MARIA ONEILL A Marqueza de Valle Negro ROMANCE 1914 PARCERIA Antonio MARIA PEREIRA LIVRARIA EDITORA Rua Augusta -- 44 a 54 LISBOA Sentada na vasta cozinha lageada , junto do lume , a tia Engracia fazia meia . De quando em quando olhava para o velho relogio collocado na parede e soltava um suspiro . Parecia-lhe que n ' aquella noite os ponteiros não se mexiam do logar . Lá fora a chuva cahia a jorros o o vento uivava furibundo pelas gargantas do valle . O gato , enroscado aos pés da sua dona , ronronava satisfeito , e o cão , atravessado em frente da porta , descansava o focinho nas mãos , de olhos abertos e ouvido attento ao menor ruido . Por fim ergueu-se , agitando a cauda , e começou a ladrar festivamente . -- Até que emfim ! exclamou a senhora Engracia com satisfação . Já não é sem tempo ! E pousou a meia nos joelhos , olhando por cima dos oculos na direcção da porta . Esta abriu-se dando passagem a uma gentil rapariguita de dezoito annos pouco mais ou menos . O cão lançou-lhe as patas aos hombros e prodigalisou-lhe as mais vivas demons- trações de amizade . Entre grata e impaciente , ella tentava acalma-lo : -- Então , Valente ? então ? Basta de festas ! A velha , em tom de ralho , ordenou : -- Deite-se ! Foi promptamente obedecida . O cão olhou para a chibata , pousada ao canto da casa , e , com o rabo entre as pernas , foi deitar-se na sua posição primitiva . -- Tão tarde ! censurou a tia Engracia . -- Não foi culpa minha , avó . Venho encharcada ! -- Pudéra não ! Com o tempo que está ! Vai mudar de roupa primeiro que tudo . -- Pois sim , mas deixo-me dar-lhe isto para a consolar . E , aproximando-se da velha , collocou-lhe&lhes+a na mão tres mil réis em moedas de cinco tostões . Os olhinhos da tia Engracia faiscaram de jubilo . -- Foi quanto te deram ? -- Este mez , por ser o primeiro ; mas , á medida que eu aprenda o serviço , augmentam-me o ordenado . -- Está bem . Já não é mau . Poucas raparigas do logar ganham o mesmo . Estou a vêr que pelo Natal podes botar uma roupa nova . Vai-tee pôr do enxuto , vai , e anda ceiar . A rapariga obedeceu . Vamos aproveitar a sua ausencia para dizermos alguma cousa d' ella aos leitores . É alta , delgada , tom o cabello castanho , a tez pallida e um aspecto aristocraticamente altivo , que contrasta com o seu trajo aldeão . Quando voltou a entrar na cozinha , vestia uma saia preta , muito pregueada , corpete da mesma côr , um lenço de lã vermelha cruzado sobre o seio e um aventalinho de ramagens . No pé , graciosamente pequeno , calçava meias brancas , feitas á agulha , e umas chinelas do polimento preto . -- Bravo ! Como vens janota ! exclamou alegremente a tia Engracia , vendo entrar a neta . -- É que a senhora , volveu Margarida , disse-me que mettesse a uso o fato da terra porque , quando fosse para a cidade , queria que eu trajasse de outra maneira . -- Isso é que me não calha nada . Mas que se lhe hade fazer ? -- Até me dá riso a idéa de trajar taes modas . -- E não é para menos . -- Tambem já lhe pedi para não me obrigar , quando voltasse , a vestir taes fatos cá na terra . -- E ella ? -- É bôa senhora . Não vai longe d' isso . -- Põe a ceia na mesa . -- A Joaninha não ceia ? -- Não . Recolheu com tremuras e febre e foi-se ao leito . -- Um caldo talvez lhe fizesse bem . -- Já lhe dei uma pinga de café bem quente . Emquanto fallava , Margarida pôz as malgas com o caldo sobre a mesa e partiu a brôa , depois de lhe fazer previamente uma cruz com a faca . -- Ainda não fallam na partida ? perguntou a velha Engracia , esmigalhando no caldo um pedaço de brôa . -- Ainda não . A senhora não está em estado . Tem uma tosse que é mesmo uma dôr d' alma ouvi-la . -- Coitadinha ! E que díz o doutor ? -- Não diz nada . Vai vê-la todos os dias , receita uns remedios , e , quando sái do quarto da doente , abana a cabeça com um modo desanimado que é uma pena vêr . -- E o senhor ? -- Chora pelos cantos , e ao pé d' ella mostra-se muito satisfeito . Falla-Ihe em ir a Paris ... Emfim , faz o que pode para a distrahir da doença , mas ella é muito fina e bem sabe que o seu estado é grave . -- É isto ; ninguem é feliz na terra . Uma gente com tanto de seu ! -- Isso mesmo dizia hontem o senhor padre capellão . E conversaram longo tempo , comendo sobre o caldo castanhas cruas que , de manhã , a Engracia apanhara no souto proximo . Por fim a avó , erguendo-se da mesa , deu em voz alta graças a Deus por lhes não faltar com o pão de cada dia e , abençoando a neta , trancou a porta e recolheu-se ao quarto . Margarida pegou na candeia e dirigiu-se para o lado opposto , onde dormia com sua irmã . Fechou a porta de communicação para a cozinha e abriu mansamente a janella , depois de verificar que a irmã estava bem coberta e não recebia ar pela fresta que entreabrira . -- Estás ahi , João ? -- Estou . -- Com esta noite ! Que loucura ! -- Não te enxerguei hoje um só momento . Tinha saudades . -- E como has de então passar , quando eu partir ? -- Não me falles n ' isso , Margarida . Só de o pensar parece que endoidêço . Muito soffrem os pobres ! -- Olha que os ricos tambem soffrem , por modo diverso , mas olha que não é menos . -- Ora adeus ! Com dinheiro tudo se leva bem . -- Qual leva nem meio leva ! Ora põe-te no caso dos meus patrões . Elle quer mais á mulher do que Ãs meninas dos seus olhos e tem-na alli no leito a torcer-se com dôres , n ' uma abafação que parece que se pega só de vêr , deitando sangue pela bocca , o com uma tosse que , quem a ouve , julga que se lhe vai partir o peito . Tem gasto rios de dinheiro com medicos e botica , e a pobre vai de mal em peior . O dinheiro não dá folicidade , João . A sorte de cada um é que é bôa ou má , como Deus determina . -- Pois sim , mas , se eu tivesse dinheiro , casava-me já comtigo e não tinha a magua de te vêr ir para longe entre gente desconhecida . -- Desconhecida ! Essa agora ! -- Pois está visto que para mim são desconhecidos . Nunca os vi ... nunca lhes fallei . Passo-lhes pela porta quando vou á lenha ; não é o bastante para conhecer as pessoas . -- Mas é gente bôa . -- Não digo menos d' isso . Tenho porém uma cousa cá dentro que me diz que não é bem para mim que tu continues n ' aquella casa . -- Não embirres para ahi . Eu estou contento , tratam-me bem o pagam-me melhor . Para o Natal heide botar roupa nova e em muito pouco tempo hei de ter um cordão do oiro . -- Estás-te a afidalgar e depois has de achar que não sou homem para ti . -- E's tonto . -- Serei ; mas quem se habitua a viver n ' um palacio , em que até os criados parecem senhores , como ha do voltar de gosto a uma casa pequena e pobre ? -- Basta a casa pequena e pobre ser nossa o o paIacio ser alheio , para lá se voltar com gosto . -- Hum ! ... hum ! Não me pareço . -- Pelo que vejo , andas a ralar-te com coisas que não valem dois caracoes . Come , bebe , trabalha , anda alegre e não te dê para imaginar tolices . Quando mais tardo tivermos as nossas economias , casaremos e seremos felizes . -- Tu não me tens amor . -- Qual não tenho ? ! -- Não tens , digo-te eu que m ' o não tens . Se me quizesses lá de dentro , podias nem por sonhos pensar em ir para a cidade ? Isso sim ! -- Então não percebes que , quanto mais ganharmos , mais cedo casaremos ? -- Sim , sim , mas tu não falias em arrecadar . Pensas n ' uma roupa , n ' um cordão ... -- E ainda n ' umas arrecadas . O que não quer dizer que não penso no futuro . -- Mas ... -- Não estejas á chuva , homem . Vai-te deitar e tem confiança em mim . -- Dás-me um beijo ? -- Para que o pedes ? Bem sabes que não . Prometti á minha mãe , que Deus haja , não beijar homem que não fosse marido , e não quero faltar . -- Fazes bem . Adeus , bôa noite . -- Bôa noite , meu bem ... -- Teu bem ! Se eu tivesse a certeza de que o era ... -- És , és . Bôa noite . -- Até ámanhã . João affastou-se . Margarida fechou a janella