fiz para o apanhar , lancei despercebidamente mão do objeto caído . Era efetivamente um lenço . Guardei-o , apalpei-o no bolso com grande delicadeza de tato ; era fino , com rendas , um lenço de mulher . Parecia ter bordadas uma firma e uma coroa . Neste momento deram nove horas . Um dos mascarados exclamou , dirigindo-se a F ... -- Vou mostrar-lhe o seu quarto . Desculpe-me , mas é necessário vendar-lhe os olhos . F. tomou altivamente o lenço das mãos do mascarado , cobriu ele mesmo os olhos , e saíram . Fiquei só com o mascarado alto , que tinha a voz simpática e atraente . Perguntou-me se queria jantar . Contanto lhe respondesse negativamente , ele abriu uma mesa , trouxe um cabaz em que havia algumas comidas frias . Bebi apenas um copo de água . Ele comeu . Lentamente , gradualmente , começámos a conversar quase em amizade . Eu sou naturalmente expansivo , o silêncio pesava-me . Ele era instruído , tinha viajado e tinha lido . De repente , pouco depois da uma hora da noite , sentimos na escada um andar leve e cauteloso , e logo alguém tocar na porta do quarto onde estávamos . O mascarado tinha ao entrar tirado a chave e havia-a guardado no bolso . Erguemo-nos sobressaltados . O cadáver achava-se coberto . O mascarado apagou as luzes . Eu estava aterrado . O silêncio era profundo ; ouvia-se apenas o ruido das chaves que a pessoa que estava fora ás escuras procurava introduzir na fechadura . Nós , imoveis , não respirávamos . Finalmente a porta abriu-se , alguém entrou , fechou-a , acendeu um fosforo , olhou . Então vendo-nos , deu um grito e caiu no chão , imóvel , com os braços estendidos . Amanhã , mais sossegado e claro de recordações , direi o que se seguiu . * * * * P.S. -- Uma circunstância que pode esclarecer sobre a rua e o sítio da casa : De noite senti passarem duas pessoas , uma tocando guitarra , outra cantando o fado . Devia ser meia noite . O que cantava dizia esta quadra : Não me lembra o resto . Se as pessoas que passaram , tocando e cantando , lerem esta carta , prestarão um notável esclarecimento dizendo em que rua passavam , e em frente de que casa , quando cantaram aquelas rimas populares . Hoje , mais sossegado e sereno , posso contar-lhe com precisão e realidade , reconstruindo-o do modo mais nítido , nos diálogos e nos olhares , o que se seguiu á entrada imprevista daquela pessoa no quarto onde estava o morto . O homem tinha ficado estendido no chão , sem sentidos : molhámos-lhe a testa , demos-lhe a respirar vinagre de toilete . Voltou a si , e , ainda trêmulo e pálido , o seu primeiro movimento instintivo foi correr para a janela ! O mascarado , porém , tinha-o envolvido fortemente com os braços , e arremessou-o com violência para cima de uma cadeira , ao fundo do quarto . Tirou do seio um punhal , e disse-lhe com voz fria e firme : -- Se faz um gesto , se dá um grito , se tem um movimento , varo-lhe o coração ! -- Vá , vá , disse eu , breve ! responda ... Que quer ? Que veio fazer aqui ? Ele não respondia , e com a cabeça tomada entre as mãos , repetia maquinalmente : -- Está perdido tudo ! Está tudo perdido ! -- Fale , disse-lhe o mascarado , tomando-lhe rudemente o braço , que veio fazer aqui ? Que é isto ? como soube ? ... A sua agitação era extrema : luziam-lhe os olhos entre o cetim negro da mascara . -- Que veio fazer aqui ? repetiu agarrando-o pelos ombros e sacudindo-o como um vime . -- Escute ... disse o homem convulsivamente . Vinha saber ... disseram-me ... Não sei . Parece que já cá estava a polícia ... queria ... saber a verdade , indagar quem o tinha assassinado ... vinha tomar informações ... -- Sabe tudo ! disse o mascarado , aterrado , deixando pender os braços . Eu estava surpreendido ; aquele homem conhecia o crime , sabia que havia ali um cadáver ! Só ele o sabia , porque deviam ser decerto absolutamente ignorados aqueles sucessos lúgubres . Por consequência quem sabia onde estava o cadáver , quem tinha uma chave da casa , quem vinha alta noite ao lugar do assassinato , quem tinha desmaiado vendo-se surpreendido , estava positivamente envolvido no crime ... -- Quem lhe deu a chave ? perguntou o mascarado . O homem calou-se . -- Quem lhe falou nisto ? Calou-se . -- Que vinha fazer , de noite , ás escondidas , a esta casa ? Calou-se . -- Mas como sabia deste absoluto segredo , de que apenas temos conhecimento nós ? ... E voltando-se para mim , para me advertir com um gesto impercetível do expediente que ia tomar , acrescentou : -- ... nós e o senhor comissário . O desconhecido calou-se . O mascarado tomou-lhe o paletó e examinou-lhe os bolsos . Encontrou um pequeno martelo e um maço de pregos . -- Para que era isto ? -- Trazia naturalmente isso , queria concertar não sei quê , em casa ... um caixote ... O mascarado tomou a luz , aproximou-se do morto , e por um movimento rápido , tirando a manta de viagem , descobriu o corpo : a luz caiu sobre a lívida face do cadáver . -- Conhece este homem ? O desconhecido estremeceu levemente e pousou sobre o morto um longo olhar , demorado e atento . Eu em seguida cravei os meus olhos , com uma insistência implacável nos olhos dele , dominei-o , disse-lhe baixo , apertando-lhe a mão : -- Porque o matou ? -- Eu ? gritou ele . Está doido ! Era uma resposta clara , franca , natural , inocente . -- Mas porque veio aqui ? observou o mascarado , como soube do crime ? Como tinha a chave ? Para que era este martelo ? Quem é o senhor ? Ou dá explicações claras , ou daqui a uma hora está no segredo , e daqui a um mês nas galés . Chame os outros , disse ele para mim . -- Um momento , meus senhores , confesso tudo , digo tudo ! gritou o desconhecido . Esperámos ; mas retraindo a voz , e com uma intonação demorada , como quem dita : -- A verdade , prosseguiu , é esta : encontrei hoje de tarde um homem desconhecido , que me deu uma chave e me disse : sei que é Fulano , que é destemido , vá a tal rua , n.o tantos ... Eu tive um movimento avido , curioso , interrogador . Ia enfim saber onde estava ! Mas o mascarado com um movimento impetuoso pôs-lhe a mão aberta sobre a boca , comprimindo-lhe as faces , e com uma voz surda e terrível : -- Se diz onde estamos , mato-o . O homem fitou-nos : compreendeu evidentemente que eu também estava ali , sem saber onde , por um mistério , que os motivos da nossa presença eram também suspeitos , e que por consequência não eramos empregados da polícia . Esteve um momento calado e acrescentou : -- Meus senhores , esse homem fui eu que o matei , que querem mais ? Que fazem aqui ? -- Está preso , gritou o mascarado . Vá chamar os outros , doutor . É o assassino . -- Esperem , esperem , gritou ele , não compreendo ! Quem são os senhores ? Supus que eram da polícia ... São talvez ... disfarçam para me surpreender ! Eu não conheço aquele homem , nunca o vi . Deixem-me sair ... Que desgraça ! -- Este miserável há de falar , ele tem o segredo ! bradava o mascarado . Eu tinha-me sentado ao pé do homem . Queria tentar a doçura , a astucia . Ele tinha serenado , falava com inteligência e com facilidade . Disse-me que se chamava A. M. C. , que era estudante de medicina e natural de Viseu . O mascarado escutava-nos , silencioso e atento . Eu falando baixo com o homem , tinha-lhe pousado a mão sobre o joelho . Ele pedia-me que o salvasse , chamava-me seu amigo . Parecia-me um rapaz exaltado , dominado pela imaginação . Era fácil surpreender a verdade dos seus atos . Com um modo íntimo , confidencial , fiz-lhe perguntas aparentemente sinceras e simples , mas cheias de traição e de análise . Ele , com uma boa fé inexperiente , a todo o momento se descobria , se denunciava . -- Ora , disse-lhe eu , uma coisa me admira em tudo isto . -- Qual ? -- É que não tivesse deixado sinais o arsénico ... -- Foi ópio , interrompeu ele , com uma simplicidade infantil . Ergui-me de salto . Aquele homem , se não era o assassino , conhecia profundamente todos os segredos do crime . -- Sabe tudo , disse eu ao mascarado . -- Foi ele , confirmou o mascarado convencido . Eu tomei-o então de parte , e com uma franqueza simples : -- A comédia acabou , meu amigo , tire a sua mascara , apertemo-nos a mão , dêmos parte á polícia . A pessoa que o meu amigo receava descobrir , não tem decerto que ver neste negócio . -- Decerto que não . Este homem é o assassino . E voltando-se para ele com um olhar terrível , que flamejava debaixo da mascara : -- E porque o matou ? -- Matei-o ... respondeu o homem . -- Matou-o , disse o mascarado com uma lentidão de voz que me aterrou , para lhe roubar 2:300 libras em bank-notes , que aquele homem tinha no bolso , dentro de uma bilheteira em que estavam monogramadas duas letras de prata , que eram as iniciais do seu nome . -- Eu ! ... para o roubar ! Que infâmia ! Mente ! Eu não conheço esse homem , nunca o vi , não o matei ! -- Que malditas contradições ! gritou o mascarado exaltado . A.M.C. objetou lentamente : -- O senhor que está mascarado ... este homem não era seu amigo , o único amigo que ele conhecia em Lisboa ? -- Como sabe ? gritou repentinamente o mascarado , tomando-lhe o braço . Fale , diga . -- Por motivos que devo ocultar , continuou o homem , sabia que este sujeito , que é estrangeiro , que não tem relações em Lisboa , que chegou há poucas semanas , vinha a esta casa ... -- É verdade , atalhou o mascarado . -- Que se encontrava aqui com alguém ... -- É verdade , disse o mascarado . Eu , pasmado , olhava para ambos , sentia a lucidez das ideias perturbada , via aparecer uma nova causa imprevista , temerosa e inexplicável . -- Além disso , continuou o homem desconhecido , há de saber também que um grande segredo ocupava a vida deste infeliz ... -- É verdade , é verdade , dizia o mascarado absorto . -- Pois bem , ontem uma pessoa , que casualmente não podia sair de casa , pediu-me que viesse ver se o encontrava ... Nós esperávamos , petrificados , o fim daquelas confissões . -- Encontrei-o morto ao chegar aqui . Na mão tinha este papel . E tirou do bolso meia folha de papel de carta , dobrada . -- Leia , disse ele ao mascarado . Este aproximou o papel da luz , deu um grito , caiu sobre uma cadeira com os braços pendentes , os olhos cerrados . Ergui o papel , li : I declare that I have killed myself with opium . ( Declaro