HENRIQUETA ROMANCE ORIGINAL POR D. MARIA PEREGRINA DE SOUZA PRECEDIDO DE+A Biographia da Auctora POR+O Visconde DE CASTILHO EDITOR Antonio LEITE CARDOZO PEREIRA DE MELLO 1876 CAPITULO I Qual é a primavera que nos indica o tempo que fará no outonno ? E quem póde saber no começo da vida o que o espera no resto ? ... Ah ! se uma mãe extremosa , que guia os primeiros passos de seu filho , podesse ler no futuro , quantas vezes não desmaiaria de pasmo , ou morreria de afflicção ? ... Felizmente nos dotou a Providencia com duas imperfeições , que fazem toda a nossa felicidade n ' este mundo : o esquecimento do passado , e a ignorancia do futuro . Não pensava Henriqueta assim , e daria metade da sua riqueza para adivinhar o porvir . Esta menina era formosa , boa , instruida e affavel , Seus paes não tinham mais filhos , e não pouparam despezas , nem canceiras para lhe darem boa e illustrada educação . Ella tinha preenchido todos os desejos de seus affeiçoados paes . Ninguem a via e ouvia , que a não admirasse ; ninguem a tratava , que a não amasse . Não ha porém alguem perfeito . Henriqueta tinha na alma semente venenosa , que , se a não destruisse antes de germinar , podia vir a dar péssimo fructo . Era esta semente a vaidade , que lhe vinha de conhecer , que muito valia . Tantas vezes lhe haviam feito saber , que tinha muitos dotes e merecimentos , que se julgou no fundo d' alma digna , de que todos os joelhos se curvassem diante d' ella . Não tinha o máo gosto de fazer ver , que era o idolo de si mesma , mas agasalhava com amor dentro no peito a crença , de que merecia adorações . Era o germen que havia naturalmente de originar muitos males . Teve a formosa donzella muitos casamentos , pelos merecimentos do seu dote , não dos seus dotes pessoaes . Vivia na aldeia e de poucos era vista . Henrique de Moraes , seu pae , de todos os pretendentes extremou dois , mancebos de que lhe deram excellentes informações , e os nomeou a sua filha , para que escolhesse . Ella nunca os havia visto . Devia pôr o dedo áa cégas . Era o jogo do par ou pernão ? Para Henrique de Moraes parecia-lhe bastante saber , que os dois pretendentes eram ricos , de boas familias , e de , bom porte . Para muitos paes seria esta ultima circumstancia traste de luxo . Para Henriqueta não a satisfaziam , com razão , estas informações . Quereria velos antes de se decidir ; porém aquelle que viesse á sua presença ficava quasi escolhido . Seria grande a antipathia , que lhe ganhasse , para se resolver a rejeital- o depois . Tenho decidido , disse ella por fim ; verei Julio de Castro : dizem que foi bom filho , e que é muito amavel . De Carlos da Silva tambem as informações são boas , mas pende a balança a favor de Julio . Oito dias depois estava Henriqueta agitada e anciosa . Seu bello e interessante rosto dava signaes de inquietação . Tudo na quinta de Rivaes mostrava alvoroço e contentamento . Esperava-se o noivo da menina . Ainda que os criados não tinham noticias officiaes do que se tratava , estavam em dia . Nada , ou pouco se occulta áquelles , que vivem debaixo das mesmas telhas que nos cobrem , que nos servem , e nos espiam . Ouviu-se o trote d' alguns cavallos . Todos os criados correram á porta , as criadas ás janellas . Henriqueta estava com sua mãe e tremia . Entrou o pae e mais um mancebo , que apresentou dizendo : O snr. Julio de Castro . E a este disse : Minha mulher e minha filha ... A donzella ficou satisfeita . Tinha o seu futuro esposo phiysionoinia muito sympathica e agradavel ; e ainda melhor lhe pareceu pelo ver ficar estatico diante d' ella , olhando-a com enlevo . Ella córou e abaixou os olhos . Henrique de Moraes chegou-lhe cadeira , e Julio saindo da sua distracção disse sorrindo : Peço perdão pela minha basbaquice . Imaginei que estava sonhando . Conversou depois com muita amabilidade . Todos ficaram namorados d' elle , paes , filha e mesmo os criados , que elle brindou na passagem com muita generosidade . Dentro em pouco fez-se o casamento . Foram os noivos viver no Porto , mas faziam frequentes e demoradas visitas á quinta de Rivaes , que não ficava longe . A lua de mel foi muito lónga , durou dois annos . A paixão de Julio porém , que primeiro foi quasi um frenesi , foi dando logar a sentimentos mais brandos , ainda que sempre ternos . Se Henriqueta não tivera opinião tão elevada de seus encantos e merecimento , contentar-se-ia-, e seria feliz com a affeição socegada e meiga de seu marido : mas tendo-o visto arrebatado de sua belleza , parecia-lhe mal velo só occupado de suas virtudes . Elle quiz trazel- a á razão , mas enganou-se no caminho . Em vez de conduzil-a com mimo e doçura a deixai-o vagar a seus negocios em liberdade e algumas vezes a distracções , que ella não partilhava , tentou acostumal- a com rude franqueza a ir onde lhe parecia , ou era mister . O genio de Henriqueta começou a azedar-se . E não tomava ella o trabalho de occultar seu desgosto . Julio se zangava e mais se afastava de sua mulher . Ambos começaram a lançar alicerces de um templo de infortunio . Aos dias de paz e ventura seguiram-se dias de guerra surda e de amargura . Henriqueta tinha para si , que seu marido desde que deixara de ser seu amante , havia tomado outros amores ; e o fazia seguir por toda a parte , espiava-o , consumia-o . Máo plano para attrahir um marido ! ... Julio , em retribuição , fugia-lhe cada vez mais . A frieza d' elle se communicou ao coração da esposa . Esta já o não amava , mas zelava-o sempre . Se às vezes se reprehendia a si mesma pela pouca affeiçao que sentia por Julio , logo se desculpava pensando : Sou muito bôa por comparar a minha indifferença com a d' elle . Perco-lhe o affecto com razão , e fui abandonada sem motivo : os escandalos apartam amor . Assim estes dous loucos se tornaram desgraçados reciprocamente ; em vez de procurarem a ventura domestica , que ambos podiam e deviam gozar , tinham ao menos a prudencia de occultar aos olhos do publico seus desgostos particulares . Henriqueta não fazia pequeno sacrificio n ' isso , principalmente quando alguem lhe gabava a amabilidade de seu marido , ou o seu bom porte . Julio era menos infeliz que sua mulher , pois não tinha no coração o inferno dos zêlos , e se alguma cousa em casa o mortificava , sabia , e esquecia seu desgosto . E ' a vantagem que os homens teem . Se em casa não são felizes , o mundo que é uma especie de segunda familia para elles , ( se às vezes não é a primeira ) os consola dos desgostos domesticos . Henriqueta pois soffria mais , e tambem o merecia , porque era mais culpada . Era ella sempre que encetava questões desagradaveis . Um dia lhe disse seu marido : A tua amiga Clementina andava fazendo compras na calçada dos Clerigos , e me disse contava hoje á noite comtigo . Tem visitas . Irei , se tu foresrespondeu ella . Não posso acompanhar-te . Quero ir ao theatro . Ha peça nova . Ella calou-se , mas ficou com ar descontente . Fingiu-se Julio desentendido , e agarrando seu filho , que corria pela casa , o beijou muitas vezes e disse a sua mulher : Muito se parece o nosso Augusto comtigo ! Tem os olhos mais lindos ! ... Eu conheço a belleza dos meus pelos seus effeitos . Não ha supplicio egual para ti ao de velos uma hora no dia . Só se eu passasse a minha vida prezo a ti com uma grilhêta , é que te mostrarias satisfeita . N ' isso creio que mostro