e começou a despir-se , pensando comsigo : -- O João tem razão no que diz . Eu não gosto d' elle . Se gostasse , não acceitava a partida com tanto gosto . Sempre ha cada pressentimento ! Pobre rapaz ! E se eu o desenganasse ? ... Para quê ? Em me indo embora , deixando de me vêr , vai-lhe esmorecendo a ideia do casamento e escuso de lhe dar um desgosto . Depois sorriu e , deitando-se , sonhou com Lisbôa , que nunca vira e lhe apparecia como uma visão feérica que nada egualava em grandeza , com palacios magnificos e carruagens deslumbrantes . Via-se vestida elegantemente , como a criada franceza que sua ama trouxera de Paris , e , longe de se penalisar com essa ideia , como mostrára a sua avó , revia-se , no seu novo trajo , nos bellos crystaes que ornavam o toucador da Marqueza de Valle Negro . E assim , dando largas á phantasia , cerraram-se-lhe lentamente as palpebras e adormeceu profundamente . No quarto de cama da Marqueza de Valle Negro as janellas estão semi-cerradas . Junto do leito , Margarida , sentada n ' uma cadeira baixa , vola o somno da doente que parece penosamente agitado . No alto espelho , que defronta o leito , contempla Margarida com pesar os estragos que a doença tem feito no rosto da Marqueza , outr'ora tão formoso ; depois olha-se a si e fica absorta e contente na sua contemplação . O seu vaidoso orgulho dizia-lhe que não era menos gentil do que D. Mafalda o fôra em nova o que , vestida como ella , o seu ar não seria menos senhoril . A doente gemeu . Ella aproximou-se cuidadosa , mas , verificando que a sua ama dormia , tornou a sentar-se . Uma ideia , que ainda não tivera , veio sobresalta-la : -- Se a senhora morre , não verei Lisboa . Não me levarão para lá . E o seu cuidado e dedicação pela Marqueza foi augmentado com o receio de perder a realisação do seu sonho : -- vêr Lisboa . A criada franceza , exhausta de cansaço por noites consecutivas de vigilia , adoeceu tambem , de fórma que Margarida passou a dormir no palacio e a revezar-se com o marquez no serviço de enfermagem . Tão intelligente cuidado punha no desempenho da sua missão , que o medico não se fartava de a elogiar o a doente habituou-se a ella por tal modo , que não queria que outra possôa lhe ageitasse os travesseiros ou compuzesse a cama . Isto deu a Margarida uma subita consideração entre a criadagem , que commentava o caso , censurando que deixassem uma rapariga tão nova velar doença tão contagiosa , A criada dos engommados dizia : -- Se exigissem tal cousa de mim , -- e não tenho a idade d' ella -- ia-me immediatamente embora . Não , que vida ha só uma ! -- A culpada é a avó . Quer ganhar com a neta , e não se importa com o perigo que ella pode correr . Então , o criado de mesa , dando-se uns ares muito importantes , sentenciou : -- Todos vocês faliam som saber o que dizem . A tia Engracia é doida pela neta ; mas , ignorante , como quasi toda esta pobre gente da aldeia , não acredita nos perigos do contagio . -- Eu não sou da aldeia e tambem não creio que as molestias se peguem . Morre quem tem de morrer . -- Oh ! Isso agora é uma verdadeira tolice , tornou ainda o criado de mesa , anediando as longas suissas negras . -- Tolice é a mania de que tudo se pega . -- Não comecem vocês á questão . O que não offerece duvida é que a Margarida é uma boa rapariga , porque , apesar de prevenida pelo medico , não se poupa a cuidados . -- Lá isso é verdade . -- Aquillo é na ideia de apanhar uma boa gratificação . -- Calla-te ahi , interesseiro ! Julgas os outros por ti . -- Quem não anda contente é João da Levada . Não apanha nem um instante em que converse com a cachopa . Esta observação era do caseiro , que acabava de entrar e ouvira as ultimas palavras . -- Ai ! ella já tem namoro ! Começa cedo . -- Cá na terra nunca se guardam para tarde , e olhe que , no que toca a juizo , as mulheres d' aqui podem dar lições ás da cidade . Isto dizia o caseiro n ' um tom de insinuação que fez corar a palavresa criada e volver-lhe com falsa convicção : -- Acredito , acredito . Cada terra cem seu use ... -- E este não é dos peiores , concorde , disse gaiatamente o caseiro . De repente fez-se silencio . O marquez acabava de entrar na cozinha e , afflicto , fóra de si , gritava : -- O Victor que monte a cavallo e vá a toda a brida chamar o doutor . A senhora está peior . E , voltando cosias , desappareceu deixando os criados constornados pela noticia . O marquez era um homem de trinta e cinco annos , pouco mais ou menos , muito trigueiro , com o cabello negro e os olhos castanhos , vivos e profundos , cheios de mobilidade . De estatura superior á vulgar , e muito naturalmente elegante , era o enlevo das salas lisboetas , onde em vão as vaidosas casquilhas procuravam captar lhe as graças , Era um espirito são , um caracter recto , e tinha ácerca do casamento e da moral ideias muito suas e inteiramente diversas das dos outros homens . Casára por amor , e amor verdadeiro , e tinha na sua conducta o escrupulo que desejara na da mulher . N ' estas condições , e dadas as singulares qualidades que distinguiam a marqueza de Valle Negro , não admira que o seu lar , apontado como um modêlo de felicidade , realmente o fôsse . A confiança mutua , em que se baseava a forte affeição d' estes dois entes , não foi nunca levemente abalada . Mas , como está escripto que ninguem seja completamente feliz , veio a doença -- Mafalda empanar esta felicidade sem nuvens . A marqueza era muito bôa criatura e tinha um unico irmão , que sinceramente estimava . Duarte era para ella quasi um filho , apesar de haver entre elles apenas a differença de tres annos . Muito extravagante e fraco , compromentteu por tal forma a saude que , quando lhe dou attenção , já era tarde : estava irremediavelmente perdido . A irmã quiz trata-lo , ape- sar da opposição do marido , e contrahiu o mesmo mal . Muito debil , mas intelligente , conheceu logo que estava perdida , o desde esse dia , soffreu cruelmente . A doença era o menos : o que a affligia cruelmente era a ideia de deixar Estavam só . Que vida seria a d' elle ? Assaltavam-na as mais crueis visões . Via-o envelhecer , triste e só , rodeiado dos cuidados interessados dos herdeiros , e supportando a vida dolorosamente , vergado ao peso da sua immensa desventura . Ao contrario do que é vulgar , nunca se illudiu com o seu estado , mas procurava quanto possivel enganar o marido e incutir-lhe as esperanças que não tinha . Estevam , por seu lado , fechava os olhos para não vêr . E , quando o medico o ia dispondo para o inevitavel golpe , dizia comsigo . Porque não ha de elle enganar-se ? A Deus nada é impossivel . E , sinceramente crente , orava com fervor . Era este o estado moral dos dois esposos quando , na manhã em que Margarida velava o somno da marqueza , notou um fio de sangue que lentamente lhe corria pelo canto esquerdo da bôca . Alarmada , correu a chamar o marquez que , tendo observado o facto , fez , como vimos , chamar o medico a toda a pressa , voltando em seguida ao quarto de sua mulher . Uma scena desoladora o esperava alli . Margarida , sentada na borda do leito , segurava nos braços robustos o debil corpo da marqueza , agitado pela ultima convulsão da agonia . Um fundo suspiro fechou para sempre os labios da pobre criatura e Margarida conheceu horrorisada que tinha nos braços um cadaver . Vendo entrar Estevam , bradou augustiada : -- Ai ! senhor marquez , parece-me que o medico já não vem cá fazer nada . -- Um espelho ! onde está um espelho ? perguntava febrilmente o marquez , revolvendo tudo que estava por cima das mesas e sem achar o que queria . -- Na gaveta do cima do toucador ... á direita . -- Cá está . E pegando no pequeno crystal , encaixilhado em prata e com o cabo primorosamente cinzelado , quo havia sido um prosento de noivado , correu para junto do leito e aproximou-o dos labios da esposa . Então , adquirindo a fatal certeza , cahiu soluçando aos pés da cama onde Margarida continuava na mesma posição , aterrada , sem se atrever a fazer um movimento , aniquilada ante aquella morte , a primeira a que assistia , o que era a perda de todos os seus sonhos . O medico poz termo áquelle estado doloroso . Tirou o corpo da marqueza dos braços da criada , deitou-o no leito o cobriu-lhe o rosto com o lençol . Depois sacudiu a rapariga por um braço , chamando-a pelo seu nome . Ella não respondeu . Continuava com o olhar perdido , desvairada e , apparentemente , n ' uma completa insensibilidade . Então o medico molhou as pontas d' uma toalha em agua e fustigou-lhe o rosto sem obter melhor re- sultado . Fê-la sair do quarto e entrar na casa dos engomados . A ' vista do pranto das suas companheiras , Margarida desatou tambem a chorar . O doutor chamou de parte a governante , fez-Ihe em voz baixa algumas recommendações ácerca da rapariga , o voltou a ter com o marquez , que soluçava entregue á sua dôr , n ' uma verdadeira desesperação . -- Então , meu caro amigo ? ... Seja homem . Esse chôro não é proprio de quem tem o seu nome . Foi preferivel assim . No estado em que estava a senhora marqueza , a vida era-lhe um verdadeiro martyrio . Não seja egoista , meu amigo . Enterremos os mortos e cuidemos dos vivos . Assim se fez . E ' bonita a casa de Valle Negro . De uma architectura perfeitamente moderna , é copia d' um dos mais recontes e gentis castellos que o gosto francez inventou não se poupando a despezas . Depois do enterro da marqueza , quizeram os amigos e parentes que o viuvo fôsse viajar , mas elle recusou-se a isso . Nem mesmo quiz voltar para a capital , e permaneceu , mau grado a opinião de todos , no theatro da sua grande dôr . Nenhum dos criados ou criadas foi despedido . Margarida teve ordem de não trabalhar e era tractada com cuidado da doença nervosa que o subito espectaculo da morte da marqueza lhe causara . O marquez passava a vida caçando , andando a monte . Não o viam senão ás horas de comer , ou na missa do domingo , na egreja parochial . Furtava-se á convivencia de todos o era notorio o seu visivel acabrunhamento . Uma tarde em que a aspereza do tempo o obrigara a não sahir , dirigiu-se ao quarto da marqueza e começou a abrir as gavetas . Encontrou tudo n ' uma perfeita ordem . Lembrando-se de que , no ultimo tempo de vida da mulher , era immenso o desalinho em todas as coisas , chamou a governante e perguntou-lhe quem puzera ordem em tudo . EIla respondeu-lhe que Margarida , estando prohibida de fazer trabalhos violentos , lhe pedira para arranjar tudo alli . Accedera por ser necessario , e não fallára n ' isso a seu amo para o não impressionar . -- Está bem . Diga-lhe que venha cá . Margarida era uma natureza extremamente impressionavel . Desde o enterro de Mafalda fugia do marquez , como se receiasse . vendo-o , evocar a impressionante scena da morte , que lhe havia alterado a saude . A ordem do lhe ir fallar , e alli , no quarto da marqueza , incommodou de tal forma a pobre rapariga , que pensou em recusar-se a cumpri-la . A governante dissuadiu-a d' isso e convenceu-a a ir vêr o que o marquez desejava . Toda de preto , com o vestido feito á moda da cidade , segundo as intenções que em vida D. Mafalda mostrara e que a governante entendeu cumprir , tractando-se do lucto de sua ama , Margarida , mais pallida que de costume , entrou no quarto da marqueza , de olhos baixos e sem se atrever a fallar , tão grande era a sua commoção . O marquez contemplou-a com sympathia e disse-lhe : -- Mandei-a chamar , Margarida , porque lhe quiz agradecer pessoalmente o carinhoso cuidado com que tractou a marqueza , cuidado que subsistiu alêm da morte em tudo que lhe pertencia e ella estimava . Margarida desatou a chorar , dizendo por entre soluços : -- Não tem nada que me agradecer , senhor marquez . Cumpri o meu dever : V. Ex.ª não deseja mais nada ? -- Quero dar-lhe uma lembrança da marqueza . E abrindo uma gaveta , onde estavam as joias que Mafalda não gostava de pôr , tirou d' ella um longo cordão de ouro com uma medalha . Foi depois á secretaria da mulher , e d' um maço separou um dos ultimos retratos de Mafalda e estendeu-o a Margarida , dizendo : -- Ponha-o nessa medalha , Margarida , e use-o como uma lembrança da minha gratidão . Confusa , sem saber como agradecer-lhe , Margarida murmurou um obrigada tão sumido que não chegou aos ouvidos do marquez , e retirou-se tão satisfeita quanto possivel . Ficando só , o marquez disse comsigo : -- Que bonita que é esta pequena ! É graciosa , dintincta . Ninguem dirá que é uma aldeã . N ' essa tarde , pareceu mais animado que de costume . Leu , o que depois da morte da mulher ainda não fizera , e , no deitar-se , deu ordem ao criado para o chamar cêdo na manhã seguinte , se o dia estivesse bom . O presente do marquez a Margarida descontentara a governante . As outras criadas tambem o não viram com bons olho se foi elle , por assim dizer , o rastilho que pegou fogo á mina que devia explodir contra a pobre rapariga . -- Ah ! Elle dá-lhe um cordão de ouro ! E não quer que ella trabalhe ! ... Já comprehendo ! ... -- Mas a quem você o diz ! exclamou a governante , ouvindo a perfida insinuação da criada franceza . Já no tempo da senhora , que Deus haja , eu notei varias cousas que não me agradaram ... Emfim , calla-te , bôcca . É preciso não esquecer que é por ella que morre o peixe . -- É bem verdade . Mas então já em vida da senhora ? ... -- É o que lhe digo . Elle não queria ninguem no quarto senão ella . -- Mas isso era a senhora marqueza ... -- O'filha , sempre és d' uma innocencia ! Começou , pois , Margarida a sentir-se n ' uma atmosphera hostil e , como não era tola , rapidamente percebeu o motivo e até as calumnias que procuravam assacar-lhe . Pesarosa , contou tudo a sua avó que lhe disse ser melhor despedir-se e voltar para sua casa . Esta solução não agradava á neta . Habituára- se à bôa mosa de Valle Negro e a morar n ' aquella esplendida casa . Despedir-se para não tornar alli , parecia-lhe uma resolução despedaçadora . Comtudo , adiando razão aos conselhos de sua avó , decidiu-se a seguis-los . Foi ter com a governante e disse-lhe sem preambulos : -- Quero-me ir embora , senhora||_Thomazia Thomazia|_Thomazia . Faça o favor de me fazer as contas . -- Queres-te ir embora ! E porquê ? -- Por nada . Não desejo servir mais . Ferida d' uma perversa e subita ideia , a governante chasqueou : -- Estás então muito fidalga ! ... Vaes viver dos tens rendimentos ? E tens a certeza de não ter vergonha de confessar d' onde elles te vêem ? -- Não percebo o que quer dizer . Decidi ir-me embora , porque minha avó anda adoentada e a Joanna , com as canceiras do campo , não lhe chega o tempo para cuidar da casa . -- Se é isso , fazes bem . Não serei eu que te dissuada . E fez-lhe as contas , contente de a vêr ir . Como depois de mostrar as cousas que levava , a rapariga se dirigisse para a porta , a sr.