que me matei com ópio ) . Fiquei petrificado . O mascarado dizia com a voz absorta como num sonho : -- Não é possível . Mas é a letra dele , é ! Ah ! que mistério , que mistério ! Vinha a amanhecer . Sinto-me fatigado de escrever . Quero aclarar as minhas recordações . Até amanhã . Peço-lhe agora toda a sua atenção para o que tenho de contar-lhe . A madrugada vinha . Sentiam-se já os ruídos da povoação que desperta . A rua não era macadamizada , porque eu sentia o rodar dos carros sobre a calçada . também não era uma rua larga , porque o eco das carroças era profundo , cheio e próximo . Ouvia pregões . Não sentia carruagens . O mascarado tinha ficado numa prostração extrema , sentado , imóvel , com a cabeça apoiada nas mãos . O homem que tinha dito chamar-se A. M. C. estava encostado no sofá , com os olhos cerrados , como adormecido . Eu abri as portas da janela : era dia . Os transparentes e as persianas estavam corridos . Os vidros eram foscos como os dos globos dos candeeiros . Entrava uma luz lúgubre , esverdeada . -- Meu amigo , disse eu ao mascarado , é dia . Coragem ! é necessário fazer o exame do quarto , móvel por móvel . Ele ergueu-se e correu o reposteiro do fundo . Vi uma alcova , com uma cama , e á cabeceira uma pequena mesa redonda , coberta com um pano de veludo verde . A cama não estava desmanchada , cobria-a um édredon de cetim encarnado . Tinha um só travesseiro largo , alto e fofo , como se não usam em Portugal ; sobre a mesa estava um cofre vazio e uma jarra com flores murchas . Havia um lavatório , escovas , sabonetes , esponjas , toalhas dobradas e dois frascos esguios de violetas de Parma . Ao canto da alcova estava uma bengala grossa com estoque . Na disposição dos objetos na sala não havia nenhuma particularidade significativa . O exame dela dava na verdade a persuasão de que se estava numa casa raramente habitada , visitada a espaços apenas , sendo um lugar de entrevistas , e não um interior regular . A casaca e o colete do morto estavam sobre uma cadeira ; um dos sapatos via-se no chão , ao pé da chaise-longue ; o chapéu achava-se sobre o tapete , a um canto , como arremessado . O paletó estava caído ao pé da cama . Procuraram-se todos os bolsos dos vestidos do morto : não se encontrou carteira , nem bilhetes , nem papel algum . Na algibeira do colete estava o relógio , de ouro encobrado , sem firma , e uma pequena bolsa de malha de ouro , com dinheiro miúdo . Não se lhe encontrou lenço . Não se pôde averiguar em que tivesse sido trazido de fora o ópio ; não apareceu frasco , garrafa , nem papel ou caixa em que tivesse estado , em líquido ou em pó ; e foi a primeira dificuldade que no meu espírito se apresentou contra o suicídio . Perguntei se não havia na casa outros quartos que comunicassem com aquele aposento e que devêssemos visitar . -- Há , disse o mascarado , mas este prédio tem duas entradas e duas escadas . Ora aquela porta , que comunica com os restantes quartos , encontrámos-la fechada pelo outro lado quando chegámos aqui . Logo este homem não saiu desta sala depois que subiu da rua e antes de morrer ou de ser morto . Como tinha então trazido o ópio ? Ainda quando o tivesse já no quarto , o frasco , ou qualquer invólucro que contivesse o narcótico devia aparecer . Não era natural que tivesse sido aniquilado . O copo em que ficara o resto da água opiada , ali estava . Um indício mais grave parecia destruir a hipótese do suicídio : não se encontrou a gravata do morto . Não era natural que ele a tivesse tirado , que a tivesse destruído ou lançado fora . Não era também racional que tendo vindo Ãquele quarto , esmeradamente vestido como para uma visita cerimoniosa , não trouxesse gravata . Alguém pois tinha estado naquela casa , ou pouco antes da morte ou ao tempo dela . Era essa pessoa que tinha para qualquer fim tomado a gravata do morto . Ora a presença de alguém naquele quarto , coincidindo com a estada do suposto suicidado ali , tirava a possibilidade ao suicídio e dava presunções ao crime . Aproximámo-nos da janela , examinámos detidamente o papel em que estava escrita a declaração do suicida . -- A letra é dele , parece-me indubitável que é -- disse o mascarado -- mas na verdade , não sei porque , não lhe acho a feição usual da sua escrita ! Observou-se o papel escrupulosamente ; era meia folha de escrever cartas . Notei logo no alto da página a impressão muito apagada , muito indistinta , de uma firma e de uma coroa , que devia ter estado gravada na outra meia folha . Era portanto papel marcado . Fiz notar esta circunstância ao mascarado : ele ficou surpreendido e confuso . No quarto não havia papel , nem tinteiro , nem penas . A declaração pois tinha sido escrita e preparada fora . -- Eu conheço o papel de que ele usava em casa , disse o mascarado ; não é deste ; não tinha firma , não tinha coroa . Não podia usar doutro . A impressão da marca não era bastante distinta para que se percebesse qual fosse a firma e qual a coroa . Ficava , porém , claro que a declaração não tinha sido escrita nem em casa dele , onde não havia daquele papel , nem naquele quarto , onde não