CAMÕES -- Lusiadas Corria o anno de 1385 , O Mestre de Aviz , plebeu por herança materna , nobre por ser filho de D. Pedro I , havia sido eleito rei -- Portugal por uma revolução , e confirmado pelas Côrtes de Coimbra . Acompanhado de poucos , mas fieis e valentes portuguezes , D. João I teve que oppor- se a todo o poder do rei -- Castella , D. João , tambem o I , que disputando-lhe o reino , marchava para invadi-lo . Dezoito mezes passados em porfiadas lutas , as victorias successivas que o Mestre d'Aviz havia ganho contra os hespanhoes , a retirada do rei -- Castella , os esforços prolongados dos portuguezes , tudo a principio animava esse punhado de bravos que pugnavam pela independencia nacional . A memoravel batalha de Aljubarrota ia firmar essa independencia , e sustentar o sceptro que empunhara Affonso Henriques nas mãos de uma dynastia portugueza . D. Nuno Alvares Pereira tinha então vinte e cinco annos de idade . Educado por sua mãe , D. Iria Gonçalves de Carvalhal , possuia todas as virtudes civis e guerreiras d' esse tempo . Pouco mais moço do que o joven monarcha , achando-se sem armas na occasião de ser armado cavalleiro pelas proprias mãos da rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , tinha-se servido da armadura do Mestre de Aviz para aquella ceremonia , presagio a affectuoso da fraternidade que entre elles tinha de existir até á morte . D. João I sabia apreciar o merito ; e para mostrar á nação a estima que dedicava a D. Nuno Alvares Pereira , fê-lo , logo depois da batalha de Aljubarrota , Comlestavel do Reino e seu Mordomo-mór ; assim como conferiu o logar de Chancelier a João das Regras , celebre juri- consulto ; este para remunera-lo pelo auxilio de sua eloquencia ; aquelle , para recompensa-lo do soccorro que lhe prestava com o seu braço . Apesar porém do incansavel zêlo d' estes dois homens , apregoando os direitos do eleito da nação , suas vozes não eram às vezes assas fortes para animar alguns dos que começaram a descorçoar . A desproporção dos dois exercitos era enorme ; combatiam dez contra um . D. João de Castella era seguido por um brilhante exercito composto de cavallaria castelhana e franceza em numero de 36:000 homens ; e o total de sua forca chegava a 90:000 individuos , alem de dezeseis peças de artilheria , as primeiras que até então se haviam visto em Portugal . Havendo desistido do seu primeiro projecto de começar a campanha pelo Alemtejo , tinha repassado o Tejo , e entrado em Portugal sem dificuldade , ate chegar a Coimbra que lhe fechou as portas . Então , deixando as margens do Mondego , e assolando todo o paiz por onde passava , forao rei -- Castella , como torrente caudal e magestosa , que encontrando no seu curso mil regatos engrossa com elles as suas aguas , augmentando o seu poder á proporção que se internava pela Extremadura . As guarnições das praças que ali tinha , os cavalleiros e fidalgos que as commandavam , os soldados da esquadra que tinha no Tejo , tudo se reduia aos castelhanos , de maneira que para tranquilisar os animos era preciso toda a superioridade do genio do condestavel , e a serenidade imperturbavel do Mestre d'Aviz , que respondia aos que lhe fallavam do grande numero dos inimigos : " Não julgueis que depois os achareis tão juntos , quando houverem de morrer ás vossas mãos . " No meio da anxiedade geral , em quanto nas lastimavam o sacrificio inutil , talvez , de tantas vidas , e outros queiram coatemporisar com o inimigo , estando o exercito portuguez acampado a pequena distancia de Aljubarrota , appareceu repentinamente , sem saber-se donde vinha , um cervo que , desorientado e não achando o seu rumo , perseguido de todos os lados , percorrer o acampamento , e entrou na tenda do rei , abrigando-se a seus pés . O espirito da epocha de D. João I era essencialmente religioso ; a par porém d' estas idéas puras e sinceras havia as superstições populares de bruxas , de feiticeiras , de espiritos maus ; superstições inveteradas , que nem as leis de D. Diniz , nem as prohibições ecclesiasticas tinham desvanecido . Os rommanos tambem com algumas de suas leis haviam deixado arraizadas no coração do povo outras crenças . O vôn dos passaros , a corrida dos animaes , o exame das entranhas , tinham muitas vezes decidido das cousas publicas entre os descendentes de Romulo ; assim os lusitanos acreditavam nestes agouros ; e os soldados do Mestre d'Aviz exultando á vista do cervo , proclamaram d' antemão a victoria . Mas D. João I , piedoso por convicção , e prestes a combater , despojando-se do orgulho de guerreiro e contiando no Senhor||_de|_os de||_de|_os os|_de|_os exercitos , implorava o favor do céu , d' omle só esperava soccorro , e pediu o auxilio da mãe de Deus , fazendo voto solemne de edificar-lhe um sumptuoso templo se saísse vencedor . Finalmente na tarde do dia 14 de Agosto , vespera da Assumpção da Virgem , teve logar o sanguento combate nos plainos de Aljubarrota , onde , depois de porfiada luta , El-Rei D. João I , a pé , com a lança em punho , avançou com a retaguarda do seu pequeno exercito , e apresentou uma muralha de ferro diante do inimigo , que ja contava com a victoria . Largando então as lanças , castelhanos e portuguezes , combatiam á espada ; tendo estes ultimos obrados prodigiosos feitos , até , depois de immensa mortandade sobre os inimigos , conseguirem abater a bandeira de Castella e ficarem vencedores . O throno de D. João I estava seguro . Segundo o uso d' aquelle tempo , o rei demorou-se tres dias sobre o campo da batalha , onde ajuntou uma rico despojo . As arvores da floresta visinha carregadas em estes trophéns annunciavam que a dynastia dAviz reinaria sem obstaculo em Portugal . Mas se os esforços dos inimigos ficaram sem successo , a historia registou os feitos de bravura e de resignação praticados pelos castelhanos naquella campanha , na qual , infelizmente , se lhes haviam juntado muitos portuguezes ; uns despeitados contra o Mestre dAviz , por haverem seguido a causa do conde Andeiro : outros , sequazes incognitos de D. João , o filho primogenito de D. lgnez de Castro , o assassino da bella Maria Telles , que do fundo de uma masmorra , onde o lançara o rei -- Castella . tambem elevava as suas pretenções ao throno de Portugal . No numero dos portugueses que deviam acabar batalhando contra a patria tinha de contar-se o irmão do mais bravo e leal cavalleiro de exercito portuguez , e nobre e santo Condestavel D. Nuno Alvares Pereira . D ' entre os castelhanos que sobreviveram á victoria , e que , extenuadus de fome e de fadiga , se derramaram pelos arredores de Aljubarrota , sete ficaram esmagados , victimas de uma mulher , que armada com uma pa , e possuida do sentimento geral do povo portuguez , mostrou ao mundo a que ponto chegava n ' esta nação o odio ao dominio estrangeiro , e sua affeirão para com aquelle que ella tinha escolhido para defensor de seus direitos . A historia conservou-nos o nome d' esta heroina , de quem fallaremos no capitulo seguinte . A. F. De Castilho -- Romance da S. da Nazareth . Não longe de Leiria , perto do rio Lena que atravessa a planicie de Aljubarrota , vivia Brites de Almeida , por alcunha a Tubarda , uma pobre ; padeira , que trabalhava noite e dia para ganhar a sua substancia . Esta mulher , filha de um corajoso soldado portuguez que tinha perdido a vida em 1373 , nas guerras entre Portugal e Hespanha , tinha herdado de seu pae , com a pequena casa em que morava , implacavel odio contra os castelhanos . Crente , como todo o povo de Portugal , era como os da sua classe , supersticiosa no mais alto ponto . Ufana de nome portuguez , amando o seu paiz acima de tudo , se alguem podesse dizer a pobre padeira : " Brites , para assegurar a independencia de Portugal , cumpre que tu , como os Decios da antiga Róma , te offereças victima voluntaria , sacrificando a vida a bem do teu paiz " ; a padeira não hesitaria um só momento . A divina religião do crucificado era mal interpretada pelo povo n ' aquellas oras obscuras . O perdão das injurias que elle ensinára , a tolerancia civil e religiosa eram meras palavras cujo sentido se não comprehendia . O homem offendido nunca esquecia o ultraje senão depois de vingado . O rancor contra a religião judaica , e contra os que a professavam não era menor que o odio votado aos castelhanos ; não sómente se aborrecia toda a nação hespanhola como aquella que , mais visinha e orgulhosa , tinha por vezes invadido Portugal , mas odiava-se cada indivíduo de per si . A linha do valente soldado nunca perdoara ao rei -- Castella o haver entrado em Portugal , fazendo passar este reino por todos os horrores de uma guerra cruelissima ; e como não podia ter vingado sobre Henrique de Transtamara a morte d' aquelle que lhe dera o ser , havia jurado saciar a sua sede de vingança sobre todos os hespanhoes que encontrasse . Este juramento era para ella sagrado ; o seu fanastismo ainda ia mais longe : no fundo de seu coração . Brites de Almeida pedia a Deus uma morte immediata ao momento em que , com suas mãos , tivesse morto um castelhano . Era um baptismo de sangue , com que esperava lavar todas as suas culpas , e que a faria sahir purificada ao céu logo que perpetrasse o feito . Aconteceu pois que , em seguida á grande batalha de Aljubarrota , os soldados castelhanos , tendo-se posto em fuga e perseguidos pelos portuguezes , procuraram todos os meios de evitarem a ira dos seguidores do Mestre d'Aviz , escondendo-se de dia em qualquer logar onde lhe fosse facil abrigarem-se , e caminhando de noite para ganharem o solo de Hespanha . A boa da padeira , que durante o enthusiasmo do combate não pensava em comer , nem no fabrico do seu pão , depois de ver terminado o conflicto , lançara mão do seu ministerio , e entrando em casa , chamando um sobrinho que de pequeno creara comsigo , ordenára- lhe que fosse peneirar toda a farinha que havia no celleiro , porque ella ia para o forno , onde devia recolher alguma lenha ; pois seria preciso um bom lume , visto que estava inutilisado desde a chegada dos perros dos hespanhoes . Para lá então se dirigiu a padeira . Era em um arrabalde do logar que estava construida aquella cozinha , cuja porta Brites achou entr ' aberta , com muita admiração sua , tendo a chave na algibeira . Passando o limiar , Brites sentiu como um leve ruido no fundo da cozinha , que era comprida e escura . A noite approximava-se , e a padeira não tinha outra luz senão a que lhe entrava pela porta ; applicou o ouvido , havia um silencio de morte . Começou então a levantar alguns paus de lenha que havia em um cauto da cozinha , quando , ou fosse o instincto da vingança que lhe animava o peito , ou fosse realidade , pareceu-lhe ouvir um ai suffocado para o lado do forno . A idea de que ali podia ter-se alguem escondido , surgiu logo , e , nesse caso , devia ser um hespanhol . Mais prompta do que o raio , larga a lenha que tem nas mãos , olha em torno de si e vê a pá com que se costumava servir no seu trahalho de cozer o pão . Não hesita ; pega na arma , e dirige-se para onde sentira o ruído , e distingue , a favor da claridade que entrava pela porta , uns olhos que , há dentro do forno , a medo a observavam ! Approxima-se , e percebe distinctamente uns vultos de homens , meio-sentados , com o trajo castelhano , que , sem força para resistir-lhe , pareciam implorar o perdão de ali se haverem refugiado . Então , armada com a pá , investindo com os soldados , animada de um furor de que não ha exemplo , consegue matar aquelles sete homens que , inertes , só podiam offerecer-lhe com os braços uma fraca resistencia ! Sem o mais leve remorso depois de certificar-se que os hespanhoes estavam bem mortos , Brites de Almeida esteve um momento extatica , como que esperasse o resultado d' aquella acção : era o voto que tantas vezes tinha concebido , o desejo da sua morte que ella julgava dever por foça seguir-se á dos castelhanos . Mas rapido foi esse sentimento ; Brites achou-se em breve prestes a recomeçar qualquer conflicto similhante ; e querendo fazer patente o seu esforço , saiu da cozinha . D ' ali , atravessando duas ruas , chegou à sua morada , e apenas entrando em casa chamou sua sobrinha o companheira e disse-lhe . " Vem , Margarida , vem ver o que tua tia acaba de fazer . Matei-os todos , filha ; todos sete ! ! Teu avô está vingado ... Cumpri a promessa ! Agora posso morrer ! Vem ver , pequena . Aprende com tua tia a detestar aquelles malvados ; jura , jura que se não podes imitar-me , tirando-lhes as vidas , és rapaz de aborrece-los ; jura-me que não has de nunca fazer boa cara a um castelhano ; falla , responde , rapariga . " Mas a pobre Margarida nem podia fallar , nem escutava o que lhe dizia a tia||_Brites Brites|_Brites . Uma idéa confusa , mas aterradora , dominava-a inteiramente . Aquellas palavras matei-os , matei-os todos sete : teu avó está vingado = tinham-se-lhe coado n ' alma . Margarida não tinha o animo varonil de sua tia . Alheia a todo o sentimento hostil para com o seu proximo , não podia nunca ter pensado que Brites effectuasse aquelles projectos de vingança , que tantas vezes a ouvira fazer . Docil á vontade d' aquella que desde o berço lhe servira de mãe , a jovem Margarida não ousava soltar uma palavra contra os horrores da guerra , mas ao seu coração singelo e innocente repugnavam esse tinir do ferro , esse cuido das armaduras , batendo sobre o solo , essas lallas de sangue , que depois de tantos mezes eram o objecto da conversação dos que a rodeavam . Durante o conflicto de Aljubarrota , Margarida não se havia afastado de casa , enquanto Brites , com o valor que já lhe conhecemos , corria todos os pontos onde podesse colher as noticias que desejava , o exterminio dos inimigos . Mas a donzella não tinha escapado a todos os perigos . Alguns dos chefes do exercito de D. João de Castella tinham sido mortos antes de se haver declarado a victoria em favor dos portuguezes ; outros , feridos sem de nova poderem entrar em combate , tinham sido levados por soldados fieis , que os conduziram para longo dos horrores do campo , e fóra do alcance do inimigo lhes prestavam os possiveis soccorros . Um destes soldados que , mais caridoso , desprezava as proprias feridas para salvar a vida ao valente capitão que trazia nos braços , tinha ido mais longe do que aconselhava a prudencia . O logar onde chegára era solitario : alguns ramos de arvores frondosas offereciam um abrigo contra os ardentes raios do sul de Agosto . Mal havia posto sobre a terra aquelle que desejava salvar , o soldado rasgára a sua propria camisa , para com ella fazer umas ligaduras , quando o moribundo com uma voz quasi extinta lhe disse = tendo sede = . O soldado largando o ferido corria para buscar-lhe uma gotta de agua , mas lembrou-se que não tinha nem taça nem copo onde Ievar-lh ' a. Não desanimou comtudo ; e volvendo os olhos para uma e outra parte como para escolher o rumo que mais lhe podia convir , tomou uma pequena viella , quasi deserta de habitações , e ali bateu na primeira porta com que deparou . Á primeira pancada appareceu-lhe em uma esguia janella , um rosto feminino , que ao vê-lo recuou . Mas o soldado sem lembrar-se que o seu aspecto afugentava aquella mulher , ergueu a voz , e com todo o ardor de que estava possuido exclamou : " Señora , por las llagas de Jesu-Cristo , por los dolores de Su Santisima Madre , dadme um vaso de agua para que pueda yo refrescar las entrañas de um valiente soldado que se muere de sed y está regando la tierra de su sangre . " A voz enternecida do soldado , as palavras que proferira , o peito de sua camisa salpicado de nodoas de sangue e denotando que estava ferido , a pallidez do seu rosto , fizeram com que a mulher , que á primeira vista fugira espavorida , voltasse á janella e podesse melhor attendar nas feições e attitude d' aquelle que implorava o seu soccorro a favor de um moribundo . Era um mancebo de vinte a vinte e quatro annos , alto , magro , com cabellos castanhos e sobrancelhas da mesma côr . Os olhos eram pretos ; o nariz aquilino , a bôca ornada dos mais bellos dentes ; e a voz era uma destas vezes que vão direitas ao coração , cujo som ouvido uma vez nunca mais se esquece . Margarida , pois a mulher que apparecêra a janella não é mais nem menos do que a sobrinha de Brites de Almeida , esquece-se das ordens de sua tia , esquece que o homem que bate á sua porta é um inimigo , um castelhano , desce á cozinha e lançando mão da primeira vasilha que encontra em uma prateleira , enche-a de agua , e corre a entrega-la ao soldado , que a recebe e , murmurando apenas estas palavras de agradecimento : " Que Dios os lo pague , señorita " ! depressa desappareceu aos olhos de Margarida , que ficára immovel na porta alguns minutos , admirando o porte nobre e gentil d' aquelle mancebo . A tristeza é um sentimento sagrado . Margarida achava-se penetrada de respeito por aquelle soldado , cujo semblante respirava tão grande melancolia . De todos os homens que ella tinha encontrado desde que chegara ao uso da rasão , naquelle inimigo parecia-lhe entre todos o mais digno do amor de uma mulher . Uma corda do seu corarão que ninguem antes tinha tocado , acabava de ser ferida . Intimada com este sentimento tão novo para ella , lembrou-se de sua tia , recordou-se da morte de seu avô , morto pelos castelhanos , pensou no seu paiz devastado pelos hespanhoes ; mas a idéa do joven soldado dominava todas as outras ideas . Margarida estremeceu com ella . Com um genio docil e jovial a sobrinha de Brites de Almeida era dotada de affeições fortes ; mas até áquella epocha estas affeições tinham-se empregado em um só objecto . Margarida adorava sua tia ; mas a par do amor que lhe consagrava , havia um sentimento menos nobre que diminuia a força d' aquelle ; era o medo . Quem visse Margarida uma só vez ficava conhecendo pelo seu semblante o caracter d' aquella alma . Pela sua compleição parecia uma mulher do norte da Europa . Seus olhos da côr do céu tinham uma expressão indeclinivel de doçura , e eram assombreados de longas pestanas mais escuras que os seus cabellos louros e luzidios ; o nariz era cortado com a perfeição dos da nação judaica ; a bôca , quasi tão expressiva como os olhos , tinha um sorriso angelico , que arrebatava ; as suas maneiras eram magelas e graciosas ; as suas fallas modestas e reratadas . Ninguem diria que aquelle typo , tão chegado à perfeição , era o de uma mulher do povo . Margarida tinha então dezenove annos . Sabia ler e escrever , a sua sciencia não passava d' ahi ; mas tinlia aprendido esse pouco com um mestre que lhe ensinou muitissimo , porque desde os mais tenros annos lhe fallou de Deus , da immortalidade da alma , da brevidade dos trabalhos d' este mundo , e das recompensas eternas do outro . Este mestre era um d' aquelles homens que nunca deviam morrer ; um d' estes entes previlegiados que Deus deixa apparecer de espaço a espaço sobre a terra , para amenisarem com as dores da sua palavra e do seu exemplo a aridez d' este deserto que atravessâmos . Era um herdeiro das virtudes do fundador da Ordem de Cister , S.||_Bernardo_de_Claraval Bernardo|_Bernardo_de_Claraval de|_Bernardo_de_Claraval Claraval|_Bernardo_de_Claraval , monge do mosteiro de Alcobaça , onde se havia retirado depois do desengano das cousas do mundo . Este religioso , descendente de uma nobre familia de Portugal , era conhecido em todos os arredores do convento pelo titulo do Santo Monge ; no mundo chamára- se D. Francisco de Menezes ; Frei Francisco de S. Boaventura era o seu nome do claustro . Possuindo a sciencia que se aprende com os homens a par da sabedoria que nos vem do céu , a sua fé , a amenidade do seu carecter , a firmeza das convicções , a sua tolerancia e indulgencia para com todas as fraquezas davam-lhe tal influencia sobre quantos o approximavam , que todos recorriam á sua opinião para conselho . Frei Francisco era amado e venerado por quantos o conheciam . Quando a mãe de Margarida no seu leito da morte o chamára para ouvi-la de confissão , o santo monge exercéra as funções do seu ministerio com tanta uncção , que a pobre enferma , victima de uma molestia prolongada e no meio das mais acerbas dores , dava louvores ao céu por haver-lhe deparado nos instantes derradeiros um tal consolador . Foi n ' este momento solemne que ella recommendára a sua unica filha ao ministro do Senhor , pedindo-lhe quizesse servir-lhe de guia espiritual , encaminhando-a pela estrada da virtude Frei Francisco prometteu faze-lo ; e a doente então mais tranquilla sobre a sorte d' aquella que deixava orphã de mãe , entregou o espirito ao creador . Frei Francisco cumprira fielmente a sua promessa . Todas as manhãs depois de seus exercicios religiosos , se dirigia o bom do monge a casa de Brites de Almeida , e ali ensinava á pequena Margarida os primeiros rudimentos da religião . Mais tarde ensinou-a a ler e escrever ; e á proporção que a creança crescia , redobrava o seu cuidado para com ella ; até que tendo Margarida chegado aos doze annos , epocha da sua primeira communhão , augmentou o monge a vigilancia , fazendo em vez de uma duas visitas diarias a casa da tia||_Brites Brites|_Brites . Assim continuou Frei Francisco , por alguns annos , até que havendo escasseado os meias de subsistencia de Brites de Almeida , resolvêra esta estabelecer uma padaria nas visinhanças de Aljubarrota , onde tinha uma pequena casa , legado de seu pae . Então viu-se o monge constrangido a interrompera frequencia de suas visitas áquella casa . Contundo ainda que bem distante , ali ia todas as semanas , com a que muito aproveitava a sua educanda . Frei Francisco tinha então setenta annos de idade ; mas nem os ardores do sol durante o verão , nem o rigor dos invernos o impediam de continuar d' esta maneira a sua caridosa missão . É verdade que Frei Francisco tinha uma saude de ferro ; mas os trabalhos de que estava encarregado no comento , o confessionario que o occupava toda a manhã , as suas execursões fóra do claustro , d' onde saia diariamente a levar a consolação e a esmola aos pobres e attribulados , serviriam de obstaculo a qualquer outro homem para seguir regularmente a educarão de Margarida . Frei Francisco porém tinha tempo para indo . Fiel observador das regras do Mosteiro , concorria ao côro nas rezas quotidianas que se faziam em commum ; e quando de volta ao convento , ao cair da noite , o suppunham descansando das fadigas do dia , sobre as duras tábuas que lhe serviam de cama , o santo monge , recolhido á sua cela , á luz baça de uma pequena alampada , collocada defronte de um crucifixo . dirigia ao céu preces ferventes , e implorava a intercessão da virgem em favor do reino , dos opprimidos , dos afflictos e dos fracos . Depois abria um livro , cujas folhas amarellas , cujas letras gastas , estavam cobertas de manchas , e denotavam o muito que tinham sido lidas . As manchas eram das lagrimas que Frei Francisco havia derramado sobre aquellas paginas , o livro era o dos Evangelhos ! Com tão bom preceptor Margarida fez grandes progressos . Dissemos que as affeições d' aquella donzella se haviam concentrado na tia||_Brites Brites|_Brites . Assim era , porque o sentimento que ella tributava a Frei Francisco era uma cousa á parte ; era uma imitação dos sentimentos que devemos a Deus ; era uma veneração , um amor que em nada se assimilhava com a affeição e respeito que dedicâmos ás creaturas . D ' esta maneira as menores sensações , os mais ligeiros pensamentos que Margarida sentisse ou concebesse eram de prompto depositados no seio do monge , que admoestava com doçura quando havia que reprovar , e louvava com moderação o que merecia louvor . N ' esta disposição , quando pela volta da tarde o monge se dirigiu por um pequeno atalho a casa da tia||_Brites Brites|_Brites , Margarida deu-lhe parte da sua entrevista com o castelhano . Frei Francisco não a reprehendêra , mas com a sua doçura habitual , havia-lhe dito : " Minha filha , quando o Senhor nos disse = dae de beber a quem tem sêde = , não isentou d' essa lei nem inimigo , nem herege . Haveis cumprido com uma das obras de misericordia . Comtudo , na vossa idade , n ' esta presente conjuntura , e mister haver grande cantela no modo de as exercer . Parece-me que vossa tia não se devia afastar tanto de casa n ' estes dias de tribulação , em que a guerra , o maior dos flagellos que podem cair sobre um povo , assola este paiz . Mas Deus ha de proteger-vos . Fechae bem a vossa porta , minha filha ; e orae pelos mortos e pelos que lhes sobrevivem . " E o bom do monge descêra a pequena escada da casa de Brites de Almeida , e contemplativo e melancólico se encaminhára ao seu convento . A pobre donzella havia-se despedido do seu protector , e pozera em execução as suas recommendações . Quando a tia||_Brites Brites|_Brites entrou em casa alardeando seus altos feitos , Margarida resava as suas ultimas orações pelos que haviam acabado no campo da batalha . Sobresaltada pelas primeiras palavras de sua tia , a sua commoção foi crescendo á medida que esta ultima lhe narrava a sua heroicidade . " Quem sabe se aquelle castelhano , aquelle mancebo que expunha a sua vida para valer a um ferido , seria uma das victimas immoladas pelas mãos da tia||_Brites Brites|_Brites ? " Esta idéa aterrou Margarida a ponto de lhe cortar a falla . Não respondêra nunca a pobre donzella ás perguntas exigentes de sua tia ; e quando esta , contrariada pelo seu silencio , lhe voltou as costas , pegando em uma lanterna , que achara á mão para de novo voltar ao theatro de suas façanhas , Margarida , que já não tinha com quem constranger-se , soltou um grito , e caiu desmaiada . CAMÕES -- Lusiadas . O valente capitão que expirava á sêde e exausto pelas feridas recebidas no combate , era o proprio irmão do companheiro de armas , do amigo de D. João I. Uma louca ambição o tinha levado para fóra da sua patria a combater contra ella . Depois de mil esforços que tentara para seduzir seu irmão D. Nuno Alvares Pereira . Diogo Alvares o havia sempre achado leal ao Mestre de Aviz . Não esperando d' ali nenhum auxilio para o rei -- Castella , Diogo Alvares havia lançado mão do ultimo recurso . Animando com a voz e com o exemplo os seus companheiros de armas nas planicies de Aljubarrota , não podendo sustentar por mais tempo o combate , crivado de feridas e prestes a desfallecer , fôra levado para longe da acção por um joven pagem que combatêra a seu lado , e que mais de uma vez recebêra em seu peito os golpes dirigidos contra o degenerado portuguez . Este pagem , tambem portuguez , não tinha conhecido pae ; na idade de um anno tinha sido levado para Hespanha ; e por um acaso fôra encontrado por Diogo Alvares , que o tratou desde logo , se não como filho , ao menos como pessoa que de perto lhe tocava . O joven Alvaro respeitava aquelle que lhe servia de pae , avisava-o e daria mil vidas para salvar a do seu protector , a quem obedecia cegamente . Costumado a aceitar quanto lhe dizia Diogo Alvares , o mancebo , a quem repugnava o combater contra a patria , não se atrevèra a soppor suas rasões ás do irmão do condestavel ; mas por um instincto de lealdade á sua terra , havia imaginado um plano para nunca atacar , mas contentar-se com defender a sua vida , e mais que tudo a vida de Diogo Alvares , de cujo lado nunca se afastara . Mas quando de volta de casa de Brites de Almeida , o pobre Alvaro chegara com um pucaro de agua , destinado ao moribundo , já o misero tinha entregue a alma a Deus ! Então o afflicto mancebo , ajoelhando ao lado do cadaver d' aquelle que lhe tinha mostrado