ter-te affeição ... Os laços que nos prendem ás pessoas que amamos , nunca nos parecem cadeias insuportaveis . Eu não chamei cadeias insuportaveis aos laços que nos prendem . Não invertas as minhas palavras . Como tomaste o recado para ti ! ... Não te nomeei . Mas eu percebo-te . Bom é isso . Henriqueta , não sei que gosto tomas em nos tornar infelizes ! ... Bem sei que ha muito tempo te faça infeliz . Estás cada vez mais impertinente . É com a edade . Ha um anno a esta parte envelheço todos os dias a teus olhos muitos annos . Julio pegou no chapeo , dizendo : me-a ser impossivel passar alguns momentos com meus filhos ! ... Estás insuportavel ! E saiu zangado . Henriqueta fechou a porta , para chorar á vontade . Seu filho corria pelo aposento sobre uma bengala de seu pae . Até aquelle dia nunca o pequeno fez reparo nas lagrimas de sua mãe ; mas n ' esta occasião olhava-a ( attentamente , e , vindo a ella , gritou : Mamã ... mamã ; não chore que lhe dou o meu cavallinho . Henriqueta abraçou e beijou seu filho com a maior ternura e pensou : Preciso d' ora em diante guardar-me de Augusto . Não deve vir a presumir que tenho razões de queixa de seu pae . O constrangimento em que se pôz por causa de seu filho , foi-lhe saudavel . E quando veio a noite resolveu ir a casa de Clementina . Podia saber d' ella se Julio passeara só pela calçada dos Clérigos , e veria tambem se lá estava uma outra senhora , de quem mais zelava Julio , ou se ella iria ao theatro , como desconfiava . Não estava lá . Fatal coincidencia , que mais azedou a espoza de Julio . Clementina era a peior amiga que Henriqueta podia ter ; porque tinha um porte regular ; mas não amava a virtude tanto como devia . Nem a ella comtudo dizia a filha de Henrique de Moraes as suas tristezas ; mas n ' esta noite era tão infeliz , que ella as adivinhou , e lh'o disse . Não sei que tens ! Que te mortifica ? Nada . Doe-me a cabeça alguma cousa . Fiz mal em sair e retiro-me já para casa . Estás douda ? ! Se queres descansar , vai um pouco para o meu quarto . Não consinto , que te ausentes . Quando se não está , bom , é que são as precisas distracções . Tomara eu saber o que se póde fazer sosinha em casa ! ... Faria rir , se tu , na tua edade te emparedavas ! E tens muito geito para isso ! E , olha , está aqui um amigo de meu marido que se iria deitar ao Douro , se tu fugisses já . É muito natural . Fóra de graça , fizeste hoje uma conquista papa fina ! Que estás a dizer ? ! A verdade . Ha um certo sujeito que morria de amores por ti antes de ver-te . Veio ao Porto a negocios , e protestou que não se iria sem conhecer-te . Mas tu ... é preciso prometter uma missa ás almas para se alcançar a dita de enchergar-te ! Estás hoje muito divertida . Fallo sério . Tens um adorador , e vou apresentar-t ' o . Fazes com que me retire immediatamente . Tens medo ? ! E Clementina soltou uma risada . Não tenho medo ; mas não devo comprometter a minha fama fallando com um louco . Não temas , que queira comprometter a tua reputação . Não sou eu tua amiga ? Bem sei o que te fica bem e o que te fica mal . Nenhum risco corres em fallar com o amigo de meu marido . Elle não quer passar por teu amante ; é-o sómente no fundo do coração . Não te espantes com tão pouco , e não deves dar-te por entendida de cousa que deves ignorar . As creancices é que compromettem o credito . Todos sabem que adoras teu marido , que , a fallar verdade , devia mostrar-se mais grato ao amor de uma esposa como tu ; e acompanhar-te mais a miudo . Mas parece que gosta mais de andar por sua conta e risco ... Leva-te poucas vezes ao theatro , e ha um seculo que ninguem te vê nos bailes . Não gosto de bailes . Se teu marido te levasse mais vezes , havias de gostar . Permitte-me que te diga uma coisa ... bem sei que não tem remedio ... mas sou muito franca . Porque não casastes antes com Carlos da Silva ? Como elle te não faria feliz ! Conheces Carlos de a Silva ? Se conheço ? ! É o amigo de meu marido , em que te fallei . E elle está aqui ? ! Deixa-me retirar . Estás dicididamente douda ! Que se diria , se tu saías a esta hora ? ... Não consinto que faças disparates . Essas parvoices é que muitas vezes compromettem a melhor fama . Que pódes receiar ? Creio que não tens medo de te namorares de Carlos . E teu marido não é zeloso . O mundo te conhece . Porém , se Carlos diz ... O pobrezinho não diz nada que te desdoure . Antes de tu chegares estava n ' um alvoroço ... Quando te viu , ficou assombrado e murmurou a meu marido : Que formosura ! Nunca vi uma mulher assim . Clementina detinha Henriqueta , que no fundo d' alma não tinha já desejos de se ausentar . Queria conhecer aquelle que rejeitara , e ao qual parecia tão bem . Não se lembrava que Julio tambem ao vela a primeira vez ficara enlevado . O marido de Clementina veio n ' este momento apresentar o amigo á amiga de sua mulher . Henriqueta o recebeu o mais natural que pôde , mas o coração batia-lhe a rebate , como para advertil- a de que se aproximava inimigo , e era mister retirar a tempo . No entanto não tornou a esposa de Julio a fallar em ausentar-se . Carlos era tão amavel ... e fazia-lhe a côrte com tanta delicadeza e modestia ... O mancebo occultava no fundo do coração a paixão , que o devorava , para não espantar a caça ( em phrase de caçador ) e ella sem o pensar , se deixava apanhar na rede . Quando se retirou ia melancolica e perturbada . Pela primeira vez sentia desprazer de achar já em casa seu marido ; e tambem pela primeira vez , desde muito , não lhe deu piques pelas pessoas que elle veria . O pobre Julio se regosijava de ver sua mulher docil e boa ; e ella tinha a culpavel loucura de comparal- o em segredo a Carlos , e de achar este superior ao outro . Fui injusta ! pensava ella suspirando . E a razão não lhe dizia que , se fôra injusta quando rejeitara Carlos , era agora criminosa em preferil- o . Depois da fatal noite , em que a filha de Henrique de Moraes viu Carlos da Silva , encontrou-o muitas vezes , e mais e mais lhe parecia amavel e interessante , e cada vez menos temivel . Já não tinha difficuIdade em sair sem seu marido , antes procurava pretextos para isso . A louca enganava-se a si mesma . Julgava-se no mesmo terreno , e adiantava-se a passos de gigante no caminho da perdição . Não amo Carlos , dizia comsigo , é por compaixão que o soffro . Se a sua conversação me agrada , o mesmo succede a Clementina . Se eu fosse solteira , poderia apaixonar-me por elle ; mas no meu estado nada tenho a receiar . Dizia ella isto para se illudir , mas no fundo do coração lhe bradava ha muito uma voz que se acautelasse . Esta voz importuna foi desprezada , e a imprudente continuou a seguir seu gosto , frequentando cada vez mais a casa de Clementina , e todas as outras , onde encontrava Carlos . E ' mais perigosa para uma mulher uma amiga louca , que um amante apaixonado . Se Henriqueta não tivesse Clementina por amiga , talvez houvera arredado Carlos a tempo ; mas as insinuações da amiga eram sempre em favor do amante , que nada mais desejava senão adorar em segredo , e chorar o bem que perdera . Julio no entanto se applaudia de ter conduzido sua mulher aos termos , em que queria viver : saía e entrava sem que ella o mortificasse já . Ha muito precisava elle ir a Inglaterra , por causa de negocios ; e como via sua esposa sem os malditos zelos , que tão