havia papel algum , nem tinteiro , nem um livro , um buvard , um lápis . Teria sido escrita fora , na rua , ao acaso ? Em casa dalguém ? Não , porque ele não tinha em Lisboa , nem relações íntimas , nem conhecimento de pessoas cujo papel fosse marcado com coroa . Teria sido feita numa loja de papel ? Não , porque o papel que se vende vulgarmente nas lojas não tem coroas . Seria a declaração escrita nalguma meia folha branca tirada de uma velha carta recebida ? Não parecia também natural , porque o papel estava dobrado ao meio e não tinha os vincos que dá o envelope . Demais a folha tinha um aroma de pós de marechala , o mesmo que se sentia , suavemente embebido no ar do quarto em que estávamos . Além disso , pondo o papel diretamente sobre a claridade da luz , distingui o vestígio de um dedo polegar , que tinha sido assente sobre o papel no momento de estar suado ou húmido , e tinha embaciado a sua brancura lisa e acetinada , havendo deixado uma impressão exata . Ora este dedo parecia delgado , pequeno , feminil . Este indício era notavelmente vago , mas o mascarado tinha a esse tempo encontrado um , profundamente eficaz e seguro . -- Este homem , notou ele , tinha o costume invariável , mecânico , de escrever , abreviando-a , a palavra that , deste modo : dois T separados por um traço . Esta abreviatura era só dele , original , desconhecida . Nesta declaração , aliás pouco inglesa , a palavra that acha-se escrita por inteiro . Voltando-se então para M. C. : -- Porque não apresentou logo este papel ? perguntou o mascarado . Esta declaração foi falsificada . -- Falsificada ! exclamou o outro , erguendo-se com sobressalto ou com surpresa . -- Falsificada ; feita para encobrir o assassinato : tem todos os indícios disso . Mas o grande , o forte , o positivo indício é este : onde estão 2:300 libras em notas de Inglaterra , que este homem tinha no bolso ? M. C. olhou-o pasmado , como um homem que acorda de um sonho . -- Não aparecem , porque o senhor as roubou . Para as roubar matou este homem . Para encobrir o crime falsificou este bilhete . -- Senhor , observou gravemente A.M.C. , fala-me em 2:300 libras : dou-lhe a minha palavra de honra que não sei a que se quer referir . Eu então disse lentamente pondo os olhos com uma perscrutação demorada sobre as feições do mancebo : -- Esta declaração é falsa , evidentemente , não percebo o que quer dizer este novo negócio das 2:300 libras , de que só agora se fala ; o que vejo é que este homem foi envenenado : ignoro se foi o senhor , se foi outro que o matou , o que sei é que evidentemente o cúmplice é uma mulher . -- Não pode ser , doutor ! , gritou o mascarado . É uma suposição absurda . -- Absurda ! ? ... E este aposento , este quarto forrado de seda , fortemente perfumado , carregado de estofos , iluminado por uma claridade baça coada por vidros foscos ; a escada coberta com um tapete ; um corrimão engenhado com uma corda de seda ; ali aos pés daquela volteriana aquele tapete feito de uma pele de urso , sobre a qual me parece que estou vendo o vestígio de um homem prostrado ? Não vê em tudo isto a mulher ? Não é esta evidentemente uma casa destinada a entrevistas de amor ? ... -- Ou a qualquer outro fim . -- E este papel ? este papel de marca pequeníssima , do que as mulheres compram em Paris , na casa Maquet , e que se chama papel da Imperatriz ? -- Muitos homens o usam ! -- Mas não o cobrem como este foi coberto , com um sachet em que havia o mesmo aroma que se respira no ambiente desta casa . Este papel pertence a uma mulher , que examinou a falsificação que ele encerra , que assistiu a ela , que se interessava na perfeição com que a fabricassem , que tinha os dedos húmidos , deixando no papel um vestígio tão claro ... O mascarado calava-se . -- E um ramo de flores murchas , que está ali dentro ? um ramo que examinei e que é formado por algumas rosas , presas com uma fita de veludo ? A fita está impregnada do perfume da pomada , e descobre-se-lhe um pequeno vinco , como o de uma unhada profunda , terminando em cada extremidade por um buraquinho ... É o vestígio flagrante que deixou no veludo um gancho de segurar o cabelo ! -- Esse ramo podiam ter-lhe&lhes+o dado , podia tê-lo trazido ele mesmo de fora . -- E este lenço que encontrei ontem debaixo de uma cadeira ? E atirei o lenço para cima da mesa . O mascarado pegou nele avidamente , examinou-o e guardou-o . M. C. olhava pasmado para mim , e parecia aniquilado pela dura logica das minhas palavras . O mascarado ficou por alguns momentos silencioso ; depois com voz humilde , quase suplicante : -- Doutor , doutor , por amor de Deus ! esses indícios não provam . Este lenço , de mulher indubitavelmente , estou convencido que é o mesmo que o morto trazia no bolso . É verdade : não se lembra que não lhe encontrámos lenço ? -- E não se lembra também que não lhe encontrámos gravata ? O mascarado calou-se sucumbido . -- No fim de contas eu não sou aqui juiz , nem parte , exclamei eu . Deploro vivamente esta morte , e falo nisto unicamente pelo pesar e pelo horror que ela me inspira . Que este jovem se matasse ou que fosse morto , que caísse ás mãos de uma mulher ou ás mãos de um homem , importa-me pouco . O que devo dizer-lhe é que o cadáver não pode ficar por muito mais tempo insepulto : é preciso que o enterrem hoje . Mais nada . É dia . O que desejo é sair . -- Tem razão , vai sair já , cortou o mascarado . E em seguida , tomando M. C. pelo braço , disse-me : -- Um momento ! Eu volto já ! E saíram ambos pela porta que comunicava com o interior da casa , fechando-a á chave pelo outro lado . Fiquei só , passeando agitadamente . A luz do dia tinha feito surgir no meu espírito uma multidão de pensamentos inteiramente novos e diversos daqueles que me tinham ocupado durante a noite . Há pensamentos que não vivem senão no silêncio e na sombra , pensamentos que o dia desvanece e apaga ; há outros que só surgem ao clarão do sol . Eu sentia no cérebro uma multidão de ideias estremunhadas , que á luz repentina da madrugada voejavam em turbilhão como um bando de pombas amedrontadas pelo estridor de um tiro . Maquinalmente entrei na alcova , sentei-me na cama , encostei um braço no travesseiro . Então , não sei como , olhei , reparei , vi , com estranha comoção , sobre a alvura do travesseiro , preso num botão de madrepérola , um longo cabelo louro , um cabelo de mulher . Não me atrevi logo a tocar-lhe . Pus-me a contempla-lo , avida e longamente . -- Era então certo ! aí estás pois ! encontro-te finalmente ! ... Pobre cabelo ! apieda-me a simplicidade inocente com que te ficaste aí , patente , descuidado , preguiçoso , languido ! Podes ter maldade , podes ter malvadez , mas não tens malicia , não tens astucia . Tenho-te nas mãos , fito-te com os meus olhos ; não foges , não estremeces , não coras ; dás-te , consentes-te , facilitas-te , meiga , doce , confiadamente ... E , no entanto , ténue , exígua , quase microscópica , és uma parte da mulher que eu adivinhava , que eu antevia , que eu procuro ! É ela autora do crime ? é inteiramente inocente ? é apenas cúmplice ? Não sei , nem tu mo poderás dizer ? De repente , tendo continuado a considerar o cabelo , por um processo de espírito inexplicável , pareceu-me reconhecer de súbito aquele fio louro , reconhece-lo em tudo : na sua côr , na sua nuance especial , no seu aspeto ! Lembrou-me , apareceu-me então a mulher a quem aquele cabelo pertencia ! Mas quando o nome dela me veio insensivelmente aos lábios , disse comigo : -- Ora ! por um cabelo ! que loucura ! E não pude deixar de rir . Esta carta vai já demasiadamente longa . Continuarei amanhã . Contei-lhe ontem como inesperadamente havia encontrado á cabeceira da cama um cabelo louro . Prolongou-se a minha dolorosa surpresa . Aquele cabelo luminoso , languidamente enrolado , quase casto , era o indício de um assassinato , de uma cumplicidade pelo menos ! Esqueci-me em longas conjeturas , olhando , imóvel , aquele cabelo perdido . A pessoa a quem ele pertencia era loura , clara decerto , pequena , mignone , porque o fio de cabelo era delgadíssimo , extraordinariamente puro , e a sua raiz branca parecia prender-se aos tegumentos cranianos por uma ligação ténue , delicadamente organizada . O carater dessa pessoa devia ser doce , humilde , dedicado e amante , porque o cabelo não tinha ao contato aquela aspereza cortante que oferecem os cabelos pertencentes a pessoas de temperamento violento , altivo e egoísta . Devia ter gostos simples , elegantemente modestos a dona de tal cabelo , já pelo impercetível perfume dele , já porque não tinha vestígios de ter sido frisado , ou caprichosamente enrolado , domado em penteados fantasiosos . Teria sido talvez educada em Inglaterra ou na Alemanha , porque o cabelo denotava na sua extremidade ter sido espontado , habito das mulheres do norte , completamente estranho ás meridionais , que abandonam os seus cabelos á abundante espessura natural . Isto eram apenas conjeturas , deduções da fantasia , que nem constituem uma verdade científica , nem uma prova judicial . Esta mulher , que eu reconstruia assim pelo exame de um cabelo , e que me aparecia doce , simples , distinta , finamente educada , como poderia ter sido o protagonista cheio de astucia daquela oculta tragedia ? Mas conhecemos nós porventura a secreta logica das paixões ? do que eu estava perfeitamente convencido é que havia uma mulher como cúmplice . Aquele homem não se tinha suicidado . Não estava decerto só , no momento em que bebera o ópio . O narcótico tinha-lhe sido dado , sem violência evidentemente , por ardil ou engano , num copo de água . A ausência do lenço , o desaparecimento da gravata , a colocação do fato , aquele cabelo louro , uma cova recentemente feita no travesseiro pela pressão de uma cabeça , tudo indicava a presença dalguém naquela casa durante a noite da catástrofe . Por consequência : impossibilidade de suicídio , verosimilhança de crime . O lenço achado , o cabelo , a disposição da casa , ( evidentemente destinada a entrevistas íntimas ) aquele luxo da sala , aquela escada velha , devastada , coberta com um tapete , a corda de seda que eu tinha sentido ... tudo isto indicava a presença , a cumplicidade de uma mulher . Qual era a