Romance historico do século XVIII No sopé da magestosa serra da Estremadura a que os romanos chamaram Mons-barbaricus , e que desde os arabes é conhecida pelo nome d' Arrabida , existia um espaçoso algar onde se venerava a imagem d' uma santa virgem-martyr , encontrada n ' aquelle sitio , segundo a tradição . Este algar ou gruta -- nos quaes a serra tanto abunda , -- demorava a não pequena distancia dos franciscanos arrabidos , cujo convento ainda existe alli , semi-rendido aos golpes energicos da catapulta dos tempos . Desde o século XVI , -- época da fundação d' aquelle mosteiro , realisada pelo piedoso castelhano fr. Martinho de Santa Maria , -- nunca a referida imagem se viu entregue ao abandono . Os frades , subdividindo os seus cuidados piedosos pelas cousas da regra e da particular devoção , destacavam-se por seu turno para a gruta , e alli se demoravam no culto da Santa Virgem , gastando as horas d' ocio na instrucção dos pastores , que appareciam n ' aquelles sitios com seus rebanhos . Após um vinha outro , e todos anciavam viver alli porque lhes aprazia o local e o convivio dos pegureiros . Era n ' uma noute de janeiro , tempestuosa e negra como a alma d' um atheu . O vento , sibilando com impeto e em differentes diapasões , parecia como que uma horda de duendes , entoando uma canção infernal . A este concerto insolito e medonho associava-se o som cavernoso do mar , quebrando-se em golfadas espumosas por sobre os pincaros dos rochedos . Nunca a natureza produziu noute mais procellosa . Fr. José do Amôr-Divino , encostado ao seu catre de cortiça , com o corpo tapado unicamente pelo habito de estamenha , dedilhava o seu rozario de grossas contas e punha os olhos na santa , a quem pedia que advogasse junto ao throno do Altissimo a causa dos tristes nautas , que n ' aquella noute perigavam . Infelizmente as petições do bom frade não eram ouvidas , pois que o vento recrudescia . A alampada da virgem martyr , cuja luz enchia a gruta d' oscilante claridade , despcdaçou-se d' encontro á imagem por effeito d' uma rajada de vento , que invadira o algar . Fr. José , mergulhado em trovas e amedrontado pelo medonho ruido que o tufão produzira , sentiu quo os cabellos se lhe erriçavam , e buscou a muito custo sahir da lapa . Exposto ás iras do temporal , circuitado do sombras , frio como o gêlo , assustado e convulso , -- o santo monge resolveu abandonar o seu posto e ir-se ao acaso em busca d' uma choupana , que o recolhesse durante a noute . Difficil e esteril lhe foi a empreza . Agarrado aos rochedos , que por entre as trevas se lhe exhibiam sob mil formas phantasmagoricas , cahindo e rolando a cada passo , chegou altim á dura conclusão de que lhe seria impossivel realisar os seus desejos . Meditou . Voltar á gruta seria expôr-se a novos sacrificios e continuar n ' aquella escuridão , que as paredes revestiam de sombras pavorosas . Tambem alli lhe chegaria aos ouvidos o fremir horrisono da ventania , que , ao introduzir-se na lapa , se assimilhava ao silvar agudo das cascaveis . Fr. José , deixou-se pois ficar entre dois rochedos . Conchegou á face macilenta o coçado capuz do habito , e deu-se a novas meditações . De quando a quando um prolongado estremecimento produzido pelo frio , que lhe chegava á medula , o vinha despertar d' uma especie de mystico lethargo a que se dera . Depois , mirava o espaço , os lábios deixavam d' agitar-se , apertava febrilmente o rozario , e cahia de novo n ' aquella modôrra contemplativa . E assim permaneceu por largo tempo . Acostumado a contar as horas pela reza , não lhe foi difficil saber que passava de meia noute . Então , abriu de novo os olhos , ergueu a vista ao ceu e monologou resignado : -- Meu Deus ! . . meu Deus ! ... que noute lenta e horrivel ! ... Misericordia , senhor , misericordia ! ... Mal tinha o monge pronunciado estas palavras ungidas de resignação e respeito , quando a não longa distancia ouviu soar uma gargalhada estridente . Fr. José , invejára n ' esse momento o arrojo de Huss , para se erguer d' entre as rochas e caminhar até á presença do impio , que ousava assim despresar a voz do Omnipotente collocada nos labios da tormenta . Quizera pois confundil- o e ensinal- o a prestar o seu contingente de respeito á horrível magestade da natureza , -- augusta significação do poder de Deus , -- traduzida n ' aquella noute pelos fremitos do cyclone , pelas sussurrantes convulsões do oceano e pelo estalido da trovoada , que pouco a pouco se apropinquava . Mas carecia da coragem de Huss . Limitou-se pois a pregar as vistas no tecto negro que o cobria , e a deslocar os labios para se expandir em orações . Segunda gargalhada soou mais forte , mais perto , mais retumbante . Depois , ouviu-se distinctamente uma horrida imprecação . Fr. José , estremeceu com vehemencia . Não atinava como áquella hora , n ' aquelle sitio e sob as furias da tempestade houvesse quem remettesse ao Crcador as mais impias blasphemias . Racciocinou . Depois de sérias reflexões , accordou que só aos espiritos das trevas era dado escarnecer assim da hediondez da procella . Cahiu sobre os joelhos feridos pelas lascas d' aquelle duro genuflexorio , e encetou novas preces . Outra praga se ouviu mais de perto , e em seguida um silvo prolongado , que , eccoando pelas quebradas da serra , como que retrogradou tão agudo e demorado tal qual fôra emittido . Era alguém que de longe correspondia . Fr. José , ao escutar o agudo silvo , suspendeu a reza , apurou o ouvido o ficou silencioso e quêdo como se fôra de chumbo . Os relampagos e as faiscas , que cabiam em abundancia , constituiam o unico colorido d' este quadro pavoroso . Depois , ouviu-se um ligeiro dialogo . O monge , sempre álerta , ergueu-se d' um pulo como corça ferida pelas balas do caçador . O rozario cahiu-lhe das mãos . Quem então lhe fitasse o rosto á luz sinistra d' um raio , que , como cobra de fogo , se agitava no ar , decerto desconheceria o frade de S. Francisco . Aquella face macerada pela penitencia e vigilia , aquelles olhos encovados e baços , a curvatura do dorso , produzida por aturadas genuflexões , aquella velhice emfim prematura e contrafeita , esvahiu-se de subito ao reconhecer pela voz o impio , que dirigia blasphemias a Deus . Se o soffrimento nos envolhece , a felicidade remoça-nos . E ' principio assente e incontroverso . O franciscano arrabido , corroborava n ' aquelle instante este preceito inseparavel da sabedoria dos seculos . Apresentava-se agora com olhos vivos e penetrantes , com as faces ruborisadas e tão outro que se não conhecia . Remoçára os annos que a dôr e a fadiga o tinham envelhecido . Já o não horrorisava a procella , já não pensava nos espiritos das trevas , já não o magoavam as pragas do impio , e cada uma que este proferia chegava-lhe aos ouvidos como sons embriagantes d' uma harpa feiticeira . Mas o peito effeminado agitava-se-lhe com affan . Nos olhos negros e rasgados brilhavam-lhe algumas lagrimas . A este tempo passavam quatro vultos junto a si . Calçavam altas botas , vestiam calções negros e conservavam os rostos occultos pelas abas d' uns chapeus descommunaes . Dos hombros pendiam-lhes uns capotes tambem negros , com que se abrigavam dos açoutes da ventania . Um dos desconhecidos era alto