tamanha affeição , beijando-lhe as mãos geladas , dirigiu ao céu uma simples mas fervida supplica pelo repouso de sua alma . Breve devia ser esta oração ! Ouviam-se já perto as vozerias dos vencedores e os gritos dos vencidos . Alvaro levantou-se . Olhou em torno de si para ver se poderia achar algum instrumento de lavoura , com que desse o ultimo jazigo ao seu amigo . Nada via ! Lembrou-se então de voltar á mesma casa , onde com tão boa vontade lhe tinham dado o soccorro que pedira ; mas hesitava em largar o cadaver exposto no furor dos inimigos . N ' esta alternativa de desejos e de sustos , o tempo corria , e os soldados portuguezes approximavam-se . Então , possuido de novo esforço , quer levantar o cadaver e fugir com elle ; mas o sangue que das proprias feridas lhe vertia tinha de tal modo enfraquecido o vigor de seus braços , que mal podiam sustentar aquelle corpo frio e inteiriçado . Comtudo , conseguiu levanta-lo e dar alguns passos para o lado opposto aquelle d' onde lhe vinham as vozes . Em breve porém viu que nada aproveitava . Por detraz de uma sebe que rodeava uma pequena herdade contigua ao logar aonde Alvaro se adiava , saiu-lhe ao encontro um official portuguez que , intimando-lhe ordem de prisão , lhe mandara largar o morto . O mancebo não desconhecia as leis da guerra , e não ignorava o rancor dos portuguezes pelo nome castelhano ; respondeu comtudo que estava prompto a entregar-se prisioneiro , mas que exigia uma sepultura para o seu chefe que ali tiuha nos bracos . Palavras inuteis , que apenas pronunciadas teriam sido as ultimas que houvesse de proferir o valente mancebo , se uma terceira pessoa não viesse subitamente apresentar-se em scena . A. Herculano -- Harpa do Cr. Era já noite quando Frei Francisco saindo de casa de Brites de Almeida se dirigira para o seu convento . As idéas que o absorviam não o deixavam bem reparar no caminho que tinha de seguir , e em vez da rua que ordinariamente tomava para alcançar a estrada que levava ao convento , seguiu um pequeno atalho que o conduziu a um largo , cheio de sobreiros , cujos ramos caindo até ao chão quasi que impediam a passagem . O monge porém com o seu bordão os foi afastando o melhor que lhe foi possivel , e conseguiu chegar á extremidade opposta , quando novos obstaculos vieram apresentar-se-lhe . O solo que elle pisava conduzia a uma especie de curral comprido , todo embardado com espinheiros e urzes , e de uma altura que o pobre monge não podia saltar . Respeitador de toda a propriedade , Frei Francisco não ousava , ajudado do seu bordão , romper uma parte daquele obstaculo ; e para não voltar para traz , foi seguindo a sebe até achar alguma cancella que o fizesse sair dali . Mas a obscuridade da noite augmentava a sua difficuldade ; e o bom do monge andou unido tempo antes de poder livrar-se d' aquelle labyrinto . Ja começava a pensar em retroceder , quando o braço esquerdo , cuja mão tinha sempre levado ao longo da sebe , lhe caiu sem apoio em que sustentar-se . Era uma estreita aberta que a custo pôde atravessar , e que o levaria a raminho mais trilhado . Frei Francisco continuou a andar indistinctamente , porque não via já para escolher o rumo que devia seguir , quando mui perto de si ouviu vozes , Era o soldado portuguez intimando a Alvaro a ordem de prisão . O monge chegava a tempo . Alvaro acabava de responder , e o fanatico guerreiro de Aljulbarrota , esquecendo-se do respeito devido a um cadaver e a um prisioneiro , impunha a lança para acabar os dias do mancebo , quando uma mão vigorosa lhe segurou o braço . " Que fazeis , christão ? " foram as primeiras palavras que saíram dos labios venerandos de Frei Francisco , em quanto com toda a força do seu braço apertava o do soldado , que havia ficado attonito e pezaroso com aquelle encontro . " Sois portuguez , e a deslealdade não póde morar em um peito portuguez ! Ouvi uma voz que me parecia a de um homem ferido ; esta voz pedia sepultura para um cadaver : e vós , esquecendo os preceitos que Jesus Christo nos deu do alto da Cruz sobre o Calvario , ousaes atacar um homem desarmado , que vos pede um pedaço de terra para sepultar um inimigo ! Seguramente a allucinação no combate foi a causa d' este desvario ! Se o homem que aqui fallou é castelhano , guardaeo como prisioneiro e ide leva-lo aos vossos chefes , promettemdo-lhe uma sepultura para aquelle que já compareceu diante do unico throno onde a justiça é sempre administrada sem paixão por um juiz integerrimo que nunca póde enganar-se . Aqui mesmo talvez possamos cumprir este piedoso dever . Soldado de Christo , aqui estou eu para desempenhar uma parte da missão que elle me deixou sobre a terra . Ide acompanhar esse prisioneiro ao logar onde deve ser entregue . Respeitae na sua pessoa um inimigo indefezo . Quando o tiverdes deixado , mandae-me aqui uma lanterna e uma pá , é quanto preciso . E vós , hespanhol inimigo , se quereis dirigir o ultimo adeus ao cadaver do vosso amigo ou companheiro , podeis faze-lo . Dizei-me o vosso nome , para que eu possa deixar-vos saber mais tarde que cumpri com o vosso desejo . Este desejo faz-me pensar que a vossa alma não esta tolalmente endurecida por todo esse sangue que tendes visto , ou porventura tendes feito derramar . Perdoae no fundo de vosso coração aos vossos inimigos , para que Deus tambem vos perdoe as vossas culpais . " Alvaro admirava aquelle homem que assim tinha fallado . Ajoelhou de novo ao lado do cadaver , e beijou-o . Depois levantando-se disse : " Prestes a partir , talvez para a morte , peço-vos , Senhor , já que não posso distinguir as vossas feições , me deixeis abraçar-vos como um testemunho do meu reconhecimento , pelo bem que haveis feito á minha alma . O meu nome é Alvaro ; nunca me deram outro , nem eu sei se o tenho . Aquelle cadaver não é o de um hespanhol ; o sangue quc correu em suas veias era portuguez ... Mas eu não devo accusa-lo ... Elle não póde justificar-se a nossos olhos . O juiz integerrimo de quem haveis fallado , e de quem sois digno ministro , já o tem julgado , e terá piedade de sua alma ! " Dizendo estas palavras , o mancebo approximou-se de Frei Francisco , que lhe estendera os braços , e partiu com o soldado portuguez . ALMEIDA GARRET -- Camões Em quanto Alvaro assim marchava para uma masmorra , levado pelo portuguez , que não proferira uma palavra depois da chegada de Frei Francisco , o santo monge , de joelhos , com as longas cans de suas barbas pendentes sobre o cadaver , recitava pela paz de sua alma as orações da Igreja . Meia hora depois , dois homens traziam-lhe uma pá e uma lanterna , á luz da qual elle pôde contemplar o rosto d' aquelle inimigo estendido sobre a terra . A morte não o tinha ainda completamente desfigurado ; e Frei Francisco pareceu-lhe distinguir n ' aquelle semblante umas feições que havia conhecido . Esteve pois algum tempo pensativo , querendo remontar sua memoria a tempos mais distantes , a ver se se lembrava de as ter encontrado . Mas achando que o seu trabalho era innutil , deixou o exame , e disse aos homens mandados pelo soldado portuguez : " Se não tendes pressa , meus filhos , abri uma cova para que possamos dar sepultura a este homem ; se porem não podeis demorar-vos , deixae-me a pá e a lanterna , e amanhã podeis ir busca-las ao convento de Alcobaça , onde vos serão entregues . " Mas um dos homens logo lhe respondeu : " Não será dito que vossa paternidade abrisse com suas proprias mãos uma sepultura para enterrar um morto : tendo dois homens a seu lado . " " E então , vossa paternidade havia de carregar com esta pá e esta lanterna até ao convento de Alcobaça ? ! ... " exclamou o outro . " Não , senhor , aqui estamos nós , meu compadre e eu , promptos a fazer quanto vossa paternidade mandar ; e havemos depois d' isso acompanha-lo ao mosteiro , quer queira , quer não queira . " " Meus filhos , " redarguiu o monge , " agradeço a vossa boa vontade , mas não preciso que me acompanheis até Alcobaça . Conheço a estrada perfeitamente , e se quereis emprestar-me a lanterna , não correrei o menor risco , porque ninguem fará mal a Frei Francisco de S. Boaventura . " Apenas tinha o religioso pronunciado o seu nome , os dois homens , lançando-se espontaneamente de joelhos , exclamaram : " Bem nos parecia a nós , que não podia ser outro senão o santo monge ! Deixae- nos , senhor , deixaenos beijar a manga do vosso habito . Bemdito seja Deus , que nos deixou ver-vos e ouvir-vos . Estamos ha poucos dias em Aljubarrota , e nem um se tem passado sem que tenhamos ouvido fallar de vós ! Bemdito seja Deus ! " E os pobres homens , puxando-lhe as mangas , as beijavam com um devoto phrenesi . " Meus filhos , " disse-lhes então " Frei Francisco , " o povo d' estes contornos é bom e religioso ; mas a sua bondade leva-o a terem grande conta cousas que têem bem pouca valia : e a sua religião , um tanto dominada pelo fanatismo , arvora em santos os que ainda têem muitas faltas para remir , e que ainda estão longe d' aquelle estado de perfeição . Vedes aqui apenas um pobre monge , cujas culpas foram mui grandes , mas que espera na misericordia do Senhor , e que trabalha por seguir os seus dictames , exercendo , quanto em si cabe , as obras dc misericordia . Vamos pois , meus filhos , cumprir uma d' ellas , enterrando os mortos . Abri a cova . " Em quanto os homens a faziam , tendo um pegado na pá , e o outro ajudando-o com as mãos a tirar a terra , Frei Francisco rasgava um lenço , e com elle atava as mãos e os pés do morto . Depois , tirou do peito uma pequena medalha da Virgem , que sempre o acompanhava , e lançando-a ao pescoço de Diogo Alvares , recitou um De Profundis ; findo o qual , collocaram o morto na sua ultima morada , e encheram a cova com a mesma terra que tinham tirado . pondo-lhe em cima uma cruz feita com dois paus . Depois de have-la abençoado , Frei Francisco dispunha-se a pedir a lanterna para partir sósinho , mas os seus companheiros não lh'o consentiram ; e pegando um na pá , e o outro caminhando adiante com a lanterna , chegaram sem o menor accidente ao mosteiro de Alcobaça , onde se despediram de Frei Francisco , promettendo tornarem a procura-lo . Diante d' ella , realidade ou phantasma , estava a origem de seus terrores . A. Herculano -- Eurico Pela volta das dez horas da noite , entrava Brites de Almeida em sua casa , e fechando a porta que ella mesma , no meio de sua exaltação , deixara aberta , apagou a luz da pequena lanterna que trazia , e subiu a escada que conduzia ao quarto onde havia deixado Margarida . Dominada ainda pelo sentimento de seu orgulho , ou porventura pelo do remorso , Brites não reparara nem na ausencia de Margarida , que sempre a esperava junto a porta , nem na obscuridade d' aquelle quarto , onde sempre havia , sobre uma mesa redonda com tres pês já carcomidos , uma alampada que conservavam acerca desde as ave marias até que iam deitar-se . Querendo orientar-se no logar onde estava , a padeira , sem chamar a sobrinha , estendia os braços para diante , e arrastava os pés para alcançar a porta opposta áquella por onde havia entrado . A meio porém seus pés acharam um obstaculo , e abaixando-se Brites para apalpar o que lhe impedia a passagem , achou um corpo humano , estendido no chão . O animo varonil da tia||_Brites Brites|_Brites não se desmentia um momento . Ergue-se , volta para o lado da escada , que desce apressadamente , entra na cozinha , á direita da porta da entrada , dirige-se á lareira e ali procura uma pedra e isca para ferir lume . Conseguindo accender uma vela , torna a subir a escada e entra no quarto onde encontrara o corpo . Approxima-se d' elle , e reconhece então Margarida , que já começava a tornar a si , mas cujos olhos desvairados indicavam o delirio . Se exceptuarmos o odio que Brites nutria contra os inimigos do seu paiz , odio nascido pelo fanatismo , o coração da padeira era o melhor coração do mundo . Repartia diariamente com os pobres uma parte do pão que amassava para vender ; não tinha contendas com os freguezes se porventura lhe ficavam devendo algum vintem . Nunca tinha intrigado o seu proximo ; e , quanto a Margarida , amava-a tanto quanto o seu coração sabia amar . Qual foi pois a afflicção da tia||_Brites Brites|_Brites quando viu a donzella com a pallidez da morte sobre as faces , com os labios sem côr , os olhos espantados , pronunciar com uma voz cortada . estas palavras : " Morreu ! ... foi elle ! ... horrivel guerra ! ... malvados ! ... um assassinato ! ... Brites não comprehendia toda a extensão d' ' aquellas palavras ; mas percebia que Margarida queria fallar dos acontecimentos do dia . Talvez em sua ausencia alguem tivesse entrado em sua casa , e relatasse a sua sobrinha o desfecho da batalha . " Mas um assassinato ! ... " murmurava comsigo ; " matar os hespanhoes nunca foi um assassinato ! Margarida " dizia então mais alto , " Margarida , minha filha , o que tens ? " Mas a triste donzella , ao ouvir-lhe a voz , levanta a cabeça , fita os olhos em sua tia , e com uma expressão indizivel , exclama ; " Vae-te , vae-te d' aqui , monstro ... mataste-o , não to perdôo . Aquella pá ! aquella pá ha de ser a causa da tua morte ! Deus ha de castigar a crueza de tua alma . Elle era tão bom ... e estava ferido ... e o sangue corria-lhe do peito ! " Depois exhausta pelo esforço que havia feito tornou a descair a cabeça no chão , e tapou os olhos com as duas mãos , como para não ver a tia||_Brites Brites|_Brites , enquanto esta vae buscar-lhe uma gotta de vinagre , que guardava cautelosamente em um vidro para levar comsigo ás igrejas em occasião de aperto . Depois , tenta levanta-la , mas Margarida oppunha-lhe tal resistencia , que achou melhor não contraria-la . Finalmente , depois de uma boa hora passada em applicar-lhe estes remedios e a fazer-lhe