OLIVEIRA MARTINS FEBO MONIZ ROMANCE HISTÓRICO PORTUGUÊS DE+O SÉCULO XVI PREFÁCIO DE F. A. D' OLIVEIRA MARTINS LISBOA GUIMARÃES EDITORES , LDA . 1988 Eram contados os séculos de existência do ciclo gótico . O feudalismo estrebuchava decrépito , porque a aristocracia militar prestável nos tempos da conquista , era odiosa na paz . As suas demasias , além de enfastiarem o rei , incomodavam o povo , que com alguns séculos de vida municipal se havia feito homem . A par disto a igreja em campanha permanente durante toda a Idade Média contra o poder civil , seu rival sentia exaurirem-se-lhe as forças , para prosseguir no rito austero da antiguidade . Sob o exterior severo , com que impunha respeito aos adversários , cega veneração as massas , a igreja militante estava roída de podridão . O cilicio , a sombra das catedrais , a nudez e severidade da ogiva mascaravam a orgia , o veneno , a crápula , o assassinato . O crime , na sua mais hedionda manifestação , soltava os cabelos desgrenhados e com eles varria os átrios e as salas dos paços papalinos . Eram as saturnais do Cristianismo . Urgia uma transformação . Levantava-se em Roma um destes homens , que são colossos . Bizâncio derramava pelo mundo os tesouros de erudição antiga . Apareciam a luz as maravilhas de tempos quase ignotos . As tradições clássicas deslumbravam tudo : Leão X mede as forças , convoca os reis ; e a igreja e a sociedade vão retemperar-se nas instituições do passado . Sela-se a paz entre Deus e César . Ambos se sentam sobre o trono , unidos pelo prineipem dat Deus . Na igreja substitui-se à austeridade , a doçura ; à singeleza a profusão . Tomam as cerimónias um aspecto esplêndido revestem-se de uma solenidade quase pagã , que contrasta com a severa nudez da igreja gótica . Aos templos sombrios , em que os coros de frades macilentos , acompanhados pelos sons do órgão , escondido em profunda nave , onde só os reflexos de lâmpada fúnebre rasgam fracamente o véu impenetrável da sombra , -- substituem-se a luz transbordando , as cores garridas , as flores , os instrumentos , os fatos de púrpura , ouro e diamantes . Era a religião vitoriosa , elevada ao mando omnipotente , sentada com os reis nos tronos , vestindo nas festas do triunfo as clâmides cesáreas . No império a revolução , derrocando pela base as instituições góticas , esmagou aos pés do trono o feudalismo e os concelhos . Aquele , velho , corrupto , para quem a morte era inevitável . Estes , moços , fortes , contendo em si o embrião de todas as liberdades , o gérmen de toda a força e de toda a riqueza . O clássico aniquilava na política e na arte a feição nacional de cada país . As tradições do império , e a ambição da monarquia reclamavam o poder completo , e por isso o feudalismo e os municípios tinham de morrer do mesmo golpe . Mas a restauração da igreja abriu mais fácil campo aos desvarios do clero . O crime excitado pelos prazeres da nova era de maravilhas , riquezas , e esplendores , alargava os braços , crescia , ia engrossando caudalosamente , correndo entre as margens doiradas do trono e do altar . Com a depravação subia a ferocidade , perseguindo quem ousava protestar contra ela , em nome do mais sagrado de todos os direitos , o da liberdade da consciência . Ao mesmo tempo a centralização abso-luta do poder no trono degenerava em opressão e tirania . Assim enquanto o rei ia agrilhoando os braços , a intolerância dos omnipotentes sardanapalos do clero ia agrilhoando os lábias . Submissão e silêncio , eis a lei de ambos . Unidos no mesmo empenho ao império dizia o papado : jugamus dexteras et gladium cum gladio copulemus . Não obstante , o progresso caminhava sempre ; e os mesmos séculos , que viram a monarquia pura levantar-se ao lado da intolerância religiosa , viram surgir a imprensa . Enquanto Leão X talhava o manto pelo molde dos do império romano , enquanto se levantava uma montanha de pedra chamada o Vaticano , para simbolizar a nova soberania de Roma ; estupenda ideia , que só o génio era capaz de vazar em pedra ; enquanto , sob um céu perenemente sereno e azul , os pintores , os escultores , os arquitectos desenterravam todas as maravilhas esplêndidas das eras clássicas , o povo , esmagado havia pouco , dobrada a cerviz pela tirania da igreja e do rei , o povo , abraçado Ãs suas santas tradições de liberdade municipal , aprendendo a avaliar os homens , que o deslumbravam pelo poder e ainda mais pela monstruosidade ; o povo , soltando o primeiro grito de sedição e guerra na Reforma , pre-parava , com a emancipação da consciência a manifestação terrível , que séculos mais tarde havia de julgar e condenar todos os crimes do passado . Interrupção na marcha do progresso , cuja alavanca é a liberdade , a Renascença , esmagando-a , estremecia logo no berço pelos gritos da Reforma , para acabar Ãs mãos carregadas de raios dos revolucionários de 89 . Em Portugal a execução dos duques -- Bragança e Viseu , trágico episódio da luta entre o rei e a nobreza , é a Renascença na política ; a embaixada de D. Manuel a adesão formal ao novo império -- Roma ; Santa Maria de Belém , Ferreira e Sá de Miranda a Renascença na arte . O princípio absoluto , a absorção da liberdade pela autoridade , o governo de todos por um , achou em D , Manuel um virtuoso e são carácter . A família teve um patriarca . Mas já a esse tempo a intolerância religosa baixava o seu voo terrível sobre Portugal , encetando na perseguição israelita o primeiro passo para o vasto caminho , que havia de percorrer depois , João III , educado nos princípios puros da nova lei religiosa e política , foi digno filho deles . -- Ao despotismo em todo seu terrível fulgor aliava-se a intolerância religiosa alargando as garras de um canto a outro do país e seus vastos domínios . Juntai a isto a sociedade entorpecida por tal religião e por tal política , corrupta e fraca pelo ouro das índias e pela sua ocupação militar permanente , e tereis o verdadeiro quadro da herança , que o filho de D. Manuel deixou a seu neto . Dizei-me agora , que educação poderia dar sociedade assim ao rei infante ; lembrai-vos , de que os educadores eram pagos por Castela , para formarem ao rei um carácter tal , que breve lhes largasse nas mãos a cobiçada herança ; e pensai se a queda de Alcácer Quibir é um destes sucessos , que se chamam providenciais , porque a ciência lhes não descobriu ainda as causas ; -- ou se se pode julgar um aconte-cimento natural , lógico , corolário dum facto vivo , duma destas tempestades terríveis , que levam anos a formar , e quando estalam , destroem , esmagam , aniquilam : facto quádruplo , que se denomina : -- intolerância religiosa , -- despotismo mo nárquico , -- ocupação das índias , -- e por último , como incidente , ambição castelhana . A aclamação de D. Henrique foi uma lúgubre festa : o rei personalizava a nação ; com a morte dele a herança caía em disputa , e Portugal não era então país , que , como fizera já , escolhesse para si um rei e o sustentasse . O filho de Carlos V apressou-se a cativar a simpatia dos portugueses , intervindo no resgate dos prisioneiros de África , e ao mesmo tempo mandou Cristóvão de Moura dar os pêsames ao Cardeal e preparar o campo para a contenda , que ia empenhar-se . D. Henrique prometia pouca duração . Era doente , decrépito , odiento , arrebatado , medroso e inconstante ; fraco rei em qualquer tempo , desgraçado na época em que subiu ao trono . O seu reinado não impediu , não alterou , antes talvez apressou as trevas medonhas da noite de sessenta anos , que devia cair sobre o país . O cardeal-rei aterrou-se com as intimidações do emissário de Filipe II ; odiava com violência o Prior do Crato , amava extremosamente a duquesa de Bragança ; mas o medo venceu o amor . Eram os três os principais pretendentes da numerosa lista ( na qual o Santo Padre também inscreveu o nome ) , dos que ambicionavam o cadáver do potentado do Ocidente . Filipe II , ao mesmo tempo que impedia por meio dos seus embaixadores , que o Cardeal cedesse aos pretendentes nacionais , e muito especialmente à duquesa de Bragança , de quem sobre todos receava , ia comprando , comprando pagando a peso de ouro o merecimento absoluto , o merecimento relativo , as exigências abdominais , de cada um , que se vendia . E vendiam-se todos . Dominado pelos embaixadores castelhanos , D. Henrique , a quem a consciência forçara à convocação das Cortes , assegurava-lhes o voto delas , e , no louvável intento de cumprir a sua promessa , violentava as eleições ; anulava-as , quando o eleito lhe não convinha ; perseguia tenazmente os poucos , que conservavam ainda nas veias alguma gota de sangue puro . Não obstante porém os seus esforços , se o Clero e a Nobreza se confessaram vendidos , o Povo não o serviu , e se não teve força para sustentar o edifício , que desabava , não se manchou assentindo ao iníquo concerto . Entre os procuradores do povo avulta a figura de Febo Moniz , como um destes clarões esplêndidos , que o sol despede morrendo . Foi esse o homem , que escolhi para herói deste romance . Foram estas a época e a sociedade , que intentei vivificar , pondo-as em cena . Simbolizar , não só no pensamento geral , como no andamento e desenlace do enredo , o carácter dominante de uma época ; fazer-lhe sobressair as suas máculas e a sua glória , as suas sombras e a sua luz ; fazer enfim a crítica de uma sociedade ; é , creio , o princípio exacto do romance histórico . Dar aos personagens verdadeiros os traços , com que a história os desenha , sem mais arrebiques , sem mais ornatos , singelos na virtude ou no vício , na grandeza ou na pequenez ; -- dar aos personagens de fantasia formas , feições e cores do tempo , fazendo representar neles os diversos grupos , as diversas crenças , em que a sociedade possa estar dividida , é , creio também , o direito caminho , para se chegar ao fim de tal género de trabalhos literários . Uma obra vazada dentro destes moldes , quando o escritor é tão elevado como o princípio , é um livro bom . O estudo da