tristes dias lhe deram antes , julgou a occasião propicia , e fallou n ' isso a Henriqueta . Ella empallideceu ; teve medo de ver-se só . Já ha muito que não fazia caricias a seu marido , porque não era impostora , mas n ' esta occasião lançou-lhe os braçôs ao pescoço , e desfez-se em meiguices pedindo-lhe que a não abandonasse . Abandonar-te ! minha Henriqueta , respondeu Julio , retribuindo-lhe suas caricias , abandonar-te ! Antes morrer mil vezes . Mas deixar-te por alguns mezes , não é abandonar-te . Quando nos tornarmos a ver seremos outra vez noivos . Julio ! bradou ella angustiada , não vãs ! ... Ouço dizer que a mulher longe do marido é fraca ... Tenho medo de ficar só . Elle julgava serem estas expressões restos do genio zeloso de sua mulher , e lhe respondeu sorrindo : Ou só ou comigo é sempre forte a minha virtuosa esposa ... Fio-me tanto em ti , Henriqueta , como em mim . Ella cobriu o rosto com as mãos . Esteve quasi tentada a confessar a seu marido , que poderoso inimigo ameaçava a sua honra ; mas seria destruir a felicidade do pae de seus filhos , e a paz domestica , e suscitar rixas entre seu marido e Carlos . EIles viam-se e tractavam-se com politica , mas não se amavam ; e pouco bastaria , para que se tornassem inimigos declarados . Expulsarei a imagem de Carlos , pensou ella ... Começa na verdade a interessar-me demasiado ! Evitarei tornar a velo . Irei passar algum tempo com meus paes , e farei com que elles obriguem Júlio a não me deixar . Tomando esta resolução disse a seu marido , que queria ir passar alguns dias a Rivaes . Julio adivinhou que ella queria ajudar-se da auctoridade dos paes para o não deixar partir . Dissimulou e lhe disse que sim ; que o pae estava sempre a pedir sua neta , e a mãe , Augusto . Que iriam todos alegrar seus paes . E ria comsigo mesmo de que ella fosse adiante de sens desejos . Tinha disposto a sua partida para muito breve , e estimava deixar a sua familia em companhia dos paes de Henriqueta . A tenção que sua esposa tomara de evitar Carlos , foi n ' essa mesma occasião quebrada . Veio Clementina a buscal- a para ir jantar com ella , e á noite ir ao theatro . E ella foi ! ... Carlos era amigo da casa , acompanhon-as sempre . De manhã foram passear ao jardim , jantaram todos , e á noite foi tambem com ellas ao theatro . Já alguem murmurava de Clementina . A ella pareciam ser dirigidos os obsequios do mancebo . Henriqueta , ajudada por sua amiga , que gostava d' estas scenas de apparatosa sensibilidade , disse a Carlos que era preciso romper a relação d' amisade que os unia , pois , por innocente que fosse , podia parecer a alguem pouco conveniente . Carlos quiz reagir . Henriqueta persistiu , e Clementina sustentava que a sua amiga tinha razão , mas accrescentava logo com um suspiro ; E é pena , meus ricos amigos ! ... Tinheis nascido um para o outro . Se a minha amiga tivesse conhecido o snr. Carlos em solteira ! ... Mas tambem eu sou muito franca ; porque não veio v. s.ª ver aquella que pretendia para esposa ? ... Agora soffra as consequencias do seu desleixo . Etu tambem , Henriqueta , porque rejeitaste o senhor||_Carlos Carlos|_Carlos , que tão bom porte tem tido sempre , e credito de que é um excellente cavalheiro ? ... Mas tudo isto vem fóra de tempo . Não ha remedio agora senão sujeitarem-se a viver longe um do outro . Com estas e outras phrases , de sensibilidade affectada e de virtude forçada e manca aggravava o mal . Carlos ficou , ao que parecia , em profunda melancolia o resto do dia . Henriqueta tambem triste e abatida ; e a sua perigosa amiga espalhava entre os dois consolações e preceitos de virtude duvidosa . A esposa de Julio recolheu-se a casa com a alma despedaçada de angustia . Pensava que tinha feito uma grande cousa ! ... E Carlos se retirou mais que consolado . Ia contente . Deu-lhe a certeza de ser amado com paixão a profunda magoa , com que Henriqueta lhe dissera que era preciso não tornarem a ver-se . Em taes casos o melhor remedio é poucos ajustes e declarações . A ausencia sem preleminares de despedidas vale mais que todas as razões e phrases de boas tenções . Henriqueta foi pura a quinta de seus paes com seus filhos e marido . Este voltou para a cidade promettendo regressar no dia seguinte . Não tornara a fallar na sua viagem , e Henriqueta quasi esquecera tal projecto . Ella não pensava senão em Carlos , que julgava não tornaria a ver Julio não tornou a Rivaes . Escreveu a dizer que graves negocios o detinham no Porto . Henriqueta folgou com isso . A sua pesada melancolia daria que pensar a Julio ; dos paes se occultava ella , mettendo-se pelos sitios mais reconditos da quinta , emquanto elles se entretinham com os pequenos . As cartas de Clementina ateavam aquelle incendio , qne lhe ia dentro do peito . Cinco dias depois recebeu carta de seu marido o da sua pessima amiga . A d' esta foi lida primeiro . Vinha toda cheia do que dissera Carlos ; até havia chegado a fallar em suicidio ! Henriqueta chorou com desesperação . Ouvia os pés de seu pae , e se apressou a esconder a carta de Clementina , e a abrir a de Julio . Ah ! ... disse o pae ao vel- a , já sabes , que teu marido partiu para Inglaterra ? ... Mas não é preciso chorar assim . Elle prometteu-me que se não demoraria muito . As lagrimas de Henriqueta seccaram-se . Ficou aterrada por um pedaço , mas foi-se animando , e quasi se alegrou de saber que estava livre por algum tempo . Seu amante estava Ionge : ella estava com seus paes ; que podia temer ? Nada tinha na verdade que receiar , se antes não tivesse feito conhecer que a paixão d' elle achara echo em seu coração . Pensou com satisfação que teria tempo para chorar e esquecer Carlos , emquanto Julio andava longe ; mas não procurou esquecel- o , e só cuidou em choral- o . Um dia , em que triste e abatida se embrenhava na mata da quinta , para se entregar a seus criminosos devaneios , viu vir para ella um homem em trajes aldeãos ; quiz evital- o , mas elle correu e se precipitou a seus pés . Era Carlos . A esposa de Julio mostrou encolerisar-se ; mas elle a apazigoou com mil juramentos de lhe querer só dizer um adeus eterno . Protestava ao mesmo tempo uma paixão respeitosa , um amor sem esperança . Carlos ia partir para o Brasil , sem outro fim que fugir da terra em que vivia a uni ca mulher que o podia fazer feliz . Ella lhe perdoou tanta ousadia com a condição de não tornar a procural-a . E retirou-se , ordenando-lhe que não a pretendesse tornar a ver . Ordem sem força para aquelle que sabia ser amado , e conhecia a fraqueza e imprudencia d' ella ! Henriqueta fez mil planos para o futuro ; e um d' elles ( o mais rasoavel e bom ) era de não se afastar mais de seus paes e seus filhos . Depressa a fatigou , porém , o constrangimento . Fechava-se no seu quarto para chorar , e chorava muito . A voz da consciencia dizia-lhe que tinha commettido muitos erros , e que estava em risco de os commetter muito maiores . O tempo corria muito agradavel para Henrique de Moraes e sua mulher , e para seus netos . Se alguma cousa contristava os primeiros , era verem , que sua filha andava triste , fugia d' elles , havia perdido suas bellas cores e o appetite . E quanto não se esforçava ainda Henriqueta para occultar suas penas e males ! ... Elles estavam persuadidos que as saudades de Julio é que cansavam a doença e tristeza d' ella ; quão