exhortações , Brites conseguiu conduzir a donzella ao seu quarto , onde a deitou sobre a cama , e abafando-a bem , assentou-se perto do leito , cujas cortinas a escondiam aos olhos de Margarida . A noite passou-se do lado de Brites em vigilia absoluta ; quanto a sua sobrinha , as sensações por que havia passado desde o meio dia tinham por tal modo exhaurido as suas forças que , a final , adormeceu tranquillamente . A manhã rompia com todas as galas de que se costuma vestir durante o verão n ' essa linda terra de Portugal ; o sol começava a doirar com seus raios as cumiadas dos montes visinhos ; as brisas do rio faziam docemente agitar os ramos das arvores proximas á morada de Brites de Almeida , quando esta se levantava da cadeira , onde havia passado aquellas horas de vigilia , para fallar com Margarida , que acabava de abrir os olhos , voltando-os á roda do quarto , como quem procurava lembrar-se onde estava , e o que havia occorrido . " Minha filha , " disse-lhe a padeira , " estás tu mais socegada ? Dize-me que sim . Estas guerras mettem-te medo , a ti , pobre e innocente donzella , que não sabes que ellas são precisas ; que a patria se antepõe a tudo ; a tudo sim , Margarida . Pelo marido deixa-se pae , deixa-se mãe ; mas pela patria deixa-se tudo ; pae , mãe , marido , mulher e filhos ! Mas tu , minha filha , que não tens senão a mim n ' este mundo , aqui me tens . Ninguem te chamou para a guerra ; eu dei o meu contingente ; mas com a graça de Deus , estou sã e salva ! Olha para mim , Margarida ... Mas tu choras , filha ! Margarida ! Margarida ; algum estrangeiro viria , na minha ausencia enfeitiçar-te ! responde ! " O pranto tinha felizmente vindo em auxilio da donzella . As lagrimas começavam a alliviar a impressão fortissima que de improviso a dominara . Margarida pôde chorar , e este choro , por mais amargo que fosse , havia desvanecido a exaltação do seu delirio . Depois de uma breve pausa em seguida ás ultimas palavras de Brites , a donzella respondeu : " Não , minha tia . Eu não fui victima de nenhum feitiço . Vi , é verdade , um estrangeiro , que aqui vein bater , ferido e cansado , pedindo uma gotta de agua para um moribundo ... Eu dei-lhe a agua , mas não tive com elle mais conversa . Quando vós chegastes , e me dissestes a mortandade que havieis feito , lembrei-me que talvez aquelle ferido ... com o seu companheiro moribundo , teriam acabado ás vossas mãos ... e receiei ... " " Nada receieis , filha . Eu fiquei illesa , nem uma arranhadura ... Elles sim , esses ficaram bem mortos ! " " Minha tia , replicou Margarida , Frei Francisco tem-nos sempre ensinado o esquecimento das injurias ... Se aquelles homens vos offenderam , parece-me que devieis ter-lhes perdoado ... " " Cala-te , cala-te , que não sabes o que dizes . Mas ahi começas tu com choros e lamurias ! Vallia-te Deus ! Não penses mais n ' isso , e fica-te aqui trauquilla , emquanto eu vou matar uma ave para fazer-te um caldo , de que tanto precisas ; adeus ! " A religião , querendo reformar o coração humano , inventou uma nova paixão ; e para exprimi-la , não se serviu da palavra amor , por não ser assas severa ; nem da palavra amisade , que ser perde no tumulo ; nem da palavra compaixão , visinha do orgulho ; mas achou a expressão caridade , que encerra as tres primeiras . CHATEUBRIAND -- Genio do Christian . Quando depois da memoravel batalha , a effervescencia dos espiritos , começando a declinar , permittia ao Mestre d'Aviz pôr em pratica a generosidade do seu caracter , D. João chamou o codestavel , e ordenou-lhe que tomasse as medidas mais efficazes para obstar que , não somente se desse a morte a algum prisioneiro , mas que se impozessem severas penas aos que ousassem maltratar aquelles que tinham sobrevivido , e que já estavam em ferros , ou que se podessem encontrar procurando evadir-se . D. Nuno Alvares Pereira , cuja bondade de coração era sómente igualada pela sua coragem e lealdade , ja tinha recommendado a seus soldados tudo quanto a humanidade pôde aconselhar . Mais forte agora com as palavras de seu rei , dava ordens expressas para impedir que o fanatico zêlo do povo e dos soldados vingasse a causa da patria sobre os individuos que tinham escapado ao combate de Aljubarrota . Aquelle dia de gloriosa memoria para o condestavel devia tambem ser-lhe de triste recordação . Tinha visto morrer a seu lado muitos dos seus companheiros de armas . Com elle acabára a esperança que nutrira no fundo de sua alma da conversão d' aquelle irmão que muito amára . Com elIe o perdêra linalmente , e a dôr que recebêra pela sua morte tinha calado profundamente no seu peito ! Sabia porém occulta-la aos olhos indifferentes , e continuava , como antes do conflicto , a visitar todos os pontos , prompto a perseguir os inimigos , que detestava como leal português : , para combate-los com as armas na mão . Mas apenas os via por terra , esse sentimento transformava-se em um sentimento todo de compaixão ; procurando elle mesmo curar-lhes as feridas , e dar-lhes todo o alivio a seu alcance . Foi para exercer estes santos deveres que D. Nuno se encaminhara á masmorra onde Alvaro tinha sido levado . A luz entrava a medo n ' aquelle carcere por uma fresta esguia , atravessada com duas grades de ferro . Era terrea a prisão , e tinha no fundo , por unicos moveis , duas tabuas sobre as quaes havia alguma palha . Ao lado d' este leito improvisado estava collocado um pequeno banco de pau ; sobre este banco via-se uma bilha de barro com agua e um pedaço de pão negro . Alvaro estava só , estendido sobre as tábuas quando o condestavel entrou na prisão . A camisa ensanguentada , a pallidez quasi mortal , que se estampava nas faces do prisioneiro , claro mostravam que estava ferido . D. Nuno , dirigindo-se ao prisioneiro , perguntou-lhe se padecia ; e com a sua resposta affirmativa quiz examinar-lhe as feridas . Achou que eram gravissimas , e que a demora que tinha havido em pensa-las podia ser fatal ao mancebo . Sem hospitaes para onde o mandasse , ficou perplexo sobre o que devia fazer . A pobre vida de Aljubarrota não offerecia um abrigo de caridade para os desvalidos e enfermos . Deviam ainda passar dois seculos antes que um santo varão . , possuido de ardente amor pelos pobres e afflictos , lhes dedicasse a vida , instituindo estabelecimentos pios , uns para recolher os orphãos e expostos , outros para os forçados das galés , dispersos por toda a França ; e finalmente estabelecendo a congregação das Irmãs da Caridade , que deviam espalhar-se até aos confins da terra ; " daquelas santas mulheres que não têem ordinariamente por mosteiros senão as casas dos doentes , por ella um quarto de aluguer , por capella a igreja de sua parochia , por claustro as enfermarias dos hospitaes , por clausura a obediencia , por grade o temor de Deus , e por véu uma santa e exacta modestia " ; como o mesmo varão nos-las descreveu . D. Nuno Alvares Pereira não tinha familia em Aljubarrota , nem conhecia ali ninguem . Comtudo despediu-se de Alvaro , depois de dirigir-lhe algumas palavras compassivas , e saia para procurar-lhe um melhor aposento , quando foi encontrado por Frei Francisco , que entrava a dar parte ao prisioneiro da sua missão . O codestavel , pegando na manga do habito do monge a beijára segundo o uso do tempo , e attentando bem na physionomia do religioso , pareceu-lhe ser elle proprio a pessoa de quem carecia para encarregar-se d' aquelle ferido , e porventura de outros , que devesse encontrar n ' esta corrida a que destinara o dia . " Reverendo Padre , " disse-lhe então , " o defensor d' este reino ordena que os prisioneiros sejam respeitados , e que se prestem os possiveis cuidados aos feridos . Esta villa , desprovida , como é , de estabelecimentos de caridade , não offerece um amparo a estes ultimos . Aqui mesmo acabo de achar um pobre soldado hespanhol , que me parece moribundo ; quer vossa paternidade indicar-me o que se póde fazer em beneficio d' elle , onde collocas- lo , para ser tratado convenientemente , ou procurar-me pessoa que dele se encarregue ? " " Deus esteja com vossa mercê , " respondeu o monge , " e o queira sempre encaminhar na estrada da justiça . De bom grado me presto para o coadjuvar no que esteja ao meu alcance . E se vossa mercê poder dispensar alguns soldados veteranos que , impondo á soldadesca , façam respeitar as ordens de que for munido , eu vou desde já fallar com uma boa gente n ' esta terra . e tratarei de convence-la de que devem prestar me quarto de sua casa ( cuja capacidade conheço ) , para servir de uma especie de hospital , onde se recolham alguns feridos . As mulheres d' aquella casa dedicar-se-hão , não o duvido , ao serviço d' estes infelizes , enquanto vossa mercê os mandará visitar por pessoa competente que lhes ministre os soccorros para o corpo ; ordenando que os veteranos , de quem eu fallei , façam o serviço externo e guardem a porta da casa contra o fanatico furor que aqui se encontra pelo nome castelhano . Os soccorros espirituaes d' estes infelizes ficarão por minha conta . " D. Nuno agradeceu a boa vontade do monge , prometteu fazer o que elle desejava , e retirou-se a dar as suas ordens ; enquanto Frei Francisco , sem entrar no carcere , se poz a caminho da casa de Brites de Almeida . A medicina esta mais na intenção do que na arte de curar O medico sabia que a esperança é uma grande força vital , e que cumpre sobretudo animar a vida emquanto ella luta com a morte . LAMARTINE -- Genoveva . Era noite . Em um vasto armazem pertencente á casa de Brites de Almeida , onde de ordinario a padeira guardava a lenha e carqueija de que devia servir-se durante o inverno , tinham aberto duas grandes janellas e lançado ao longo do pavimento compridas tábuas , que escondiam o ladrilho de que antes se compunha , tornando assim aquelle aposento menos humido e mais brejado . No meio d' aquella especie de dormitorio havia um grande lampeão de forma antiquissima , que o esclarecia . Ao longo das paredes viam-se oito catres de pau , sendo tres de cada lado , e dois no fundo do armazem . Carla um d' estes catres tinha uma enxerga , lençoes de bom panno de linho , cuja alvura attestava o aceio da proprietaria , uma coberta de côr e dois travesseiros . Sobre uma mesa comprida e ainda em bom estado , collocada entre os dois leitos do fundo , estavam tres escudellas de barro , em fórma de bacias , tres jarras contendo agua fresca e crystallina e tres pucaros de loiça . Ao lado dos leitos , de duas em duas camas , via-se uma grande toalha tambem de panno , suspensa a um pau roliço , preso no alto da parede ; algumas cadeiras e outra mesa , menos comprida , no meio deste recinto , completavam a sua mobilia , Sobre quatro d' aquelles leitos jaziam outros tantos soldados prisioneiros , cujas feridas não promettiam cura . Tres catres pertenciam a outros prisioneiros tambem feridos , mas cujo estado não era perigoso , e que estavam sentados junto ás janellas , gosando o luar de uma das mais bellas noites do mez de agosto . O proprietario do ultimo leito , collocado defronte da porta , na extremidade da parede , estava deitado sobre a sua cama , e respondia a custo ás perguntas de um velho respeitavel , quando Brites , chegando a porta do edificio , perguntou : " Daes licença ? Posso entrar ? " Acompanhava-a uma mulher já idosa , mas ainda robusta , que trazia sobre a cabeça um pequeno taboleiro , contendo algumas marmitas , umas sopeiras de barro e algumas culheres de pau . Os soldados que estavam junto ás aquellas levantaram-se , e dizendo a Brites que podia entrar , ajudaram a sua companheira a depositar o taboleiro sobre a mesa . Então o velho que estava ao lado do doente dirigiu á padeira estas palavras : " Minha boa Brites , este rapaz que acabo de ver esta muito mal . Contudo póde curar-se , se tiver um tratamento assiduo . Não é tanto o medico de que elle carece : precisa de um cuidado constante e de repouso absoluto . Aquelles quatro companheiros estão moribundos , e devem amanhã de madrugada receber os ultimos sacramentos . Solemne como é uma tal scena , póde ser-lhe fatal , impressionando-o demasiadamente . A febre e já violenta ; qualquer incidente póde ; augmenta-la a ponto de não se poder salvar o infeliz ! Vós , boa Brites , cuja repugnancia contra os inimigos está meio vencida , graças ás exhortações do santo monge , e que haveis prestado este aposento para servir de ambulancia aos miseros , que longe da patria arrastam uma triste existencia , vós podeis ainda fazer um grande serviço ; á humanidade , concedendo que aquelle pobre mancebo se recolha a um quarto da vossa casa . Hoje ainda será facil transporta-lo d' aqui ; ámanhã talvez fôra tarde , se tiver de presenciar e de ouvir as orações funebres que terão de fazer-se pelos seus companheiros . " E o medico , homem verdadeiramente caridoso , esperava com signaes de impaciencia a resposta da tia||_Brites Brites|_Brites , que depois de alguns momentos , murmurou : " Já é de mais , sr. doutor ! Isto não se atura ! Estou vendo que me obrigam a casar com um d' estes excommungados , ou permittem que algum me leve Margarida ! ... Não deixo , sr. doutor , não quero estes perros em minha casa ! " N ' este momento entrava o contestavel , que vinha visitar o hospital ; e ouvindo as palavras de Brites , sorrindo-se , lhe disse : " Não será dito que a boa Brites de Almeida , depois de haver mostrado todo o seu valor contra os inimigos , quer ainda conservar odio implacavel para com os desarmados e doentes , que já pagaram bem caro o terem combatido contra portuguezes . Estes homens sem patria , sem familia e sem liberdade merecem toda a compaixão ; e El-Rei sabera castigar severamente aquelles que os maltratarem , assim como ha de premiar os que lhes concederem algum soccorro . Brites , a quem