parte dela naquela aventura ? Não sei . Qual era a parte de A. M. C. ? Era o assassino , o cúmplice , o ocultador do cadáver ? Não sei . M. C. não podia ser estranho a essa mulher . Não era decerto um cúmplice tomado exclusivamente para o crime . Para dar ópio num copo de água não é necessário chamar um assassino assalariado . Tinham por consequência um interesse comum . Eram amantes ? Eram casados ? Eram ladrões ? E acudia-me á memória aquela inesperada referencia a 2:300 libras que de repente me tinha aparecido como um novo mistério . Tudo isto eram conjeturas fugitivas . Para que hei de repetir eu todas as ideias que se formavam e que se desmanchavam no meu cérebro , como nuvens num céu varrido pelo vento ? Há decerto na minha hipótese ambiguidades , contradições e fraquezas , há nos indícios que colhi lacunas e incoerências : muitas coisas significativas me escaparam por certo , ao passo que muitos pormenores inexpressivos se me gravaram na memória , mas eu estava num estado mórbido de perturbação , inteiramente desorganizado por aquela aventura , que inesperadamente , com o seu cortejo de sustos e mistérios , se instalara na minha vida . O senhor redator , que julga de ânimo frio , os leitores , que sossegadamente , na sua casa , leem esta carta , poderão melhor combinar , estabelecer deduções mais certas , e melhor aproximar-se pela indução e pela logica da verdade oculta . Eu achava-me só havia uma hora , quando o mascarado alto entrou , trazendo o chapéu na cabeça e no braço uma capa de casimira alvadia . -- Vamos , disse ele . Tomei calado o meu chapéu . -- Uma palavra antes , disse ele . Em primeiro lugar dê-me a sua palavra de honra que ao subir agora á carruagem não terá um gesto , um grito , um movimento que me denuncie . Dei a minha palavra . -- Bem ! continuou , agora quero dizer-lhe mais : aprecio a dignidade do seu carater , a sua delicadeza . me-doloroso que entre nós tivesse em qualquer tempo motivos de desdém , ou necessidades de vingança . Por isso afirmo-lhe : sou perfeitamente estranho a este sucesso . Mais tarde talvez entregue este caso á polícia . por agora sou eu polícia , juiz e talvez carrasco . Esta casa é um tribunal e um carcere . Vejo que o doutor leva daqui a desconfiança de que uma mulher se envolveu neste crime : não o suponha , não podia ser . No entanto , se alguma vez lá fora falar , a respeito deste caso , em alguma pessoa determinada e conhecida , dou-lhe a minha palavra de honra , doutor , que o mato , sem remorso , sem repugnância , naturalmente , como corto as unhas . Dê-me agora o seu braço . Ah ! esquecia-me , meu caro , que os seus olhos estão destinados a ter estas lunetas de cambraia . E , rindo , apertou-me o lenço nos olhos . Descemos a escada , entrámos na carruagem , que tinha os stores fechados . Não pude ver quem guiava os cavalos porque só dentro do coupé achei a vista livre . O mascarado sentou-se ao pé de mim . Via-lhe uma pequena parte da face tocada da luz . A pele era fina , pálida , o cabelo castanho , levemente anelado . A carruagem seguiu um caminho , que pelos acidentes da estrada , pela diferença de velocidade indicando aclives e declives , pelas alternativas de macadam e de calçada , me parecia o mesmo que tínhamos seguido na véspera , no começo da aventura . Rodámos finalmente na estrada larga . -- Ah , doutor ! , dizia o mascarado com desenfado , sabe o que me aflige ? É que o vou deixar na estrada , só , a pé ! Não se pode remediar isto . Mas não se assuste . O Cacem fica a dois passos , e aí encontra facilmente condução para Lisboa . E ofereceu-me charutos . Depois de algum tempo , em que fomos na maior velocidade , a carruagem parou . -- Chegámos , disse o mascarado . Adeus , doutor . E abriu por dentro a portinhola . -- Obrigado ! acrescentou . Creia que o estimo . Mais tarde saberá quem sou . Permita Deus que ambos tenhamos no aplauso das nossas consciências e no prazer que dá o cumprimento de um grande dever o derradeiro desenlace da CENA a que assistiu . Restituo-lhe a mais completa liberdade . Adeus ! Apertámo-nos a mão , eu saltei . Ele fechou a portinhola , abriu os stores e estendendo-me para fora um pequeno cartão : -- Guarde essa lembrança , disse , é o meu retrato . Eu , de pé , na estrada , junto das rodas , tomei a fotografia avidamente , olhei . O retrato estava também mascarado ! -- É um capricho do ano passado , depois de um baile de mascaras ! gritou ele , estendendo a cabeça pela portinhola da carruagem que começava a rodar a trote . Via-a afastando-se na estrada . O cocheiro tinha o chapéu derrubado , uma capa traçada sobre o rosto . Quer que lhe diga tudo ? Olhei para a carruagem com melancolia ! Aquela carruagem levava consigo um segredo inexplicável . Nunca mais veria aquele homem . A aventura desvanecia-se , tinha findado tudo . O pobre morto , esse lá ficava , estendido no sofá , que lhe servia de sarcófago ! Achei-me só , na estrada . A manhã estava nevoada , serena , melancólica . Ao longe distinguia ainda a carruagem . Um camponês apareceu vindo do lado oposto Ãquele por onde ele desaparecia . -- Onde fica o Cacem ? -- De lá venho eu , senhor . Sempre pela estrada , a meio quarto de légua . A carruagem , pois , tinha-se dirigido para Sintra . Cheguei ao Cacem fatigado . Mandei um homem a Sintra , á quinta de F. , saber se tinham chegado os cavalos ; pedi para Lisboa uma carruagem , e esperei-a a uma janela , por dentro dos vidros , olhando tristemente para as árvores e para os campos . Havia meia hora que estava ali , quando vi passar a toda a brida um fogoso cavalo . Pude apenas distinguir entre uma nuvem de pó o vulto quase indistinto do cavaleiro . Ia para Lisboa embuçado num a capa alvadia . Tomei informações a respeito da carruagem que passara na véspera com+nós . Havia contradições sobre a côr dos cavalos . Voltou de Sintra o homem que eu ali mandara , dizendo que na quinta de F. tinham sido entregues os cavalos por um criado do campo , o qual dissera que os senhores ao pé do Cacem , tinham encontrado um amigo que os levara consigo num a caleche para Lisboa . Daí a momentos chegou a minha carruagem . Voltei a Lisboa , corri a casa de F. O criado tinha recebido este bilhete a lápis : Não esperem por mim estes dias . Estou bom . A quem me procurar , que fui para Madrid . Procurei-o debalde por toda a Lisboa . Comecei a inquietar-me . F. estava evidentemente retido . Receei por mim . Lembraram-me as ameaças do mascarado , vagas mas resolutas . Na noite seguinte , ao recolher para casa , notei que era seguido . Entregar á polícia este negócio , tão vago e tão incompleto como ele é , seria tornar-me o denunciante de uma quimera . Sei que , em resultado das primeiras noticias que lhe dei , o governador civil de Lisboa oficiou ao administrador -- Sintra convidando-o a meter o esforço da sua polícia no descobrimento deste crime . Foram inúteis estas providências . Assim devia ser . O sucesso que constitui o assunto destas cartas está pela sua natureza fora da alçada das pesquizas policiais . Nunca me dirigi ás autoridades , quis simplesmente valer-me do público , escolhendo para isso as colunas populares do seu periódico . Resolvi homiziar-me , receando ser vítima de uma emboscada . São óbvias , depois disto , as rasões porque lhe oculto o meu nome : assignar estas linhas seria patentear-me ; não seria esconder-me , como quero . Do meu impenetrável retiro lhe dirijo esta carta . É manhã . Vejo a luz do sol nascente através das minhas gelosias . Oiço os pregões dos vendedores matinais , os chocalhos das vacas , o rodar das carruagens , o murmúrio alegre da povoação que se levanta depois de um sono despreocupado e feliz ... Invejo aqueles que não tendo a fatalidade de secretas aventuras passeiam , conversam , moirejam na rua . Eu -- pobre de mim ! -- estou encarcerado por um mistério , guardado por um segredo ! P. S. Acabo de receber uma longa carta de F. Esta carta , escrita há dias , só hoje me veio á mão . Sendo-me enviada pelo correio , e tendo-me eu ausentado da casa em que vivia sem dizer para onde me mudava , só agora pude haver essa interessante missiva . aí tem , senhor redator , copiada por mim , a primeira parte dessa carta , da qual depois de amanhã lhe enviarei o resto . Publique-a , se quiser . É mais do que um importante esclarecimento neste obscuro sucesso ; é um vestígio luminoso e profundo . F ... é um escritor público , e descobrir pelo estilo um homem é muito mais fácil do que reconstruir sobre um cabelo a figura de uma mulher . É gravíssima a situação do meu amigo . Eu , aflito , cuidadoso , hesitante , perplexo , não sabendo o que faça , não podendo deliberar pela reflexão , rendo-me á decisão do acaso , e elimino , juntamente com a letra do autógrafo , as duas palavras que constituem o nome que firma essa longa carta . Não posso , não devo , não me atrevo , não ouso dizer mais . Poupem-me a uma derradeira declaração , que me repugna . Adivinhem ... se poderem . Adeus ! SEGUNDA PARTE INTERVENÇÃO DE Z. Nota do Diário de Noticias . -- No original da carta publicada ontem havia algumas palavras a lápis , nas quais só fizemos reparo depois de impresso o jornal . Essas palavras continham esta observação : A fotografia do mascarado foi feita em casa de Henrique Nunes , rua das Chagas , Lisboa . Talvez aí possa haver notícia do sujeito fotografado . Antes de darmos á estampa a longa carta de F ... , cuja primeira parte nos foi ontem enviada pelo médico , é dever nosso tornar conhecida uma outra importantíssima que recebemos pela posta interna , assignada com a inicial Z. , e que temos no nosso poder há já três dias . Esta carta , que tão estreitamente vem prender-se na história dos sucessos que constituem o assunto desta narrativa , é a seguinte : Senhor redator do Diário de Noticias . -- Lisboa , 30 -- julho de 1870 . -- Escrevo-lhe profundamente indignado . comecei a ler , como quase toda a gente em Lisboa , as cartas publicadas na sua folha , em que o doutor anonimo conta o caso que essa redação intitulou O mistério da Estrada de Sintra . Interessava-me essa narrativa e segui-a com a curiosidade despreocupada que se liga a um canard fabricado com engenho , a um romance á semelhança dos tugs e de alguns outros