vida doméstica , assim como a relação dos episódios , mais ou menos extraordinários , referidos pelas crónicas , devem ser para o romance histórico simplesmente um me o de atracção e interesse , porque os homens em geral se prendem sempre a tudo o que é fora do comum , porque as crónicas , tantas vezes mentirosas , respiram poesia , formam a parte legendária da história dos povos ; -- mas nunca , podem formar por si só o assunto do romance , porque ele se me afigura dever ser a expressão ideal da ciência histórica , a vivificação de uma época , cujas tendências , cujos usos e constituição social ela estudou e descobriu . A literatura , província da arte , como a ciência , como a política , é um instrumento de organização e aperfeiçoamento social ; a arte pela arte , é absurdo , e corrupção . A arte é braço , a sociedade é corpo . A literatura , que tende a ensinar , a corrigir , a literatura útil ; aquela que consigo leva o facho de luz intelectual , que rasga as trevas , e , como o sol , faz surgir o dia , aquela que guia e impele a sociedade para o seu estado perfeito físico e moral -- essa é pão do espírito , que vivifica , alimenta , corrobora . A que não fala à razão , mas só ao sentimento ( a que fala aos sentidos não é digna de menção ) tinha lugar na mão dos menestréis e trovadores , era apropriada Ãs trevas intelectuais da Idade Média , não vinha fora de lugar na Renascença , ficava bem. à sociedade corrupta e idólatra , não destoa entre as pompas sumptuosas , o sensualismo desenfreado das cortes de Luís XIV e D. João V ; mas agora , que se abrem os esplêndidos peristilos do templo do futuro ; agora , que o poeta de fâmulo na Idade Média , de áulico na Renascença , se tornou homem ; agora , que a sociedade se reconhece rei e reclama da religião -- caridade , da política -- pão , da ciência e da arte -- luz ! ... agora tal literatura é absurda . Hoje pode ser aplaudida ; pode brilhar com o esplendor efémero duma estrela cadente , para amanhã morrer , mas é como um destes manjares deliciosos ao paladar , que não alimentam o corpo , antes destroem o estômago e enfraquecem o sangue . O verdadeiro poeta , o homem , a quem a natureza dotou com a perfeição do sentimento ; -- o verdadeiro pensador , aquele , a quem deu a razão mais esclarecida ; -- reunidos num só corpo : eis o que é o génio . Retraí o olhar para os monumentos literários , que têm fulgurado e fulgurarão sempre através dos séculos , e , do que é mais , das transformações radicais das aspirações das sociedades , e dizei-me , se não vedes em todos o poeta dar o braço ao pensador , e o livro , reproduzindo o pensamento , a ambição , a crença de sociedades diferentes , ser ao mesmo tempo manifestação social e artística , ser uma flor e urn fruto , um perfume e um alimento . Lembrai-vos também , de que a literatura será para os vindouros a expressão artística dos sentimentos da nossa época ; porque as outras províncias da arte , a escultura , a arquitectura , a pintura , pode afoitamente dizer-se , vivem hoje só pelo espírito de imitação servil dos modelos e escolas antigas ; e assim vegetam , e não podem existir doutro modo , se uma nova escola , inspirada pelos pensamentos sociais modernos , não vier substituir as antigas ( não estaria para a pintura o embrião desta escola na flamenga , de que Rembrandt é patriarca ? ) exactamente como sucedeu na literatura ; porque é passada a época própria de cada uma delas : -- assim como a estatuária grega era a expressão ideal do culto da forma dos pagãos , assim como a arquitectura gótica a do ascetismo cristão da Idade Média , assim como a pintura a do misticismo sensual católico da Renascença -- assim a literatura será a da sociedade da revolução . E da elevação desta província da arte a expressão do pensamento moderno pode deduzir-se mais uma evidente manifestação da ideia socialista do século XIX ; porque as belas-letras não podem ombrear com as belas-artes na facilidade de alcançar o fim da arte -- a ilustração . Fazei pois do livro o instrumento , o guia , no caminho do progresso ; fazei com que ele contribua para a perfeição : o reinado da justiça e da verdade , da ciência e da consciência ; aspirações da sociedade de hoje e seu futuro , mais ou menos remoto e sereis beneméritos , verdadeiramente grandes ! Onde eu fui ! e tudo para falar dum pobre escrito , que não paga talvez o tempo , que se consome lendo-o ! mas a verdade é , que , o que escrevi , pensei-o , e do pensamento nasceu o livro . Afigura-se-me ele como um destes fidalgos , que de si nada prestam , para nada valem , mas a quem o berço deu títulos , brasões , riquezas e honras . Se a benevolência do leitor lhe permitir o correr as páginas destes volumes avaliará o modo , porque pretendi pôr em prática a doutrina expendida ; verá quão grande distância vai do pensamento ao desempenho , muito maior por certo , do que se o pensamento fosse ruim ou mesquinho . Valha-me o atrevimento ! Lisboa -- Maio, 1866 . O. M. ( ^ ) Era em 2 volumes ai . * edição desta obra . -- N. do E. Por uma fria manhã de Inverno , em que , num céu azul puríssimo , o sol brilhava esplêndido , estavam dois rapazes conversando animadamente na praça , que se abria em frente dos reais paços de Almeirim . Era o ano 1580 , o mês Janeiro , o dia 11 . Remoinhava o povo pelas quelhas tortuosas e escuras da vila , e falava cruzando-se animado ; velhas e moças descerravam as estreitas gelosias e adiantavam as cabeças , para indagarem , o que ia pela rua ; as faladoras gralhavam de janela para janela , de porta para porta , interrogando quem passava ; as sisudas e devotas cerravam cuidadosamente os postigos , persignando-se . Estranho burburinho ! Dos dois rapazes , que conversavam , era um alto e bem talhado , bem vestido e arrogante ; o outro um tanto mais baixo , mais modesto no trajar , menos orgulhoso de aspecto . O primeiro chamava-se D. Alonso Domingues , o segundo Fernão da Silva ; aquele era castelhano este português . Conheçamos-los . O castelhano era esbelto ; louros cabelos em anéis lhe caíam até a nuca ; tinha a pele branca e pálida , os beiços rosados , os olhos azuis , mas azuis vivos e expressivos ; a testa alta e bem talhada , o nariz aquilino , a mais bela forma de narizes , que a natureza inventou ; farto bigode da mesma cor do cabelo lhe assombrava os lábios , e uma pêra comprida acabava graciosamente o rosto . Era airoso de maneiras , como de quem usa a boa sociedade e dela conhece as regras . O seu vestuário indicava , senão opulência , abastança ao menos ; o gibão , que vestia , era de veludo bordado a prata , a capa também de veludo e carmesim , tinha o chapéu ornado por uma comprida pluma com um fecho , onde se via luzir o quer que fosse , que se poderia tomar por uma pedra preciosa , e no dedo trazia um anel com um brilhante de sofrível valor . Infelizmente o retrato moral de D. Alonso não pode ser escrito com tão brilhantes cores , como o foi o físico ; não distanciava contudo por isso o dos seus compatriotas , que tão mísero papel representaram naquela época em Portugal . D. Alonso era um Cristóvão de Moura em ponto pequeno ( ^ ) . Dissimulado e cortês por fora , corrupto e devasso por dentro , tal era ele , como o emissário castelhano ; e além disso D. Alonso reunia Ãs qualidades políticas de Moura , o ser fanfarrão e petulante , predicado que os filhos de Castela bebem no berço com o leite das mães . Fernão da Silva tinha um aspecto menos brilhante , que o seu companheiro ; seria algumas polegadas menos alto ; tinha o rosto comprido e macilento , es olhos pretos encovados , o cabelo liso , o nariz comprido , a boca rasgada , bigode e pêra da mesma cor dos olhos , e dela eram os cabelos , o corpo um tanto curvado para a frente , o gesto desairoso , o ar pouco de infundir paixões . Trajava modestamente ; filho segundo de um morgado de província , se possuía um nascimento talvez ilustre , não lhe abundavam os cruzados no bolso . Quanto ao carácter do rapaz , Fernão dizia-se entusiasta da liberdade portuguesa , mas era louco , pueril , desarrazoado , fantasiador , e no fundo egoísta , como o eram os homens do partido , em que se filiara , como o era o seu chefe o Prior do Crato , como em gerai o era então , digamos-lo por uma vez , a sociedade portuguesa . Isto sabido , a história mostrará o resto . -- Com que então -- dizia D. Alonso , batendo , mais que familiarmente , no ombro do seu companheiro -- , com que então , Fernãozito , o Cardeal abre hoje as Cortes ... -- É nova , que já enfada . -- Dize-me cá uma coisa ... E como vão agora esses arrufos entre o velho e o Prior ? -- De mais o sabes D , Alonso . -- Ora se o sei ! sei-o melhor do que tu meu rapaz ! ... mas para que hão-de vocês estar com essas tontices ? Melhor fora de uma vez entregar isto a quem o terá a bem ou a mal ... ( -- ) Vide nota A. -- Veremos-lo . -- Assim dizia o cego , e nunca via . -- Não via ; mas nós é que não somos cegos . Vemos bem . Tu e os teus se desenganarão . -- Desenganar de quê ? do que já está visto , sabido , tornado a ver e tornado a saber ? Ah ! Ah ! Era curioso , se os terços de Itália e Flandres haviam de morder a terra , neste miserável torrão ! -- Vê , o que dizes , D. Alonso ... miserável ? E Aljubarrota -- tornou Fernão , como quem não pode esperar resposta . O castelhano mordeu o bigode , girou sobre os calcanhares em ar de desprezo , e voltou retrocando com enfado . -- Outros tempos ! Sem o querer , o castelhano dizia a mais profunda verdade . A Espanha de João I não era a que Carlos V deixara por sua morte ; o Portugal do Mestre de Avis era outro , muito outro , outro em tudo , do Portugal de 1580 . Qual seria o moço português do tempo do Mestre , do Condestável , de Álvaro Pais , que deixaria impune a afrontosa prática do arrogante D. Alonso ? -- Depois também -- tornou o castelhano , passado um momento de silêncio -- , que mais pode querer este pobre Portugal , do que fazer parte da gloriosa monarquia de Espanha , da monarquia universal , a quem o mundo inteiro