nem as ameaças intimidavam , nem engooavam as promessas , não se movia ás rasões do comtestavel , comtudo estava perplexa sobre a resposta que devia dar . O medico porém tirou-a d' este embaraço , dizendo a " D. Nuno : " Não tendo mais a fazer n ' esta casa durante a noite , vou sair d' ella , e mandar já um propria a Frei Francisco para dizer-lhe o estado do seu protegido , e participar-lhe que ámanhã se divem dar aos outros doentes os auxilios espirituaes . Frei Francisco estará aqui muito cedo , porque elle antepõe os deveres da caridade aos proprios exercicios religiosos . Vossa mercê dará as suas ordens para que os enfermos continuem a ser bem tratados . Quanto ao mancebo , deixaeo por minha conta . Amanhã ao romper do dia tira-lo hei daqui ... " " Não , senhor ! " replicou então Brites de Almeida , que , havendo-se approximado á cama onde estava Alvaro , notára n ' aquelle semblante um não sei que que a fizera estremecer . " Não , senhor ! O rapaz pode ir lá para cima , se vossa mercê insiste em que isso se faça . Em vou arranjar-lhe o quarto ; no entretanto , queira vossa mercê administrar a repartição d' aquelle caldo que trouxe para os doentes , e que a esta hora está frio como a neve ! " E saindo precipidadamente , entrou em casa , chamou Margarida , e disse-lhe " que era preciso tirar do primeiro quarto tudo que não fosse necessario para um pobre doente que não podia ficar no hospital , e que para ali vinha ser tratado , porque o Mestre d'Aviz , D. Nuno e Frei Francisco assim o queriam . E em quanto a sobrinha executava o que ella lhe prescrevera . Brites armava um leito na sala que era o primeiro quarto da casa , e trazia um colxão para fazer uma boa cama áquelle que uma hora antes desejava ver morto . Margarida , cheia de espanto e de curiosidade , não acreditava o que via . Ella tinha ouvido as instancias , os rogos , e as exhortações que Frei Francisco fizera a sua tia antes que esta lhe promettesse uma loja de sua casa , lençoes para o hospital , e os seus braços e os de uma visinha que a ajudava no forno , para o serviço dos doentes . Agora Brites era quem se mostrava mais diligente no desempenho de seu novo projecto ; facilitava tudo ; como Margarida depois do seu desmaio havia perdido a côr e parecia soffrer , a tia||_Brites Brites|_Brites tinha-lhe poupado todo o trabalho , já nos arranjos de casa , já nos do pequeno hospital , que , graças aos desvelos do monge , do medico e do condestavel , se tinha arvorado n ' aquelle logar havia dois dias . Depois do quarto prompto Brites disse a Margarida : " Minha filha , tu agora dormirás no meu quarto ; eu devo ficar aqui como enfermeira de um soldado que está muito mal . Não desejo que trates com os castelhanos ; nem é preciso que vejas o prisioneiro que ahi vem . A visinha Joanna não fará o serviço do forno em quanto os doentes tiverem precisão d' ella . Chamarei entra pessoa para isso , porque não pudemos viver sem vender o nosso pão . Tu , minha Margarida , farás os caldos para os doentes e uma sópa para nos . Não quero que te occupes em outra cousa . Ouves ? " E Margarida escutava e admirava o que ouvia , e promettia obedecer . O seu coração estava triste . Suspirava por fallar a sós com Frei Francisco , com quem não tinha conversado desde que lhe narrára a sua entrevista com Alvaro , o soldado hespanhol ; mas não tinha podido faze-lo , pois Frei Francisco tinha vindo áquella casa duas vezes nos dois dias somente para resolver a tia||_Brites Brites|_Brites a deixar recolher os primeiros castelhanos em seus armazens . D. Nuno Alvares Pereira tinha já saido do hospital , mas o medico , depois de ter dado o caldo aos doentes , esperava a resposta de Brites , quando esta chegou para dizer-lhe que o quarto para o ferido eslava prompto , e que se podiam chamar alguns homens para o transportarem para ali . O medico deu as suas ordens aos veteranos que estavam de guarda á porta , e foi de novo pulsar o doente e dar-lhe a beber umas gotas de um cordial que trouxera comsigo . Depois , embrulhando-o em um grande capote que trazia sobre os hombros , fê-lo conduzir á sua nova morada , deitou-o elle mesmo na cama , e , chamando de novo a padeira para recommendar-lhe o socego para o doente , despediu-se d' elle affectuosamente , promettendo voltar bem cedo na manhã seguinte . No mesmo sepulchro não ha porvir da esperança , porque ao pensamento do corpo precedeu a morte do espírito . A. Herculano -- Eurico Em quanto a tia||_Brites Brites|_Brites revolvia na memoria as feições delicadas e sympathicas do joven soldado ; em quanto Margarida , sem poder conciliar o somno , pedia a Deus melhorasse todos os feridos castelhanos , julgando que assim rogava tambem por aquelle por quem tanto se interessava ; o pobre Alvaro perdia as forças , e caira em um 111 lethargo assustador . Mas a padeira , que para velar sobre elle ficara assentada ao lado da sua cama , persuadida de que um somno benefico se apoderara do mancebo , continuava a observa-lo , certa de que dormia tranquillamente . Brites não tinha sido padeira toda a sua vida . Quando vivia em Alcobaça , antes do nascimento de Margarida , tinha tido grandes relações com uma familia nobre que passára algum tempo naquella villa . Esta familia compunha-se de um velho militar , com sua mulher e duas filhas , a mais velha das quaes , doente e triste , não apparecia a ninguem ; e apenas era vista nos dias de missa , em que acompanhada de sua mãe , ia á igreja ao romper do dia , embrulhada em uma grande mantilha preta , que cobrindo-a da cabeça aos pés , lhe occultava inteiramente a rosto e a fórma de seu corpo . Brites Tinha n ' esse tempo dezesete ou dezoito annos : e fóra inculcada para casa desta familia como costureira . Orphã de mãe , a pobre Brites vivia do trabalho de suas mãos . Seu pae andava nas guerras entre Portugal e Castella , e sua irmã , o unico parente que tinha , estava casada , e pouco podia dar-lhe alem do tecto da casa , sob o qual se abrigava . Assim , Brites aproveitava todas as recommendações que tinha para o trabalho , e foi de tal maneira agradavel a sua diligencia áquella familia , que a final Brites achou-se ali estabelecida de casa , cama e mesa . Então póde ella ver á vontade a interessante pessoa que se occultava aos olhos de todos ; então foi ella conhecendo pouco a pouco as circunstancias de uma vida tão curta , como cheia de tormentos . Aquella menina , de belleza não vulgar , tinha apenas dezeseis annos de idade , quando a sua familia viera a Alcobaça . Seu pae havia feito todas as campanhas contra Castella , e apesar de ter casado com uma mulher d' aquella nação , o valente portuguez odiava os castelhanos . Desta maneira , por ma is angelico que fosse o caracter d' aquella que havia escolhido por esposa , o rancor inexoravel que seu marido tributava a todos os hespanhoes tinha frequentemente arrancado algumas queixas do peito d' aquella mulher . Estas queixas perturbavam a paz do seu interior domestico , e a fizeram por vezes arrepender-se de ter unido a sua sorte á de um inimigo da sua nação . Mas ella tinha duas filhas , e por ellas sacrificava a paz e a ventura devidas ás suas virtudes , dotes e nascimento . Assim se haviam passado alguns annos , até que estando seu marido ausente , e habitando D. Iria com suas filhas a Cidade de Evora , no Alemtejo , um acaso infeliz fê-las conhecer um mancebo , que tanto se insinuou no espirito d' aquellas senhoras que parecia um membro da familia , amado por ellas como filho e irmão . Sem pretender fazer monopolio d' aquellas affeições , o mancebo entregou-se inteiramente á doçura que d' ellas lhe provinha ; e quando quiz recuar , antevendo o resultado desgraçado de um amor criminoso , era tarde . Violante , a filha mais velha de D. Iria , amava apaixonadamente Luiz de Sousa . O mancebo era portuguez , e ligado por um voto a uma das ordens religiosas e militares do paiz , Seu pae , pertencendo a uma antiga familia , era pobre . Luiz de Sousa estremeceu com a idéa de ser perjuro , ou no voto que o prendia á religião de seus paes , ou áquelle que o ligava a uma donzella que n ' elle depositara a maior confiança , o mais puro affecto ! Mas era preciso decidir-se : o pae de Violante era esperado todos os dias , e a rigidez do seu caracter era por todos conhecida . O mancebo calou o que não devia occultar ; e , instado por D. Iria , levou Violante á cathedral de Evora , simples mas venerando edificio , fundado em 1186 pelo bispo D. Paio , e ali , a face de Deus , a tomou por esposa . Algumas horas depois de voltarem da igreja , regressava de suas viagens o velho militar . Não seria facil explicar o seu furor quando , tendo pedido todas as explicações , observando o embaraço de sua filha e o do marido que ella procurara , exigindo lhe narrassem todos os promenores d' aquelle casamento e da vida de seu genro , soube que elle havia abusado da sua casa , esposando uma mulher que legitimamente não podia receber . O seu genio fogoso e arrebatado não lhe permittiu a menor reflexão que porventura pudesse diminuir as culpas que imputava a sua mulher , filhas e genro ; e em um excesso de raiva , ousou levantar a mão contra Luiz de Sousa ! O mancebo mudára de côr subitamente ; mas nem repellira o pae de sua mulher , nem replicara uma palavra . Escondeu duas grossas lagrimas que lhe assumiram aos olhos , e abraçando Violante , desappareceu como um raio . A sua morada era contigua á de Lopo de Mendonça . Luiz de Sousa entrara em sua casa . A franqueza , o ardor , a generosidade , esses dotes da juventude , pertenciam todos ao caracter do mancebo . Mas a vergonha não o deixava reflectir n ' aquelle momento . Suppunha que o mal que havia commettido , o ultraje que soffrêra eram irremediaveis ! O infeliz esquecia a religião de seus paes , e so via a mundo com todos os seus preconceitos ; horriveis prejuizos que no meio das nações civilisadas formam uma religião de sangue , servida por loucos adoradores que se lhe immolam eomo victimas ! O arrependimento efficaz é um dom gratuito , concedido ás orações e as lagrimas . Luiz de Sonsa não podia recorrer a uma nem a outra cousa . Cego de raiva , arrancára do cinto o punhal que , segundo o uso dos cavalleiros , trazia sempre comsigo , o atravessára com elle o coração ! Um creado que o seguira , atemorisado pela mudança de sua physionomia , ainda ouviu as ultimas palavras que murmurara : " Meu Deus ! perdão ! ... Violante ! " Estas palavras eram a expressão do seu amor pela creatura angelica que deixava viuva , e um signal do seu remorso por haver quebrantado o seu voto ! Não pensava o misera que Violante ficava muito mais infeliz depois da morte desgraçada de seu marido , do que mesmo o seria se tivesse sido obrigada a separar-se d' elle ! Luiz de Sousa morria em um momento de desesperação ! Entre elle e os que deixava quebrava-se essa cadeia de esperança , que serve de communicação de um mundo a outro ! A ponte de flores pela qual se devem reunir os que se amaram n ' esta vida não existia para Luiz de Sonsa . Elle mesmo a despedaçara ! ... As orações de Violante não deviam passar através das muralhas da cidade dolorosa , que a separavam de seu marido ! ... O desafortunado esquecera tudo ! e em seu louco furor pretendera mergulhar as idéas que o perturbavam em um somno estupido ; sem lembrar-se que este somno cujo despertar seria terrivel , o levava á morte eterna ! ! Á vista d' estes cabellos , tremula , e empallidecendo mais e mais , arranca-lh ' os das mãos e pergunta-lhe : " De quem são estes cabellos ? " -- " De minha mãe . " LAMARTINE -- Genoveva . A nova d' esta catastrophe cedo chegou aos ouvidos de Violante . A triste caira logo em delirio . A febre acommettêra-a com violencia , e durante tres mezes lutára a infeliz viuva com a morte . A sua mocidade porem , os desvelos constantes de uma extremosa mãe , a ausencia de seu pae , que outra vez entrara em novas guerras contra Castella venceram a doença , e Violante no fim d' aquelle tempo levantava-se da cama , magra , pallida , com o rosto transtornado mas resignado , e promettendo remir por uma vida de penitencia os erros da paixão de que fôra victima . Nove mezes , dia por dia , depois da morte de Luiz de Sousa , Violante dava á luz uma crcança do sexo masculino , transumpto fiel do desafortunado cavalleiro . Este filho , que sua mãe não podia nutrir com o seu proprio leite , foi confiado , por D. Iria , a uma mulher das visinhanças de Evora , cuja honradez era conhecida por aquella familia . Quando , tempos depois , mutilado e cansado dos combates . Lopo de Mendonça regressava a sua casa , achou Violante tão mudada , que não ousou fallar-lhe nos acontecimentos passados . Ignorava que lhe houvesse nascido um neto ; e querendo mudar de residencia , para melhor esquecer-se do que ali orcorréra , tomou uma habitação em Alcobaça , perto de umas terras que ali possuia . Foi ali que esta familia conheceu a Brites ; foi d' ali que a pobre rapariga , depois de bem experimentada , tinha ido por vezes , acompanhada de um fiel creado , visitar no Alemtejo o pequeno Alvaro , filho de Luiz de Sousa e de Violante de Mendonça . Mas estas visitas deviam acabar cedo . Alvaro tinha mais de um anno de idade , e crescia em forças e em graças , em quanto sua mãe perdia umas outras . Violante expiava com lagrimas de sangue o imprudente proceder de sua mocidade , a falta de confiança que tivera em sua mãe , e a sacrilega alliança que enntrahira com Luiz de Sousa ; e , chegando uma manhã do convento de Alcobaca , onde tinha ido depositar suas culpas no seio de uma religião de misericordia , foi subitamente acommettida de uma violenta dôr , que lhe acabou com a vida . Matára-a uma doença d' aquelle coração já tão dilacerado pelos soffrimentos do espirito ! ! O primeiro cuidado de D. Iria , depois de ter chorado , como uma mãe sabe chorar , sobre o cadaver de sua filha , foi para o pequeno Alvaro . Não podia recebe-lo em casa ; e temendo o furor de seu marido , mandou ao Alemtejo o creado de quem já fallamos , sob pretexto de arranjos domesticos , encarregando-o de uma delicada missão . Aquelle homem devia atravessar as fronteiras com o pequeno Alvaro , passar a Hespanha , e entregar a creança a uma irmã que D. Iria ali tinha casada , narrando-lhe tudo quanto havia acontecido , e pedindo-lhe um segredo inviolavel sobre o nascimento de Alvaro . Era este o ultimo sacrificio que a triste avó devia offerecer a Deus ! E ella resignada , mas afflicta , como mãe que tem de separar-se de um filho querido , destinava-se a esta ausencia , talvez eterna , sem que ao menos podesse abraçar e dar o ultimo adeus ao filho de sua filha , duas vezes filho da infeliz D. Iria ! Foi assim que Alvaro passara ao reino visinho , e que tendo sido visto por Diogo Alvares em easa de sua tia , tinha sido adoptado pelo irmão do condestavel , que o tratou ternamente , mandando-o ensinar como se fóra seu filho . Conhecedor comtudo da sorte da guerra , e querendo afastar Alvaro dos perigos que ella traz comsigo , fizera-o seguir o estudo das letras , e contava deixa-lo herdeiro de seus bens . As contendas porém do rei -- Castella com o Mestre d'Aviz pozeram Diogo Alvares em caminho de Portugal . E como Alvaro não podesse resolver-se a deixar partir o seu bemfeitor sem que o acompanhasse , alcançou de Diogo Alvares que o deixasse seguir romo voluntario . A morte repentina d' aquelle capitão deixou o mancebo sem protector e sem fortuna , e agora prisioneiro de guerra e moribundo ! Brites , como já dissemos , velava junto de Alvaro , e parecia reconhecer nas suas feições desfiguradas pela doença as feições da creanca que ella amára tanto ! Entregue a esta duvida , a parteira tinha encostado os braços sobre a cama de Alvaro , e olhava para elle attentamente , quando o mancebo , n ' um accesso de delirio , ergueu a cabeça do travesseiro , levantou as duas mãos , levou-as no peito , e travando na camisa , puxou-a com tal força que , rasgando-a , deixou patente aos olhos de Brites uma pequena medalha como a que ella vira D. Iria entregar ao seu creado , na occasião de mandar conduzir a creança para Hespanha , recommendando que lh'a lançasse ao pescoço , para que nunca a largasse . A medalha continha os cabellos de Luiz de Sousa e de Violante , e as letras iniciaes dos seus nomes estavam ali gravadas . Então as suspeitas de Brites tornaram-se em uma certeza real . Aquelle rapaz era Alvaro de Sousa ; portanto era portuguez . Brites podia assim dedicar-lhe todo o affecto , tanto mais que , conhecendo a historia de toda a sua familia , sabia que o mancebo tinha perdido todos os parentes do lado de sua mãe ; e se algum porventura lhe restava por parte de seu pae , tinha saido do reino . D esta maneira , pobre e solitario , a padeira devia prestar-lhe todo o soccorro . Assim pensava ella naquelle instante : alguns momentos depois dizia comsigo a patriotica padeira : " Mas se elle pegou em armas contra o seu paiz ? ! e não ha duvida que assim foi ; é soldado , está ferido , e ficou prisioneiro ! que mais querem ? ! ... Santo Deus ! Nunca me verei eu livre de hespanhoes , ou cousa que o valha ? ! ... Mas este rapaz e Alvaro , aquella creança que tantas vezes passeiei nos meus braços ... é o filho da boa D. Violante . Santa rapariga , que tão cedo deixou este mundo ! e D. Iria ... era outra santa , que não pôde sobreviver áquella filha ! Depois lá veio o sarampo , que levou a outra pequena ; ficou o velho , esse já ninguem o podia aturar , tão rabugento , tão rabugento ... Mas coitado ! Deus o tenha na sua gloria ! Era um homem de mão cheia , aborrecia os castelhanos , e bastantes mandou para o inferno , até que uma noite feia , noite de trovões , estando á sua janella admirando a tempestade e o fuzilar dos raios , veio um que o estendeu no chão ! ... Lembro-me como se fosse hontem ... Eu estava bem perto e comecei a gritar : Santa Barbara ! S.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo ! mas nada valeu . Lopo de Mendonça estava morto ! Frei Francisco ha de lembrar-se bem d' esse caso ; elle que não esquece cousa alguma . A gente de Alcobaça dizia que o santo monge emprehendêra a conversão do velho capitão , que a final já ia á igreja e frequentava o confessionario . Frei Francisco reconhecerá tambem n ' este mancebo o pequeno Alvaro que elle mesmo baptisára . " E assim recordando os passados acontecimentos , a tia||_Brites Brites|_Brites , dominada pela fadiga do dia , deitou a cabeça sobre o leito de Alvaro , e adormeceu . Entregue cedo a mãos estranhas , foi creado longe do tecto paterno . CHATEAUBRIAND -- René . O sol ia a nascer . Do alto dos montes via-se para o lado do oriente um clarão immenso , cujo reflexo brilhava sobre a planicie . As nuvens doiradas que se estendiam pelo céu , os grupos das montanhas ao longe esclarecidas , a verdura das arvores , o canto dos passaros , tudo apresentava um espectaculo sublime de harmonia . Margarida não se havendo deitado na cama , havia aberto a janella do seu quarto , e ali admirava o quadro magnifico que tinha diante dos olhos , quando viu entrar para o hospital contiguo Frei Francisco acompanhado de dois homens . O desejo de Margarida levaia-Ia-a descer a escada para fallar com o monge . Mas as ordens de sua tia eram explicitas , e ella não costumava desobedecer-lhe . Esperou pois que Frei Francisco saisse da sua visita de caridade para fazer-lhe signal de sahir . O silencio continuava no quarto onde jazia Alvaro : e Margarida contava ter uma boa conversa com o seu confessor . antes que a tua Brites saisse d' ali : " Minha tia , pensava a donzella , velaria toda a noite , agora dorme e tarde acordará . " O caldo para os doentes estava feito , e Margarida podia sem inconveniente esperar á sua janella que Frei Francisco saisse do hospicio . Assim o fez , e viu com alegria que o monge se encaminhava para a porta da casa . Então , sem fazer o menor motim , desceu a escada , e saudando a Frei Francisco , disse-lhe que em quanto sua tia dormia , desejava faliar-lhe no seu quarto . O santo monge desejava primeiro ver o joven soldado doente ; mas sabendo que repousava , aceitou a proposta de Margarida , e ao entrar no quarto perguntou-lhe : " Minha filha , o que tendes a narrar-me ? " A sobrinha de Brites contou então tudo que tinha passado com snu tia depois da morte dos sete hespanhoes ; disse que a idéa do perigo d' aquelle somado a não deixara mais ; fallou de seus escrupulos , e acabou pedindo a Frei Francisco houvesse por caridade de informar-se se o mancebo fóra uma das victimas de sua tia . Frei Francisco conhecia a natureza humana , e tia no mais recoadito do coração de Margarida . O monge sabia que o mancebo que ella amava era Alvaro . Sem querer dar-lhe esperanças , disse-lhe : " O soldado de quem fallais não morreu , mas está ferido e prisioneiro ; talvez possa curar-se ; contundo a sua situação e triste , porque o Mestre dAviz não perdoará facilmente áquelles que derramaram tanto sangue portnguez . Mas dizei-me , Margarida , não haveis visto o prisioneiro que está ao cuidado da vossa tia ? " Esta pergunta foi um raio de luz que esclareceu as idéas da donzella . A voz embargou-se-lhe na garganta , e quando Frei Francisco insistia pela resposta , um grito da tia||_Brites Brites|_Brites fê-los voltar sua attenção para outra parte . " Acudam , acudam que morre ! " foram as palavras que soltara a padeira , e que levaram o monge e Margarida para o logar onde estava o enfermo . Brites acordara n ' aquelle instante , e attentando no mancebo , vira a lividez da morte debuxada sobre seu rosto , ouvira-lhe a respiração quasi extinta , sentira-lhe as mãos com a frieza da neve , e chamára por soccorro . O monge pediu vinagre , e fazendo-o aspirar ao doente , aquecia-lhe ao mesmo tempo os pés , em quanto Brites corrêra a chamar o medico . Margarida , como a estatua da dôr , tinha ficado immovel ; seus olhos , fixos no rosto do desfigurado mancebo , tinham uma expressão indizivel : O medico havia sido encontrado no hospital e veiu promptamente , trazendo alguns remedios , que applicou com proveito . Brites mão parava ; ia de um para outo lado , sem saber o que fazia . Finalmente , quando o medico assegurou que o doente não estava em artigos de morte ; que aquelle desmaio por que tinha passado era talvez um signal de que a molestia fazia crise ; a madeira travou do braço do monge e disse-lhe baixinho : " Veja vossa paternidade aquelle rosto , olhe para aquelle peito , repare n ' aquella medalha e diga-me se aquelle rapaz não é Alvaro de Sousa , o filho de D. Violante de Mendonça ! ... " Frei Francisco tinha apenas visto as feições de Alvaro . Depois da noite em que lhe fallára junto ao corpo de Diogo Alvares , o monge tinha estado no hospital uma vez ao cair da tarde , e mal tinha reparado naquella physionomia ; mas as palavras de Brites , as que o mancebo lhe dirigira em sua primeira entrevista , dizendo-lhe que era portuguez , e se chamava Alvaro ; a medalha que elle havia abençoado sobre o altar antes de ser mandada ao neto de D. Iria , tudo lhe confirmava as suspeitas de Britos . Levantou os olhos ao céu , e murmurou uma breve oração de agradecimento . Frei Francisco havia jurado sobre o leito de morte da mãe de Violante procurar saber do seu neto , para faze-lo voltar a Portugal quando morresse Lopo de Mendonça , para que podesse entrar de posse do pouco que seu avô possuia . O bom monge havia escripto para Hespanha e feito as maiores diligencias ; não sabendo porém o nome da pessoa que se houvera encarregado de Alvaro , mortos os parentes de D. Iria em Castella , os seus esforços haviam ficado baldados . O céu dava-lhe agora a faculdade de pôr em pratica o que tanto desejára . Comtudo , aquellas quatro pessoas que se dedicavam ao serviço de Alvaro conseguiram com seus cuidados o que talvez se não obtivesse se a doente houvera ficado em qualquer outro logar . A luz que frouxamente deixavam entrar n ' aquelle quarto , através de uma grossa cortina que haviam posto na janella , os passos leves com que pisavam o pavimento , os remedios applicados com a maior attenção , as palavras de doçura que murmuravam a seus ouvidos , as horas passadas em profundo silencio , velando tom amor pelo doente em quanto elle repousava , enchiam o seu aposento de uma tal atmosphera de affeição que , consolando-o moralmente e curando-lhe o corpo , Alvaro pôde em poucos dias entrar em convalescença . Margarida tinha alcançado de sua tia a permissão de acompanha-la nas suas vigilias junto do enfermo . Seus cuidados , sua meiguice e caridade , tinham ganho os affectos do mancebo antes mesmo que elle podesse adivinhar o amor que havia inspirado . O medico fazia repetidas visitas ao doente , promettendo-lhe prompto restabelecimento . Brites , a quem Frei Francisco impozera silencio sobre o que ella sabia acerca de Alvaro , animava-o , contando-lhe historias dos castelhanos , e prodigalisava-lhe todas as caricias de que ella era susceptivel . Frei Francisco vinha todos os dias , e passava com elle o tempo que podia roubar aos seus deveres religiosos . Finalmente , um dia em que Alvaro parecia já mais forte e capaz de escutar sem demasiada commoção o que o monge tinha a dizer-lhe , Frei Francisco pediu a Brites que se retirasse com sua sobrinha , e começou a narrar ao mancebo tudo quanto lhe dizia respeito . Fallou- lhe de seus avós , contou-lhe o imprudente proceder de seu pae , e o como tinha procurado uma morte desgraçada ; disse-lhe como havia sido levado para Castella , fallou-lhe da morte de todos os seus parentes , e acrescentou finalmente : " Fui eu que vos baptisei , meu filho ; foi pelos meus conselhos que D. Iria vos mandou para Hespanha , para não augmentardes os soffrimentos de vossa avó , que não podia ver-vos , e que temia revelar o vosso nascimento a seu marido , cujo corarão endurecido nas guerras não conhecia aquella virtude que um Deus de paz nos recommendou como o mais propria para fazer-nos alcançar a vida eterna . A caridade , que é paciente , doce ; que não é ambiciosa , que se não irrita , que não pensa mal ; que se não regosija com a injustiça , que se compraz com a verdade ; que tolera tudo , acredita , espera tudo e soffre tudo , não morava n ' aquella alma . Lopo de Mendonça , rigido comsigo mesmo , não perdoava as faltas e as fraquezas dos outros . Esta severidade estendia-se com mais força sobre sua mulher , anjo de bondade , que estava presa aos castelhanos pelos laços do sangue , e que se não muia aos votos e ás exclamações incessantes que seu marido vociferava contra os d' aquella nação . Promeiti a vossa avó , na hora solemne do seu passamento , de servir-vos de pae , e fazer-vos entrar nos direitos de vosso matrimonio . Trabalhei debalde por muitos annos . Hoje o céu recompensa esses esforços , fazendo-vos conhecer do pobre monge . Vou desde já occupar-me em mostrar a legitimidade do vosso nascimento ; quando o tiver conseguido , quando alcançar de D. João I a vossa liberrdade , poderei exclamar com o santo velho Simcão : " Agora deixae , Senhor , o vosso servo morrer em paz ! " Alvaro escutara com a maior attenção as palavras de Frei Francisco . Por vezes tinha o mancebo , durante aquella conversarão , pegado nas mãos do monge , e lh'as apertára com toda a demonstração de agradecida ternura . Por vezes tinham-lhe as lagrimas corrido pelas faces ao ouvir a morte de entes tão caros . A final , quando o bom monge acabou de fallar , Alvaro lançou-Ihe os braços em roda do pescoço , e ali se demorou alguns instantes . Depois de algum tempo passado em doce e reciproca expansão , Frei