do mesmo género com que a veia imaginosa dos fantasistas franceses e americanos vem de vez em quando acordar a atenção da Europa para um sucesso estupendo . A narração do seu periódico tinha sobre as restantes que tenho lido o mérito original de se passarem os sucessos ao tempo que se vão lendo , de serem anonimas as personagens e de estar tão secretamente encoberta a mola principal do enredo , que nenhum leitor poderia contestar com provas a veracidade do caso portentosamente romanesco , que o autor da narrativa se lembrara de lançar de repente ao meio da sociedade prosaica , ramerraneira , simples e honesta em que vivemos . Ia-me parecendo ter diante de mim o ideal mais perfeito , o tipo mais acabado do roman feuileton , quando inesperadamente encontro no folhetim publicado hoje as iniciais de um nome de homem -- A. M. C. -- acrescentando-se que a pessoa designada por estas letras é estudante de medicina e natural de Viseu . Eu tenho um amigo querido com aquelas iniciais no seu nome . É justamente estudante de medicina e natural de Viseu ! O acaso não podia reunir tudo isto . Havia por tanto o intuito de fazer cobardemente uma insinuação infamíssima . Isto não é lícito a romancista nenhum . A primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tédio . Saindo de casa pouco depois da leitura do seu periódico , procurei o meu amigo para lhe ler a passagem que lhe dizia respeito , e pôr-me á sua disposição no caso que precisasse de mim para pedir quanto antes á redação do Diário de Noticias a satisfação de honra , que homens de educação e de brio não poderiam decerto recusar a semelhante agravo . Em casa do meu amigo acabo porém de saber , cheio de confusão e de surpresa , que ele desapareceu e que é ignorado o seu destino ! Este desaparecimento e a coincidência achada na carta do doutor levam-me desgraçadamente a acreditar que por estranhas fatalidades o meu infeliz amigo se acha involuntariamente envolvido neste tenebroso negócio . A data do desaparecimento dele condiz perfeitamente com a que encontro na carta do seu correspondente . É claro que há pois em volta da pessoa de A. M. C. , uma intriga real , uma emboscada talvez , uma traição . Serei tristemente obrigado a ter por verídica , no todo ou em parte , a notícia que leio na sua folha ? Julgo do meu dever assegurar o seguinte : Não sei o que o meu amigo A. M. C. ia fazer alta noite a essa casa desconhecida , tendo uma chave dela , martelo e pregos . Não sei porque se declarou autor do assassinato , negando-o depois . Ignoro a íntima verdade destas contradições . Mas o que sei , aquilo de que posso já dar testemunho , e não só eu , mas amigos , mas numerosas pessoas , é que na noite que se mostra ter sido a do assassinato ele esteve , até quase de madrugada , na minha casa , conversando , rindo , bebendo cerveja . Saiu talvez ás três horas da noite . Declaro também , e isto pode ser igualmente apoiado por seguras testemunhas : que ás nove horas da manhã do dia seguinte estive no quarto dele . Ainda dormia , acordou sobressaltado á minha voz , e voltou a adormecer em quanto eu procurava entre os seus livros um volume de Taine . As donas da casa que o hospedam disseram-me que ele entrara pela madrugada . -- Ali pela volta das três e meia , conjeturavam elas . Ora da minha casa , donde saiu ás três , até casa dele , onde entrou ás três e meia , o caminho que é longo , ocupa justamente este espaço de tempo . Por consequência , respondam : quando cometeu ele o crime ? O emprego do seu tempo está todo justificado : das nove da noite até á madrugada na minha casa , numa conversa jovial e íntima ; da madrugada até ás nove , num sono pacífico na sua própria casa . Resta unicamente a meia hora do caminho , da qual não há testemunhas . É crível que em meia hora pudesse ir alguém a essa casa , preparar ópio , faze-lo beber a um homem , falsificar uma declaração e vir sossegadamente dormir ? Tem isto logica ? Demais o crime foi cometido numa casa , o ópio foi deitado num copo de água , dado traiçoeiramente . O cadáver estava meio despido . Tudo isto indica que entre o assassino e o desgraçado houve uma entrevista , tinham conversado intimamente , tinham rido decerto ; o que depois morreu tinha talvez calor , pôs-se livremente , tirou o casaco , contaram porventura anedotas , e num momento de sede , o ópio foi dado num copo de água . E tudo isto se faz em meia hora ! em meia hora ! Devendo , meus senhores , descontar-se desta meia hora o tempo que vai da minha casa á casa do crime , e daí a casa de A. M. C. ! Pode isto ser ? Agora outro argumento : Eu conheço A. M. C. : o seu carater é digno , impecável ; o seu coração é compassivo e simples ; a sua vida é laboriosa e isolada ; não existe nela nem mistério , nem aventura , nem patético : estava para casar , sem romance , trivialmente . Eu sabia de todos os seus passos , conhecia as suas relações . Estou certo que nunca viu o assassinado , o qual , no dizer do doutor , parecia estrangeiro , sem relações aqui , e domiciliado há pouco tempo em Portugal ! Poderia ser um encontro casual , uma rixa inesperada ? Impossível .