ª||_Thomazia Thomazia|_Thomazia perguntou-lhe em tom de mofa : -- Então não te despedes do senhor marquez ? -- Acha que devo ? -- Decerto . Não tens estado a comer-lhe o pão ? Margarida , profundamente contrariada , dirigiu-se para a casa do jantar , na varanda da qual Estevam , sentado n ' uma cadeira de vorga , lia os jornaes de Lisboa . -- Venho dizer-lhe adeus , senhor marquez . -- Dizer-me adeus ? Então onde é que vai ? -- Vou-me embora . -- Quem a despediu ? perguntou elle com visiveis mostras de desagrado . -- Ninguem , graças a Deus . Eu é que resolvi retirar-me . -- Então não estava bom aqui ? -- Estava sim , senhor ; mas minha avó anda doente ... a canceira da casa é muita e ... -- Isso não é razão para se retirar . Dou-lhe licença para ir tractar a sua avó , vencendo o seu ordenado e , quando ella estiver bem , volta para o seu logar . Margarida , muito vermelha e com a voz balbuciante , respondeu : -- Eu não posso acceitar o seu favôr , senhor marquez , porque a minha intenção é não voltar . Estevam ficou um instante silencioso , o depois respondeu-lhe : -- Eu procurarei saber a causa de tão estranha decisão , Margarida , e se na minha casa alguem lhe faltou ao respeito que se deve a toda a mulher honesta , despedi-Io- hei , seja quem fôr . -- Adeus , senhor marquez . -- Adeus , Margarida . Estimo que seja feliz . E ' formosissimo o rio que corro em Valle Negro , serpentoando por entre fraguas e vinhedos , e reflectindo os mansos pinheiraes que se erguem nos montes de que elle aflora as faldas . No seu curso varias lages , cuidadosamente collocadas , attestam que as raparigas do logar visinho costumam vir lavar alli , ajoelhando na alfombra da margem , sob a ospessa ramaria dos salgueiros e dos platanos . Estava uma manhã formosa . O sol acabava de surgir por detraz d' um cómoro e Margarida , com uma trouxa á cabeça , encaminhava-se lentamente para a margem . Contra o costume não estava ninguem lavando . Ella desfez a trouxa , ajoelhou-se sobre a relva humida , e , depois de arregaçar e torcer a saia para a não molhar , começou lavando . O João da Levada , que a seguira a distancia , sem que ella desse por isso , contemplou-a muito tempo em silencio e com tristeza . Por fim , aproximando-se , perguntou : -- Tu não cantas , Margarida ? A rapariga sobresaltou-se e respondeu : -- Estavas ahi , João ? não te vi . -- Segui-te desde o casal . Tu não pareces a mesma ! Foi-se-te a alegria , o riso , e até o canto . Antigamente , quando vinhas para o rio , botavas as cantigas com tal vigor que todo o povo se alegrava de te ouvir : " Lá vai a Margarida para o rio ... Aquella é que se não calla ... É mesmo um rouxinol ! " E eras ; mas hoje ! ... E , desconsolado , abanava a cabeça , fitando-a nos olhos com tristeza . Ella desviou o olhar , tentando desculpar-se : -- Que queres ? ... A morte da senhora ... a perda das esperanças que eu tinha posto na sua generosidade ... -- Não mintas , Margarida , não mintas . Ainda não és minha mulher , não precisas mentir-me . E João , lançando fóra o cajado , ajoelhou-se na relva , e tomando-lhe febrilmente as mãos , perguntou-lhe anciando : -- Sê franca . É verdade o que dizem ? Tu gostas do marquez ? -- Dizem ? ! Pois dizem semelhante cousa ? perguntou ella no auge do espanto . -- É verdade ? instava o João fremente : é ? Margarida baixou a cabeça silenciosamente . Então elle com voz torturada por mil desencontradas commoções , pediu : -- Conta-me tudo ... tudo . Prometto-te que serei digno da tua confiança e que não abusarei d' ella . Ama-lo ? -- Amo , murmurou Margarida muito baixo . Duas lagrimas rolaram pelas faces do camponez . Mas , sustendo a sua dôr , perguntou : -- E elle ? -- Não sabe nada do que se passa em mim . -- Mas dizem que vocês , ainda em vida da sr.ª marqueza ... -- Mentira ! lnfamia ! Eu não sou gente para elle , João . Nunca me viu , a não sêr como uma criada dedicada da mulher . Nada mais . E eu , assim Deus me salve como é verdade , eu não o amei emquanto a minha senhora viveu . Mas depois , quando o vi só , entregue á sua dôr sem ter ninguem que o entendesse , que o confortasse , tive uma grande compaixão d' elle . Notei então como era bello e superior em tudo aos homens que eu vira até então e , sem bem perceber porquê , affastei-me do seu caminho , vigiando tudo para que nada lhe faltasse e criando-lhe em torno mil cuidados por tudo que lhe era agradavel . Não devia contar-te isto , João , porque te faço soffrer , mas é a verdade . A mãe , que prepara a cama para o filho recem-nascido , não põe maior disvelo em a fazer do que eu ao preparar o leito do marquez . Rodeei-o de affecto sem que elle o pressentissde . Quiz elle , como reconhecimento dos serviços que eu prestara á mulher , dar-me uma lembrança d' ella . Foi a minha desgraça . As minhas companheiras , invejosas do presente , e até a governante , começaram a calumniar-me e a fazer-me insinuações . Não sei se chegaram a adivinhar os meus sentimentos . Eu não lh'os disse , mas senti em volta de mim tão grande má vontade , que resolvi contar tudo á avó . O resto sabes tu , Já t ' o disse . Ahi tens a verdade toda , e deixa-me em paz . Bem vês que , amando outro , embora sem esperança , não posso ser tua mulher . João não respondeu e ficou immovel junto d' ella . Margarida começou a lavar , olhando a espaços , ás furtadelas , o seu antigo namorado . Mas , vendo que elle não se mexia , disse-lhe brandamente : -- Fiz-te muito mal ? -- Não , respondeu elle . O caso não é tão mau como eu cheguei a receiar . Pensando bem , não tem mesmo importancia nenhuma . -- Ora essa ! exclamou Margarida pasmada . -- Não tem . Já te digo porquê . Tu és uma rapariga muito honesta , incapaz de uma acção má . Sei-o melhor do que ninguem , porque , no tempo em que julgavas amar-me , bem quiz comer adiantado e nada consegui . Tambem juro-te que não era com má tenção . Era a pressa natural em querer o que muito desejamos , nada mais . Ora bem ; tu não pensas em que elle faça de ti marqueza , creio eu , e ... outra cousa não serás . Lembra-te da promessa que fizeste á tua mãe ... -- Tens razão , João . -- Já vês . Isso é a modos uma doença que te ha de passar com o tempo . E , quando passar , é natural que te lembres de mim que tanto te quiz e quero . Não é verdade ? -- Talvez ... -- Ora bem . Vou-me ao trabalho com mais socego de espirito do que quando vim para aqui . Até logo , Margarida . -- Atè logo , João . E o rapaz affastou-se a passos largos , emquanto Margarida , com os olhos enevoados de lagrimas , batia a roupa na lage da levada , seguindo com o pensamento a figura gentil de Estevam nas varias attitudes que tomára no seu ultimo e curto dialogo . Lavada a roupa , foi estendê-la pelas sebes que orlavam a margem e , tirando a meia do cabazito que trouxera , começou aproveitando o tempo , emquanto a roupa seccava ao sol . N ' isto , chamou-lhe a attenção um vulto elegante que , saltando de fraga em fraga , parecia dirigir-se para alli , seguido por dois grandes pordigueiros . A côr subiu ao rosto de Margarida que levou involuntariamente a mão ao seio , como se quizesse comprimir as pulsações do coração . Os cães , assim que a avistaram , precipitaram-se a festeja-la . O marquez seguiu-os de perto . -- Então , Margarida , como está sua avó ? -- Vai indo , senhor||_Marquez Marquez|_Marquez . -- Quando volta para Valle Negro ? -- Não desejo voltar , senhor . A casa , desde que a senhora morreu , faz-me tristeza . -- Não digo que isso não seja exacto . Mas não foi o motivo da sua sahida . Eu já sei tudo . -- Tudo ? ! perguntou Margarida entre receiosa e incredula . -- Tudo , sim . Não ha como o dinheiro para soltar certas linguas . Espalhei-o e soube sem difficuldade que foi a inveja da lembrança que lhe dei que levou aquellas abençoadas criaturas a calumnia-la . Despedi-as , Margarida . Em Valle Negro está vago o logar da governante e é preciso que vá desempenha-lo porque os criados não podem estar á solta . Margarida , festejando a cabeça d' um dos perdigueiros , respondeu : -- Fez mal em despedir a senhora||_Thomazia Thomazia|_Thomazia . Ella era boa mulher e não lhe será facil substituis-la , porque eu não posso voltar a Valle Negro . Se o senhor marquez sabe tudo , sabe tambem o que por ahi se diz . Hoje , o meu noivo veio sobresaltado com as noticias que ouviu , pedir-me explicações . dei-lh ' as e elle acreditou em mim . Mas , por muito innocente que eu estivesse , o que diria quem me visse voltar a Valle Negro para o logar da governante , e irem-se embora os criados que me calumniaram ? -- Diriam o que quizessem , isso não tem importancia . -- Para o senhor marquez que é um homem , mas tem para mim que sou mulher . Sei que muitas , mesmo aqui na aldeia , se não importam com o seu nome , mas a mim não me succede o mesmo . Minha mãe , á hora da morte , fez-me prometter , assim como a minha irmã , que não beijaria homem que não fosse meu marido , Todo o povo soube isto e alguns levaram de chacota , ( de tudo se ri ! ) esto pedido de minha mãe . Não quero que , com uma apparencia de verdade , se possa dizer que eu faltei á promessa que lhe fiz . -- É justo . Mas diga-me uma cousa , Margarida : quem é o seu noivo ? -- Um pobre rapaz que o senhor marquez não conhece . -- Chama-se ? ... -- O João da Levada . -- E quer-lhe&lhes+o muito ? -- Não para que lhe hei de mentir ? E- me indifferente . -- E casa com elle sem amor ! -- Não é o destino das mulheres casarem-se e ter filhos ? -- Sem amor ? ! Não me parece que o casamento seja uma necessidade urgente . -- Nem eu tenho pressa . -- Então para que arranjou noivo ? -- Eu não o arranjei . Ha dois annos , pela festa do logar , elle dansou comigo e disse-me se eu queria casar com elle . Respondi-Ihe que sim . Nunca tinha tido um namoro e isso dava-me ares de mulher aos meus proprios olhos . Nunca gostei d' elle , mas n ' essa occasião foi tal a minha alegria por poder dizer ás amigas que tinha um conversado , que me chegou a parecer que gostava muito d' elle . -- Então , verdade , verdade , nunca amou ? Margarida ficou silenciosa . O marquez volveu : -- Não ouviu a minha pergunta ? -- Perfeitamente . -- Então porque me não respondeu ? -- Porque não é preciso . Quem casa com uma pessoa que lhe é indifferente , prova bom que ... -- Sabe tudo que se diz por ahi a seu respeito ? Margarida corou . -- Não sei se sei . A pessôa de quem se falla mal é quasi sempre a ultima a sabê-lo . -- Dizem que a Margarida gosta de mim . É verdade ? Margarida apoiou-se ao tronco dum salgueiro para não cahir e , depois d' uma breve lucta intima , ergueu a cabeça altivamente e , fitando com severidade o marquez , perguntou-lhe ; -- E quando assim fôsse ? Julgava-se por essa razão no direito do me offender ? Fazia mal . Eu não tenho feitio para supportar insultos de ninguem . E dirigindo-se para a sebe , com passo firme , começou a recolher a roupa . O marquez volveu-lhe promptamente : -- Em que torra é offensa fazer uma pergunta ? Margarida não respondeu . -- Ama-me ? tornou Estevam com voz não isenta de commoção . Com a mesma rude altivez com que dissera as ultimas palavras , Margarida confessou : -- Amo , mas é o mesmo que não amasse , porque nunca lhe pertencerei . -- Isso é ir muito longe . O destino pertence a Deus . Boa tarde , Margarida , até breve . -- Adeus , senhor marquez . Passados tres dias , a tia Engracia , em cima d' uma pequena escada , concertava as cannas da parreira que guarnecia a porta do casal , quando o marquez , entrando pela porta do quinteiro , lhe gritou de longe : -- Eh ! tia Engracia ! Pode chegar aqui ? -- Lá vou , meu senhor ! é um ai emquanto desço . E , com um vagar que contrastava com as suas palavras , a velhita desceu lentamente do escadote , e com a pressa , que as cansadas pernas lhe permittiam , foi ao encontro de Estevam . -- V. Ex.ª não quer entrar ? A casa é pobrinha , mas limpa , graças ao Senhor . -- Eu desejo fallar-lhe , mas não queria que as suas netas ouvissem a nossa conversa . Como ha de ser ? -- Isso é muito facil , senhor . Mando-as sahir logo que cheguem . -- Mas eu não desejo que me vejam aqui . -- Então o melhor será eu ir a casa de V. Ex.ª -- Tambem me parece . Vá hoje , porque tenho urgencia de conversar comsigo . -- Está-me assustando , senhor marquez . -- Pois vá-se preparando para uma grande alegria ... A tia Engracia volveu apressada ao lar , arranjou o lume , preparou o jantar e , emquanto se vestia com o seu melhor fato , monologava : -- Que diabo me quererá elle ? Cousa ruim não parece que seja . Mas o que é certo é que se me pôz um tal nó na garganta , que não sou eu que posso comer cousa alguma sem saber de que se trata . Joanna , entrando com uma cantara á cabeça , fitou admirada sua avó . -- Crédo ! Parece um maio ! Onde vai com taes luxos ? -- Foi a fidalga do Adro que me mandou um recado para lhe ir fallar . Diz que tem lá uma nova que me hade dar grande prazer . -- Então vá , vá depressa ... -- Não sem que a tua irmã chegue . Quero fazer-lhe uma pergunta . Joanna poisou a cantara e veio sentar-se na soleira da porta . Não era menos formosa do que a irmã , mas tinha um typo inteiramente differente . Trigueira , de cabellos bastos e ondeados , possuia uma physionomia tão cheia de vivacidade que se não comprehendia n ' ella a tristeza . -- O'avó , que diz vomecê da Margarida ? Não a acha assim a modos aparvalhada ? -- Não . Acho-a tristo . Mas é natural . Olha que a primeira vez que se vê morrer alguem , sente-se um grande abalo . Ella é muito mocinha . Aquella vista chocou-a . -- Não digo menos d' isso , mas já era tempo de lhe passar . -- Ainda lá não vão seis mezes e já tu querias que ella esquecesse um passo d' aquelles ! -- Olhe que nem dá conversa ao rapaz , que anda mesmo que parece uma alma penada . Isso é mal feito . E elle , coitado ! com aquella grande habilidade que Deus lhe deu , acabou hontem uma linda guitarra , com bellos enfeites de osso , que tem andado a fazer ás migalhas , para lhe offerecer pelo Natal . Tem uns sons que a avó não faz ideial É mesmo uma musica do ceu . E agora vai começar a cama do noivado . Já lá tem os desenhos , todos tracojados por elle . Vai ser tambem lindamente enfeitada a osso . Na madeira escura fica lindamente . -- A Margarida demora-se ! -- Não , ainda não é tarde . A avó é que , como está com pressa ... -- Tu sabes se o Pedro levou os meus alqueires de milho para o moinho ? -- Levou , mas o tio||_Zé Zé|_Zé disse que os da quinta da Fimeira tinham de ir á fronte porque chegaram primeiro . -- Cantigas ! Como elles são mais endinheirados , são os primeiros a ser servidos , é o que é . -- Lá vem a Margarida . Margarida , entrando , deu as bôas tardes e fez , como a irmã , reparo no vestuario da avó . Ella deu-lhe a mesma resposta que já dera á irmã : -- Se fôr para me offerecerem algum logar para ti , que queres que responda ? -- Que eu , depois de ter servido a Marqueza de Valle Negro , não sirvo mais ninguem . Joanna deu uma gargalhada . -- De que te ris ? perguntou-lhe a avó . -- D ' ella , respondeu Joanna apontando para a irmã . Desde que esteve no palacio não sei o que se imagina . Parece alguem que veio d' algures . -- Sempre estás uma trocista ! observou-lhe Margarida , não sem despeito . Tudo te serve de pretexto para rir . -- Antes assim . -- Então a avó não janta ? disse Margarida , vendo que a velhita se apressava a sahir . -- Não , filhas , não . Com vontade de saber nunca a comida prestou . -- Está continuamente a ralhar-nos por sermos curiosas , e afinal ainda é peior do que as netas ! disse Joanna soltando uma gargalhada . -- Até logo , raparigas . Deus vos abençôe . -- Até logo . -- Não se demore , pediu Margarida . -- Farei por isso . -- Bem , vamos nós jantando , que o estomago está-me a dar horas . -- Come tu . Eu não tenho vontade . -- É isto . A comida da tem já não presta ; precisas de cosinheiro francez . Quem te dera com um arrocho n ' esse costado ! Olha que sem comer nimguem vive . -- Bem sei . Guarda as sentenças para ti e deixa-me em paz . E , Margarida , sentando-se no degrau da porta , deixou pender a cabeça nas mãos . Joaninha começou a comer uma sardinha assada , com brôa , e , sem dizer cousa alguma , olhava de soslaio para a irmã . Por fim exclamou : -- Acabou-se-me o conducto , senão ainda ia mais brôa . -- Come o meu . -- E tu ? -- Não me faz mingua . Joanninha foi-se á sardinha da irmã e comeu-a com o mesmo appetite que mostrara na primeira ; depois , pegou da malga e bebeu o caldo vêrde com summa satisfação , sem deixar de observar Margarida . Limpou