Francisco despediu-se de Alvaro de Sousa , entregando-o , como de costume , aos cuidados da tia||_Brites Brites|_Brites e de Margarida . A amargura do corarão revela a forçados laços , que unem as pessoas que vão separar-se . Mede-se a felicidade passada pela desgraça que vae começar : porque a dor é o thermometro mais seguro da amisade . ALEXANDRE -- Deus dispõe . O velho monge saindo de casa da padeira , pensou que antes de tudo devia tratar na liberdade do prisioneiro , e , para conseguis-la , lembrou-se logo de D. Nuno Alvares Pereira ; mas dirigindo-se a procura-lo , sonhe que o condestavel tinha partido na vespera , em procura de novos touros , para encontrar os castelhanos . Então pensou em João das Begras , emulo de D. Nuno ; este celebre jurisconsulto havia sido feito chanceller do reino por D. João I , que , pesando na balança quanto devia áquelles dois homens , os escutava sempre com igual respeito , posto que bem persuadido que sem o auxilio do braço do condestavel toda a sciencia do doutor -- Bolonha mal o teria ajudado a livrar a patria do dominio estrangeiro . Ao chanceller pois se dirigiu Frei Francisco . Narrou-lhe succintamente a vida dos paes de Alvaro de Sousa , disse-lhe qual era a triste posição do mancebo , e pediu-lhe intercedesse por elle perante el-rei . João das Regras desejava ter occasiões de mostrar o seu valimento : aproveitou com gosto aqiella que , pela ausencia do condestavel , se lhe apresentava , prometteu fallar com D. João e alcançar d' elle o resgate do prisioneiro . Mas a sorte parecia teimosa contra Alvaro de Sousa . D. João I tinha deixado Alcobaça . Um proprio tinha chegado n ' aquella madrugada a participar-lhe que a sua bandeira estava arvorada no castello de Santarem . As auctoridades castelhanas haviam fugido , os prisioneiros portuguezes estavam resgatados . O monarcha corrêra apressadamente para aquella villa . Os capitães que haviam ficado em Aljubarrota tiveram ordens para recolher todos os prisioneiros a um quartel para isso destinado ; e quando Frei Francisco acabava de fallar com João das Regras , já Alvaro de Sousa tinha sido intimado para comparecer . O santo monge voltou a casa de Brites de Almeida , a quem achou derramando lagrimas . Margarida , a pobre Margarida , essa não chorava : parecia-lhe impossivel uma tal barbaridade . " Levarem-no d' aqui doente , não creio ! " murmurava comsigo . Frei Francisco ia de uma a outra casa ; fallava com os capitães , mas nada conseguia . As ordens de D. João eram positivas . Os presos deviam sair de Aljubarrota . Os capitães deviam encontrar-se com o condestavel , que seguia o caminho da Extremadura . N ' este estado de cousas a separação era forçosa . Alvaro estava melhor ; não podia valer-se do pretexto da doença . O mancebo tinha-se promptamente restabelecido . Chegou a hora da partida . Foi então que o triste prisioneiro fez a Margarida a confissão dos sentimentos que ella havia feito nascer em seu coração . Foi então que a misera donzella , em presença de sua tia e de Frei Francisco , lhe jurára uma eterna affeição . Mas as palavras não podiam exprimir quanto sentiam aquelles dois corações , tão puros , tão sensiveis ; e quando precisassem de palavras para se comprehenderem , não o conseguiriam : nem um nem outro podia fallar ! Frei Francisco então , como o mais forte de espirito , e a quem uma mais longa vida tinha feito experimentar maiores tormentos , tomando uma das mãos de AIvaro de Sousa , disse ao mancebo : " Meu filho , é preciso mostrar que es homem , curvar-te aos trabalhos que Deus quizer enviar-te , e accita-los com resignação . O Senhor nunca abandona os que são fieis á sua santa lei . Confia nelle , meu filho , e fica certo que o velho monge não te esquece . Eu vou seguir as pisadas d' el-rei ; vou implorar o teu resgate . D. João I não terá esquecido com a gloria os dictames da humanidade , que o Mestre dAviz sabia praticar . Enche-te de coragem , da coragem propria de um varão , e o Senhor terá compaixão de todos nós . E tu , Margarida , a tua missão é outra . Em quanto Alvaro vae como homem lutar com os perigos , dos quaes , com a graça de Deus , sairá incolume , tu , desempenhando os deveres a teu cargo , elevarás o teu coração ao céu , pedindo o soccorro que só dali nos pôde vir . Eu , como soldado de Christo , seguirei os afflictos até poder resgatados . Se o não conseguir , se os meus esforços não forem coroados , ainda os acompanharei até que possa ter-lhes feito alcançar uma intera resignação á vontade do céu . " Alvaro de Sousa , penetrado das palavras do monge , pegára na mão de Margarida , e tendo-lh ' a beijado com toda a ternura murmurou : ate á volta , Margarida . Juro que hei de esposar-te se Deus me conceder a liberdade ! " Depois abraçou a tia||_Brites Brites|_Brites , e saiu d' aquella casa onde tinha encontrado tanto desvelo , tanto amor ! Chegando á rua achou a escolla que o esperava , e acompanhado dos prisioneiros do hospital , que haviam escapado á morte , foram todos reunir-se ao destacamento que saía de Aljubarrota . Frei Francisco seguiu-os ate certa distancia , e tendo-se assegurado que partiam n ' aquella mesma noite , tomou o caminho do seu convento . E de by se partio logo com sua gente ... De by caminho de Castella ... E assi per prazer de Deos foy vencida esta batalha , a qual durou dois dias de sol a sol em pelejar . Chronica de Condestabre . Não relataremos as differentes jornadas que fizeram os soldados de D. João I , antes de se encontrarem com o condestavel . Não fallaremos das injurias e vexames a que os prisioneiros castelhanos tiveram de resignar-se em seu caminho . O povo portuguez patenteava por toda a parte o seu odio para com os d' aquella nação ; e os soldados prisioneiros não eram os que menos tinham a soffrer de um tal rancor . Assim o pobre Alvaro , atravessando os valles e subindo os montes , passava cidades e villas exposto ao furor da populaça . Frei Francisco tinha saido de Alcobaça e havia-se dirigido a Santarem . Mas ainda ali tinha dever mallogrados os seus desejos ! D. João , seguro da pacificação d' aquella villa , antiga côrte dos reis -- Portugal , havia partido a pé , em romaria a Nossa Senhora da Oliveira , em Guimarães , a quem tinha feito voto se vencesse em Aljubarrota . Mas emquanto o condestavel derrotava complelamente na Extremadura os grau-mestres de Calatrava e S.Thiago de Hespanha , um incidente deploravel esteve a ponto de romper a união fraternal que unia os dois grandes homens d' aquella epocha . Logo depois da batalha d' Aljubarrota D. João I tinha concedido a D. Nuno muitas terras . O condestavel , cujo caracter era revestido de todo o genero de heroismo , querendo recompensar os capitães que utlimamente o auxiliaram a desbaratar o inimigo , repartiu com elles a maior parte daquelas terras , e em sua munificencia doou-as mais como soberano do que como vassallo . O rei resentia-se , queixou-se , e a dissensão começou . O condestavel taxou de ingratidão aquelle procedimento do rei , e resolvia abandonar o paiz , quando D. João , comprehendendo quanto lhe seria fatal a perda de um tal homem , fez novas concessões , conservando assim o seu fiel amigo . D. Nuno arrependeu-se sinceramente d' aquelle movimento de orgulho ; e talvez que esta momentanea interrupção na amisade que unia aquelles dois homens fosse a causa principal de um acontecimento que mais tarde teremos de relatar . O condestavel contudo , correndo apos os inimigos , tinha entrado em Hespanha , quando os capitães que haviam saido de Aljubarrota para encontra-la tiveram novas ordens para que o seguissem ao reino vizinho . Um d' estes , homem de grande bondade de coracão , tinha-se affeiçoado a Alvaro de Sousa , em quem descobrira altas qualidades . Incerto sobre a sorte do mancebo , duvidando que se alcançasse o seu resgate , qnuendo lava-lo da nodoa com que , para o futuro , podesse ser taxado , se conseguisse a sua liberdade , insinuou-lhe um meio que , deixando-o provavelmente livre , o poria a salvo , illibando o seu caracter . As insinuações cedo se tornaram em conselhos , quasi que em ordens . Alvaro de Sousa devia dar a sua palavra de honnra de não desertar ; depois combateria contra os castelhanos , procurando por seu valor fazer esquecer aos portuguezes que tinha pegado em armas contra a sua patria . O mancebo acceitou a proposta com alvoroço , e o seu amigo , muito satisfeito , apresentou-o aos outros capitães , assegurando-lhes que a sua propria vida responderia pela deserção , se Alvaro , esquecido de todos os principios de honra , procurasse fugir . Em tenra idade tinha Alvaro ido procurar na Hespanha um asylo que não achara em seu paiz . Dezoito annos mais tarde elle passava a fronteira para combater contra a patria ! ... Agora o mancebo ia de novo atravessar essa fronteira ; mas d' esta vez jurara de não tornar a transpô-la senão livre do ferrete de prejurio de que era accusado ! O destacamento portuguez , depois de dois dias de marcha no territorio Hespanhol , encontrou a hoste do condestavel . N ' esse mesmo dia começou o renhido combate de Valverde , que durou dois dias , e no qual se praticaram prodigios de valor . N ' esse mesmo combate Alvaro de Sousa , que pelejára , com extraordinaria coragem , havia recebido muitas feridas , e tinha ficado por morto no campo da batalha . No dia seguinte porem , havendo os portuguezes continuado as suas correrias para perseguirem o inimigo que lhes fugia , alguns capitães castelhanos que tinham ficado no logar do combate , indo examinar os cadaveres , acharam muitos soldados ainda com vida : Alvaro de Sousa era um d' elles . Reconhecido como transfuga , o seu crime era tanto maior que , tendo saido de Castella para combater os portuguezes , apparecia empregando as armas de que o haviam revestido contra os proprios que lh'as tinham confiado ! D , João de Castella era cegamente obedecido em suas ordens sanguinarias contra os infractores das leis da guerra . Alvaro de Sousa foi lançado em uma masmorra , emquanto o capitão que o induzira a pegar em armas contra Castella chorava a morte do mancebo , que elle suppunha ter acabado no ultimo encontro ! Deixemos porem o condestavel proseguir em seus gloriosos feitos , e passemos a recentrar-mos com o veneravel monge , que não achando el-rei em Santarem , saira immediatamente a procura-lo ; esquecendo-se dos perigos e fadigas de uma longa viagem para alcançar o resgate do neto de D. Iria . CAMÕES -- Lusíadas . O espirito cavalleiroso d' aquella epocha , as crenças populares , suas superstições mesmo , a mythologia de que era revestida a idade media , davam no tempo de D. João I um caracter particular ao povo portuguez . No meio dos tumultos de uma guerra encarniçada e dos furores da populaça , a religião de Christo era sempre respeitada . O povo podia esquecer as vezes a generosidade , satisfazendo vinganças mesquinhas ; mas as palavras dos ministros do santuario eram sempre escutadas com veneração , e suas pessoas consideradas como inviolaveis . Frei Francisco , caminhando sósinho , animado ao seu bordão , ora passando pelos povoados , ora atravessando desertas charnecas , ora caminhos trilhados por uma multidão de povo que corria para encontrar D. João I , nada tinha que recciar . Já pedindo gasalhado onde permutasse , já informando-se da estrada que devia seguir , o bom monge foi recebido em toda a parte com hospitalidade e veneração , até que chegou a Chaves , na provincia -- Traz os Montes . quasi ao mesmo tempo que o rei ali entrava . Este rei magnanimo , antes de sair de Santarem . havia dado a liberdade a grande numero de prisioneiros hespanhoes que jaziam nas prisões . Mas a sua generosa bondade não parou ali . D. João achou n ' aquella praça as viuvas e outras parentas dos fidalgos portuguezes mortos no campo de Aljubarrota ao serviço de Castella . O primeiro cuidado do rei caridoso foi para estas infelizes , a quem dirigiu palavras de compaixão . E sabendo que desejavam largar o reino a partir para Castella , mandou-as honrosamente acompanhar até á frota castelhana , fundeada no Tejo . Foi com estas acções cavalleirosas e christãs que o Mestre dAviz soube ganhar o amor dos portuguezes e o nome de rei de boa memoria . Frei Francisco adquiriu novo animo ao relatarem-lhe o que se passára em Santarem ; e quando , em conferencia com el-rei , lhe expoz a situação de Alvaro de Sousa . D. João respondeu-lhe com brandura : " Vossa paternidade não ia de nunca ter de queixar-se do predilecto de Alvaro Paes . Os prisioneiros hespanhies foram postos em liberdade , e o protegido de vossa paternidade não ha de ficar em ferros . Eu vou mandar ordens explicitas a D. Nuno ; e antes que a sua hoste se reuna a que tenho em Portugal , Alvaro de Sousa estará livre . " " Que o Senhor||_de|_os de||_de|_os os|_de|_os exercitos derrame sobre vossa real senhoria todas as bençãos do céu . Aquelle cujo poder se estende , tanto sobre o throno dos reis como sobre a palhoça do pobre , protegerá sempre vossa real senhorio se , como todos temos direito de esperar , o eleito da nação continuar a defende-la durante a guerra , e a felicita-la depois , dando-lhe a paz e a justiça de que tanto ha mister . E assim , com feitos iguaes , aos que vossa real senhoria acaba de praticar aqui e em Santarem , é assim que ha de conservar a affeição d' esta boa gente portngueza . As victorias podem deslumbrar , podem seduzir o povo ; mas e somente com a justiça e a magnanimidade que um rei obtem o seu amor . " E inclinando-se profundamente , disponha-se a partir , quando o rei o interrompeu , dizendo-lhe : " Certo como estou de que ás constantes preces de vossa paternidade e ás das outras almas piedosas d' este reino devo tudo quanto tenho conseguido em prol desta nação , permitia-me vossa paternidade