beija os pés ? ... -- Ser livre . -- Loucuras , loucuras são ... Demais pouco importa , o que quereis . Exigimos para nós Portugal . Portugal será nosso . Esta é a verdade . Levantem quantos exércitos levantarem , assim que a primeira bombarda estalar em Elvas não haverá em Lisboa um só com pinga de sangue nas veias . Passe a raia um mosqueteiro daqueles , que estiveram em Itália , em Flandres , que viram a cara aos herejes , e o demónio me leve , se houver algum português que não tenha a tais horas embarcado já para as terras de Santa Cruz . Lá iremos depois . Quando o primeiro galeão espanhol salvar saindo o porto , já os míseros se terão metido no mato transidos de susto . Tu verás , Fernão . -- Verei , que o que dizes é loucura . Aos teus mosqueteiros oporão-se-mosqueteiros ; aos teus canhões , canhões ; aos teus exércitos , exércitos ; o povo se levantará como um só homem , com o braço armado , com o peito ardente , con-victo o espírito , dedicado o coração ! A hora da salvação soará ! Todos seremos soldados , todos salvaremos a pátria ! O Prior estará à nossa frente como outrora o Mestre de Avis . -- Mas não te lembras -- tomou D. Alonso chegando-se ao ouvido de Fernão e falando-lhe em segredo -- , que o Mestre de Avis nunca se nos quis vender ? Aqui Fernão caiu do alto da exaltação poético-patriota onde o seu entusiasmo pelo Prior o levara . D. Alonso dizia a verdade . A profecia havia de ser bela se não fosse o herói . O Prior do Crato à frente da revolução era como jorro de água lançado sobre carvões acesos . -- Vamos lá , homem -- tornou o castelhano vencedor convicto agora -- ; anda com+nós , que irás melhor , e demais o futuro te dirá se , o que te dou , não é conselho de amigo . Bolsa cheia : entendes ? E parece-me , que a tua não está na melhor maré , hein : barriguinha farta , boas moças , boas folias , regalos a rodo , vestidos ricos , como os meus , olha ! Que mais queres ? -- Muito mais , muito mais ! Quero ser livre , quero ser , o que portugueses foram sempre ! Fernão era sublime sem o saber . Aquelas palavras saíam-Ihe da boca quase maquinalmente , e assim saíam da boca de todos os meio-parvos . Os espertos uns vendiam-se , outros negociavam caro a venda , e enquanto negociavam iam-se intitulando salvadores da pátria ; os bons -- e mal de nós eram bem poucos -- choravam , choravam arrancavam as barbas e os cabelos , mordiam-se desesperados , olha . vam para o céu pedindo um milagre , por não poderem sustentar o edifício , que se minara , aluídas as paredes , com muitas chuvas , com as águas da decadência ! -- E eu a querer meter-te siso nessa cabeça de burro . Fernão , e tu a teimares . Algum dia te arrependerás , que to digo eu , mas então será tarde . Não vês , que tudo está podre , tudo vendido ; que um olhar do duque de Ossuna , ou uma ordem de D. Cristóvão , fazem tremer o Cardeal ? E enquanto ele viver ainda isto se aguentará , porque el-rei||_Filipe Filipe|_Filipe o quer , mas deixa-o morrer , o que não pode demorar muitos dias , e então veremos . Tenho brincado , mas agora falo-te sério . Não vês , que te digo a verdade pura ? Os governadores são nossos , menos D , João Telo , esse , como disse D. Cristóvão , já que se lhe não pode mudar o ânimo , haver-seá-Ihe- a cabeça . Quer-lo mais claro ? Deita-lhe água . O Prior é lá homem para isto ! Tolo , isto é um mercado ; queres tu vender-te ? -- T ' arrenego maldito -- e Fernão deu dois pulos para trás . O castelhano desatou a rir a bandeiras despregadas . Entre os froixos do riso dizia , repetindo : -- Queres vender-te ? Queres vender-te , homem ? É triste , mas é verdadeiro : Portugal era um mercado . Fernão estava pálido , mais pálido , que o costume ; ia fugir . Aquela intimação à queima-roupa fora vibrar-lhe uma fibra da alma , que ele tinha como quase todas , sã . A venda dos grandes , que era pública e notória , não lhe fizera grande impressão no ânimo , já porque na progressiva decadência da sociedade o caso não tomava grande reparo , já porque a sua inteligência , um tanto curta , nunca lhe formara uma ideia verdadeira , do que seria a venda de um homem , a venda de um país ; quando porém viu levantar-se-lhe a víbora debaixo dos pés , quando lhe examinou a língua pestífera , quando receou , que a peçonha o maculasse , estremeceu ; parece , que o coração lhe pulou no peito , que um relâmpago lhe iluminou o cérebro , e , visão terrível ! Julgou , que diante dos olhos se lhe representava o quadro , que a sua mente não pudera ainda formar . Ia a fugir , disse , mas um grupo , que a hilaridade ruidosa do castelhano atraíra , cercando-os , impediu-lhe&lhes+o . A isto o castelhano , composto o rosto , pousava-lhe de novo a mão sobre o ombro e dizia-lhe amigavelmente : -- Anda Fernão , não te assustes , que o caso não é para tanto . As Cortes devem estar a abrir-se ; vamos ver . E voltando-se para o grupo , que se acercara deles , sorrindo com graça , e , apertando a mão a um conhecido , disse-lhe : -- Não queres ver D. Diego ! Este rapaz , que é um excelente moço , ficou horrorizado , quando eu lhe referi uma das passagens mais simples da minha vida . Em duas palavras to conto . Voltava de Salamanca para Madrid ; na estrada assaltaram-me quatro bargantes ; pedem-me a bolsa ou a vida ; pago ao primeiro com uma estocada , tiro um olho ao segundo , com o pé derrubo o terceiro , e com um murro esmago a cabeça ao último . Viam-se-lhe os miolos de fora ! E todos riram , e partiram todos a ver a abertura das Cortes . Era o dia solene da abertura das Cortes , convocadas pelo Cardeal para decidirem , a quem de direito competia a régia herança . Nos paços de Almeirim e na sala chamada da rainha , estavam reunidas os três braços . Clero , Nobreza e Povo , representantes da sociedade portuguesa , A sala era aparatosa e nobre ; rasgavam-se seis janelas espaçosas sobre os jardins , no topo levantava-se um trono forrado de tapeçarias do Oriente , nele a cadeira do rei e sobre ela um brocado franjado de ouro . O Cardeal não aparecia ainda : constava publicamente o desanimador estado da sua saúde ; os representantes da nação agrupavam-se conversando ; o povo lá fora burburinhava formando um sussurro de vozes indistintas , como o vento faz , quando , alta noite , açoita as copas de arvoredos longínquos . Viam-se na sala o duque de Bragança ; o bispo de Lreiria , D. António Pinheiro , um dos mais fiéis sequazes de Filipe II ; D , João de Mascarenhas , o herói de Diu , que não quis morrer sem manchar os loucos de soldado com a nódoa da traição ; o duque de Ossuna , embaixador plenipotenciário do rei -- Espanha junto ao Cardeal ; Cristóvão de Moura , o hábil corretor , a que Filipe II cometeu a compra dos portugueses ; Jerónimo Osório , o bispo erudito , que tão bem aconselhara D. Sebastião , o autor De rebus Emmanoelis , vendido não , mas ligado ao partido castelhano , provando assim , que soma de corrupção girava nas veias da sociedade , que aos mais sãos não perdoava ; e outros , muitos mais ; os do Clero e da Nobreza castelhanos quase todos , os do Povo alguns . Depois de curta demora os toques de trombetas e atabales anunciaram a abertura da sessão . O Cardeal conduzido do leito numa liteira penetrava na sala ; no rosto trazia pintado profundo desalento , pesado sofrer ; a doença era aguda na alma e no corpo , O ódio pelo Prior do Crato , a amizade paternal por D. Catarina de Bragança , o medo de el-rei -- Castela , eis os sentimentos violentos , que se lhe debatiam no espírito , espírito de natureza fraco . Era um velho que infundia compaixão sem promover simpatia , o Cardeal ; a cabeça calva , o rosto macilento , enrugado e cadavérico , os olhos amortecidos , os braços descaídos , o corpo todo ele sem vigor , formavam um conjunto , que mais pertencia já à cova , do que ao trono . Trazia as vestes esplêndidas de cardeal e de rei : púrpura , oiro e rendas : um cadáver trajando galas ! triste mas verdadeira analogia entre o príncipe e o país . O bispo de Leiria , encarregado de proferir o discurso de abertura em nome do monarca , ergueu-se e arengou uma prática , lisonjeando o dedicado amor do príncipe pela nação , limitando-se a manifestar indirectamente , o seu apoio à causa seguida pelo Cardeal , e a aconselhar os deputados , a que se provessem com auxílios espirituais , para melhor deliberarem acerca dos temporais . Manuel de Sousa Pacheco , um dos representantes de Lisboa , tomou então a palavra , e em lisonjas e banalidades , consumiu algum tempo mais , estafou a laringe , e nem atou nem desatou , como diz o povo . A peripécia do drama não era ainda chegada . Calado que foi Pacheco , ergueu-se de entre os deputados -- Lisboa um vulto majestoso . Febo Moniz . Majestoso pelo aspecto . Alto , nobre de formas , a cabeça orgulhosa , uma testa larga , um diadema de cãs , um rosto de anjo , uma voz terrível ! Sublime pelo carácter . Uma alma de herói , com um coração de virgem ! Febo , reprimindo a violenta comoção , que lhe fazia arfar o peito , sopeou a voz e começou dizendo ( ^ ) : ( ^ ) Vide nota B. -- Pesa-me muito chegarem as nossas coisas a tais termos , que , ou havemos de desesperar do remédio delas , ou , se o procurarmos , há-de ser com moléstia de Vossa Alteza ; assim não lhe quisera eu responder , por lhe não dar pena , e o remédio das coisas cometê-lo a Deus ; e posto que me dói muito ver , como as coisas vão guiadas , é cuidarmos todos , que elas se encaminham a tirar-nos a nossa antiga liberdade ; todavia por mais importante havemos a saúde e gozo de Vossa Alteza , que tudo o mais ; e pois Vossa Alteza me quis para este lugar , de- me dar licença , para dizer livremente , o que entendo e convém ao serviço de Vossa Alteza e bem desta terra ... Uma bomba , que rebentasse na sala do concílio , não produziria tantas sensações , tamanho pasmo , como o exórdio do discurso de Febo . O sexagenário , como o roble da floresta , conservava-se impávido e sereno , vendo estremecer as ervas e os arbustos que olhava sobranceiro ; corria com os olhos a