longe estavam de pensar que tudo nascia agora de remorsos ! ... Henrique de Moraes escreveu a seu genro a pintar-lhe o estado de sua filha , para que elle abreviasse a sua volta . Pouco tempo depois recebeu ella carta de seu marido . Córou ao lêl-a , depois fez-se pallida . Saíu de casa , correu pela quinta , como se quizesse fugir a si mesma ; foi a um bosquezinho , arremessou-se sobre um banco e soluçou sem constrangimento . Um homem vestido de trabalhador correu alli e lhe disse com um tom de auctoridade , que não dizia com seu traje humilde : Isto passa das marcas ! ... Queres que os teus criados venham aqui e te achem n ' esse estado ? Que accrescimo de loucura tens hoje ? Henriqueta , ganha juizo . Deitas-te a perder com taes excessos . Dize , porque choras ! É por me fazeres feliz ? Cala-te , Carlos , bradou ella endireitando-se , e deixa-me . Hoje não posso soffrer teus discursos ... Fizeste-me a mulher mais desgraçada do mundo ! ... Não me queixo ... Tive a principal culpa do meu aviltamento e desgraça ... Mas deixa-me ... deixa-me agora chorar e morrer de vergonha ! Não me importunes ! Parte d' esta terra ! ... Não me tornes a apparecer ... é o unico favor que te peço . Carlos replicou com paixão e ternura : Que parta ! ... que te não torne a vêr ! Ó minha Henriqueta ! pede-me antes a morte . Perdoa-me tuas penas ... Fiz-te desgraçada , porque me não amas . Se me amasses , lamentarias o nosso amor ? Não te amo , Carlos ? ! Achas que te não amo ? Por tua causa deshonrei e atraiçoei os melhores dos paes , os mais ternos e innocentes filhinhos , e um marido magnanimo e nobre ; um marido ... Um marido que ha oito mezes te deixou sem saudades , e que passa a vida alegre com alguma amante abjecta . Para desculpar nosso crime não calumniemos os ausentes . Não sei de Julio nada de mal , e ainda que o soubesse ... já não tenho direito do ser zelosa . Oxalá que elle não pensasse mais em mim ! ... Lê esta carta , que acabo de receber ... Oh ! meu Deus ! ... Chama-me a sua virtuosa esposa ! ... Lamenta os meus padecimentos ... Vai deixar todos os seus negocios para vir viver comigo ! ... Lamenta a ambição que de mim o separou ! Trabalhava para deixar nossos filhos mais ricos , mas diz que a felicidade está primeiro que a riqueza ... A felicidade ! ... a felicidade ! ... morreu para nós . E ella cobriu o rosto e chorou como desesperada . Carlos pegara na carta , e sem a ler a rasgou em pedacinhos , amarfanhou-os , e os lançou longe . Depois lhe disse : Julio vai chegar . É preciso que te occultes a suas vistas , Henriqueta . Oh ! ... bem o queria ! ... Carlos , chegou o tempo de me provares o teu amor ... de me fazeres vêr que , se eu te sacrifiquei os meus deveres ... deveres de filha ... esposa e mãe ... os deveres mais sagrados , não tenho ao menos empregado mal meu criminoso affecto , faz-me um sacrificio ... ( muito ligeiro em proporção do que eu te fiz ) mata-me ... mata-me e foge ! Ainda deves ter aquelle punhal com que te quizeste suicidar á minha vista . Mata-me , Carlos , e eu abençoarei a mão que me ferir . Henriqueta ... meu amor , estas em uma allucinação terrivel ! ... Socega , e escuta-me . Ah ! ... não ! ... estou em meu juizo . Allucinada estava eu quando perdi o direito de ser respeitada ... quando me aviltei a meus olhos e aos tens . Aos meus és sempre um anjo . Não me peças que te mate . É pedir impossiveis . Não teria animo , ainda que o quizesse . E tiveste animo para me tornares desgraçada ! Fiz-te desgraçada porque te amava muito , e tu me amavas pouco . Se tu tivesses por mim a paixão que me inflamma , quanto não seriamos felizes ! ... Iriamos para a Bahia ... Cuidas que eu teria animo para affrontar assim a opinião do mundo ? Mudarias de nome ; passarias por minha esposa , e selias- o-diante de Deus . O matrimonio que contraistes foi iniquo ... foi sacrilego . Rompe-o . Deixa livre esse homem que te não merecia . Vem ... vem comigo ... Cala-te , Carlos ! ... Fazes-me horror ! Deixar meus filhos ! ... meus paes ! ... Lançar sobre elles e sobre meu marido uma nodoa infamante ! Deshonrar entes que devia honrar e fazer honrar ! ... Ai Jesus ! ... que digo ? a deshonra é certa ... Foge Henriqueta , foge de toda essa gente que te insultará porque tu tiveste um coração sensivel . A honra ou deshonra são cousas que ás cegas applica o mundo como lhe parece . Muitos , dignos do patibulo , são estimados ; outros , merecedores d' uma coroa , soffrem despresos . Foge de quem te ha de despresar porque foste mulher fraca , e não criminosa . Não ... isso não ! Fugir é augmentar meus erros . Terás animo para soffrer a colera de teu marido ? ... As reprehensões de teus paes ? ... As vistas dos teus criados ? ... O despreso de toda essa gente selvagem que se regosijará de vêr sem prestigio a mulher que a opinião publica tinha sempre respeitado ? ... Vem comigo , serás a minha esposa ... O meu anjo ! ... Estarás cercada de respeitos que mereces , e das minhas adorações e amor . Ah ! minha querida Henriqueta ! ... se não é por ti , e por mim , se te não importa a tua vergonha e a minha desesperação , ao menos por nosso filho , foge d' esta casa ! ... Vê que elles terão animo para deital- o á roda ou ao monturo ! ... para abafal- o ! ... Não acabes de matar-me ... Deixa-me ! ... É quasi noite . Adeus ... até ámanhã . Pensa no que te disse . Além-mar nos espera ... Vem ámanhã ... Adeus . Ouço gente . Carlos se retirou precipitadamente . Vinha um criado procurar Henriqueta . Tudo se preparava em casa de Henrique de Moraes para uma festa de familia . Julio tinha chegado a Lisboa , não dissera o dia em que vinha , mas não estaria longe esse dia . Todos andavam alegres , menos Henriqueta , que tinha immenso trabalho para occultar sna desesperação . Era naturalmente franca e custava-lhe muitissimo dissimular . Precisava sorrir quando quereria soltar gritos de angustia . Recolheu-se um dia mais tarde que o costume de seu passeio solitario . As sombras que se estendiam sobre a natureza valeram para esconder a vermelhidão de seus olhos , e a angustia de suas vistas . Já estava para te mandar procurar , lhe disse seu pae , que passeava na sala com sua netinha ao collo . Tardei bastante ... não sirvo senão para dar-lhes cuidados e tristezas , replicou ella com voz alterada . Que tens ? ... Parece-me que estás mais incommodada . Não , meu querido pae . Creio que estou rouca ; e doe-me a cabeça , mas estes incommodos de nada valem . Estás mais doente do que dizes . Apesar do gosto que tens , vaes sempre a peior . Teu marido póde ralhar-nos quando chegar . Deixamos-te muito senhora da tua vontade , e tu não trataste da saude como devias . Elle póde dizer que fomos máos depositarios , que não és a mesma , que eras , que já te não quer . Este gracejo de Henrique de Moraes era um agudo punhal para o coração da mulher culpada , que estava dizendo comsigo : Terrivel verdade diz meu pae , sem o saber ! ... E disse depois o melhor que pôde : Meu pae , dá licença que eu vá ámanhã ao Porto a casa de Julio ? ( Já se não atrevia a dizer : a minha casa . ) Tinha alguns arranjos a fazer alli . Essa é boa ! ... Estás emancipada . Mas se queres escutar os meus conselhos , os arranjos a que tens de attender primeiro , é de te tratar . Cuida da tua saude . Vaes ao Porto , falla com o teu medico . Sim , meu bom pae . Elle continuava a passear