e gentil . Quando o vento soprava com mais vigor e lhe sacudia o capote , scintillava-lhe á luz da lanterna , que empunhava , um ferro polido de trez gumes , e deixava vêr a tiracollo um pequeno bacamarte . Os outros companheiros tambem eram d' estaturas elevadas . -- Capitão ( disse um d' elles ) : A lapa está perto . Se o demonio a não tapou devemos passar n ' ella uma noute detestavel . -- Qual ? ... Os homens da nossa tempera estão sempre bem , toda a vez que lhes não falte a cachaça . Quem traz as provisões ? Acaso ficariam em poder dos outros companheiros ? ... -- Antes o diabo me engulisse vivo . As provisões vão aqui . Estas palavras impiedosas , que revelavam de sobra a indole dos do grupo , foram proferidas por um dos embuçados , que fugira das prisões de Lisboa no mesmo dia em que fôra condemndo a morrer na forca . -- Muito bem ( disse o capitão ) . Mas ... não me disseram vocês que na gruta existe um monge ? -- Sim . Existe . No entanto deveremos caber todos . A lapa é espaçosa . -- E se não ( accudiu o das provisões ) , -- o frade não é de pedra e este espeto é de bom aço . Fr. José , que tudo ouviu , não se intimidou por um momento . Depois caminhou quasi ao pé dos embuçados que dentro em pouco eram na gruta . Pelas dez horas d' uina noute de fevereiro -- 1758 , soavam dez badalladas mathematicamente compassadas no sino grande da parochial egreja de Santo Estevão d'Alfama . As pessoas que as ouviam descobriam-se reverentemente , e pelo mover dos labios bom se via que resavam . Estas monotonas e tristonhas badalladas chamadas -- da agonia , -- annunciavam n ' aquella época o passamento de qualquer adulto , ao mesmo tempo que convidavam os crentes a orar por elle . Quem penetrasse no labyrintho de ruas estreitas , tortuosas e immundas , que occupavam a área d' aquella freguezia , e se deixasse ir até ao largo do Regedor , depararia sem custo com a casa do moribundo . As janellas descidas deixavam passar atravez os vidros baços , os clarões melancholicos d' uma luz escassa e oscilante . De quando a quando ouviam-se lá cm cima uns soluços abafados , que explicavam de sobra o que ia d' intimo soffrimento n ' aquelles que os exhalavam . Á porta da rua estacionavam trez ou quatro individuos com as vistas pregadas nas janellas e immersos em profundo silencio , o qual era apenas alterado por um offego respirar . Subamos as escadas carunchosas daquela habitação e penetremos na alcôva do agonisante : Uma das faces do quarto , de forma quadrangular , e que ostentava o mais irreprehensivel acceio , era occupado pelo leito do enfermo , o qual leito tinha á ilharga uma meza de pau preto coberta por uma toalha de finissimo linho , guarnecida de rendas de Peniche . Sobre esta meza via-se uma imagem do Crucificado ladeada por dous brandões accesos , e logo ao pé uma caldeira metalica com agua benta , cujo hyssope parava nas mãos dum padre sexagenario que se achava presente , e que misturava algumas palavras latinas com bastantes gotas da benta agua , espargida sobre o leito . Nas outras faces da camara tomavam logar meia duzia de cadeiras de couro com guarnições de metal , uma estante de pau santo repleta de grossos livros , duas mezas de egual madeira primorosamente trabalhadas , duas velhas poltronas e outra identica mobilia . A ' cabeceira do leito encontravam-se , além do velho sacerdote , uma formosa mulher de 18 annos , com os cabellos em desordem , as faces humidas , as mãos erguidas , e fitando nervosamente e por seu turno ora o crucifixo , ora o agonisante . A pequena distancia estacionava um rapaz alto , trigueiro , bem parecido . Com a mão direita no seio , a fronte inclinada para o chão o os cabellos em desalinho , -- parecia a estatua de Lacoonte contemplando na masmorra o supplicio que o aguardava . O moribundo seria homem de 70 annos . Pouco antes de lhe termos invadido a alcova , dizia elle aos dous jovens com voz firme mas fazendo um esforço sobrehumano : -- Meus filhos : Já me não restam trinta minutos de vida , e oxalá que se extinga breve porque soffro muito . De sobra sabeis que ficaes pobres . Comtudo , lego-vos o thesouro do meu nome immaculado . Sêde honrados como eu fui . Sêde amigos . Protegei-vos mutuamente . E tu filha , minha querida Branca , pede a Deus em tuas orações pelo descanso da minha alma . Ama teu irmão , que te fica sendo segundo pae , e guarda dia e nout na memoria os meus conselhos ... os conselhos de tua santa mãe , que espero em Deus vêr no reinoJ ? 0"base="0 da Gloria . Se não fôra a recordação pungente de vos deixar ficar sósinhos , ah ! de certo a doce esperança d' ir vêl a me concitaria a encarar a morte com jubilo . Este singelo monologo repassado de ternura , cujo tom sentimental se não póde descrever , sortiu effeitos tão pungentes nos corações dos dous jovens , como que se se houvesse transformado no rochedo de Sisipho que de chofre lh'os esmagasse . Então o velho , enxugando por seu turno os olhos na dobra do lençol , fez um gesto a seus filhos , que se aproximaram do leito . -- Senta-te aqui um pouco , Samuel . E tu , Branca , colloca- te também ao pé de mim . Então ? ... Que tolices são essas ? ... Porque choram vocês como duas tontas creancinhas ? É mister sermos razoaveis : Quem lhes disse que eu havia de ser eterno ? Não tenho vivido de sobejo para os ter educado consoante os preceitos de boa sociedade ? Não os deixo ficar em edade propria e com a luz necessaria para descriminarem o bem do mal ? Que importa que morra hoje ? Pois que sou eu mais do que um simples effeito da natureza , sujeito como tal á intransigencia das suas leis ? Meus filhos : Começae a difficil tarefa da vida real por appellar , no meio das presentes attribulações , para esse santo elixir a que a egreja chama -- resignação . Vida real , sim . Vida real a que desde hoje ides viver , porque até aqui não conhecestes nunca que cousa fosse vogar sósinho na amplidão d' este mar embravecido chamado vida , tendo por escolhos a doença e a miseria , por naufragio a fome , por baixel o trabalho , a honra por leme , por bussola a esperança , a saude por bonança e Deus por fanal . Haveis sido como que umas frageis plantas , defendidas pela escora do meu braço do rigor dos temporaes . Esta felicidade não vos podia ser permanente , por que Deus condemnou os homens ao trabalho , e d' essa condemnação vos não podeis eximir . E ' verdade que nem a todos alcançou a sentença do Senhor : Fica-vos ahi na terra o contraste dos que mourejam desde o sol nado ao sol poente : São os que nasceram em berços d' ouro e que depois encontraram os caminhos da existencia atapetados de flores . Mas nem por isso estes são mais felizes , meus filhos : Embriagados quasi sempre com os gozos comprados a peso d' ouro ... atolados na lama de milhares de desvarios , -- nunca conheceram aquelle celestial prazer perimittido apenas ao homem laborioso , que vergado á fadiga d' um dia de trabalho adormece depois com a tranquilidade na consciencia e com o sorriso nos labios por ter sido prestimoso a si e ao mundo , durante as horas que labutou . Ai ! meus filhos , -- se na vida existem recifes e tempestades , também é fertil de lirios e bonanças . Sêde pois honrados , trabalhae e amae-vos sempre . E o pobre velho , com a voz