assembleia e como um riso de desprezo lhe tremia nos lábios , firm . ava depois a vista no Cardeal e podia-se-lhe ler no rosto uma profunda expressão de mágoa e dó . Era uma curiosa cena : Febo , eleito em lugar de Salema , que fora rejeitado como tantos outros pelo Cardeal , por se não sujeitar a votar pela entrega do reino a Filipe II , Febo era tido como homem seguro ; o desengano foi cruel e tardio . O grupo castelhano olhava-se entre si e mutuamente inquiria a explicação de tão singular linguagem ; o Cardeal a custo ouvira , mas as palavras soaram-lhe tão estranhamente , que duvidou da pureza do órgão e continuou reclinado em prostração , como se a assembleia prosseguisse um curso ordinário ; os do Prior e os do duque de Bragança olhavam para Febo como para um homem , que vinha ligar -- se-lhes ; a questão era saber a qual dos dois grupos , por isso ambos se esforçavam por lhe atrair , com gestos e olhares , a simpatia . Febo retomou a palavra depois de breves instantes , continuando assim : -- Eu , senhor , estava metido no meu canto , no qual , posto que me lastimava muito ver estas coisas , parte de consolação me era , ver posto o remédio delas nas mãos de Vossa Alteza , e o ofício de advogado nas de outrem ; mas não sei , que pecados foram os meus , que não quis Vossa Alteza , que lograsse muito tempo esta quietação , em que estava ; mandou-me Vossa Alteza vir por procurador deste povo , e justamente , donde esperava remédio , veio a sair o perigo ... Queira Vossa Alteza a concessão pela estrada direita , ouvindo as partes e o que alegam por si , porque de tal maneira só teremos a chorar a nossa sorte e renderemo-nos aos juízos de Deus ; mas levar negócios por caminhos não habitados e escuros faz-me crer , que a justiça é nossa , mas não aproveita , pois não há leis nem respeito , que inclinem Vossa Alteza a esta opinião ... Um murmúrio de desagrado ecoou da direita , que era o lugar dos castelhanos ; vozes de aprovação da esquerda , onde tomavam assento os parciais do Prior e do duque de Bragança ; o Cardeal desenganara-se , de que o ouvido estava em perfeito exercício das suas funções , e , na palidez do rosto , viam-se de tempo a tempo enrubescer as faces de cólera , tremer os lábios de despeito ; mas Febo era a tudo impassível , era uma estátua divinamente inspirada ! -- Eu , senhor , não saí do meu buraco , para fazer , o que não devo à liberdade do reino , em que nasci , e que de mim o confiou ; não sou eu homem -- continuou , alçando a voz , ao mesmo tempo que o rosto se lhe purpure ava de entusiasmo -- , não sou eu homem , que se haja de dobrar por ameaças nem medos , porque mais pode em mim o receio de faltar um ponto à minha obrigação , do que tudo , quanto no mundo há ; e assim , Senhor , não sei , para que me-fizeste cá vir , se quereis dar o reino a Castela ; e se julgastes , que eu seria nisso consentidor , vos enganastes ! Não sei , quem me desacreditou com+vós , que infamou tanto a minha honra e lealdade , Senhor ! Só eu vos pareci digno de me fazeres ministro de tamanho estrago de Portugal ! E , se de mim o suspeitastes , hoje mostrarei ao mundo o vosso engano , e quanto hei-de estimar , sofrer antes perder a vida pelo serviço da pátria , do que ir contra o bem dela ... Aqui o Cardeal , rubro de cólera , estremeceu na liteira , e o seu rosto pintou um quadro medonho do ódio , que lá dentro fervia . Febo , sossegado o entusiasmo , continuou , cândido como um anjo : -- E Vossa Alteza poderá fazer deste corpo , o que quiser , que em seu poder está , mas na alma não tem jurisdição ; nem ela virá nunca a dar tal consentimento . E não cuide Vossa Alteza , que esta opinião é só minha : é de todo este reino , que aqui está junto de altos e baixos , e velhos e moços , e será de todos , os que não pretenderem mais que o bem comum do reino e o serviço de Nosso Senhor ; e se os que andam a par de Vossa Alteza e lhe aconselham o contrário , se despissem de suas pretensões ... O rumor quase abafava a voz do orador ; Febo continuava com maior veemência : -- E não quisessem alcançar comendas ... também seriam do mesmo parecer , mas não me espanto de não haver quem aconselhe a verdade , porque a grandeza da terra é propriedade do estado real , porque os príncipes mais andam cercados de lisonjeiros , que de amigos , que de vassalos verdadeiros ... e se alguém há , que fale verdade , o tomais tão mal , que a uns tirais das eleições , e a outros depois de eleitos , e a outros suspendeis os ofícios ... O tiro ia certeiro : feriu o alvo . D. Henrique não podia conter-se ; era demasiada afronta ; porém que fazer ? A moléstia não lhe permitia sequer levantar um braço , quanto mais o corpo ; olhava implorante para os seus , como quem dizia : acabem-me esse malvado ! -- mas os prudentes castelhanos sabiam de mais , que sempre no fim de muito falar se cansa , e que aquela era a mais imprópria ocasião para dar azo a um tumulto . Febo continuou pois sobrepujando com a voz o rumor da assembleia : -- Que foi isto , senhor ? Quem vos mudou em outro ? Quem vos tirou o ân : mo de vossos antepassados , o retrato do seu esforço , o ser imitador de suas glórias , que pelo receio de uma guerra justa quereis fazer injusto concerto ? E se el-rei||_D._Filipe D.|_D._Filipe Filipe|_D._Filipe é cristão , não quererá mover uma guerra entre cristãos ... -- Certo ! Certo ! -- disseram afectando seriedade , mas com ironia transparente , Ossuna e D. Cristóvão . -- Por causa duvidosa contra a justa sucessão -- continuou Febo dirigindo-se veementemente ao Cardeal -- ; porque bem sabe , que sendo assim não terá bom sucesso , e Deus não será em seu favor ; e quando o quisesse fazer , faremos o que sempre fizemos ; bem sabemos perder a vida pela liberdade , e posto que sejamos poucos e desarmados e ele poderoso e apercebido , esperanças tenho em Deus Nosso Senhor que ajudará e efectuará uma sentença dada por um rei tão católico e tão santo , e que não permitirá sermos vencidos , pois levamos a verdade e a razão por guia . Atónito estou de ver que , sendo a justiça igual e estando ainda o parecer de Vossa Alteza tão duvidoso , se incline antes a Castela ! Como poderá Vossa Alteza extinguir uma nação , que os reis seus antecessores trabalharam tanto por enobrecer , um reino que eles ganharam aos inimigos de nossa santa fé ? Não sei como Vossa Alteza poderá acabar aquelas cinco chagas que Jesus Cristo Nosso Senhor deu por armas no campo de Ourique a este reino ; poderão-se-elas sem receio ou temor meter entre os leões de Castela ? ... Este negócio é maior do que todos os do mundo por árduos que sejam ! Que falta é esta de amigos , que pobreza de vassalos leais ? Porque não tenho por amigos do vosso serviço , nem por criados leais , quem tal coisa vos aconselha . Porque quereis , que vos estale o reino nas mãos ? Não vê Vossa Alteza a nódoa , que põe em seu nome ? Aonde se dirá com honra , que se entregou este reino a Castela por temor de se defender do seu poder ? ... Pelas lágrimas dos órfãos , que vivem das esmolas do reino e de seu rei natural , pelo remédio dos fidalgos , que ides entregar a um rei estranho , pelas necessidades das viúvas , pelas misérias dos pobres peço-vos , senhor , que conserveis este reino na liberdade , em que os reis vossos antepassados , puseram ; representai ante vossos olhos , que todos comigo dão vozes : a quem nos deixais , senhor ! Porque nos cativais ? ! ... aonde nos levais ? Clama o povo , clama a nossa consciência , clamam a justiça , a razão , e os nossos clamores hão-de chegar ao céu ! Dai-nos liberdade , e se vos parecer , que a não merecemos , tirai-nos** juntamente a vida , para que com ela se acabe o nosso cativeiro ; que antes queremos , os verdadeiros portugueses , entregar de boa vontade a vida , do que perder a liberdade : Disse . Febo sentou-se ; caía-lhe o suor em bagas pela fronte . A sua eloquência um tanto rude , mas sincera , mas verdadeira , conseguira o que as mais das vezes não conseguem os palavreados estudados , que fazem de um parlamento uma academia . A assembleia -- e que assembleia ! -- dobrou a cerviz à veemência do orador ; -- no Cardeal o espanto domou a cólera ; os castelhanos estavam como petrificados , os do Prior e do duque de Bragança boquiabertos , extasiados , diziam entre si : -- Temos homem ! Atabales e trombetas anunciaram , que era findo o auto , retirou-se o Cardeal , dispersaram-se os fidalgos , os clérigos e os procuradores do povo ; o discurso de Febo impressionara todos ; parte da assembleia viu nele um adversário para temer , parte desejava associá-lo a si , parte , vacilante antes no campo , que lhe cumpria pisar , cedeu à veemente prática do deputado por Lisboa . São estes os louros da tribuna , que não os aplausos comprados de maiorias corruptas . Fernão e D. Alonso temos-los de novo com+nós ; acabada a cerimónia o castelhano travara do braço de Fernão e trouxera-o através da multidão a uma taverna , que era , entre tal espécie de lojas , aquela onde se reunia a sociedade escolhida , numerosa , como é de ver , naquele tempo em Almeirim pela dupla reunião da corte e dos três estados . Decaíam as sombras da noite e dentro da quadra escura e afumada luziam já bastantes lâmpadas . O concurso era grande , o burburinho da conversa maior ; momentoso assunto trazia checas as cabeças de todos ; aqui se discutia bradando , acolá se segredava em mistério ; noutra parte ria-se , bebia-se , trocavam-se ditos e chufas . Fernão e D. Alonso ocupavam uma das mesas na parte mais escura e despovoada da sala ; tinha cada um defronte de si um copo do suculento vinho do Ribatejo , e conversavam em amigáveis termos , -- Pois é como te digo , meu Fernão -- dizia o castelhano sorvendo alentado trago e limpando com os beiços os bigodes -- ; pois é como te digo ; não fiquemos mal por isso , mas Febo Moniz é um sandeu , como há poucos na sua espécie . -- Bem poucos ! -- volveu o outro distraidamente . A cena , que precedera a abertura das Cortes e o discurso de Febo , tinham sensivelmente