as migalhas , lavou a malga e as mãos , e veio sentar-se em frente da irmã . Margarida , immovel , não lhe dava attenção . Finalmente Joanninha , n ' um tom sério que lhe não era habitual , perguntou á irmã : -- É realmente verdado , Margarida ? -- O quê ? -- O que corre pela aldeia . -- Então o que é que corre ? -- Que o senhor marquez fez pouco de ti . Margarida corou . Olhou a irmã com ressentimento e volveu-lhe : -- E tu acreditas isso de mim ? Joanna baixou os olhos e respondeu balbuciando : -- Não sei ... Vejo-te tão triste ... -- Isso não é razão . -- Depois , no melhor panno cae a nodoa ... Olha a filha do morgado . -- Tens razão . A gente não se deve imaginar melhor do que os outros . Mas podes acreditar , Joaninha , por alma da nossa mãe te juro , que não dei nenhum passo mau . -- Acredito . Mas ... porque andas assim ? -- Gosto d' elle . Bem vês , não está mais na minha mão . Hei de fazer de conta que assim não é , mas isso não impede que eu soffra . -- Queres fazer commigo uma novena á Senhora das Dôres para que te tire essa scisma ? -- Não . Eu não quero deixar de o amar , mas sim ter forças para cumprir o que devo . -- Vem a ser quasi a mesma cousa . -- Não é tal . -- Bem , vamos então a começar a novena n ' essa intenção . E Joanninha foi-se ajoelhar em frente da commoda em que estava a imagem da Senhora||_das|_Dôres das||_das|_Dôres Dôres|_das|_Dôres . Sem sahir do logar , Margarida ajoelhou tambem , e respondeu ás Ave Marias começadas pela irmã com verdadeira fé . Quando terminaram a resa , Margarida abraçou a irmã , murmurando : -- Obrigada . A tua ideia foi bôa . Agora sinto-me melhor . -- Pudera não ! As resas sempre confortam . -- Que quererá a fidalga do Adro á avó ? perguntou Margarida , não sem inquietação . -- Tambem me tem feito curiosidade . Contanto que não seja para lhe contar o que se diz por ahi ! ... -- Credo ! Santo nome de Maria ! Pois ella havia de se atrever a tal ? -- Que queres ? Os fidalgos pensam que só elles são gente . A canalha , como dizem quando fallam de nós , não tem coração . -- Fazem-te mal as leituras que ouves na venda do Lourenço , Joanninha . Tantos mezes que lidei com pessoas de qualidade , o nunca os ouvi chamar canaIha ao povo . -- Porque uma familia não é assim , não quer dizer que as outras o não sejam . Eu cá tenho tanto desdem por elles como o que elles têem por nós . Para mim é que o teu marquez vinha bem com os seus ares de " não me bulas " ! Quanto mais não vale o João , um rapaz da nossa igualha , que tem uma habilidado n ' aquellas mãos como não ha outro ! Que diabo sabe fazer o teu marquez ? Matar gallinholas e coelhos ? Olha que é uma linda arte a sua , valha a verdade . -- Se tu o ouvisses tocar e cantar ! -- Então não ouvi ? Não estive lá na cosinha nos ultimos annos da fidalga ? Ouvia-se tudo muito bem . Mas entre aquellas cantigas lamentosas , n ' uma lingua que a gente não entende , e uma cantiga cá das nossas , bem repenicada na guitarra -- ai ! filha ! -- não ha que escolher . Margarida sorriu e não respondeu . -- Bem . Vou-me chegando . São horas de ir tractar dos porcos . Não vens d' ahi ? -- Não . Vou coser a roupa que lavei , para logo á noite a passar . Joanninha beijou a irmã com ternura e pediu : -- Não estejas triste . Aperta-se-me o coração quando te vejo assim . -- E's uma bôa rapariga . Bem hajas pela amizade que me tens . E entrando em casa , Margarida foi buscar a costura e voltou a sentar-se no degrau da porta . Era linda a vista que d' alli se disfructava . Abrangia-se todo o valle . Ao fundo , para a esquerda , via-se a casa do marquez , erguida entro o seu formoso parque talhado à inglesa ; do lado opposto , a casaria pardacenta da aldeia ; e , a meia encosta do monte fronteiro , a casa do Adro , com a sua fachada antiga , sustentando á frente um vasto terraço apoiado sobre alta arcaria . Era n ' aquelle terraço , sentada n ' uma das seixas , que se obriam entre os alegretes prodigamente floridos , que a fidalga do Adro, D. Maria da Graça Moscoso , costumava sentar-se nas tardes em que não chovia , por forte que soprasse a ventania . Sem querer , Margarida dirigia para alli o pensamento e torturava-se com a ideia de que era d' ella e do marquez que D. Maria da Graça queria fallar a sua avó . Depois , lembrava-se de ouvir contar , -- já não era caso do seu tempo , -- o desigual casamento que aquella senhora fizera . Muita vez , nos serões de inverno , a velha avó alludia ainda a esse facto que causara grande sensação em toda a aldeia . D. Maria da Graça era filha unica de D. Antonio de Moscoso , tão nobre quanto dissipador . Passava os dias e as noites jogando pelas feiras o casas do seu conhecimento e por occasião da sua morte a mulher e a filha tiveram de juntar ao desgosto de o perder a desagradarei surpreza da sua completa ruina . D. Genoveva , ao saber que teria de pôr em praça a casa dos seus antepassados , soffreu um choque , que , diziam as más linguas , fôra muito superior ao pezar de perder o esposo . D. Maria da Graça , mulher de animo varonil e já então perto dos quarenta annos , encarou a situação com sangue frio e quiz ter uma conferencia a sós com o procurador de sua mãe . Era um velho curvo , de óculos doirados , e com uns olhitos perspicazes e um sorriso ironico que incommodavam geralmente o interlocutor . Era raro atacar uma questão francamente . Servia-se de rodeios sobre rodeios para attingir o seu fim . E , quando D. Antonio Moscoso marcava uma entrevista ao seu procurador , ora certo que , começando depois de almoço , só terminava á hora de jantar . Com D. Maria de a Graça não succedeu assim . Recebendo os cumprimentos do procurador , fez-lhe peremptoriamente esta pergunta : -- É realmente verdade que a nossa casa está totalmente arruinada ? -- Eu exponho a questão a V. Ex.ª. ... -- É inutil . Está ou não está ? -- Infelizmente , minha senhora , ... está . -- Não quero que esta casa se venda nem que o nosso modo de vida soffra a menor alteração emquanto minha mão existir . Ha algum meio practico de conseguir isto ? -- Havia , se se tractasse d' outra pessôa menos distincta que V. Ex.ª ; assim ... nem me atrevo a dizê-lo . -- Auctoriso- o a que o faça . -- O senhor||_D._Antonio D.|_D._Antonio Antonio|_D._Antonio , que Deus haja , reuniu todos os seus debitos na mão de Paschoal de Sousa . É um homem de meia edade , bom educado , e dotado d' uma bôa alma . N ' este ponto o velho procurador fez uma pausa . Depois continuou com mais lentidão : -- É solteiro ... Viu V. Ex.ª em casa do juiz e teria muita honra em casar com a filha do sr.||_D._Antonio D.|_D._Antonio Antonio|_D._Antonio . D. Maria da Graça pôz-se em pé como se fôsse impellida por uma mola e tornou-se extremamente pallida . Apoiou-se com ambas as mãos á borda da mesa e perguntou com voz sumida : -- E não ha outro meio de minha mãe poder morrer como viveu ? O procurador , depois de alguns segundos de silencio , respondeu : -- Não , minha senhora , não ha . D. Maria da Graça passou a mão pela testa afogueada e , com voz mal firme , volveu : -- Não diga nada a minha mãe da nossa conversa e peça a esse homem que venha fallar-me ámanhã . E , despedindo o procurador , recolheu-se ao quarto . No dia seguinte , á hora aprazada , Paschoal de Sousa era recehido por D. Maria da Graça que , offerecendo-lhe uma cadeira junto da mesa , lhe dizia com o ar com que qualquer ministro trata um negocio do Estado : -- Consta-me que o sr.||_Paschoal_de_Sousa Paschoal|_Paschoal_de_Sousa de|_Paschoal_de_Sousa Sousa|_Paschoal_de_Sousa tem na sua mão todas as dividas d' esta casa ... -- É exacto , minha senhora . -- Inutil será dizer-lhe que não tenho meios de lhe pagar e lhe não quero ficar a dever . Vejo um unico meio de saldar os compromissos de meu pae sem reduzir minha mãe á miseria : casar comsigo . Agrada-lhe esta solução ? -- Muitissimo , minha senhora . É uma honra que eu não podia esperar . -- Mas que teve o cuidado de preparar , não é verdade ? perguntou ella sem aspereza . -- Confesso que , desde que a vi em casa do juiz , ha onze annos , não tive outro pensamento senão desposa-la . Nunca me atrevi a faltar n ' isso ao sr.