abafada pelos soluços , pegou nas mãos de seus filhos e levou-as aos labios calcinados pela febre . Decorreram alguns segundos d' um silencio lancinante . Samuel e Branca , mudos , quedos e lacrimosos assimilhavam-se ás estatuas de granito em cujos olhos pousaram os orvalhos da manhã . Depois , o ancião , sentindo que o abandonavam os derradeiros alentos e querendo aproveitar os poucos instantes que lhe restavam , dirigiu-se a Samuel e disse lhe alfim com a voz quasi extincta : -- Meu filho : Eutrego-te tua irmã . Vela pela infeliz creança como eu yelei ... Jura que mo has-de secundar em dedicação e amor . Samuel , esforçou-se mas não pôde responder . Baixou duas vezes a formosa cabeça em signal affirmativo . Depois , affastou-se do pé do leito , cambaleou um momento e foi cahir abandonado sobre uma velha poltrona . Branca , abraçada ao crucifixo , dizia palavras loucas , sem nexo . O pobre velho já não pôde divisar este quadro doloroso através as nevoas da morte , que lhe empannavam a vista . Agonisava . N ' este momento abriu-se a porta da alcova , e um velho sacerdote , vestindo crepes , aproximou-se do leito . Era o prior de Santo Estevão , que vinha exercer um dos mais santos deveres do seu officio ajudando a bem morrer o ancião . Vinte o cinco minutos depois da entrada do sacerdote na alcova do moribundo , Branca e Samuel choravam profusamente junto ao cadaver do pae . A noticia da morte de Bernardim Barbeita foi sentida por todos que o conheciam , pois que o bom velho era modelo dos bons chefes de familia e o mais estrenuo protector dos infelizes , que a toda a hora o procuravam . Procedente d' uma das mais fidalgas familias da Beira Baixa , mas por infelicidade sua exhausto de fortuna , estudou em Coimbra o curso de direito , e , depois deformado , pôde obter logar na magistratura , graças á importancia politica d' um seu parente . Bernardim Barbeita , casado com a filha terceira dos senhores -- Villa-Chan , teve a infelicidade de perder sua esposa poucos annos depois do nascimento de Branca . Samuel , seu filho mais velho , chegou a cursar estudos superiores , que , depois do fallecimento de sua mãe e por motivos de saude , teve d' abandonar . Era a familia Barbeita mui avêssa a Sebastião de Carvalho , ministro -- D. José , -- o que lhe custou não poucos dissabores . Se Bernardim seguisse o exemplo dos sabujos ( parasitas humanos , que vegetam sob todos os ambientes e em todas as épocas ) , e se como elles se dobrasse na passagem do grande vulto e lhe limpasse as botas , certamente não morreria pobre entre as quatro paredes d' uma modesta casa situada no coração de Alfama . Mas o fidalgo beirão , que tratava as questões de dignidade com um estoicismo espartano , preferia passar pela engrenagem da injustiça e ser alvo das maiores intrigas e contratempos , a curvar-se em ridiculos salamalekes , que foram , são e hão de ser sempre o caracteristico dos hypocritas , dos lacaios engravatados e de todos os sujeitos cujas almas aleijadas encerram em si o germen de tudo quanto a natureza procreou de mau , nocivo e nauscoso . Não era de baixa estôfa o pundonor de Barbeita . Quando em 1755 , depois da horrorosa derrocada de Lisboa , o grande estadista se rodeou de gente da justiça para impedir a violencia o o roubo , -- Bcrnardim fôra dos encarregados de capitanear um certo numero d' esbirros e de patrulhar com elles n ' uma determinada zona da capital , -- destruida pelas convulsões vulcanicas e pelo incêndio . Como Bernardim Barbeita , muitos outros magistrados foram encarregados de vigiar outros pontos e de fazer justiçar os miseraveis , que , como hyenas , se encontrassem sobre os destroços da cidade amalgamada . O fidalgo beirão , que via n ' esta medida uma armadilha á popularidade , por parte do ministro , disse que de facto era assaz humanitario policiar a fazenda e a honra das victimas do terramoto : mas que esta missão não devia ser assim commettida quasi á força a algumas duzias de homens , só porque viviam do herario , -- quanto seria mais regular e vantajoso que affectasse a todos , pois que todos encontrariam o dever e o interesse associados ao sacrificio . Aos ouvidos do que mais tarde se chamou condo d' Oeiras e marquez de Pombal foram ter as palavras de Barbeita , como que se este fallasse no transmissor d' um telephone , cujo receptor aquelle houvesse junto á orelha . Sebastião José de Carvalho e Mello , franziu as sobrancelhas e deu á face uma expressão diabolica . Quando as linhas do rosto se lhe encurvavam , quando os olhos se lhe encendiam , quando , finalmente , assestava a sua descommuual luneta , é certo , diz a tradição , que a tempestade andava perto . O ministro -- D. José mandou chamar o magistrado . Bernardim Barbeita , appareceu . -- É verdade ( perguntou o estadista ) , que murmurou publicamente das providencias por mim tomadas contra a violencia e o roubo ? -- Os informadores officiosos de v. ex.ª , que lhe respondam . Estas palavras , sêccas como o fogo , pronunciadas a distancia dos encurvamentos do dorso , encabrestaram um pouco os impetos do ministro , que , valha a verdade , pena foi que não vivesse em época mais avançada . O marquez de Pombal , teve grandes virtudes e defeitos supremos . As virtudes todos lh'as conhecem : e a sua memoria ha de residir sempre na mente dos homens em quanto a carcôma dos seculos não corroer esse famoso monumento de marmore e granito denominado -- Lisboa . Hade encontrar-se nos labios da tradição , em quanto que o amôr da patria nos consentir que comparemos o esplendor do seu governo , -- manifestado pela vida da nossa actividade e pela veneração pelo nosso nome -- com isso que ahi nos dirige e que nos arrasta abatidos pela fome , chagados e semi-nus , pelos charcos da miseria , pelos tremedaes da deshonra . Os seus deffeitos , os seus supremos senões , consistem na demasiada importancia , que se arrogava ; consistem nas exorbitancias do poder ; consistem na maldita ambição de querer dominar todos e de pretender lançar sobre o proprio docel do throno uma torre de Titans , por onde podesse vêr lá de cima , cá em baixo a humanidade agitando-se como as formigas no verão . Afóra isto , o ministro -- D. José era um vulto grandioso . Sebastião de Carvalho , apenas Bernardim respondera , assestou contra elle a terrivel luneta e mirou-o d' alto abaixo . O beirão não se rendeu á ameaça . Tomou uma commoda posição e poz-se a contemplar a ampla excursão da vista do ministro . A este tempo Sebastião de Carvalho pensava na cadêa , e Bernardim Barbeita esquecia-se de si e da familia , para se lembrar apenas d' um enorme tinteiro de chumbo , que lhe estava vis à vis . O ministro não era cobarde , mas receiou-se da horrivel imponencia do magistrado , a quem de sobra conhecia o genio arrebatado em questões de pundonor . Por isso , apeiou a immensa luneta sobre um grosso in-folio , que lhe ficava á mão , e limitou-se a dizer : -- Eu podia castigar severamente o magistrado , que ousou reagir com as ordens d' El-rei . No entanto serei uma vez complacente . Cuidado porém com as prevaricações d' ámanhã . -- Reagir com as determinações d' El-rei ? ! Essa accusação é injusta e só própria dos lacaios , que pretendem passar do esterquilinio ás boas graças de v. ex.