impressionado o espírito de Fernão ; habitualmente contente , falador e aloucado , desde algumas horas se tornara misantropo , distraído , pensador . Pesava-lhe ver a hipocrisia , com que o seu amigo mentira à boa-fé do pobre D. Diego , porque no fim de tudo Fernão era bom ra-paz ; pesava-lhe mais ver a rematada basófia do castelhano ; como cuspia nas faces desta terra , que o mesmo pensava quase que era cuspir-lhe nas dele , filho seu . Seguindo o curso dos seus pensamentos , Fernão chegava a imaginar que aquela conversa podia talvez simbolizar o afrontoso diálogo , que povo a povo se trocava . Estas ideias todas que sem ordem , sem forma , indistintas , nebulosas ( é palavra da moda ) se lhe revolviam na mente , tinham achado como uma explicação , e um sentido na prática de Febo Moniz . A não serem os lamentáveis acontecimentos , que formam parte desta história , e de que Fernão foi vítima , a não ser também que o moço era por si incapaz de corrigir , o que era vício duma sociedade inteira , e a não ser sobretudo a inconstânc ' a e volubilidade do seu carácter , talvez o nome obscuríssimo de Fernão da Silva estivesse hoje elevado em pedestal honorífico à veneração do seu país . -- Bem poucos ! -- tornou o rapaz maquinalmente encostando a testa sobre a mão , como para amparar o muito peso de desusados pensamentos , que se lhe revolviam no cérebro ; depois , erguendo soberanamente a cabeça , disse com profunda melancolia : -- E mal de nós ! -- E mal de quem -- tornou sisudo o castelhano -- , de ti ou de mim ? -- E mal de mim ! e mal de nós portugueses ! -- Vocês portugueses são uns asnos ! -- Não repitas , Alonso ! Uns anos de amizade não pagam uma injúria ! -- Como estais guapo e bravo , D.||_Cavaleiro Cavaleiro|_Cavaleiro ! -- Ris ! ... dantes não riam vocês , quando lhes afogavam em sangue o riso . -- Vens fúnebre agora , Fernão ... Mas deixemo-nos disto , não venho buscar querelas , e sabes que mais ? Tenho dó de ti ; nunca mediria armas contigo , porque te estimo , e sabia ao certo , que seria mais um além de cento e tantos , que a minha espada tem varado ! -- Caspité , que é bonita conta ! -- tornou Fernão , não podendo deixar de rir à espanholada do companheiro . -- Tão verdade , como o Cardeal ter fugido de Lisboa por causa da peste . -- Sim , sim , D. Alonso , eu bem conheço a tua bravura . -- Ora ainda bem -- tornou o castelhano , que uma vez não contrariado , não era susceptível sobre a seriedade do assentimento ; e bebendo novo trago de vinho , levantou-se , correu com CS olhos a turba que se cruzava na vasta quadra , com as mãos o bigode , mirou-se , porque era presumido , e foi sentar-se ao lado de Fernão ; passou-lhe depois um braço sobre o ombro , encostou quase o rosto ao do companheiro e disse-Ihe , com voz melíflua , ao ouvido : -- E os amores como vão ? -- Como vão ? Vão bem -- tornou o rapaz com enfado . O seu estimável amigo tinha em poucas horas perdido muito no seu conceito e afecto , Repugnou-lhe o doce tom , com que lhe falava , e muito mais ainda lhe repugnou falar-lhe ele em coisa , que Fernão às vezes presumia guardar no peito , como os judeus no templo guardavam a Arca . Anda aqui um segreedo , que eu podia aproveitar para ocasião de mais efeito , mas é despretensiosa esta história . O ídolo , a quem Fernão queimava incenso , era uma das duas filhas de Febo . -- Influiria isso no ânimo do rapaz para lhe exaltar mais o patriotismo ? O castelhano que levava outro intento , e sobretudo não lhe convinha espantar a caça , viu que por ali se lhe não abria caminho ; era bom fisionomista e observador atilado D. Alonso ; retirando , pois o braço de cima do ombro do rapaz , pegando-lhe na mão e apertando-lhe&lhes+a confidencialmente , disse-Ihe em tom misterioso : -- Não falemos mais nisso ; cada qual guarda para si , o que lhe pertence ; muito podia eu dizer nesse artigo , mas entendo também que é bom , melhor até , calar ; perdoa Fernão . Deves ver -- continuou -- , que um homem , como eu , tem aventuras de sobejo , amores à farta ; tantos ... tantos , posso-te dizer ... que lhes nem sei o número ! -- Creio -- tornou Fernão sorrindo . -- Mas vamos ao que importa , meu rapaz , isto não é vida , isto assim não é vida ... -- Não compreendo o que queres dizer na tua . -- Já vais compreender . Devagar se vai ao longe . Ouve -- tornou D. Alonso , falando quase em segredo e apertando tanto a mão do rapaz , que este de mais lhe agradecia o cumprimento e desejara vê-lo acabado . -- Ouve , mas ouve com atenção e cuidado , o que vou dizer-te ; não te exaltes , que o caso não é para isso ... Além de tudo o castelhano era maçador . -- Isto que te digo , Fernão , é para teu bem ; estimo-te como se foras meu irmão ... -- Bem , dize depressa -- tornou o rapaz a quem doíam vivamente os nós dos dedos . -- Meu caro , tu tens uma vida sem futuro , quer dizer que a tua vida não apresenta um futuro brilhante ... -- Compreendo ; então ? -- Então ? ... quero dar-to , como convém a um bom amigo . -- Muito obrigado . E que necessito para isso ? -- Que necessitas ? Muito pouco . -- Se pouco é ... mesmo bastante que seja , possa-o eu , e tens-me ao teu dispor . Fernão pensou Ãquela hora na filha de Febo Moniz . -- Pouco , muito pouco , repito . Deixa-te dessas ilusões parvas e liga-te à nossa causa . -- É mais do que eu posso , D. Alonso , tenho pena de não aceitar . Fernão falava debaixo das impressões do discurso , do que ele pretendia para sogro ; e além disso sabia que aceder ao castelhano era afastar-se quanto possível do amoroso futuro , que sonhava . -- Deixa-te de asneiras te repito . Olha que o amor não paga dívidas -- retorquiu intencionalmente o tentador , que conhecia demais os amores do seu amigo , a sua pobreza e o seu carácter -- ; depois , com dinheiro tudo se vence ; o velho não dura muito , e se ela te ama deveras , quem se importa , que tu sigas este ou aquele partido ? Fernão cismou esta circunstância , que não pensara ainda , e pareceu-lhe ajuizada ; aqui se esvaeceram os fumos de patriotismo verdadeiro , que no começo deste capítulo vimos , se tinham apoderado dele , aqui esqueceu o recato , que tanto a princípio pretendera inculcar acerca dos seus amores ; o castelhano sabia que uma das mais sensíveis cordas duma alma pequena , medíocre mesma , é o interesse . Mas Fernão lembrou-se logo de que nas conversas , que tivera com Maria , esta se mostrara sempre digna filha de tal pai . As esperanças portanto tão breve se tinham formado , como desfeito . Colocado em terreno falso não sabia , como andar para trás . Era um pobre homem ! Tomando o melhor partido agastou-se e volveu ao companheiro : -- É indigno isso que dizes ! Mas o castelhano , que se não doía com insultos , contentou-se com apertar-lhe mais a mão , a ponto de Fernão dizer : ui ! e continuou : -- Deixemo-nos de asneiras , digo-to outra vez . o que vale cá na vida um gibão bem bordado , uma capa com ricos galões , um chapéu com vistosa pluma e rica presilha ? o que iguala a ter a barriga cheia de bons petiscos , e levar vida regalada ? Nada , escusas de responder . Aceita , senão és um asno . Fernão tinha amor-próprio , e aceitar ficava-lhe mal , Fernão amava e aceitar era perder a amante ; Fernão pois não aceitou ; não aceitando melhor lhe ficava levar a mal o injurioso epíteto ; o rapaz não era valente , mas olhando para o concurso , que povoava a sala , viu , que uma pendência não podia ter consequências fatais ; tomou pois uma posição magnífica , levantou-se e atirou Ãs faces do castelhano uma série de desconchavos , entremeados de bastantes insultos ; atirou-a tão alto que todos ouviram , e D. Alonso não podendo engolir a seco a afronta , como usava , partiu na cara do companheiro o canjirão de vinho ; Fernão com o rosto e o peito como é de supor , correu furioso a mão ao lado para desembainhar a espada , mas não a achou . O castelhano por cautela havia-lhe tirado . -- Ah ! -- bramiu o rapaz -- ; quiseste levar-me de assalto e não pudeste ; vieste de emboscada , mas mostrei-te , que os portugueses de agora são como eram os de outro tempo : não se vendem ! O castelhano ia sorrindo à socapa , porque o conhecia . -- Desarmaste-me então vilmente , maldito ! É assim que usam os teus ! É assim ! É assim ! Mas nós os ensinaremos ! E ia atirar-se ao castelhano -- Deus sabe com que pena sua ! -- porém felizmente intervieram os assistentes e a pendência terminou aqui , rompidas as relações entre os bons amigos , que tinham sido , Fernão da Silva e D. Alonso Domingues . O lugar das sessões do braço popular nas Cortes fora transferido de Almeirim . Na corte tinham ficado o Clero e a Nobreza . Febo Moniz com os outros procuradores das vilas e cidades passara para Santarém , onde vamos tornar a encontrá-lo . Febo Moniz , cumpre dizê-lo , era homem conhecido já na cena política do país . Sumilher-de-corpus de el-rei D , Sebastião fora um dos que com mais veemência se opusera à desditosa jornada de África ; depois , velho , doente e desgostoso de ver o caminho , que este país seguia , não o encontramos como homem público senão na abertura das Cortes , e até aí julgado como parcial seguro dos desígnios de D. Henrique , Numa saia do seu aposento da Ribeira , sentado numa antiga cadeira de couro lavrado , com os cotovelos apoiados sobre uma mesa de pau-santo , sobre as mãos abertas a cabeça , Febo meditava ; era noite ; e lá fora a tempestade ia rija ; a luz da lâmpada iluminava-lhe a fronte rasgada e majestosa ; lia-se-lhe nos olhos profundo sofrimento ; o ruído do temporal ecoava no aposento , mas o velho como insensível , não atendia aos furores da natureza ; encapelada procela se lhe combatia no espírito ! Levantando a cabeça , deixou pender os braços sobre a mesa com gesto de desalento , e murmurou : -- Estes homens ! Estes homens ! Depois , como se se arrependesse de ter falado , tornou à sua posição anterior . Nisto soou na rua o ruído compassado dum cavalo galopando . Febo assestou o ouvido , como para se afirmar , e disse consigo : -- Será ele que volta ? ... Vem bem ! Que pobre homem ! E pretende cingir a coroa de D. João I ! Ah ! Portugal , Portugal , não és já , o que foste ! Um Cardeal , um duque de Bragança , um Prior do Crato ! Em que mãos caíste ! ... Assomava então à porta um vulto singular . A cabeça descoberta mostrava uma cabeleira farta e negra , o rosto era trigueiro e largo , os olhos pretos e expressivos , a boca fina e maliciosa . Trazia uma larga capa donde a água escorria em bicas ; na mão um sombreiro alagado , uns guarda-matos de pele , botas grosseiras e esporas . Era alto e bem apessoado . Febo não pôde suster um grito de espanto ao encará-lo , levantou-se e foi direito a ele : -- Aqui , Sr.