||_D._Antonio D.|_D._Antonio Antonio|_D._Antonio , mas tinha feito as minhas confidencias ao seu procurador . -- Não lh'a levo a mal . Não fallemos mais n ' isso . Deixe-me apresenta-lo a minha mãe . Espere-me aqui um momento . E sahindo da sala , dirigiu-se ao seu quarto , onde se sentou por momentos n ' uma cadeira , para cobrar animo de consummar o que ella estava convenaida de que seria um enorme sacrificio . Compondo uma physionomia prazenteira , D. Maria da Graça foi pedir á mãe licença para lhe&lhes+o apresentar o eleito do seu coração , fazendo-lhe crer que , se Paschoal do Sousa emprestara dinheiro a D. Antonio , fôra sempre por dedicação por ella . Tão bem apresentou a questão , que a velhinha julgou que , dando o seu consentimento , tornava a filha felicissima . Abraçou-a ternamente e disse lhe que fosse buscar Paschoal a quem fez uma affectuosissima recepção . No dia immediato , de manhã , recebeu D. Maria da Graça , da parte do sou noivo , um cofre de velludo no qual encontrou todas as joias da sua casa e , além da restituição de todos os titulos de divida , a quantia de cincoenta contos em notas , para as obras e despezas que quizesse fazer para o seu enlace . Acompanhava o cofre um lindissimo ramo de rosas brancas o um bilhete conciso e respeitoso , no qual Paschoal lhe pedia desculpa de não ter animo de desistir do sacrifício , que ella tão corajosamente fazia a sua mãe , pelo grande amor que por ella sentia . Impressionada pela delicadeza das expressões o pela generosidade do seu futuro marido , Maria da Graça respondeu-lhe , tambem em poucas linhas , que não fizera sacrificio algum , porque , embora o não amasse , sympathisava com elle e não lhe custava a crêr que , quando elle fôsse seu marido , o viesse a estimar de todo o seu coração . E assim foi . Tão delicadamente andou Paschoal com sua mulher , que ella nunca se sentiu dependente d' elle senão no momento em que lhe concedeu a sua mão . Depois , em nada mudou a sua situação a não ser para melhor . Os seus mais pequenos caprichos eram ordens para o marido e , quando a mãe morreu , foi com a maior sinceridade de coração que , lançando-se nos braços d' elle , exclamou : -- Agora só te tenho a ti , meu adorado . E a sua voz exprimia tanta verdade que , desde então , Paschoal acreditou que era amado e elles fôram completamente felizes . -- Ora , pensava Margarida costurando , Paschoal de Sousa era filho d' um sardinheiro que costumava passar na aldeia e muita vez vendeu peixe a minha avó ... Porque razão não faria o tempo o milagre de a aproximar do marquez e porque não occuparia ella outra condição social diversa da que tinha agora ? E , dando redoas a phantasia , viu-se marqueza como por encanto , habitando ValIe Negro e adorada por Estevam que a rodeava de disvelos . Sahindo do casal , a tia Engracia encaminhou-se vagarosamente para casa do marquez . Ia pensativa e , á medida que se aproximava do palacio , sentia-se inquieta , e com uma grande tentação de retroceder . Avisinhando-se da alta grade que rodeiava o parque , viu o marquez passeiando sob a frondosa ramaria dos olmos que ornavam a entrada . Pareceu-lhe que tambem estava nervoso , e sentiu uma forte vontade de chorar , um mêdo immenso d' essa entrevista que elle lhe annunciára alegre e da qual , talvez por isso mesmo , tanto se temia . Vendo-a , Estevam fez-lhe signal para não puxar a sineta e veio elle proprio abrir-lhe o portão . -- Por aqui , sr.ª||_Engracia Engracia|_Engracia , por aqui , É inutil que os criados dêem fé da sua vinda a Valle Negro . E , seguindo na frente da velhita , entrou para um copado caramanchel a pequena distancia da alameda que os encobria perfeitamente á vista não só das pessôas que passavam na estrada , como até dos trabalhadores da quinta o dos criados da casa . O coração da tia Engracia pulsou mais apressado , e uma ideia torturante a pungiu : -- Teria Margarida entrado alli com o marquez ? ... E , fitando no rosto do Estevam um olhar que em vão tentou mostrar sereno , disse-lhe : -- Que deseja , sr. marquez ? -- Sente-se , tia||_Engracia Engracia|_Engracia . O que tenho a dizer-lhe é longo . E , notando a visivel afflicção da pobre velha , continuou : -- Socegue , não ha nada que lhe seja desagradavel no que lhe quero expôr ; antes pelo contrario . Escute : tive occasião do apreciar o caracter de sua neta durante o tempo que esteve em minha casa . E ' , sem favor , uma excellente criatura . -- Lá isso é verdade . Não é por ser minha neta , mas cá na aldeia não ha quem lhe deite o pé adiante . -- Tambem penso . Ora eu , desde que morreu minha mulher , vivo n ' um grande desconsolo . Resolvi tornar a casar-me e quero casar com sua neta . -- Com a minha Margarida ! ... O senhor marquez quer ? ... É possivel ! ... -- É possivel , é . Mas comprehende perfeitamente que ella não está educada para senhora . Resolvi portanto propor-lhe o seguinte : Ella ir para Lisboa e dar entrada n ' uma casa respeitavel , onde terá bons mostres e lhe ensinarão tudo quanto uma senhora mais urgentemente precisa saber . Eu pago todas as despezas e , se no fim de tres annos , ella gostar de mim , como agora , caso com ella ; no caso contrario , tem uma bella educação , pode ser mestra e ter emfim uma vida mais folgada do que aqui lhe estava reservada , Acceita ? -- Como não hei de eu acceitar tão grande esmola , senhor ? E a tia Engracia chorava de alegre commoção . -- Não quero que ella saiba que sou eu que lhe pago as despezas para que na occasião de a pedir em casamento ella tenha plena liberdade de me dar qualquer resposta . Emfim , tudo isto terá de ser feito com segredo para evitar que se falle antes de tempo . Tive de despedir a governante e queria que a sr-ª Engracia viesse tomar o logar d' ella . -- Eu estou tão velha , senhor ! -- Pois sim , mas minha mãe dizia que a sr.ª Engracia , com um dedo , fazia mais do que as outras com ambas as mãos . -- Mas no tempo em que eu servi a sua mãesinha , que Deus haja , tinha menos quarenta annos do que tenho hoje . -- Isso não quer dizer nada . É só para governar durante os dois ou tres annos em que a sua neta estiver ausente . Eu podia fechar a casa e ir fazer durante esse tempo uma viagem pelo estrangeiro ; mas sabe o que é esta gente . Se eu sahisse d' aqui ao mesmo tempo que Margarida , ninguem lhes tiraria da cabeça que eu a tinha levado commigo e a isso juntariam mil calumnias , E , como não quero dar com a minha conducta razão a que boquejem no seu nome , resolvi ficar . -- O senhor marquez é um santo ! -- Não , sou um homem como todos , mas intelligente bastante para pôr a minha felicidade acima dos estupidos preconceitos sociaes . A tia Engracia não percebeu o que Estevam queria dizer , mas entedeu que lhe devia dar razão : -- Isso é que é pensar ! Faz o senhor muito bem . A conversa prolongou-se ainda e , quando a tia||_Engracia Engracia|_Engracia retirou de Valle Negro , já as primeiras sombras da noite começavam a envolver a terra . O João da Levada passava junto da grade do parque , vergado sob um pesado fardo de lenha , quando viu abrir-se cautellosamente o portão e escoar-se por elle a tia||_Engracia Engracia|_Engracia , emquanto o marquez fechava por sua mão a gradaria e tomava a direcção da casa . O João estremeceu . Pousou a lenha em terra e , sentando-se sobre ella , tirou o lenço do bolso e limpou o suor . Depois murmurou por entre dentes : -- Cheira-me a chamusco ! Isto tem que se lhe diga ! ... E , tirando a carapuça , coçou com desespero a esguedelhada cabeça . -- Dar-se-ha o caso de a velha