ª. -- Basta ( replicou o ministro com voz cavernosa ) . -- Perdão ( continuou o fidalgo . ) Bernardim de Barbeita tem a consciencia dos seus actos e nunca abdicou da sua dignidade : Não acceito as censuras de v. ex.ª , por que são injustas . Escusado será dizer , que , quarenta o oito horas depois do succedido , Bernardim Barbeita era demittido do serviço d' El-rei . Por muito feliz se devera ter dado , por não ter soffrido os effeitos da vingança do ministro : effeitos que poderiam ter-se traduzido n ' um processo forjado nas trevas , que o levasse ao carcere e do carcere ao exilio . Se fôra outro o imprudente , o reedificador de Lisboa não ficaria assim . Do marquez de Pombal existem exemplos rarissimos de similhantes benevolencias . No entretanto existem , e não é d' admirar desde que Diocleciano e Galerio os praticaram tambem . Se todavia procurassemos a causa d' este facto extraordinario , a-hiamos na secretária do beirão , figurada n ' uma missiva em que o ministro -- D. José como que ordenava á consciencia do magistrado que se deixasse d' escrupulos , e que condemnasse , a despeito da innocencia , um inimigo do estadista -- implacavel , figadal . Bernardim Barbeita , satisfez com a absolvição do réu ao empenho senão ás ordens de Sebastião de Carvalho , e guardou a carta recebida , a sete chaves , como o uzurario guarda a burra . Desde então o nome do fidalgo da Beira passou a occupar umas das terriveis paginas do livro negro do ministro ; e se sobre Bernardim não tinha desabado a vingança mais energica , é porque Sebastião de Carvalho tinha commettido a maxima leviandade d' escrever-lhe . Ainda assim o beirão foi por vezes incommodado . Demittido do logar que exercia , teve de recorrer á economia domestica e ao ensino do latim , para não morrer de fome . Reduzidas pois todas as despezas ao estrictamente necessario para a vida , trocada a casa esplendida em que vivia por aquella que já vimos em Alfama , e , finalmente , entregue á missão de mestre-escola , -- Bernardim Barbeita viveu assim os tres annos que mediaram do facto referido ao dia da sua morte . De todos os seus discipulos fôra Branca o que mais progressos fizera . A este tempo Samuel já não estudava , e empregava-se em coadjuvar seu pae nas lides do ensino . Quando o ex-magistrado da justiça presentiu que a morte se lhe abeirava , tentou , mas debalde , fazer professar Branca no convento de Sant'Anna , pois que o seu maior cuidado consistia em deixal-a bem amparada . Branca , oppoz sempre aos desejos do pae uma suave resistencia . Se fôra homem , dizia ella , abraçaria a vida do claustro , visto que o seu genio melancolico e concentrado lhe exorava a solidão d' uma cella nas horas vagas da mendicancia , depois de ter andado de povo em povo , de casa em casa , ensinando a resignação a uns ; depois de ter levado palavras de conforto a outros ; depois de ter receitado a humildade aos vaidosos ; aconselhado a harmonia aos dessidentes , e levado emfim , o santo balsamo do bem aos espiritos chagados pelo mal . Assim , mulher como era , não lhe aprazia o duro recolhimento do mosteiro , cujas portas se-lhe-hiam uma vez para não mais se lhe abrirem . O fidalgo beirão , que estremecia os seus dous filhos , deu á conta de Deus o futuro d' ambos e cessou de contrarial-os apontando-lhes os caminhos que julgava mais seguros . Estendido na tumba da Misericordia , amortalhado no habito de S. Francisco e ladeado por alguns padres e mendigos , lá caminha para a sepultura o cadaver do honrado velho . Se n ' este humilde sahimento escaceiam os ouropeis ridiculos com que a toleima se enfeita até depois da vida , sobram em compensação os lamentos assaz sinceros e as lagrimas verdadeiras . A morte não se casa com os feretros dourados , com as berlindas archiluzentes . Estes esplendores inspirados pela vaidade podem ter-se em conta do sacrilegos , pois que affrontam pelo contraste o que ha de pôdre e nauseoso no fundo d' um athaude . Branca e Samuel , ao segundo dia da sua dupla orphandade , tiveram de vender a casa onde viviam , a mobilia e algumas roupas , para pagamento de dividas , que se lhes apresentaram como feitas por seu pae . Aos dous filhos de Barbeita pareceu um sonho este successo , tanto mais que os credores não provayam o que diziam . Eram elles dous irmãos mercadores , das relações de Bernardim , os quaes , ao cabo de quinze annos , conseguiram enriquecer . Samuel , teve tentações de lhes fechar a porta na cara e de lhes chamar ladrões . Acostumados a roubar impunemente , nem respeitaram a desgraça dos dous orphãos , em cuja casa penetraram assaz seguros de que a bondade d' elles se havia de compadecer do bom nome do pae . De facto Samuel e Branca consentiram no roubo , no empenho de evitarem que a baba dos dous infames fosse manchar a memoria do honrado ancião . Entregue a casa e a mobilia , -- os filhos de Barbeita foram habitar uma misera agua furtada para as bandas da Pampulha . As difficuldades de vida começaram a manifestar-se . D ' uns pobres trapos furtados ás vistas cubiçosas dos larapios , já nada havia que vender . Samuel , sahiu um dia a procurar trabalho . Começou por offerecer os seus prestimos aos notarios da cidade , que lh'os regeitaram . O pobre moço recolheu ao triste albergue , desalentado e com fome . Branca , entregue á costura , também nao tinha comido . Aguardava Samuel com uns miseros patacos , satisfeita de si por ter ganho n ' aquelle dia o necessario para umas sopas . Samuel , apenas chegára á escura agua furtada , deixou-se cahir sobre um banco e desatou a chorar . Não era o proprio soffrimento , que lhe promovia o pranto : era a certeza de vêr sua pobre irmã reduzida ás privações , -- sem esperança de conseguir trabalho por onde lhe fosse dado desfazer a nuvem negra , que lhes toldava os horisontes da existencia . Depois , recordando-se d' aquelles dias felizes , quando a idéa da miseria lhes era uma utopia , e comparando o passado com o presente , escondia a face entre as descarnadas mãos e suffocava os soluços para que a pobre Branca não adivinhasse o que se passava de doloroso na sua alma . A ingenua menina , apenas Samuel entrára em casa , ergueu-se de sobre uma esteira aonde costurava , e foi-se ao encontro d' elle . -- Bem vindo seja ( lhe disse , simulando-se zangada ) : Que fez pela cidade , que tanto se demorou ? Depois , deixando percorrer na fronte uma sombra de tristeza , continuou : -- Ah ! sim ... comprehendo : Enfada-te a minha companhia e buscas distrahir-te ... Não é assim , Samuel ? -- Que lembrança , Branca ! ... Pois que haverá para mim de mais caro do que a tua companhia ? Enfadar-me ? ! ... Eu ? ! ... Que loucura , minha amiga . Olha : se me demorei mais do que o costume , foi porque andei de porta em porta pelos notarios da cidade , pedindo-lhes algum trabalho para não morrermos de fome . -- E conseguiste-o ? -- Qual ! ... Todos me despediram como a um desgraçado . Foi aqui que o pobre orphão de Bernardim se deixou cahir sobre o banco , e que occultou á pobre irmã as lagrimas , que o affogavam . Branca , que adivinhava o fundo pezar de Samuel , lançou-se-lhe ao pescoço , e , esforçando-se por lhe amainar a tempestade do espirito , lhe disse meigamente : -- Não te afflijas , Samuel . Se os