||_D._Prior D.|_D._Prior Prior|_D._Prior ! -- Aqui sim ! E que vos admira ? Cuidais que se me dá muito das loucas ordens de meu tio ? Está demente , coitado ! Não sabe , que em cada português tenho um amigo , em cada lar uma guarida ! Sou neto de el-rei||_D._Manuel D.|_D._Manuel Manuel|_D._Manuel , Sr.||_Febo_Moniz Febo|_Febo_Moniz Moniz|_Febo_Moniz ! Sou infante -- Portugal ! Febo não retorquiu à presunçosa apresentação do Prior do Crato , não tinha palavras para retorquir . Andavam os seus pensamentos tão longe das ambições do príncipe , que melhor entendeu calar , do que romper desde logo com ele . O Prior continuou : -- Estranhais ver-me , não é assim ? Pouco importam as ordens do Cardeal , mas o que ma ^ s admira é que com tal tempo me atrevesse a uma jornada . Pois atrevi ! Daqui vereis que não desminto de meus avós . Desculpai vir assim ; alagou-me a chuva ... E nisto , desafivelando a capa , deitou-a e ao chapéu sobre um contador ; sentaram-se os dois . O velho estava na verdade surpreendido da inesperada aparição do Prior do Crato . Sabia que não se lhe dava muito das ordens expressas do rei , que em Almeirim mesmo constara a sua estada , mas nunca tinha imaginado receber-lhe a visita . É de pensar como Febo avaliaria o carácter do Prior , porque tinha sobeja prática dos homens , e juízo bem claro para c conhecer . Febo adivinhara já o intento da visita ; contava que se ia empenhar uma luta , preparou-se para o combate . O Prior chegando-se a ele com gesto amigo , começou : -- Eu como todos , Sr.||_Febo_Moniz Febo|_Febo_Moniz Moniz|_Febo_Moniz , fiquei surpreendido com a vossa arrojada prática no auto da abertura das Cortes . Eu talvez mais que todos , porque tenho em demasia conhecido quão poucos homens temos hoje de rija têmpera e dedicado amor pátrio . Muito vos louvo e do coração ; contai-me por vosso amigo . Sobremaneira estimei congraçar-me hoje com o que fora já meu adversário . ( O Prior tinha sido um dos que mais instigaram D. Sebastião na jornada de África ) . Estimo ter a meu lado homens como vós , Sr.||_Febo_Moniz Febo|_Febo_Moniz Moniz|_Febo_Moniz ; cedo serei rei , e então hei-de mostrar-vos , que sei esquecer ressentimentos antigos , e pagar como merecem ser pagos os leais servidores da pátria e do rei . Acreditai , que não serei ingrato ... -- acabou intencionalmente o infante . -- Ingrato ! Ingrato em quê ? -- tornou Febo quase colérico . -- Ainda o perguntais ? Pois não vos devo a fala enérgica , que fizeste ? -- De todo vos enganais -- replicou orgulhosamente Febo -- , de todo em todo ! A minha missão , o que os povos me encarregaram , não foi , nem podia ser , o ligar-me a facções mais ou menos justas , mais ou menos poderosas , mais ou menos felizes ! Sr.||_Prior Prior|_Prior , enganaste-vos pensando que com lisonjas me vencíeis , iludiste-vos ainda mais se pensastes atemorizar-me com o vosso sonhado poder . Digo-vos o que ao Cardeal disse : do meu corpo podereis fazer o que vos aprouver , na minha alma não governais ! Governo eu só , governa a minha consciência , governa Deus ! -- Estranho pensar é o vosso , Febo ! A justiça é só uma ; quem deseja o bem do seu país deve desejar a elevação do seu legítimo rei . E quem é mais legítimo do que eu ? Quem tem maiores direitos ? -- E o duque de Bragança ( 1 ) , Sr , D. António ? ... Não é para nós esse ponto ; isso é caso para jurisconsultos . -- Não falemos neles -- tornou o Prior -- , que D. Filipe os comprou já ... -- Como a muitos , que o não são ; como a quase todos teria comprado , se não fora o preço ! Era uma afronta violenta , mas para o Prior ferir-se era acusar-se ; corou de leve , mordeu os beiços e prosseguiu : -- Esse é o nosso mal . -- Dizeis certo . -- Mas ouvi-me : se não quereis ligar-vos a facções , se pretendeis não me reconhecer direitos ... ( 1 ) Vide nota C. -- Tal não disse , perdoai . -- Bem , bem ... Quem pois , ou como julgais decidir a questão ? -- Sr , Prior , pouco falo por hábito , e entendo que melhor é calar , do que falar desacertadamente . Em poucas palavras voz- lo digo e francamente , perdoai-me se me exceder , uma vez falando , uma só coisa sei dizer , e essa é a verdade , Lembrais-vos do que sucedeu , quando , por morte de D. Fernando , o trono era disputado ? -- Lembro ! Lembro ! -- tornou o Prior jubiloso -- , lembro-me de que o Mestre de Avis , como eu bastardo , subiu ao trono ... -- Pelo voto popular , dizei ! D. António empalideceu . -- Pelo voto popular , sim ! Pelo querer do povo , que os reis são os depositários do seu poder ! O que eu d' sse nas Cortes , vos-lo a vós , direi-lo sempre , porque é a verdade , 6 a verdade é absoluta e uma ! Não fiz mais do que cumprir o encargo , do que desempenliar-me da confiança que os povos puseram em mim . Cumpri o dever de cidadão , de procurador dos meus pares . Nunca me ligarei a este ou Ãquele , repito-o ; a eleição do povo , o voto popular deve somente decidir a questão . Quando tivermos escolhido rei , que venham estranhos , e lhes daremos outra Aljubarrota ! O Prior estava pasmado , e temeroso ao mesmo tempo , esperava encontrar um amigo , adivinhou um adversário mais temível , que os próprios castelhanos , porque com ele não havja transacção possível . -- Mas -- continuou Febo , adormecida a voz , contristado o semblante -- , doloroso é que o povo , que os nobres , que os padres não sejam hoje o que eram então ! Perdoai-me dizer-vos a verdade . -- Não digo o contrário , Sr.||_Febo_Moniz Febo|_Febo_Moniz Moniz|_Febo_Moniz ; que também os séculos apagam muitas manchas , fazem irradiar mais a glória . O bem esconde o mal . -- Quando o bem sobrepuja o mal . -- É certo , mas sempre o oculta . Ainda há hoje portugueses e vós sois disso a prova . Vós e outros . Chegue a hora e verão-se-. Dois caminhos só podem separar os bons portugueses e esses estão unidos . O duque de Bragança e eu formamos agora um só e único partido ; fora dele não pode haver bom trilho a pisar , para quem deveras ama o seu país . -- Certo vos enganais , Sr.||_D._António D.|_D._António António|_D._António -- tornou Febo -- , talvez o que foi já não é ; talvez vós : de certo , vós cuidais que é , mas enganai vos . Pouco antes de chegardes , daqui saía o duque de Bragança e dele soube , que o projectado concerto estava desfeito . O Prior tomou a empalidecer . Era colhido em flagrante mentira . Estava infeliz . A astúcia que empregara para ligar a si Febo Moniz fora descoberta . Desistiu da conquista , mas jurou vingar-se mal pisasse os degraus do trono sonhado . -- Pois digo-vos -- tornou Febo , fingindo não reparar na triste posição do seu interlocutor -- , que esse era o único meio de salvação para este país , que vejo ir a pique numa vergonhosa calmaria . É que as madeiras estão podres , as cordas gastas , o leme partido ! Onde temos espada como o Condestável , onde pena como João das Regras , onde voz como Álvaro Pais ? Febo esquecia-se de si próprio . -- Qual de vós -- continuou inflamado o gesto , alçada a dextra , erecta a fronte -- , qual de vós pretendentes ao trono ousa cingir a coroa do Mestre de Avis ? Ê o duque de Bragança ? Pobre homem ! Sois vós Prior do Crato ? -- Sou eu sim , velho traidor ! -- tornou D. António erguendo-se furioso -- ; sou eu ! Comigo vos havereis ! Serei rei ! E nisto arrebatadamente saiu . -- Traidor -- ficou murmurando Febo -- , traidor ! ... Deus nos livre de tal rei ! Ah Portugal , Portugal ! que desta vez te não salvas das garras do leão ! Baixava o sol por uma daquelas serenas tardes de Inverno , em que o céu , puríssima cúpula azul , se espelha no mar , em que a atmosfera , transparente como límpido cristal , descobre o horizonte até aonde a vista alcança . Corria uma viração fresca roçando com as suas asas invisíveis a superfície do Tejo , onde os raios do Sol doiravam miríades de pequenas ondas , que brilhavam como escamas . Estamos em Lisboa , em casa de Febo Moniz . Passada a rua Nova , tomando à esquerda ia-se ao largo da Sé , de lá pelo lado direito do velho templo sobe uma íngreme calçada , que vai encontrar no topo os antigos paços de a par S.