que , confiado na sua protecção , eu peça a continuação de suas orações em meu favor para que o Senhor se digne esclarecer-me sobre o modo por que devo reger este povo que amo sinceramente e por cuja liberdade darei a propria vida . " " Nas humildes orações do pobre monge de Alcobaça não será nunca esquecido o augusto nome do defensor d' este reino ! " Dizendo estas palavras . Frei Francisco approximou-se de D. João , que lhe beijou a manga do habito á despedida . Um sonho terrivel apoderou-se lhe dos sentidos ; um horrivel grito fugiu-lhe do peito e este grito que ella verdadeiramente Voltemos agora a Aljubarrota para narrarmos quanto ali se passára desde que Alvaro de Sousa saíra de casa da tia||_Brites Brites|_Brites . A padeira chorára um dia inteiro a ausencia do filho de Violante , mas a boa mulher , cuja constancia de sentimentos se limitava ao odio que consagrava nos castelhanos , depois de chorar umas doze horas pelo pobre prisioneiro , deitou-se a dormir , no dia seguinte disse a Margarida : " Minha filha , não chores , não me aflijas :o tempo tudo gasta . Alvaro de Sousa é bom rapaz , mas não deves matar-te por sua causa . Homens são homens ! E demais quem sabe se elle voltará ; e se , voltando , quererá casar contigo ? Teu pae era um soldado valente como os mais valentes ; mas a familia de Alvaro era nobre de ambos os lados , e aquella gente , por melhor que seja , não perdoa a differença do nascimento . EIle por si , o bom Alvaro , não pensará n ' isso ; mas sempre ha agulhas ferrugentas ... Mas tu choras ? ... talvez tomes a mal o que eu te digo ! Mas olha , filha é para teu bem . Eu quero muito a Alvaro , a quem quasi que vi nascer : mas a ti , Margarida , a filha de minha pobre irmã , quero-te como ás meninas dos meus olhos ! Devo aconselhar-te como se fica tua mãe . Vamos trabalhar , rapariga ; a ociosidade alimenta os maus pensamentos . Não digo que te não lembres d' elle , coitado ! Mas não te entregues toda a essa idéa . Frei Francisco lá foi . O que elle não fizer , ninguem fará ! Veremos o que se arranja . No entretanto , vamos para o forno . " E travando do braço de Margarida , saiu com ella . A donzella seguiu machinalmente sua tia : as palavras de Brites de Almeida tinham-lhe feito grande mal . Margarida julgava-se como a desposada de Alvaro de Sousa , desde que este á despedida lhe jurára eterno amor . Esta idéa , mitigando a sua saudade , dava-lhe força para supportar a ausencia , emquanto com ferventes orações pedia a Deus o resgate do mancebo . Crente e sensivel esperava que o Senhor escutasse as suas preces , e confiava no soccorro divino . Mas sua tia havia em um momento desvanecido as suas esperanças . Margarida começou a duvidar da protecção do céu ! ... A donzella entrou com sua tia na cozinha . Seus olhos estavam enxutos mas a pallidez de suas faces dizia quanto soffria . Comtudo trabalhou com Brites ate á tarde . De volta a casa disse a sua tia que não queria ceiar , que desejava deitar-se , e pediu-lhe a deixasse dormir no seu antigo quarto . A infeliz donzella precisava de estar só . Brites annniu , e Margarida , tomando-lhe a benção , recolheu-se ao seu aposento . Ali abriu uma janella ; a febre devorava-a . Depois accendeu uma pequena alampada diante de uma imagem da Virgem ; quiz rezar , não pôde . A orarão , esse fio invisivel que une a creatura ao Creador , recusava vir em seu soccorro . Prostrada defronte d' aquella imagem , Margarida não pronunciava uma palavra , nem mentalmente lhe dirigia uma supplira . Assim esteve por muito tempo sem ter uma idea . A final , levantou-se , apagou a alampada , arrojou-se sobre o leito e adormeceu . Mas o que a natureza lhe negara emquanto acordada , runcedeu-lhe&lhes+o emquanto dormia . Os sonhos , com toda a magia e mysterios que por vezes os acompanham , vieram visita-la . Nesta visão que o céu lhe enviou . Margarida viu , ouviu e fallou a Alvaro de Sousa . O mancebo estava moribundo sobre o campo da batalha ; suas feridas vertiam uma quantidade de sangue , que não era possivel estancar : o mancebo chamara um padre , e fizera Margarida prometter-lhe diante do sacerdote que se retiraria do mundo logo que elle tivesse espirado . Depois pedira-lhe que recebesse ali os seus juramentos , e tendo sido abençoado pelo ministro da Igreja , entregára a alma ao Creador ! Margarida vira aquella alma nobre e pura subir á mansão de paz , e ouvira entre os sons da divina harmonia a voz de seu esposo , que louvando e bendizendo o Senhor , lhe pedia se com padecesse da esposa desditosa que deixava sobre a terra ! Então acordou , dando um profundo gemido ! Era dia . Margarida olhou para todos os lados , nada mais via do que tinha deixado na vespera ; applicou o ouvido , tudo estava mudo . Então julgou que tivera ouvido uma inspiração do céu ; que um sonho era prognostico do que devia acontecer-lhe ; e , sem mostrar pelas lagrimas as sensações que a dominavam , tomou uma subita resolução . Mal porém acabava de forma-la , a tia||_Brites Brites|_Brites entrou no seu quarto para dizer-lhe que era obrigada a partir para Leiria , onde teria que demorar-se alguns dias ; que houvesse ella de fallar com os freguezes , participando-lhes que a padeiro tinha saido para comprar algum trigo que lhe faltava , mas que a sua ausencia não seria longa . Brites , que já tinha disposto tudo para a partida , abraçou a sobrinha , e , montando sobre uma velha mula que a miudo lhe emprestava um seu visinho , poz-se a caminho de Leiria . J. A. De SANT ' ANNA -- A minha viage . Margarida saiu logo depois da partida de sua tia para executar as ordens que esta lhe deixára . Acabada esta commissão , voltou a casa ; e pegando em uma grossa e negra penna de que Brites se servia para fazer as suas contas , escreveu sobre uma folha de papel pardacento estas palavras : " O dever chama-me . A alma de Alvaro de Sousa , suspensa apenas por um debil fio , espera por mim para desprender-se do corpo e subir ao céu ! Minha tia não póde estranhar que eu vá reunir-me áquelle mancebo como sua desposada . Portugueza e christã , nada farei que seja indigno d' estes dois nomes . A minha boa tia não tem que receiar cousa alguma . Sinto em mim forras extraordinarias . O céu ha-de guiar os meus passos ! adeus , minha tia ! Peco o seu perdão , e as suas orações em favor de Margarida . " Estendeu depois este papel sobre a mesa da pequena casa da entrada ; fechou as janellas e a porta ; foi a casa de uma visinha , disse-lhe que ia até Alcobaça , e que ali ficaria uns dias ; pediu-lhe guardasse a chave da casa para entregas-la á tia||_Brites Brites|_Brites , no caso d' esta chegar primeiro , e animada por uma vontade sobrenatural , saiu de Aljubarrota . Margarida conhecia apenas a estrada de Leiria ; para ali porém não podia dirigir-se . Não sabendo a direcção que haviam seguido os presos , pensou em Santarem . Então informou-se do caminho que a devia conduzir áquella praça , onde chegou depois de muita fadiga . Ali teve de demorar-se um dia em casa do celebre Alfageme . cuja mulher encontrara na estrada . Margarida não lhe confiára o seu projecto , mas contentára- se com dizer-lhe que ia procurar um parente seu , gravemente ferido , que pertencia ao exercito do condestavel . Margarida , tendo apenas repousado umas doze horas , agradeceu a hospitalidade daquela boa gente , e seguiu a sua derrota . As informações que tinha obtido sobre a marcha dos capitães -- Aljubarrota levaram-na a tomar a fronteira de Hespanha . Pouco costumada a taes fadigas , solitaria no meio da multidão , pensava em Alvaro e esforçava-se para vencer a distancia que a separava d' aquelle a quem jurara eterna affeição . A pobre donzella , caminhando de dia e pedindo gasalhado durante a noite , chegou a Evora em poucos dias . Ali achou alguns soldados avulsos , que regressavam de Castella ; ali sonhe que os capitães -- Aljubarrota se haviam reunido a hoste do condestavel e combatiam no reino visinho . As difficuIdades augmentavam no proporção que Margarida se approximava de Alvaro de Sousa . Aquella rapariga , tão innocente , tão timida , que não dava um passo sem consultar Frei Francisco , que não tinha uma idéa sem que a communicasse ao santo monge , parecia agora , quando só e desamparada , animada de uma força varonil que , desprezando o conselho , sahia effectuar qualquer resolução . Antes porém de pôr em pratica os seus projectos , quiz visitar a cathedral d' aquella cidade , onde D. Iria , levando nos braços o pequeno Alvaro , o fizera entrar na comunhão da Igreja . Frei Francisco , que n ' aquelle tempo se achava em Evora , baptisára aquella creança como amigo antigo da familia ; a qual mais tarde recommendára tambem Brites de Almeida . Margarida entrou no templo ao cair da noite , e ajoelhou diante do altar-mór . A religião de Christo , ensinando-nos que os soffrimentos nos são levados em conta , se os offerecermos resignadamente como expiação de nossos erros , ou d' ' aquelles que nos são caros , é a maior das consolações para o desgraçado ! Margarida , pela primeira vez depois das tristes palavras que sua tia lhe dirigira no dia immediato á partida de Alvaro , pôde elevar a sua alma a Deus e murmurar uma oração ! As suas idéas como um raio de luz , subiam ao céu para se reflectirem depois sobre Alvaro de Sousa . A triste Margarida já não se considerava só ! Fallava com Deus , fallava-lhe do seu desposado . De joelhos , com as mãos erguidas , ella abriu a sua alma ás influencias do céu , e experimentou a paz affectuosa e as sensações sublimes que , soltando os corações puros da região nebulosa que habitámos , os devam ate uma esphera brilhante , presagio dos gosos infinitos , que a Providencia envia áquelles que ama , para reanimar o seu valor . A igreja devia fechar-se . Margarida levantou-se , approvimou-se da pia baptismal , pensou de novo em Alvaro , tomou agua benta e saíu . No dia seguinte póz-se em jornada e cedo alcançou a fronteira . Então dizendo adeus á terra natal , resolvida a não tornar a pizas- la se Alvaro de Sousa a não acompanhasse , alugou uma pequena barca e atravessando o Guadiana achou-se em terras de Hespanha . Nunca a sua mão benefica deixou de estender-se para o logar em que a afflicção se assentava ... Sacerdote do Christo percebêra que o christianismo se resume em duas palavras , fraternidade e igualdade , ou antes só na primeira . A. Herculano -- Eurico Frei Francisco tinha saído de Chaves , e destinara-se a entrar no reino risinho , se não podesse colher alguma policia ácerca de Alvaro de Sousa . Escreveu comtudo a todos os capitães que havia conhecido em Aljubarrota , e communnicando-lhes o que passára com D. Joao I , lhes pedia que o informassem da sorte do mancebo , podendo enviar-lhe quarquer resposta para Evora , aonde se dirigia . No entretanto o santo monge tomara de novo o seu bordão e encaminhára- se para o sul , donde com maior facilidade podia passar para Hespanha . As chuvas porém que caiam abundantemente , a neve que obstruindo os caminhos , tornava o transito mui difficil , a falta de alimento , a grande porção do territorio portuguez que tinha de atravessar , postoque não podessem descorçoar a coragem toda evangelica do bom monge , levaram-no comtudo a Aljubarrota onde , informando-se do estado -- Margarida , e dando-lhe as novas consoladoras do resgate de Alvaro , podia descansar dois dias , e ganhar mais vigor para continuar o seu caminho . Mas um novo golpe devia ainda ferir o corarão do sacerdote . Brites , na sua volta a Leiria , tinha achado a carta de sua sobrinha . A corajosa padeira não tinha nunca imaginado que Margarida podesse abandona-la . Ao ler a carta que lhe escrevêra , caira em tal excedo de furor , que perdêra a rasão por alguns dias . Quando Frei Francisco entrou em casa de Brites , achou-a assentada em um canto do quarto de sua sobrinha ; as suas feições sempre varonis tinham tomado um aspecto feroz . Apenas viu o monge , levantou-se e exclamou : " Ahi estão as lições de brandura , de tolerancia e de perdão que vossa paternidade tem dado aquella rapariga ! Nunca pensei em tal cousa ! Quem m ' o diria ! Uma rapariga que criei na minha casa , a quem amava como se fôra sua mãe , ir por ahi fóra , para encontrar um homem ... Um homem com quem quer casar ! E antes de deparar com elle ha de atravessar montes e valles , ha de encontrar hespanhoes ! esses perros ... que a matarão ... Não sei como conter a minha raiva ... parece-me que enlouqueço ! Leia vossa paternidade aquella carta que ali está sobre a mesa ! ... " " Não é assim " , respondeu Frei Francisco , depois de ler a carta de Margarida , " não é assim , tia||_Brites Brites|_Brites , que podereis remediar tamanho mal ! O Senhor , que protege a innocencia , defenderá Margarida de qualquer perigo . Vossa sobrinha não quer abandonar-vos : alguma noticia lhe chegaria aos ouvidos que exaltasse o seu affecto para com Alvaro de Sousa . Quem sabe mesmo se recebeu d' elle alguma carta ? Socegae pois , tia||_Brites Brites|_Brites . Entrei aqui para dizer-vos o que passara com el-rei : D. João prometteu-me a liberdade do prisioreiro portuguez , assim como havia concedido o resgate de muitos outros prisioneiros hespanhoes . De Chaves escrevi para Castella aos capitães do nosso exercito , e a esta hora , com a vontade do Senhor , o desposado de Margarida estará livre . Os meus cuidados portanto são n ' este momento por ella e para ella ! Adeus , tia||_Brites Brites|_Brites . Confiae no Senhor||_de|_misericordia de||_de|_misericordia misericordia|_de|_misericordia , e não desafieis a sua ira com a vossa desesperação ! Taes foram as palavras do monge ; mas o seu corarão estava longe d' aquella tranquillidade que affectava . Frei Francisco quiz informar-se do caminho que tomára Margarida ; ninguem soube dizer-lh ' o .