com a menina , e proseguiu dizendo : Estimo que venha teu marido , porque me davas muito cuidado , e porque tambem o amo como filho , e terei muito gosto de o vêr ; mas quando penso que me vão ser roubados meus netos ... Hei de pedir-lhe que me deixe um d' elles . Vós podeis contentar-vos com um , emquanto não tiverdes mais . Henriqueta passou a mão pela testa , e disfarçando seu abalo , replicou : Quer ficar com Virginia , não é assim ? Com Virginia ou Augusto , não escolho , bem que este amorzinho me encante . E tua mãe é doida pelo pequeno . Elles são muito felizes por terem tão bons protectores ! ... Não sabe , meu rico pae , quanto isto me consola . Que dizes ? ... Consolar-te de que ? Duvidas ainda que teu marido esteja a chegar ? ... É preciso , minha filha , que não sejas tão exigente . Um homem não póde estar sempre agarrado á saia de sua mulher . Mas , como tenho visto o mal que te fez a ausencia de Julio , hei de pedir-lhe que te não deixe mais . Na minha ultima carta já eu lhe dizia que mais vale viver contente e feliz que possuir grossos cabedaes : e a resposta d' elle approvava o que eu lhe dissera , e assegurava-me que ía viver só para sua virtuosa esposa e seus innocentes filhos ; que ía deixar-se do seu commercio de vinhos . Estás satisfeita ? Sim , meu pae ... respondeu ella , forcejando por suster suas lagrimas e suspiros . Depois approximou-se d' elle , dizendo-lhe com meiga tristeza : Meu querido pae , deixe-me beijar Virginia , e abençôe- me ... Quero ir deitar-me , por me doer a cabeça ... e quero levantar-me cedo . A pobre Henriqueta beijou sua filhinha com sofreguidão e lhe inundou o rosto de lagrimas , abraçou seu pae e lhe beijou a mão . Elle lhe afagou as faces , dizendo : Deus te abençôe . Choras ! ... Choro tanto de ternura e alegria , como de tristeza ... O amor que o pae tem a meus filhos ... Está bom ... Chorar de tristeza ou de ternura deve augmentar-te as dôres de cabeça . Tem razão ... Adeus , meu pae . E saiu precipitada . No corredor encontrou sua mãe , de quem se despediu . Alli estava já muito escuro , e suas lagrimas não foram vistas . Vinha um criado com luz e ella se apressou a deixar sua mãe . Chegando ao quarto arrancou os cabellos com desesperação , e correnda para o leito se arremessou n ' elle estorcendo-se , e ferrando nos lençoes para abafar seus gritos . Uma criada entrou com luz . Põe essa luz longe , balbuciou ella : doe-me a cabeça . O snr. Henrique e a senhora , mandam perguntar se quer tomar alguma cousa , disse a criada . Não quero nada , Rosa . A senhora disse que vinha logo cá vêl-a . Que não venha ... que não venha . Ella custa-lhe andar depois da queda que deu ; e eu do que preciso é de socego . Vou dormir ... mas queria antes beijar meu filho . A ' manhã partirei muito cedo para o Porto . Vai-o buscar . Mas ... olha uma cousa . Eu espero voltar ámanhã , mas ... quem sabe ? Posso ter occupações que me demorem . Toma conta em meus filhos ... e trata minha mãe como agora . Tu és uma boa rapariga . O'snr.ª D. Henriqueta ! . . quem póde ser máo n ' esta casa ? ... Tens razão ... só uma pessoa como ... como ha algumas , podia aqui ser má . Vai buscar meu filho . Rosa foi buscar o menino , e voltou logo com elle . Henriqueta tinha-se erguido do leito ; estava sentada longe da luz , e disse á criada : Deixa aqui um pouco Augusto . Vem buscal- o logo . Rosa saíu . Henriqueta fechou a porta e pegando em seu filho nos braços tornou a sentar-se . As lagrimas lhe corriam em fio , contemplando o bello rostinho do pequeno e o comia de beijos . Que tem mamã ? . . disse a creança lançando os bracinhos ao pescoço d' ella . Está a chorar ? ... Mordeu-lhe alguma vespa ? Tambem mordeu uma na menina , e ella chorou tanto ! . . ( coitadinha ! . . ) mas eu hei de matal- as todas ... todas ! A avó diz que se podem matar , porque não fazem mel como as abelhas . Segue sempre os conselhos de teus avós ... e dá-lhes muitos abraços e beijos , dizia Henriqueta suffocada em chôro , e apertando seu filho ao coração . Faze-lhes sempre a vontade ... e sê muito amiguinho de tua irmã , e ... e ... Queria dizer-lhe mais , porém os soluços lhe embargaram a voz . E porque chora mamã ? ... Porque ... tenciono ir ámanhã ao Porto , e ... estou com dôres de cabeça ; mas vou-me deitar , e ámanhã me-bôa . E forcejou por suffocar o pranto , e continuou : Obedece sempre a teus avós e ... a teu pae ... para que elle te perdôe ... quando fizeres alguma cousa que lhe não agrade . Sim , mamã . Elle ha de me trazer um cavallinho de Inglaterra ! ... Não deves esperar que elle te traga nada . Andam a metter-te tolices na cabeça . Tomáras tu que elle te trouxesse o seu amor ... e t ' o conservasse sempre . Não se agonie commigo , mamã . Beije-me e chame-me o seu Nini , que eu hei de ser sempre bonito , e não hei de tornar a fallar no cavallinho que o papá me ha de trazer . Henriqueta cobriu seu filho de beijos e lagrimas . Torna a chorar , mamã ? ... E o pequeno poz-se tambem a chorar . Já te canso penas , meu filho ? ... Perdôa- me ... não chores ... não chores , meu Nini , olha ... estou já melhor ... já não choro . Pede a Deus , quando te deitares , por mim ... Pede-lhe que nos tornemos a vêr ... no céu , accrescentou mentalmente . Leve-me comsigo , mamã . Leve-me comsigo e não chore . Oxalá que podesse ! ... Mas não ! ... Deus me livre ! ... Tua avó ficaria muito triste , se a deixavas , meu filhinho . Pois então não ha de chorar mais , não ? ... Não , meu filho , não choro mais . E se fores bom ... nunca mais me has de vêr triste . Mas não digas a ninguem que me vistes chorar . Se tua avó o sabia , chorava tambem , e não a devemos affligir . Deves fazer sempre por lhe dar alegria . Ama-a sempre muito e ao avô . Faze-lhes muitas meiguices e a teu pae , para ... que elle seja teu amigo . Assim , mamã ? E elle acariciava as faces de sua mãe . Ella fechou um momento os olhos , depois continuou , beijando-o : Sim , meu adorado filho ? E sê muito bom para tua irmã . Ella ( pobrezinha ! . . ) chegará a tempo em que talvez ninguem a ame . Seu avô não é novo , sua avó padece ... mas tu has de amal-a e protegel-a . Sim , mamã . Não irei no carro do cazeiro , antes hei de ficar sempre a brincar com ella ; e hei de matar as vespas todas , para que lhe não ferrem . Sim , meu filhinho . Sê o seu protector . Defende-a sempre ... A criada forcejava por abrir a porta , julgando-a cerrada . Henriqueta foi-a abrir com seu filho nos braços , e dando-lhe um ultimo beijo , o poz no chão para ir com a criada , e ficou á porta emquanto o avistou ; depois entrou e debruçou-se no leito pensando : É para sempre ! . . para sempre ! ... Nunca mais o verei ... nem a Virginia ... nem a meus paes ! . . nem ... nem a todos os que tenho amado em tempos felizes ! ... Quando a criada tornou , achou-a deitada ; parecia dormir . Saiu succintamente . A infeliz não fechou os olhos senão para não vêr o reflexo da luz da lamparina . A cabeça lhe doía horrivelmente . No dia seguinte foi para o Porto , e de lá escreveu a seus paes , dizendo que sabia que seu marido vinha por terra , e que ía ao seu encontro , e mettendo-se n ' uma sege partiu de casa , seguida por um criado que tinha ha pouco . Julio chegou n ' um vapor , e dizendo-se-lhe que sua mulher fôra por terra ao seu encontro , se affligiu e admirou de tal disparate . Subiu ao seu