||_Martinho Martinho|_Martinho , transformados hoje na cade-a civil do Limoeiro . Nesta calçada morava Febo . Elevava-se a casa em dois andares ; no mais alto eram os quartos de Ana e de Maria as duas filhas do velho patriota . Das janelas gozava-se o belo panorama da cidade descendo até à beira do rio , e para lá a vista esplêndida de larga bacia do Tejo serena , meiga e bela como os lagos de Itália . Maria , a filha mais nova de Febo , estava sentada na janela e alongava a vista pelo amplo espectáculo , que a natureza lhe desenrolava diante dos olhos . O quarto denotava abastança e sobretudo bom gosto : viam-se sobre um contador de ébano marchetado de marfim e madrepérola duas preciosas jarras do Japão , resguardavam as portas e as janelas , cortinas e reposteiros de seda da índia ; a menina estava sentada numa cadeira estofada de seda carmesim , que fazia parte da guarnição do quarto ; pendia-lhe do colo , abandonado hava pouco , um caprichoso lavor e tinha nas mãos um livro . Deitava os olhos ao céu , ao mar , Ãs terras de além , volvia-os depois à sua leitura , abstracta e pensativa . Fixando-os no livro ia lendo : -- Dizes bem , poeta . Querer contar minhas mágoas seria areias contar ! Que triste livro , mas que meigas palavras ! bem se sentem as lágrimas , bem se ouve o bater do coração ! Oh quem tal livro escreveu , amava ! ... Quanto mais não vales , Bernardim , do que os poetas de agora , tristes mas frios sábios , que põem o amor ao serviço das letras e não as letras ao serviço do amor . Tu não . Porque tu não escreveste , para seres rdo e aplaudido ; escreveste , porque a tua alma angustiada necessitava um confidente . Falaste com a pena , e nas linhas confusas da escrita ias pouco a pouco vazando tudo o que te afhgia lá dentro ... Amo-te , amo-te por isso . Maria era formosa , ou antes talvez , era bonita . Quem lhe fosse medir as formas e as feições segundo as regras esculturais havia de encontrar defeitos , mas quem de um relance a encarasse havia de sentir-se sobressaltado . O conjunto das suas feições , sobre as quais dominavam uns olhos negros , cintilantes e meigos ao mesmo tempo , tinha um não sei quê fascinante . A sua estatura era mais baixa do que alta , mas dotada duma elegância , dum requebro natural , duma nobreza , que , acompanhadas pelo bom gosto , com que sabia vestir-se , e dispor certas pequeninas coisas , que valem tanto numa mulher , encantava . É esta a expressão que mais lhe convém ; era encantadora ( O seu carácter tinha uma certa mistura de criancice e de juízo , que completava a sedução ) . Ê a coisa mais insuportável para ver fingida e a mais atraente sendo natural esta mistura de mulher e criança . Em Maria como era completamente natural vencia todos . Quando num excesso de zelo pelo bem-estar do pai , este lhe não cumpria as ordens , ela primeiro zangava-se , erguia veementemente as mãos , accionava com ardor , mandava , e , não se vendo obedecida , saltava-lhe ao colo , abraçava-se-lhe ao pescoço , beijava-o , ameigava-o , dizia uma infinidade de tolices encantadoras e acabava por ganhar a batalha . Quando numa ocasião angustiosa era necessário firmeza de ânimo , da boca de Maria saíam sempre as palavras de mais verdadeira resignação , os pensamentos mais seriamente aceitáveis . Febo adorava-a , e , se é pecado exceder em amor um filho a outro , Febo neste ponto pecava . Contava Maria dezanove anos , a idade de todas as crenças , de todas as esperanças , a idade de amor , a Primavera da vida . Sensibilizara-a a leitura do choroso livro de Bernardim Ribeiro , e quando , afastando com as mãos do ^ s anéis de cabelo , que lhe assombreavam a testa , a qual , seja dito de passagem , era uma espaçosa bem feita e acetinada testa , queria varrer do pensamento as nuvens tristes , que o livro lhe levantara , sua irmã , a formosa Ana , entrava no quarto . Tinha Ana ( já agora esbocemos-las ambas ) , quatro anos mais do que Maria , e diferia dela como uma rosa difere duma sensitiva . Ana era bela na rigorosa acepção da palavra . Tornada estátua , Fídias deporia o cinzel e deixá-la-ia intacta por a achar perfeita . Mas se Maria valia mais pelo espírito do que pelas formas , Ana ao contrário valeria tudo pelas formas , pouco pelo espírito . Bela como Galateia era insensível como a obra-prima de Pigmalião . Quando a natureza lhe dera o ser esqueceu-se de lhe fabricar o coração , mas deu-lhe em troca o amor da riqueza , o desejo da ostentação , as ambições , tudo enfim quanto compõe a face exterior da vida . Longe , nmito longe de pensar que Ana era má . Ao con-trário , era boa . Fora um defeito da natureza aquela falta de sensibilidade , e aquele vício do luxo . Remediar-se-ia-? Talvez , se não morresse da cura para se salvar da moléstia ; porque só muito violento remédio conseguiria mudá-la . Mas ao mesmo tempo que nos seus sonhos ia devaneando casamentos fidalgos e ricos , a sua vida era empregada no cuidado da administração doméstica , em que se tornava distinta , e sobretudo numa atenção sistemática e paternal , filha de muita amizade , pela pequena e aloucada irmã . -- Sempre cismando , Maria ! -- disse Ana batendo-lhe ao de leve no ombro . -- Não te aflijas por isso . Que queres ? -- tornou Maria meia sobressaltada e fechando à pressa o livro . -- Loucuras de rapariga ! -- Aposto , que é esse o teu Bernardim . -- Acertaste . -- Pobre livro e pobre homem . Tudo lamúrias . -- Nem sempre falas tão verdade em coisas destas , Ana . -- Quem tem o coração frio fala melhor . -- Quando fala . -- Fala . Digo-te eu . O muito ardor transtorna o juízo ... -- Abrasa-o , e o fogo ilumina . -- Mas com luz vermelha , que não alumia bem . -- Seja como quiseres -- tornou Maria . -- Disto não entendes . -- Asisim será . É escusado teimar contigo . Enquanto as duas de tal forma conversavam encostadas ao balcão da janela , um grupo de rapazes parara na rua olhando para elas . Um dizia : -- Quem são aquelas gentis lisboetas ? -- As filhas de Febo Moniz -- retorquia outro . O primeiro bateu então significativamente com a mão na testa , e disse : -- Estás certo ? -- Certíssimo . -- Obrigado . Por favor afastem-se agora . Dentro de meia hora estarei com vocês na rua Nova . Separam-se e D. Alonso , porque era ele , mirou-se todo , e vendo que o seu luxuoso traje não tinha um senão , sorriu-se satisfeito . Devassemos-lhe as intenções . D. Alonso , verdade é dizê-lo . ficara picado da cena com Fernão . Custava ao seu orgulho o modo porque o caso fora resolvido , e mordia-se por se não poder vngar . Procurar matá-lo , e isso era na verdade para a boa espada do castelhano pouco difícil obra , não lhe era lícito , porque as instruções , que ele como os outros agentes da política castelhana mais ou menos graduados , haviam recebido , seguindo o plano geral adoptado pelo rei , proibiam expressamente entrar em querelas , pendências , questões ou duelos , antes ao contrário determinavam adqurir simpatias e adesões . à imaginação viva de D. Alonso apareceu um meio de aliar as instruções recebidas com os seus vingativos desejos . Sabia que Fernão amava e era amado por uma das filhas de Febo . Roubar-lhe a desejada noiva , era coisa , que , além de ser grata ao amor-próprio do castelhano , devia ser muitíssimo triste para o pobre Fernão . Assim o pensou D. Alonso , e ao mesmo tempo discorreu , que se as instruções , que tinha , lhe proibiam querelas , uma questão de amor não podia ser tomada como tal , e contra a sedução de uns olhos bonitos não havia instruções possíveis . Até Sansão fora vencido . Depois de amadurecido este plano e disposto a pô-lo em prática , ocorreu-lhe uma circunstância , que o deixou vivamente perplexo . Eram duas as filhas de Febo , qual delas a que Fernão cortejava ? A empresa esteve a ponto de ser abandonada , mas não o foi por fim . Deixou-se o caso à ventura . Meditando , D. Alonso descera até o largo da Sé , e meditando olhara e tornara a olhar para a velha catedral com aparências de arqueólogo ; depois , firmando o plano de ataque , mirou-se de novo , sacudiu alguns grãos de poeira , que lhe sujavam o brilhante gibão , assentou o chapéu com donaire e partiu com passo afidalgado . Estava Ana então debruçada à janela . O castelhano encarou-a com sorriso sedutor , andou alguns passos , tornou a encará-la , repetiu mais adiante a manobra , e foi seguindo rua acima . Ana voltou a cabeça para a irmã , e disse-lhe : -- Não queres ver . Maria , o casquilho que ali vai ? -- Tem cautela -- tornou com modo zombeteiro a menina -- , quem desdenha quer comprar . -- Eu ? Sabes bem que não uso . -- Mas ainda assim -- continuou seguindo a direcção dos olhares da irmã -- , vejo que te não desagrada . -- Tanto me agrada como qualquer outro . -- Será . Mas porque ficas então na janela ? -- Porque não vale a pena tirar-me . -- Entendo , entendo ... -- disse Maria , rindo . -- E olha que vai ali um bom marido para ti . -- Bem ; não rias . -- Pois o caso é sério ? Nunca julguei . Ao que parece é rico , tem fidalgas maneiras : deve convir-te . -- Cala-te criança . É já sabido que nunca havemos de concordar , tu com as tuas lamúrias , eu com as minhas ambições , como tu lhes chamas . -- Não seremos por isso menos amigas , não é assim , Ana ? -- Não , por certo ... Tinha boa aparência o rapaz . Parece castelhano . Será-lo ? -- E não te importa ? ! Que faria se te importasse ! Mas não sei se fazes bem . Parece castelhano . Basta parecê-lo , para não ser boa coisa ... não achas ? Maria era na sua alma angélica e infantil o espelho das rígidas crenças do pai ; Ana era diferente . Que lhe im-portava a ela que fosse castelhano , navarro ou português um marido fidalgo e rico ? Por isso encolheu oe ombros à pergunta da irmã . -- Vamos lá , Ana -- continuou Maria com um ar meio repreensivo -- ; tenha juízo , como seu pai havia de gostar de lhe ver encolher os ombros ! -- Pois sim , pequena , deixa estar , que me hei-de emendar . A verdade É que os modos fidalgos e o luxo de D. Alonso , tinham feito impressão no ânimo de Ana , -- Mas -- continuou a filha mais velha de Febo -- , queres saber ? Temos notícias do pai . -- Notícias ! -- exclamou a outra , com um destes pequeninos gritos tão sedutores nos lábios de uma mulher . E , saltando num pulo da cadeira , foi com a irmã encontrar o portador . Alguns dias se passaram , nos quais o castelhano executava sempre a prática da véspera : percorria de alto a baixo , de princípio a fim , o espaço que se avistava das janelas de Ana , e era quase certo vê-la , do que Maria muito folgava , atacando a irmã com os seus ditos picantes e zombeteiros . D. Alonso aprimorava-se no trajar ; elegante e luxuoso era na verdade sedutor para quem oom coisas tais se seduzisse ; o castelhano desenvolvia toda a táctica desta espécie de cam ' panhas , e na verdade ele sabia-a muito , mas não conseguira ainda lograr uma entrevista ; lisonjeava-o pouco o platónico amor que até ali animara aquelas relações , e os seus desejos tendiam a mais positivos fins . Era justamente o que Ana não podia imaginar ; não sabia crer como um homem antes de ter sido abençoando esposo diante do altar , se atrevia a pensar em obter um beijo furtivo , um abraço apertado ; por isso achava o proceder do castelhano perfeitamente natural e só esperava que , mais