notarios da cidade rejeitaram os teus serviços , creio em Deus que alguem t ' os aproveitará . É mister que satisfaças aos derradeiros pedidos de nosso pae : Resigna-te . De mais , penso que a Providencia nos não deixará morrer de fome : Para hoje e para ámanhã , já temos o necessario . Tu és sobrio e eu tambem . E correndo ao balaio da costura , puchou do trez patacos que mostrou a seu irmão : -- São os meus ganhos de hoje . Ámanhã , Deus dará . -- Pobre creança ! ( monologou o mancebo ) . Duas horas depois d' este colloquio de lagrimas e de ternura , Samuel e sua irmã comiam , á fraca luz d' uma candéa , umas magras sôpas adubadas com azeite . Para mais não dera o ganho da infeliz orphã . Era a vez primeira que se alimentavam n ' aquelle dia . Quantos e quantos áquella hora não dividiriam pelos cães as fartas sobras dos seus manjares ? ! E ainda Branca e Samuel tinham umas sôpas . Outros haveria , que só teriam maldições para o destino , arrancados pelo magno desespero de se verem rodeados d' esfomeadas creancinhas , pedindo-lhes em vão sustento ! ... O mundo é assim ... Finda a misera refeição , Samuel sentiu-se extenuado e adormeceu . Branca dependurou a candéa em sitio proprio , e foi pôr-se a costurar . Era-lhe necessario trabalhar muito . Samuel , não deu por esto novo sacrificio . Soaram quatro horas da madrugada , e ainda Branca trabalhava . Por fim , rendida ao cansaço e á vigilia , adormeceu sobre o labor . Era Branca uma debil creança : O excesso do trabalho começou desde logo a assignalar-lhe os seus estragos . A côr rosada das faces cedeu sem delongas a esse palôr esbatido , que é quasi sempre o sêlo das fadigas e da miseria . Samuel , despertando , pôz-se a contemplar a pobre irmã á tibia luz da candéa . -- Desventurada creança ( monologou elle . ) Ainda se não deitou ! ... Oh ! ... era preciso que Deus fosse um mytho , para que continuassemos assim . Mas Deus existe , e Deus é bom . Daqui a poucas horas hei de entrar n ' esta triste casa , hei de abraçar minha pobre irmã e hei de dizer-lhe com jubilo : sou feliz ; suspende os teus sacrificios ... arranjei trabalho . Descança agora , emquanto ganho o pão de cada dia . Depois , levantou-se com custo , aproximou-se de Branca e beijou-a na testa . Os sulcos e a palidez d' aquellas faces , attrahiram-lhe os olhares , como o iman attrahe o aço . As vistas de Samuel ficariam colladas n ' aquelle rosto desolado , se a orphã não despertasse tambem . Então os dous irmãos fitaram-se com ternura e irromperam em soluços compungentes . Durante o resto da noute não poderam servir-se d' outra linguagem , por onde traduzissem , por seu turno , a saudade do passado e o temor resultante da contemplação do porvir . Surgem no horisonte os primeiros raios de luz do dia immediato . As bellezas que o exornam contrastam distinctamente com o que se passa de tenebroso nos espiritos dos dous jovens . Samuel , como novo Ashavero , recomeça na sua esteril peregrinação . Debalde implora trabalho a uns e outros , e mais debalde tenta vencer o desalento que o prostra moralmente . Ter-se-hia suicidado n ' aquelle dia , se felizmente a lembrança de sua irmã lhe não viesse debelar aquella febre de desespero . -- Como é a vida ( dizia elle . ) Tenho fome , nega-se-me o trabalho e entregam-me inexoravelmente ao abandono , que é o ponto de partida para o suicidio ou para o roubo ! ... Infernal dilemma , mi vezes infernal : Ou a sepultura , ou a morte da honra , unico thesouro que me coube em herança de meus maiores ! ... Que deverei fazer ? Apagar esta existencia , que me crucia ? E minha pobre irma ? ... Tornar-me surdo ás vozes da consciencia , que me ensina a estrada do bem sem se lembrar que o viandante cahe extenuado se lhe falta o alimento ? Talvez ! ... Mas ... oh ! perdão , perdão , meu pae ! ... Samuel , chorava . Terrivel sudario se lhe desenrolava na sua frente : A morte , ou o crime ! ... A deshonra , ou o desamparo de sua irmã ! ... Por fim , teve uma idéa : -- Nem serei ladrão , nem suicida . Mendigo também não : Esses que hoje me negam o trabalho , seriam os primeiros a mandar-me trabalhar se ámanhã lhes estendesse mão pedinte ! ... O mundo é isto . Complexo d' egoismo , hypocrisia e malvadez . E assim monologando , foi-se em busca da realisação do seu ultimo ideal . Hora e meia depois do que fica relatado , estacionava elle junto ás portas dos aposentos de El-Rei . N ' esse dia havia recepção no paço . Os cortezãos appareciam com profusão dentro das suas burlescas liteiras e enormes carruagens . Depois , apeavam-se e desappareciam ao longo do amplo pateo do velho paço da Ajuda , que um terrivel incendio mais tarde devorou . Do interior d' um dos custosos mas grotescos vehiculos , sahiu um fidalgo ainda moço , brilhantemente vestido , em cuja face se lia como que a anciedade pela realisação d' uma idéa concebida . Com a testa franzida , turba a vista , o labio inferior calcado pelos dentes , interrompendo por vezes a marcha grave e cadencial , -- aproximou-se da porta do palacio onde estacionava Samuel . O filho do Barbeita , reconhecendo-o a despeito d' aquella perturbação do animo que lhe transtornava a face , aventurou-se a dar um passo para elle e a dirigir-lhe a palavra : -- Senhor duque ( disse -- sentindo que os labios se lhe pregavam ... ) O cortezão , como que despertando d' um medonho pesadello , suspendeu rapidamente a vagarosa marcha , dirigiu uns olhares d' esforçada quietação para o seu interlocutor , e limitou-se a perguntar : -- Quem me chama ? -- Perdão ( respondeu o mancebo embaraçado ... ) Creio que já não sou conhecido de v. ex.ª. ... -- Certamente ... não me recordo ... -- Pois bem . Eu sou o orphão d' um dos seus melhores amigos . O duque , mediu Samuel com a vista e ficou silencioso . Depois : -- Mas ... essa explicação não me illucida . Como se chamava seu pae ? -- Bernardim Barbeita d'Alencastre . -- Oh ! ... é verdade , é verdade . Houve um minuto de silencio . Entretanto , Samuel experimentava mais uma vez o effeito das suas magoas . O cortezão contemplava o orphão , e agradecia á sua " funesta estrella " o beneficio de collocar-lhe na passagem mais um elemento precioso para a realisação dos seus projectos ... " hediondos " . Depois , tomou a mão do mancebo , conduziu-o suavemente para um dos angulos do pateo o disse-lhe a meia voz : -- Que faz aqui ? -- Esperava-o , senhor duque . -- Para que fim ? -- Para pedir-lhe trabalho . . protecção ... morro de fome . -- Como ? ! ... Pois o filho d' um fidalgo , d' um magistrado sem maculas ... chega a tanto ? ! -- Assim é , meu senhor . -- Mas ... Bernardim Barbeita ? -- Morreu pobre , demittido do logar , a ensinar latim . -- Infamia ! ... E o cortezão cerrou os dentes , levou a mão ao florete e passeiou , agitado , alguns momentos . Seguidamente , olhou em todas as direcções , abeirou-se de Samuel e segredou-lhe : -- Eu já sabia da vingança do ministro contra o honrado ancião . Exaspera-me o facto a que ella deu origem . Coragem . Esta noute , no meu palacio aos Jeronymos . E deixando algumas moedas d' ouro nas mãos de Samuel , subiu a polida escadaria do paço , murmurando com terrível satisfação : -- Mais um novo braço contra o imperio maldito ! ... Samuel , por seu turno , silencioso e confuso , ora contemplava o ouro offertado pelo duque , ora pensava em sua pobre irmã , que se definhava a labutar , ora finalmente pesava em seu raciocinio aquellas mysteriosas palavras do cortezão : -- " Á noute , no meu palacio aos Jeronymos " . Deixemos decorrer serenaramete o burlesco ceremonial . Os ridiculos encurvamentos d' alguns servis cortezãos , ou as forçadas reverencias d' outros em presença da magestade , nada fazem á nossa historia . Questões de etiqueta , e de despeito . Consintamos também sem reparo , que Sebastião José de Carvalho e Mello , l.