estar connivente com este bonifrate para lhe entregar a minha rapariga ? ... Com mil raios ! ... se assim é , não lhe queria estar na pelle ! E ficou absorto , com o queixo descançado na mão esquerda e o cotovello apoiado no braço direito . Dando conta de que escurecera completamente , retomou o fardo e affastou-se lentamente , murmurando a espaços : -- Não lhe queria estar na pelle ! Entretanto Engracia dirigia-se para o casal levando a alma verdadeiramente em festa . A pobre velha dizia comsigo : -- É uma sorte grande para a rapariga ! Nem que nascesse n ' um folle . E que dirá a gente do povo , quando tiver de a tractar por senhora marqueza ? Ai ! minha rica Mãe||_das|_Dôres das||_das|_Dôres Dôres|_das|_Dôres ! não me leveis d' este mundo antes d' esta ventura ! E o parvo do João da Levada que já andava a fazer a cama ! Não é para o teu dente , meu rapaz ! É para outra loiça mais fina . Depois , absorvia-se na sua immensa felicidade e , passados momentos , volvia : -- Não que ella parece mesmo talhada para fidalga ! nunca teve o nosso ar ... tão branca , tão linda ! Até o senhor prior , o anno passado , pelos Santos , dizia que ella fazia lembrar a Senhora||_das|_Graças das||_das|_Graças Graças|_das|_Graças , quando distribuiu o pão por Deus aos pobrezinhos á porta da residencia . E , monologando assim , chegou ao casal onde Joanna e Margarida a esperavam muito inquietas . Contou-lhes as cousas a seu modo o Margarida , muito contente , resolveu acceitar a partida para Lisboa , que a avó lhe disse ser offerecida pela fidalga do Adro -- Foi a novena , Margarida . Tinhas tanta vontade de ir ver a cidade ! ... dizia Joanninha com convicção . Quando a conversa estava mais animada , chegou o João da Levada , trazendo sob o braço esquerdo a guitarra que de tarde Joanninha descrevera a sua irmã . -- Já a vi hoje , tia Engracia , disse-lhe accendendo o cigarro e sentando-se no poial que acompanhava a parede sob a latada . -- Já ? -- É verdade , ao lusco-fusco . Sahia vomecê de Valle Negro e foi o proprio marquez que lhe veio fechar a porta . A velha sobresaltou-se . As raparigas entreolharam-se pasmadas . João fitava insistentemente a tia Engracia . Fez-se um silencio . Com voz arrastada , o da Leveda volveu : -- É estranho que o marquez , soberbo como é , lhe viesse abrir a porta ... tendo tantos criados ... E o olhar de João parecia descer ao fundo da alma da velha . Esta sentiu que tudo estava perdido , senão tomasse uma grande resolução . E , fingindo não dar pelo tom insinuantemente atrevido do apaixonado de Margarida , volveu-lhe com naturalidade : -- As cousas que parecem menos explicaveis são por vezes d' uma grande simplicidade . É o que vaes pensar , meu pobre João , quando eu te disser tudo que passei com o marquez e apellar para os teus sentimentos , para que não tentes destruir o bello futuro que se prepara para aquella que olhavas já como tua promettida . Então , exigindo-lhes primeiro a sua palavra de honra e fazendo-lhes jurar pela salvação da sua alma que guardariam segredo , contou-lhes toda a verdade . Era um quadro digno de vêr-se e que commovia o coração do quem o contemplasse . Margarida , á medida que sua avó fallava , transfigurava-se por tal modo , que se podia dizer sem hyperbole que o seu rosto resplandecia de felicidade . Joanninha escutava com curiosidade risonha , e o pobre João puzera mansamente a guitarra sobre o poial , lançara fóra o cigarro , e a sua physionomia tomára um tom cadaverico que lembrava a do condomnado na hora do suplicio . Era a elle que se dirigia Engracia , para elle que fallava , estudando-lhe cuidadosamente no rosto os cambiantes de dôr por que a sua alma passava . Quando terminou , disse-lhe com sentimento : -- Meu pobre filho ! Era outro o futuro que sonhavamos , mas que lhe havemos de fazer ? Não temos o direito de os impedir de serem felizes . Olha que eu sei ... para mim este casamento do Margarida vale por uma morte . Marqueza , não se importará mais com a sua velha avó , que foi antiga criada da sogra . Só isto lhe hade soar mal aos ouvidos . Mas , se é preciso perdela para que ella tenha ventura ... João continuava callado e a tia Engracia começava a temer por ter contado demais com a generosidade da sua alma . Então Joanninha poz-lhe , commovida , a mão no hombro e disse-lhe : -- Casamento o mortalha no ceu se talha , diz o adagio , João . Se tinha ou tem de ser , não valem de nada falias nem tenções . Estas palavras , com que a irmã de Margarida julgava tirar-lhe todas as illusões , encheram a alma de João de esperança , tão tenaz é ella no coração do homem . Erguendo-se , estendeu lealmente a mão a Margarida , dizendo-lhe : -- Vai . Estimo que sejas feliz . Não posso querer mal ao marquez ... procede como um homem honrado ... Eu esperarei ... esperarei que te enfades dos estudos e de todos esses habitos novos que vaes criar ... Se assim fôr ... acabarei a cama que comecei . -- Vai trabalhando n ' ella , João . Se a Margarida casar , não se acabam por isso as mulheres na aldeia , observou-lhe Joanninha . Elle olhou-a com tristeza o , estendendo a mão a Margarida , disse-lhe com a voz embargada de lagrimas : -- Adeus . E , como se não pudesse suster mais o seu desespero , affastou-se apressado sem se despedir do mais ninguem . Joanna , apanhando do chão a guitarra correu apoz elle gritando : -- João ! ó João ! Elle parou até ser alcançado pela gentil rapariga . -- Que é ? -- A guitarra , que te esqueceu . -- dá-lh ' a. Eu trazia-a para ella . Dize-lhe que a guarde como uma lembrança de quem muito lhe quiz . E fugiu para que Joanninha o não visse chorar . Esta voltou lentamente para casa e entregou a guitarra á irmã , dando-lhe&lhes+o o recado de João . -- Coitado ! disso Margarida sinceramente compungida , elle quer-me devéras . A irmã fez-lhe&lhes+o um arremêsso do rapariga mal-criada e volveu-lhe com mau modo : -- Tens muita pena ! Mas preferes casar com o bonequinho ! E sahiu da cosinha , n ' um assomo de indignação . -- A tua irmã é que não se agradaria d' um fidalgo ! Tambem digo . É muito orgulhosa . Teria receio de que a olhassem por cima do hombro . Depois , retirando-se da porta , sentaram-se junto da mesa conversando . Era tarde quando recolheram aos quartos e tardíssimo quando se deitaram . Das tres pessôas que pernoitavam no casal nenhuma dormiu . Margarida tinha a mente escandecida pelo espectaculo do seu brilhante porvir . Engracia impava de vaidade , pensando no estrondo que faria na terra o ditoso enlace . Joanna pensava na dôr do João da Levada , alcunhava a irmã de leviana e de ingrata , e não percebia como podia haver um coração de mulher , tão duro que resistisse á vista de tão pungento dôr . Mal viu que era manhã ergueu-se e , depois de se compor á pressa , pegou na roupa e dirigiu-se para o rio . Cada semana era a vez d' uma d' ellas desempenhar o serviço de lavadeira do casal . la pensativa e triste como a irmã quando fizera aquelle caminho a ultima vez . Mas de repente , como quem toma uma subita resolução , voltou atraz e , chegando á porta da venda do Lourenço , que já estava aberta para vender aguardente aos homens que iam para o trabalho , pediu : -- Guarda-me ahi a trouxa por um pouco , tio||_Lourenço Lourenço|_Lourenço ? Tenho que voltar a casa . Esqueceu-me o chloreto . -- Deixa ficar , rapariga . Affastou-se ligeira , atravessou o povoado , seguiu outra vez o leito do rio , atravessou a linha ferrea e foi direita a uma pequena cabana de pedra solta , que se erguia na falda da grande propriedade do Adro . A porta estava fechada . Joanna hesitou um momento . Depois bateu rosolutamente : -- Quem é ? perguntou de dentro uma voz mascula , mas abatida . -- Sou eu , João . Então a porta abriu-se immediatamente e o rosto livido do apaixonado de Margarida appareceu no limiar , com o olhar brilhante de esperança .