hora menos hora , a névoa se aclarasse e da névoa nascesse o dia -- o brilhante casamento . Já vemos que os dois mutuamente se não compreendiam ; com a diferença que Ana julgava alcaçado o seu fim , e o castelhano , muito longe dele , trabalhava quanto possível para alcançá-lo . Devo dizer que , D. Alonso , movido somente a princípio pelo pouco caridoso empenho de pregar um ferro ao que fora seu amigo , tinha achado um novo e forte excitante ; enamorara-o a beleza de Ana ; simpatizou com os louros cabelos da filha de Febo ; os olhos azuis da lisboeta faziam-lhe tais sensações , animavam-lhe tais desejos , que jurou não abandonar a empresa , sem que ao menos tivesse provado num beijo , uma gota do néctar divino , que de longe adorava , lambendo os beiços em suspiros , como o pobre que comia o pão com o cheiro dos guisados . Uns após outros os planos de campanha se abandonavam logo depois de imaginados ; a fortaleza a entrar era forte e bem guarnecida , as muralhas altas , o fosso profundo . D. Alonso mordia já os beiços de impaciência e estava disposto a deixar em paz a sua intentada conquista , quando uma vez , que , depois de muitas era determinada pelo castelhano , ser a última , voltando-se na rua , D. Alonso deu com os olhos num vulto seu conhecido . A expressão de alegria que se lhe viu no rosto foi extrema ; estimou mais encontrar aquela triste figura , do que os belos oilhos e os louros cabelos da menina Moniz . O vulto , que tamanha impressão produzira no ânimo contristado do castelhano , saía de casa de Feboi , e caminhando calçada abaixo foi até ao largo da Sé , aí tomou por uma das tortuosas e estreitas vielas que penetravam no coração da cidade , triste coração chamado Alfama . Escusado é dizer que nesse dia o castelhano acabou desde logo o seu costumado passeio e largou na pista do vulto , que era um vulto de mulher . Apenas fora do alcance das vistas da janela de Febo , o castelhano dobrou o passo e deu afinal com a mulher , que era uma velha , penetrando na estreita e íngreme travessa ; D. Alonso julgou cair num poço , mas prosseguiu : em poucos minutos tinha topado a caça . -- Olá , tia||_Margarida Margarida|_Margarida ! Então anda um homem a quebrar as pernas por estes malditos becos , a sujar-se nestas lamas , e você corre que nem um ganso ! Ouça cá , mulher . -- Por aqui ? , meu fidalgo ! Venha na santa paz de Deus , a Virgem||_Santíssima Santíssima|_Santíssima o abençoe e preserve de maus olhados , e feitiços e quebrantos ... -- Bem , bem ... -- Que são coisas muito para temer . T ' arrenego , cruzes demónio ! Deus o livre , meu fidalgo ! Todas as noites rezo por sua intenção um rosário à Senhora||_dos|_Olivais dos||_dos|_Olivais Olivais|_dos|_Olivais , que cá para mim é da maior devoção , e merece-a , que muitos milagres lhe devo . -- Obrigado , tia||_Margarida Margarida|_Margarida . Quantos cruzados me custa cada rosário ? -- Não diga tal , fidalguinho ! No céu lhe levarão em conta as esmolas que deu à pobre serva de Deus . Assim continuando nesta edificante prática o castelhano e a velha tinham chegado à casa da última . Creio bem que pouco valeriam a D. Alonso os rosários da velha à vista do sem números de pragas vociferadas cada vez que metia as botas num lameiro , cada vez que as imundícies despejadas do alto das janelas lhe salpicavam o luxuoso gibão . Entraram os dois ; D. Alonso sentou-se sem mais cerimónia numa cadeira de pau , e Margarida correu ao fundo da casa , onde havia na parede um nicho com uma N. Senhora , e muitas fitas e muitos laços e muitas flores velhas , tudo empoeirado , tudo enegrecido ; ajoelhou -- se , murmurou umas rezas ; no meio delas voltou-se mesmo de joelhos , e disse ao castelhano : -- Esteja à vontade , meu fidalgo . É sua esta casa . E tornou a voltar-se para o oratório , e continuou a ladainha de orações , batendo com estrondo no peito e beijando o chão . Margarida era encarquilhada , feia , repugnante , negra e suja , como digna habitante da Alfama , como hipócrita , como velha , que era . Mísero fim a que levam a ignorância e a miséria , os dois únicos verdadeiros demónios , que há neste mundo . Acabada a reza , Margarida veio para ao pé do castelhano , e disise-lhe com voz melíflua : -- Então que traz hoje por cá o meu fidalgo ? Ih ! Como vem casquilho ! Pena é que se sujasse por estas imundícies de becos ... Com a ajuda de Deus espero , que hei-de servi-lo como sempre , naquilo para que prestar ... E Margarida calou-se , esperando a confidência do suposto fidalgo ; adivinhou logo que andava ali empresa amorosa , porque era para ta s negócios que D. Alonso usava buscá-la e neles , força é dizê-lo . Margarida era prática , expedita e assisada como poucas . -- Ouça cá , tia||_Margarida Margarida|_Margarida , quero encarregá-la de uma comissão ... -- Novos amores , hein , fidalguinho ? ... descanse , que se há-de fazer o que quiser , com a ajuda de Deus e N. Senhora , e o trabalho e manha desta sua criada . Era justa a velha . -- Novos amores sim , mas amores sérios agora , Margarida . -- Sempre são sérios ... nestas alturas . -- Quando são para rir então ? -- Quando ! Quando ! ? Noutras ocasiões que V. mercê muito bem conhece ... Com seriedade e temor de Deus é que se governa o barco , para que chegue ao porto , meu fidalgo . -- Engana-se , tia||_Margarida Margarida|_Margarida , o caso é agora outro . Trata-se de maior negócio , e por isso a espórtula será também maior . -- Anjo bento ! Virgem Santíssima ! Deus do céu ! Quem lhe fala nisso ! Para que quero eu dinheiro senão para ter a minha candeiazinha ali no meu oratório , e de tempos a tempos comprar um vestidinho novo à minha Senhora , que muito rica não pode andar , tenha ela paciência ; os cobres não chegam ... mas para mim , para mim ... nada ! -- Sossegue , mulher , não lhe digo o contrário . O dinheiro é a paga do trabalho , se há mais trabalho a paga ... -- A esmola . -- A esmola deve ser mais avultada . A velha concordou mentalmente . -- Depois dê-lhe você lá o destino que quiser , que com isso nada tenho . Mas vamos ao caso . Eu quero ter uma entrevista com uma das filhas de Febo Moniz . -- Oh ! Este grito de espanto , espantaria a outro que não fosse D. Alonso , usado na convivência com Margarida . O oh ! Não era mais do que táctica especuladora . -- Não se espante , mulher ; para mim não pegam essas espertezas . Vamos a isto pronto e limpo , que me não posso demorar muito . A velha franziu o rosto numa careta medonha , e disse : -- Senhor||_D._Alonso D.|_D._Alonso Alonso|_D._Alonso , Deus me leve em conta de meus pecados o que lhe sofro ! E a minha Senhora , que veja bem por quanto me custa essa pobre luzinha que a alumia . -- Não se zangue , mulher ; não estejamos com estas coisas . Veja lá : quer ? Senão ... E D. Alonso levantou-se . -- Oh meu fidalguinho , eu não me zango ! Não me zango ! Ora sente-se , está de pé , descanse o seu chapéu ! E que lindo ele é ! Deixe mirar-lhe&lhes+o bem ! Então dizia o meu fidalgo -- continuou Margarida , com o chapéu nas mãos e os olhos fitados avidamente na presilha de brilhantes pedras -- , que estava perdido de amores por uma das filhas de Febo ... e qual delas ? que eu a ambas conheço e decerto com uma seria obra muito mais dificultosa ... ora diga-me , é alta ? -- Também não sei . -- Má vai ela . Boas mulheres são as mulheres altas , Deus nos livre das baixas . A Virgem||_Santíssima Santíssima|_Santíssima era bem alta ; diga-me , tem cabelo louro ou preto ? -- Louro e olhos azuis . -- Bem , bem , acertou , é a alta . Gentil menina ! Aquela sim , que é uma boa dona da casa de seu pai , muito devota da Virgem||_Santíssima Santíssima|_Santíssima , muito temente a Deus ... -- Á sua moda , tia||_Margarida Margarida|_Margarida ? -- E muito minha amiguinha -- acabou a velha fingindo não ouvir a interpelação do mancebo . -- A outra -- continuou -- , a outra essa não , que é desdenhosa e soberba como o pai : isto só aqui para nós anda sempre entregue a leituras de livres ímpios , ouço até que não é boa cristã ... Mas diga-me , diga-me Sr.||_D._Alonso D.|_D._Alonso Alonso|_D._Alonso , que eu não quero falar nas vidas alheias , mas conte-me como foi isso . Olhe que o negócio é sério , e o Sr.||_Febo_Moniz Febo|_Febo_Moniz Moniz|_Febo_Moniz é muito capaz , mesmo velho como está e doente , de lhe pôr as tripas ao vento ... Veja lá em que se mete . -- Não tenha medo . Margarida , deixe isso comigo . -- Deixo , mas não sem receio ! Deus o defenda e o proteja , e a Virgem||_Santíssima Santíssima|_Santíssima o cubra com o manto da Sua divina graça . -- Diga-me , Margarida , a menina alta e loura como se chama ? -- Ana . -- E a outra ? -- Maria . -- Obrigado ... Agora veja lá , tome bem cuidado no que lhe disse . Desejo uma entrevista com Ana , e acredite que hei-de pagar bem . -- Outra vez meu fidalgo ! Quem lhe fala em paga ? E não é para paga , é esmola . Vá descansado , que será servido . Com Ana posso tudo , fosse com Maria , que o caso mudava de figura ... não quero dizer com isto que se não arranjasse . O poder de Deus é para tudo , e a minha Senhora e os meus santinhos , haviam de ajudar-me . -- Bem , Margarida , tome , guarde ... para a candeia e para o vestido ... -- De Nossa Senhora . -- Pois sim . -- Oh meu fidalguinho , tenha dó de mim ! O Inverno tem sido tão frio ... -- Também mata o bicho , tia||_Margarida Margarida|_Margarida ? -- T ' arrenego , cruzes ! Bebidas , eu ! -- Julguei ... pelo cheiro . -- Quê ? ! Cheirava ? Pois olhe que havia já bastante tempo ... e , mais , foi uma serva de Deus que se amerceou de mim ... que nas tavernas Deus me livre de pôr pé . -- Ás claras . -- Nem às escondidas , Sr.||_D._Alonso D.|_D._Alonso Alonso|_D._Alonso . -- Bem ; lembre-se do que lhe recomendei , e logo que haja novidade vá-me avisar . Adeus . -- Então , meu fidalgo e a pobre velha fica a tremer de frio com uma vasquinha que já não tem pele , que é mesmo uma rede de pardais ? -- Ah , ah ! Tome estes cruzados , ande ; estes agora são para si ? -- São , são ;