° ministro -- El-Rei , veja do alto da sua monumental luneta o que occorre de sincero e fingido n ' aquelle rapido- perpassar da côrte pela frente do monarcha . Sigamos antes Samuel . O pobre moço , apenas triumphou d' aquella especie de confusão que o tolheu , arrecadou na algibeira o dinheiro do duque , e foi-se em direcção de casa . Se o Hymalaia lhe tombasse aos pés , decerto o não despertaria d' aquelle sonho de delicias , que sonhára caminhando . Nem só na ordem physica se estabelecem reacções : Também as ha de natureza psychologica e tão energicas , que endoudecem e até matam . Quem haverá que o ignore ? Samuel , -- pobre , faminto , desprotegido , em caminho do suicidio ou do roubo -- por não deixar a irmã abandonada -- , ao apertar nas magras mãos o dinheiro salvador , e ao ouvir as ambiguas palavras do cortezão , que tomou como precursoras da sua felicidade , perdeu a sciencia e consciencia própria e não pôde evitar que a sua alma sorvesse d' um jacto o melifluo cordeal , que horas antes tinha para si o triplice travor do fel dos desgraçados . Já não via o espectro da miseria , na amplitude da sua horrenda magestade . Tudo lhe sorria . Aquellas nuvens de desanimo ou desespero , que , tempo antes , lhe empannavam o coração , acabavam de transformar-se em suaves roscios , que lhe davam refrigerio e que lhe adoçavam a existencia até alli amargurada . Era feliz . Chegado á desconfortavel agua furtada , que o abrigava a si e a sua irmã , abeirou-se d' esta , que trabalhava assiduamente , beijou-o com enthusiasmo febril , arrancou-lhe com suavidade a costura e disse-lhe alfim n ' um extremo de alegria : -- Branca , minha querida Branca : Deus ouviu as tuas preces . Já temos pão para alguus dias . O resto virá do céu ... E depondo algumas peças sobre o regaço da orphã , que o ouvia estupefacto , começou a doudejar pela saleta dando saltos tão repetidos , que parecia uma creança . Branca , ora fitando o dinheiro , ora contemplando o irmão , perdeu por fim a consciencia de si , e foi associar-se ás manifestações d' excessiva satisfação produzidas por Samuel . Eram dous loucos . Depois de innumeras puerilidades , sentaram-se ambos . Samuel , encostou então a mão direita a um dos hombros de sua irmã , e n ' um tom que accusava o regresso das normaes funcções do espirito , disse pausadamente : -- Muito soffri hoje , querida Branca . Da minha ultima peregrinação em busca do trabalho colhi apenas os agudos espinhos do mais cruel desespero . Olha , minha amiga : se me vês agora aqui , satisfeito e feliz , a ti o deves , só a ti ... Samuel , baixou a cabeça o limpou duas lagrimas , que lhe rolavam nas faces . Em seguida , e evitando que a orphã o interrompesse , continuou : -- Andei como um novo Cartaphilus . Em toda a parte onde a minha voz soava implorando protecção em troca dos meus serviços , ouvia palavras de despedida , cujos sons me chegavam aos ouvidos como clangores horrisonos dos mais acerbos insultos . Desanimado em extremo , cheguei ao desespero . Tentei suicidar-me : mas a pungente lembrança de te deixar abandonada , foi , como o anjo de Abrahão , quem evitou o sacrificio . Branca ouvia a tocante narrativa de seu irmão com os olhos arrasados de sincero pranto . Samuel , interrompia-se de quando em quando , para dar livre expansão a um sentido ai ! que vinha como que retocar aquelle quadro , que só o sentimento está á altura dc exhibir . Depois , continuou : -- No entanto , tinha fome , e como que te via pallida e abatida pelos rigores d' um trabalho , que as tuas forças rejeitam ... -- Samuel ( disse Branca com ternura , tentando , mas debalde , interromper o mancebo ) . -- Então ( proseguiu a custo o orphão ) ... então puz os olhos no roubo para impedir que a miseria nos anniquilasse ... -- Jesus ! ( interjeiceonou Branca , tremula do sobresalto ) . -- Oh ! não te assustes , minha amiga . Teu irmão ainda não manchou as mãos no crime ... -- Mas ( balbuciou a donzella ) ... -- Perdão ( atalhou Samuel ) . E que caminho a seguir , quando todos me negavam o trabalho honrado , se a Providencia me não facultasse outro meio ? Haviamos de morrer de fome , aqui , entre as quatro paredes d' este sombrio albergue ? Branca , minha querida irmã : Nem sempre o roubo é um crime . Muitas vezes é a expressão da virtude ... Tu não sabes que o suicidio é um crime perante o direito natural , as leis profanas e as da religião que seguimos ? ... E commettem os desgraçados , a quem se recusa o trabalho honrado , o crime de suicidio se se deixam morrer á fome ? Sim , commettem ! ... Então , ha um meio unico ... -- Como ? ( perguntou Branca horrorisada ) . -- É roubar . Samuel , ao pronunciar estas palavras , tremia como vergonteas sopradas por um tufão . É que a derrocada dos seus brios de homem probo ainda se não tinha dado . Branca , muda e immovel , assimilhava-se a uma estatua de alabastro . Decorreram alguns segundos de um silencio assás profundo . Alfim o mancebo , abraçando sua irmã ternamente , relatou-lhe tudo que se havia passado desde que partiu para os paços de Belem , até que se encontrou com o sombrio cortezão . Ás nove horas da noute do dia dous de setembro de mil setecentos e cincoenta e oito , caminhava apressadamente pela rua Direita de Belem um individuo alto e ainda joven , embuçado n ' um amplo capote negro ; e parava de quando a quando como que para certificar-se se seria ou não seguido . Depois de muito caminhar , pois que sahira d' uma pequena casa sita ao Alto da Pampulha , parou em frente d' um palacio esplendido cêrca dos Jeronymos , o qual mais tarde a justiça dos homens fez desmoronar . Pelas ruas , nem viva alma . N ' esses tempos Lisboa vivia vida patriarchal . Só negocios de summa urgencia ou questões de compromisso , conseguiam arrancar os moradores de suas casas , pelo receio que tinham de transitar cá por fóra . É que os caminhos assimilhavam-se a uma especie de Falpêrra . A voz cavernosa do larapio e a faca do assassino davam então a lei nas estreitas ruas da capital , a despeito das medidas energicas de Sebastião de Carvalho . Era aquella pois a habitação ordinaria de D. José de Mascarenhas , marquez de Gouvea e duque d' Aveiro . O embuçado mirava-a por entre as sombras da noute , apurava o ouvido junto ao portão principal e , a não ser o ruido monotono d' uns passos cadenciaes e pesados que pariat a do pateo , nada mais lhe affectava os tympanos auditivos . Silencio sepulchral . -- Seria um logro ? ( interrogava-se o noctivago em soliloquio . ) E affastando-se dos muros do palacio , deu alguns passos para sitio opposto e ficou meditabundo . A magestosa habitação do duque d' Aveiro assimilhava-se n ' aquella noute a um d' esses