quarto para descansar , e achou a seguinte carta : " Não te escrevo para pedir-te perdão da deshonra que te lego e a nossos filhos ... sei que o não mereço . As reprehensões que me faz a consciencia não são menores que as que tu estás em direito de fazeres á minha memoria . Deixo-te para ser desgraçada . Não poderia encarar-te ! ... Ah ! ... Julio ! . . que não herdem nossos filhos o odio que terás com justiça á mãe . Elles são innocentes . E bem tenrinhos ficam abandonados de sua criminosa mãe ! ... Adeus , Julio ... fiz a tua desgraça e a minha ! ... Se ousasse , te pediria que me perdoasses na hora da morte ... mas sou indigna de todo o perdão ! . . odeia-me ... Esquece-me ! . . e ama Augusto e Virginia , e meus pobres paes . Adeus até o dia tremendo , em que tão espantosas contas tenho de dar ... Adeus . " Narrar o desesperado frenesi de Julio é impossivel . Por felicidade estava só , e pôde dar livre curso á sua angustia sem testemunhas . Quando teve valor para senhorear suas sensações , montou a cavallo e partiu em seguimento de sua criminosa esposa ; passados dias voltou e procurou occultar ao mundo sua deshonra e a de seus filhos . Deixaremos porém os trahidos para seguir a traidora . Henriqueta chegou á Bahia com Carlos , e lá passou por sua esposa . Se não fossem os remorsos e as saudades poderia ella ser feliz no primeiro anno em que foi rodeada de attenções pelo seu amante ; mas apenas este saía de casa , ella ía á janella d' onde via o mar , e chorava amargamente . Como queria viver muito retirada , Carlos estava com ella n ' uma quinta , e nos primeiros tempos só ía á cidade , quando a necessidade o forçava a isso ; porém a sua paixão foi esfriando , e os pretextos começaram a ser frequentes para deixal-a . Henriqueta não se queixava . Tinha deixado de ser zelosa . Até às vezes o via sair com prazer , para poder entregar-se a seus negros pesares . A criminosa infeliz não era a mesma , nem no physico , nem no moral . Seu rosto se defecava e emmurchecia , seu caracter se purificava no crisol da infelicidade . No coração e alma era mais virtuosa , para assim dizer , do que no tempo em que o seu porte era bom ; pois odiava o crime mais que nunca ; e , se não fôra um filho que tinha de Carlos , o-deixado , ou antes não o teria seguido . Mas o pequeno Eduardo não era bem visto de seu pae . Era feio , doente , e lhe recordava uma culpa , que tão más consequencias tivera . A mãe era mãe . Amava o pequeno e se compadecia d' elle . E não se atrevia a deixal- o ao pae , temendo que o abandonasse , nem a leval- o comsigo para morrer de miseria . Estava ella um dia com seu filho nos braços , e derramava lagrimas , lembrando-se dos filhos que não tornaria a ver . Ouviu cavallos . Devia ser o pae de Eduardo ; enxugou os olhos e procurou aparentar socego . Carlos entrou com um amigo ; unica pessoa a quem ella tinha consentido vêr , para satisfazer Carlos . Emilia , disse Carlos , ( ella havia tomado este nome ) faze favor de entregar o pequeno a uma negra . Não posso ouvil- o rabujar . Tenho-te pedido muita vez que não estejas com elle ao collo ; isso faz-te mal . Henriqueta entregou , suspirando , a criança a uma escrava . Rodrigo , o amigo de Carlos , disse a este : Não ha casa , que eu goste de frequentar como a tua . Além do favor que me fazem em me tratarem com amizade , sinto uma verdadeira ventura ao vêr tanta paz e ordem , e tanta doçura para os negros . A snr.ª D. Emilia é um anjo . Bella , amavel , boa , virtuosa ! ... Se eu soubesse que achava uma esposa assim , casava-me já . Henriqueta córou e descórou . Carlos fingiu rir e replicou para que mudasse a conversa : Casa depressa . Quero dançar-te na bôda . Mas já que fallei em dançar ... Conta-me cá ; foste hontem feliz ? Que tal esteve o baile ? Não me disseste ainda nada d' elle . Oh ! . . diverti-me muito ! ... Eu bem queria , que fosses com a senhora . Succedeu lá um caso de summa pilheria . João Felizardo tinha trazido de Inglaterra uma linda moça , que nos impingiu por sua mulher . Ora ! ... Todos sabem isso ! Tu sim , mas a senhora não . Ella não falla com ninguem ; vive só para seu marido e seu filho . Se todas as mulheres cumprissem assim os seus deveres ... Conta-nos como foi o baile . João Felizardo apresentou-se lá com a sua ingleza . Nós estavamos prevenidos , e os pozemos no meio da rua . Se visses como elles grumaram a affronta ... Fazia estalar de riso ! ... Foi muito bem empregado ! ... Querer-se igualar com senhoras honradas uma aventureira ! ... Carlos , abatido e desanimado , não tinha tido força de tornar a interromper o amigo , bem que adivinhasse o que estava soffrendo a sua cumplice ; pois , sempre que o fizera , tirára máo resultado . Henriqueta havia encerrado no fundo d' alma os trances dolorosos porque estava passando . A ' ultima phrase porém de Rodrigo não pôde mais ; levantou-se para sair ; mas a vista lhe faltou e baqueou em terra . Os dous amigos a levantaram , e Carlos , para disfarce , lamentou que Emilia fosse sujeita a desmaios . Duas escravas levaram a senhora para o leito , e a fizeram tornar a si . N ' esta occasião sentiu Carlos immensa compaixão pela mulher , que desgraçára , e , se podesse , lhe restituiria a paz e ventura , que lhe roubára , á custa de todos os seus haveres . Tarde lhe chegavam idéas generosas ! ... A infeliz estava votada a uma vida de ignominia e remorsos . Toda a noite esteve Henriqueta em terriveis agitações . Só de manhã adormeceu . Carlos saiu então . Ao voltar achou-a mais socegada ; mas , apenas se viu com elle , tendo uma negra saido com Eduardo , exclamou apertando as mãos convulsas ao peito : Ah ! . . meu Deus ! . . se aquella desgraça nos succedia a nós ! Socega , disse elle acercando-se compassivo , socega , minha querida Emilia . Ninguem duvida que és minha esposa . Todos te respeitam e amam . Sim ! . . sei enganar melhor o publico que essa pobre ingleza ! . . que recebeu todos os insultos , que eu devia participar . Por mais criminosa que ella seja , não o póde ser tanto como eu ... e comtudo só tu sabes quanto sou infame ... Perdôa- me , Carlos ... perdôa- me por ter sido tão fraca . Emilia ... Deixemos este assumpto . Quiz lioje comprar-te um bello mulato , para te acompanhar , quando saisses . Por piedade não me dês mais d' esses infelizes . Se tu chamas infelizes os negros que tratas como filhos , que chamarás a alguns que eu hoje vi ? ... Um deixou-me horrorisado ! ... Estava em uma loja humida , nú , prezo a um cepo , e ás escuras . Disse-me o senhor , que m ' o foi mostrar , que elle tinha a côr esbranquiçada por estar ha tempos alli de castigo , a jejuar a pão e agua , e a levar açoites todos os dias , não porque fosse doente ... Ahi estás tu a chorar ! ... Carlos , se te deve alguns cuidados o meu socego , vai ... compra-me esse desgraçado . Quiz compral- o , por me fazer muita compaixão , e velo estender-me as mãos em ar de supplica . O senhor dava-m ' o muito barato , mas disse-me que não queria enganar ninguem , que o negro tinha um genio feroz , que estivera para matal- o com um machado . Antes te comprarei o mulato em que te fallei . Não , não ! ... Compra-me o negro , que está em castigo . Mas has de me fazer mais um favor , compra-o com o preço de umas joias que trouxe de Portugal . Ah , Henriqueta ! ... Não te pedi tanto que não trouxesses nada da casa de Ju ... Cala-te ! . . não pronuncies o seu nome ! ... Faz-me um mal terrivel ouvil- o da tua bôca . As joias que trouxe foram aquellas que meus paes me deram antes de casar ; e só vieram commigo como lembranças da minha vida innocente e pura . Quero vendelas todas , se fôr preciso , e comprar esse desgraçado com o meu dinheiro . Essa boa acção me dará muita consolação , e talvez proveito . Já fazes distincção do que é meu e teu ? ... Guarda as tuas lembranças . Quero dar-te eu o negro . É muito barato . Deus queira que não venha dar-te desgostos . Henriqueta insistiu , que queria compral- o com dinheiro seu . Depois de breve debate elle cedeu . Tinha conseguido seu intento , que era distrahil- a de seus remorsos . No dia seguinte foi Carlos á cidade , e voltou com o negro vestido de novo , e apontando-lhe para Henriqueta , lhe disse : José , alli está a tua senhora , que te comprou com dinheiro do seu bolsinho . Vê como te portas ! ... Ella quiz-te livrar dos castigos que estavas soffrendo ; vê se és ingrato . O negro tinha-se arrojado aos pés d' ella , e lh'os beijava soffocado em choro . Foi este o dia mais feliz , da vida errada de Henriqueta , ou de maior consolação ; porque felicidade não a ha onde existe o remorso . Passaram-se perto de dons annos sem grande novidade no viver de Henriqueta . Só ella tinha mais vagar de chorar suas culpas na solidão . Carlos mais e mais se afastava d' ella . Parecia que lhe pesava a sua companhia . A misera nem agora tinha a criminosa satisfação de crêr que havia sacrificado a honra , a patria , a familia , os seus deveres e todas as suas alegrias a um amante fiel : ella conhecia bem que só a commiseração e a vergonha obrigava Carlos a tratal-a ainda como sua mulher . Se não fôra Eduardo , pensava ella , se não fôra meu pobre filho , dispensaria Carlos d' este martyrio , fugindo , fosse para onde fosse . O'meu Deus ! . . que aviltamento o meu ! ... Viver á custa de um homem que me perdeu ... e que me despreza ! ... Mas onde posso ir com meu filho ? ... Como o poderei sustentar ? ... Desacostumei-me de tal sorte de trabalhar ... Apenas sei chorar . Os mimos de Eduardo enterneciam a infeliz , e lhe retalhavam a alma , por elle ser filho de um crime , e porque d' aquella edade fôra por ella abandonado Augustinho . Os pequenos eram muito differentes porém . Augustinho aos quatro annos era bello , forte , atrevido e cheio de graciosa ignorancia , e de innocencia . Eduardo não era bonito , nem forte . Sua alma era bella , seu espirito perspicaz , mas sua timidez não o deixava mostrar o que valia . Seu pae o tinha por estupido e parvo e não o amava . O menino o temia . Todo o seu affecto se empregava em sua mãe e José . Este negro queria adivinhar-lhe as vontades , para agradar a sua senhora . Um dia passeava José com a creança e desviou-se um pouco para apanhar-lhe laranjas ; ouviu um grito ; volta-se e vê um grande mono levando o menino . Corre após elle , mas o macaco pula sobre as séves , trepa ás arvores , transpõe collinas , levando sempre a sua presa , que bradava por José continuamente . O negro perseguia-o com actividade . O mono , seguido de perto , endireitou por uma ladeira abaixo , porque não tinha por onde se safar ; mas mostrava muita inquietação ; é porque no fim estava um rio e elle não podia tomar á direita , nem á esquerda . Chegando á borda do rio o manhoso animal atirou á agua a creança e trepou para uma arvore , tendo por certo que o negro o deixaria para acudir ao menino e assim foi . José se atirou ao rio , ainda que estivesse alagado em suor , e salvou o filho da sua bemfeitora . Com o susto e com o banho estiveram ambos muito doentes ; particularmente José , que esteve á morte . Quando Henriqueta viu o negro são , lhe disse , que já que outro bem lhe não podia dar em remuneração dos seus serviços , lhe dava a liberdade . Em vez da alegria que todo o escravo sente ao ver-se liberto , José mostrou no rosto intensa dor . Que tens , José ? lhe perguntou ella admirada . Não entendeste o que te disse ? E's agora senhor das tuas acçoes . Recommendo-te , que enfreies sempre a tua colera . Os homens livres precisam tambem subjugar suas paixões . José se lançou de joelhos , bradando : O negro querer ser escravo de minha senhora ... Não querer nunca deixar minha senhora ! ... Meu bom José , tens-me então muita affeição ? Sim ... sim , . , minha senhora . Pois estarás commigo emquanto quizeres ; mas és livre . José beijou os pés de sua senhora , agradecendo-lhe , não a liberdade , mas o deixal- o viver com ella como escravo . Quando elle saiu , bradou Henriqueta com as lagrimas a correr pelas faces : E os brancos desprezam os negros ! ... Ai de mim ! . . só o coração d' este grato negro me resta ! ... Ninguem mais me ama ! E eu , mãe ? . . e eu , disse Eduardo , que assentado n ' um cantinho do sofá tinha estado calado e attento . A mãe tomou-o nos braços e o cobriu de beijos . A discrição prematura d' esta creança era cousa pasmosa . Conversava com sua mãe com muito juizo , e raras vezes brincava . Era triste , A melancolia da mãe e o desamor do pae o tinham tornado assim . Mãe , disse elle . o senhor||_Rodrigo Rodrigo|_Rodrigo disse-me que os negros são assim , para se não sujarem e nos servirem : isso póde ser ? ... Não , meu filho ; o snr. Rodrigo disse-te isso por graça . Mas é tão feio mentir ! ... O Senhor não quer que se minta . É verdade ... hei de ralhar ao snr ... Rodrigo . Mãe , por que quer José ser negro ? ... A mãe queria que elle fosse branco . Não , Eduardo , eu não podia querer a que Deus não quiz . Elle nasceu negro , e assim ha de morrer ; mas escravo é que não nasceu . Quando cresceres havemos de fallar sobre isto mais a fundo . Eu queria ser muito grande ... como o pae e o snr. Rodrigo , para conversar com a mãe , e entender tudo que me dissesse . Mas então não te terei ao collo coma agora . Isso é verdade ! . . e é tão bom estar assim . Então porque foges dos meus braços a todos os momentos ? Para a não incommodar . O pae diz que lhe faz mal pegar em mim . O'meu rico filho ! . . a unica cousa que me faz bem e me consola é ter-te êm meus braços . Ah ! ... Ouço a voz do pae nas escadas ... Deixa-me ir para o José ? Sim , mas antes beija a mão a teu pae e cumprimenta o snr. Rodrigo , que tambem sobe . Carlos entrou com Rodrigo . Havia dias que negocios ou divertimentos o tinham detido longe de Henriqueta , mas cumprimentou-a com muita frieza , e repelliu seu filho , que tentara beijar-lhe a mão . Passado pouco foram os dois amigos passear á quinta . Henriqueta saiu tambem correndo , e foi embrenhar-se no laranjal , onde se acoitava sempre que as saudades do tempo passado , ou das pessoas que abandonara a opprimiam . Muitas e amargas lagrimas tinha alli derramado e n ' este dia não foi um dos que menos chorou . Aos seus pesares do passado se reunia , o amargor do presente , e o receio do futuro . E que viria a ser do seu Eduardo ? O pae o odiava ; e ella não ousava mesmo queixar-se d' isto . Infeliz Henriqueta ! . . ainda não tinhas esgotado o calix do amargoso fel , que devias beber gôta a gôta ! Algum ruido e fallar a meia voz veio colher a mãe de Eduardo no meio do seu prantear , e o supplicio que então padeceu é acima de toda a expressão . Suas lagrimas se seccaram , suas faces tornaram-se pallidas , e seu corpo tremulo e coberto de suor frio curvou-se quasi sem ella dar por isso , e se occultou entre as folhas das bananeiras que estavam na borda do laranjal . Do outro lado entre Rodrigo e Carlos corria o seguinte dialogo : É o que te digo Carlos , estimo-te menos desde que lhe mostras pouca affeição . Confesso que Leonor é uma moça bonita e galante , mas que te importa a ti isso , homem casado com uma senhora de tantos meritos e virtudes ? Dizes que D. Emilia vai perdendo a belleza todos os dias . Isso é verdade : mas suas boas qualidades , sua docilidade e paciencia são sempre as mesmas . Quanto mais te tornas injusto para ella , mais a admiro . Não faz uma só queixa ! ... uma só recriminação ! Carlos , uma esposa virtuosa e boa é sempre bella para um bom marido . E quem te diz que os desgostos que lhe dás não são os algozes de seus encantos ? E D. Emilia ainda tem muita belleza , e entre a maior parte das mulheres levaria a palma . Rodrigo , vou fazer-te uma confidencia , que nunca pensei fazer-te , para que conheças o horror da minha situação ... mas não ! . . basta que saibas que duas cousas me levaram a requestar Emilia , a paixão do amor por ella , e a do odio contra outro homem , que tambem a amava . Nos primeiros tempos julguei-me feliz pela possuir ; porém agora que me inspira indifferença ... tedio ... aborrecimento ... e que só me resta , para temperar estes desagradaveis sentimentos uma pouca de compaixão ... E a estima ... e o respeito ? ... Mostra-lhe estes sentimentos , que são os mais duradouros , solidos e apreciaveis . Amor era o unico sentimento que podia mostrar-lhe ; o unico que ella acreditaria verdadeiro . Estima e respeito , se os podes-se fingir , tomalia- os-por escarneo . Emilia não é minha esposa , foi minha amante , e agora é uma mulher que sou obrigado a respeitar e fazer respeitar ao publico ... já , que ao publico menti . Uma mulher que me corta as azas , se quero voar . Sou moço , rico , solteiro , e não posso escolher uma esposa entre as mulheres mais pobres . Quem tal havia de dizer ? Não é tua esposa aquella infeliz senhora ? ! Conheces agora que tenho razão em fugir-lhe ? Não , cada vez conheço que és mais injusto com D. Emilia . Meu amigo , sê um homem de bem . Casar com uma amante moça e bella , é cousa facil e aprazivel ; mas casar com a mãe de um filho quando ella começa a envelhecer , e que o coração se inclina a outra , é um acto custoso , mas de justiça e probidade . Se D. Emilia deixou a vereda da virtude , foi de certo por que te amava muito . Tem uma alma tão nobre , um viver tão honesto , um coração tão excellente , que se torna , digna de ser a esposa de um homem de bem . Casa com ella , meu amigo . Será sem limites a sua gratidão , se a regenerares do seu immerecido abatimento . É impossivel ! ... Não ha nada impossivel no desempenho dos seus deveres . Esta maxima aprendi-a da mãe de Eduardo . Ella disse-te isso ? ... Desgraçada ! ... Os remorsos a atormentam . Tenho pena do seu soffrimento ; mas que lhe hei de fazer ? ... Não lhe posso restituir a ventura , que lhe roubei . Fizemo-nos desgraçados um ao outro ... Seremos o algoz e victima mutuamente . Estamos ligados por laços de crime , que se não podem desatar . Emilia ... ( nem Emilia é seu nome ) ... Henriqueta estremeceu e se occultou mais entre as bananeiras . Cuidou ir ouvir seu verdadeiro nome . Carlos suspirou , e continuou : Essa a quem roubei a paz e ventura , e que agora faz o meu tormento , era casada ; e abandonou a familia para me seguir . Quanto deve soffrer ! ... Ah ! uma mulher com as suas idéas tão culpada ! ... Pobre infortunada ! Não lhe mostres ao menos a falta de attenções que costumas ; adoça-lhe a taça de fel que ella traga , por commiseração por ella , e por amor de teu filho . Não me falles n ' elle ! ... Ainda me aborrece mais que sua mãe . Se não fosse essa insipida creatura , nunca eu resolveria Emilia a abandonar a sua familia , e seriamos ambos felizes . E o pequeno é tão feio ! . . tão estupido ! . . tão fraco ! . . tão desengraçado ! ... Não tem nada d' isso senão ser fraco . Tu o atemorisas . Quando está sem ti é muito ajuizado e interessante . Aborreço-o , e elle paga-me na mesma . Apenas appareço faz-me a graça de se esquivar . Os dois amigos , que haviam conversado assentados n ' um banco , se ergueram , e continuaram o passeio . Henriqueta , logo que os sentiu longe , correu a casa , e ordenou a José que não perdesse o menino de vista . Parecia-lhe vêr Carlos erguer uma mão filhicida sobre a innocente creatura . E fechou-se no seu quarto dizendo , queria ficar só o resto do dia . Carlos deixou-lhe algumas desculpas e tornou a partir com Rodrigo . Quando a infeliz ouviu o trote dos cavallos , chamou José e disse-lhe : Preciso voltar á patria com meu filhinho . Só de ti me fio . Quero ir em segredo . Vai vender-me estas joias , e arranjar-me passagem em algum navio , que parta breve para Portugal ; seja para que porto fôr . Serão os ultimos serviços que me farás , bom José . O negro irá com sua senhora ; respondeu José . Não , meu bom José , não . Na minha patria ha poucos homens da tua cor , e os loucos ( e desgraçadamente ha muitos ) zombam de vós outros . Tu és arrebatado . Se ouvisses escarnecer de ti , farias alguma desordem , e serias castigado . Que afflicção não seria a minha então ! ... O negro não fará desordens , estando com sua senhora . Se podesses conter as tuas iras , serias desgraçado . Serei muito contente estando com minha senhora e o menino . Meu amigo , isso não póde ter lugar . Hei de viver muito pobremente ; não poderei ter-te commigo . O meu trabalho chegará mal para não deixar morrer meu filho á mingua ... Talvez serei forçada a esmolar um pedaço de pão . Henriqueta cobriu os olhos com as mãos para occultar as lagrimas . O negro replicou com intimativa e força : O negro ha de trabalhar . A ' minha senhora e ao menino não ha de faltar pão . Excellente coração ! . . exclamou a infeliz , abraçando o negro ; que não tenha eu a abundancia em que nasci , para ter-te sempre commigo socegado e feliz ! ... José confuso e interdicto se lançou de joelhos em se livrando de seus braços ; e curvando-se , beijou-lhe os pés , humedecendo-lh ' os com lagrimas . Alma generosa , proseguia ella , inclinando-se para elle e pondo-lhe a mão na cabeça , levanta-te e attende-me . Não devo acceitar o teu sacrificio , mas levarei no coração a lembrança da tua dedicação . Meu bom José , em Portugal não terias em que ganhar o teu pão , quanto mais o meu e de meu filho ! ... Lá os senhores não fazem barbas ? Fazem . Então o negro ganhar lá sua vida . Queres por força ir ? Sim , minha senhora , mas antes ... meu senhor não escapar ao negro , que é máo para minha senhora tão boa . O negro pronunciou estas palavras com uma vista tão feroz , que a mãe de Eduardo estremeceu , e para desviar o crime exclamou com força : Malvado ! ... Querias matar o senhor que te tirou dos ferros ? ... Vê o que fazes ! ... Um assassino me faria horror . O negro sem perder a vista ferina abaixou um pouco a cabeça , balbuciando : Elle ser máo para minha senhora ... A pobre Henriqueta assentou abater-se na opinião do negro , para o estorvar de commetter o crime , e replicou , cobrindo os olhos : Estás enganado , José . Não fujo ao snr. Carlos , porque elle me trate mal . Deixo-o , porque é esse o meu dever . Elle não é meu marido ... nem o póde ser .