castellos da edade media , ponto objectivo de mil contos de almas pennadas inventados pelo vulgo . As suas ameias e torreões pareciam outros tantos seres extraordinarios , segredando por entre as trevas horrorosas prophecias . Samuel , -- pois que era este o embuçado -- , quasi que tinha medo . Abeirou-se de novo do portão do palacio , collou segunda vez o ouvido na fechadura , e o mesmo silencio ... os mesmos passos . -- Deverei bater ? ( interrogava-se elle . ) Talvez . É provavel que o duque me aguarde . Mas ... que me quererá elle ? E outra vez se affastou d' alli tomado d' irresolução , para meditar profundamente sobre as palavras que o cortezão lhe dirigiu junto ao palacio de Ei-Rei . Até então não havia pensado maduramente sobre aquella especie ds mystério . Quando recebera o suspirado ouro das mãos do titular , pensou apenas em sua pobre irmã , e correu a levar-lhe a feliz nova de que n ' aquelle dia lhe não fôra adversa a sorte . Extinctas tão agradaveis impressões , e descendo agora ao positivo , via através o veu da duvida como que um phantasma colossal , pretendendo esmagal- o em troco d' algumas horas de ventura que lhe tinha facultado . Samuel , -- apesar da prostração moral que tem. o antes lhe creava a mais ampla indifferença por tudo que não fosse sua irmã , -- teve conhecimento das intrigas que lavraram no paço contra o fidalgo que n ' aquella noute procurava . Tambem sabia que , não poucos nobres , votavam um odio figadal a Sebastião de Carvalho , ministro do reino , o qual , por seu turno , estudava com vantagem , aperfeiçoava e punha em pratica o systhema esmagador de D. João II no tocante á fidalguia . Comtudo o orphão de Bernardim Barbeita estava bem longe de conhecer o que ia de verdade n ' estes zuns-zuns do povo , e o que se concertava de hediondo entre os nobres despeitados . Mudo e concentrado , permaneceu assim alguns minutos , até que o rodar aspero e apressado d' um enorme vehiculo , o veio despertar . Samuel , observando o andamento da sege , viu que esta parava junto ao palacio do duque e que , abrindo-se o portão , alguém se apeára e dera entrada no pateo . Então deu dous saltos em direcção da inexpugnavel porta , e em breve tempo encontrava-se face a face com um sujeito magro , alto e mal encarado , que exercia as funcções de porteiro do palacio . -- Quem procura ? ( perguntou ello ao orphão n ' um diapasão atroador . ) -- Procuro o nobre duque de Aveiro ( respondeu Samuel seccamente . ) -- S. ex.ª não falia a estas horas De mais a mais tem hoje reunião ... -- Perdão ( observou o mancebo . ) Eu sou um dos convidados . O guarda-portão arregalou os seus pequeninos olhos , mirou o orphão de alto a baixo e , por muito favor , lhe não fechou na cara a porta . -- Convidado ? ... O senhor ? ... Pois que demonio de creatura é , que mais me parece um pedinte do que gente de qualidade ? Nada . O senhor ou se enganou na porta , ou está a brincar comigo . -- Lacaio ! ( bradou cholericamente o filho de Bernardim . ) Não desrespeites a desgraça . Na tua presença está um fidalgo honrado mas infeliz . Annuncia-me ao duque e diz ao demonio o que sabes . Foram pronunciadas com tal energia estas palavras , que o serviçal de D. José de Mascarenhas deu dous passos á rectaguarda e levou a mão tremula ao seu enorme bonet de cinta prateada . -- Mas ( perguntou elle com brandura ) , quem deverei eu annunciar ao senhor duque ? -- Samuel de Alencastre ( respondeu o mancebo ainda impressionado com a grosseria do serviçal ) . Depois , emquanto este partiu ao seu destino , Samuel aproximou-se da rua e viu que a não grande distancia girava um coche sobre as suas rodas descommunaes . -- E dirige-se para aqui ( monologava o orphão tomando nota da direcção do vehiculo . ) Que extranha reunião será esta ? Sarau de certo não , pois que o palacio se assimilha a um sepulchro . Depois ... este ar mysterioso que deslisa de tudo isto ... Conspirar-se-ha ? Mal tinha elle chegado ao fim d' estas acertadas supposições , quando a carruagem chegou ao pé do portão . Depois recolheu-se a um dos cantos do pateo e cravou vistas penetrantes sobre os novos recem-chegados . Eram elles dous individuos ainda moços , esbeltos e prefulgentemente vestidos , precedidos d' uma senhora já edosa , cujo porte magestoso denunciava uma d' essas velhas aristocratas de que hoje só ha memoria . Subiram vagarosamente a escadaria sem repararem em Samuel , e quando iam a meio encontraram-se com o insolente guarda-portão , que , curvando-se até ás plantas , regougou em tom de servil veneração : -- Senhores marquezes ... E assim ficou em fórma de arco , até que os viu desapparecer . Depois desceu a escada , aproximou-se do filho de Barbeita com o immenso bonet na mão , e repetindo a mesma servil mesura , disse : -- Senhor||_Samuel_de_Alencastre Samuel|_Samuel_de_Alencastre de|_Samuel_de_Alencastre Alencastre|_Samuel_de_Alencastre : O duque , meu senhor , espera a v. s.ª Samuel , sem responder , subiu convulsamente a escada e penetrou numa espaçosa sala allumiada por duas velas de cêra . Aqui chegado , encontrou-se com um creado de libré que o acompanhou silenciosamente e por entre sombrios corredores e desertos salões , até á presença do muito poderoso e muito nobre senhor duque de Aveiro . Ao findar do anno de mil setecentos e cincoenta e oito era voz geral que a nobreza d' estes reinos de mãos dadas com os jesuitas , tramava a occultas contra a corôa , em virtude do alto valimento que ella dispensava ao ministro d' estado Sebastião José de Carvalho . Se descermos ás ultimas esmerilhações ácerca do motivo ou motivos que determinaram a attitude hostil da fidalguia e clero , a despeito da segurança de D. José , encontral- os-hemos , no dizer das chronicas , no facto da arrogancia e menos favor com que o valido do soberano tratava os nobres , e no odio de exterminio que nutria pelos filhos de Loyola . Foi este ultimo , a nosso vêr , o motivo mais poderoso que lançou parte da nobreza de Portugal no precipicio da mais esteril conspiração contra o soberano , a qual , tendo por exordio as miragens mas seductoras c irresistiveis , acabou pela tragedia mais dolorosa e sanguinolenta de que ha memoria nos annaes das sociedades cultas . Adiante o provaremos . Sebastião de Carvalho , fanatico pela escola politica do principe-perfeito , não podia a bons olhos divisar as demasias dos nobres , que , sempre orgulhosos e altivos e sempre parasitas no maximo numero , só provavam a sua vitalidade intellectual pela critica de soalheiro que faziam contra o monareba e seu ministro , e , por consequencia , contra os actos administrativos d' aquella época . Mas , embora occorram opiniões contrarias , temos que os nobres conspiradores nunca haveriam suggerido a idéa de rebellião contra a corôa , se os jesuitas -- obedecendo aos seus interesses -- os não seduzissem e tão mal aconselhassem . A este tempo já elles , os sotainas , esperavam o golpe , que apressaram pela mal aconselhada tentativa dos fidalgos contra a vida do soberano . Bento XIV , a instancias de D. José , -- o que equivale a dizer-se por intervenção do ministro , -- havia já encetado a reforma da Companhia de Jesus , em Portugal , -- reforma que era summamente desfavoravel aos interesses do jesuitismo . D ' aqui a raiva , o desespero no seu auge , a idéa de reacção e o supremo desejo de triumpharem do simples mortal , que , -- filho d' um pobre capitão das tropas de cavallo de D. João V , e exhausto de precedentes e pergaminhos , -- tentava pisar a cauda do leão , que se sabia exhibir indomito entre os povos mais avançados , tendo por poderio a unidade da ordem em todas as manifestações do seu programma , e por guarda-costas as fogueiras da inquisição com as suas espiraes de fumo asphixiante . Subtilissimo foi o projecto abraçado pelos filhos de Loyola , para a realisaçao dos seus damnados fins . Mais do que nunca lhes importava agora affastar de si suspeitas e evitar a acção da lei , de que sempre escarneceram O duque de Aveiro , D. José de Mascarenhas , nutria dupla má vontade contra a gerencia de estado -- Sebastião -- Carvalho . D ' um lado a inveja pelo accesso a que lhe deram jus os seus actos de sublime estadista , -- consequencia irrecusavel a sua alta sabedoria ; -- do outro o sentimento que elle duque experimentava pelo ministro , desde que este aconselhára El-Rei a negar lhe certa commenda que com empenho requeria : abstrahindo já da forma como o ministro se impunha aos grandes , os quaes em todos os tempos se imaginaram , pelo numero e importancias relativas , como que em estado de poderem abaixar a cerviz ás proprias realezas . Os jesuitas , acercando-se do pobre duque , sombrearam-lhe tanto estes feitos do ministro , deram-lhe tal cunho de repugnancia a seus olhos , dessiminaram taes intrigas , o aurificaram-lhe taes esperanças , que D. José de Mascarenhas com um olho fito na corôa e o outro n ' um bacamarte , imaginava-se ao mesmo tempo desfeito de D. José e seus satelites , e senhor do sceptro de Portugal , não sabemos porque bulas ! ... Talvez ... porque o duque de Aveiro associava no mais desmedido orgulho , a mais revoltante ambição . Deixemos aqui o duque e sigamos os jesuitas . Os sotainas tendo catechisado este martyr da vaidade e da ambição , continuaram no seu caminho e foram bater á porta da heroina mais formidavel do século XVIII . . idolo dos portuguezes de Azia , após as proezas que praticára alli , quando seu marido exercia os poderes de vice-rei da India pelo meiado d' aquello seculo . Era ella D. Leonor de Tavora , mulher do D.||_Francisco_d'Assis Francisco|_Francisco_d'Assis d'Assis|_Francisco_d'Assis , marquez d' aquelle titulo e general inspector das cavallarias d' El-Rei . D. Leonor , ferida egualmente nas suas vaidades de mulher nobre pela sombria altivez do ministro , já ha muito que em excesso odiava este homem : mas esta antipathia subiu de ponto desde que , -- como no duque de Aveiro , -- fôra indeferida pelo paço uma certa pretensão de D. Francisco seu esposo . Pouco tinham que caminhar os jesuitas , para realisarem a conquista da marqueza e seu marido . Comtudo , e como que para satisfação aos seus creditos de intrigantes , não tardou que imaginassem e déssem vulto a uns enredos amorosos em que faziam figurar El-Rei e a mulher de Luiz Bernardo de Tavora , tambem marquez d' este titulo . Ao ouvir similhantes revelaçães dos padres , D. Leonor ficou-se como uma hydra . O seu magno desejo desde então consistiu sempre em vêr um tragico fim ao seductor de sua nora , me áquelle que elle reputava o seu primeiro amigo . Os da Companhia de Jesus ficaram radiantes de jubilo em face da terrivel sanha da marqueza , que , com razão , haviam por fructo sazonado das suas vis lucubraçôes . Ganho o magnifico duque de Aveiro , conquistada D. Leonor de Tavora , -- que dominava seu marido , -- o certa a victoria sobre seu filho Luiz Bernardo , os mais viriam sem esforço ao chamamento d' estes , já por lavarem affrontas de familia , já por anniquilarem um reinado que os affrontava e deprimia . Os jesuitas abraçaram-se no seu antro maldito , e caracterisaram-se de novo ao sabor da hypocrisia . Se a conspiração sortisse os effeitos porque andavam , o proveito lhes-hia certo . Se a mão da fatalidade pesasse sobre ella , nem por isso ( julgavam ) se teriam compromettido . Como elles se illudiram ! ... Mas ... consagremos attenção a Samuel d'Alencastre . O filho de Bernardim Barbeita sentia que o sangue se lhe coalhava , toda a vez que atravessava um sombrio corredor , e dava entrada n ' um dos desertos salões . Por toda a parte um silencio mysterioso , que lhe prendia a alma nos ergastulos da mais cruel meditação . Já no seu espirito estava feita a convicção de que n ' aquella noute se conspirava contra alguem no sumptuoso palacio de D. José de Mascarenhas ; mas esse alguem estava longe de conhecer com acerto . Pelos seus ouvidos , como o dissemos , tinham passado umas vagas revelações do vulgo , que lhe davam o monarcha e seu ministro como alvos a que a nobreza mirava . Todavia , não confiava na voz do povo cujas versões differiam . Esta incerteza , estes mysterios , creavam-lhe sensações tão estranhas , que o obrigavam a oscillar como um pendulo . Não era porque lhe faltasse a coragem : É que via o presente e o futuro de sua irmã associado ao seu , e tremia se pensava nas suas proprias adversidades . Comtudo já não era tempo de retroceder . Fôsse o que fôsse , era-lhe impossivel fugir d' alli para se aproximar da triste orphã que o aguardava no melancholico albergue . Acompanhado pois pelo homem de libré , andou bastante até se aproximar da pessoa que procurava . Alfim deu ingresso n ' uma ampla sala perfeitamente quadrada , onde sobrava a luz e deslumbravam os atavios . Samuel ao encarar tão estranhas prefulgencias , recuou machinalmente , levou as mãos aos olhos , e , quando ia a soltar uma interjeição de justo espanto , encontrou-se abraçado pelo poderoso duque de Aveiro , que suavemente o arrastou para o centro do salão . -- Senhores ( disse D. José de Mascarenhas apresentando Samuel aos personagens presentes ) , mais um novo conjurado , que , como nós , tem desforços a exercer . -- Bem vindo seja ( responderam em côro os da sala ) . -- O seu nome ? ( perguntou um jesuita ) . -- Samuel Barbeita d'Alencastro ( respondeu o duque ) . Um ligeiro sussurro produzido por cadeiras que se arrastavam , e pelo som d' algumas vozes imperceptiveis , deu a entender que naquelle instante todas as attenções se occupavam do mancebo . Este , por seu turno , conservava-se confuso o oscilante . Ha momentos na vida em que o homem se convence de que existe só porque sente o bater energico do coração . O orphão de Bernardim encontrava-se n ' este caso . Depois que o duque o apresentára á assembléa e que divisou de relance os individuos que a compunham , experimentou a mais perfeita embriaguez da propria vista e audição . Mas , se aos dous primeiros sentidos , -- filhos mais intimos da alma -- , lhes faltava a energia , a acção , nem por isso deixava de avaliar o perimetro da sua propria situação , de medir a altura do abysmo que abordára e de perceber uma voz occulta -- a da consciencia -- , que o aconselhava a fugir d' aquella estancia , que , em breve , o facho inexoravel da lei queimaria desde o chão ao vigamento . Um suor frio como os roscios glaciaes , banhava a fronte de Samuel . Em seu espirito estava feita a certeza de que no palacio de D. José se cavavam os fundamentos de um crime de gravidade . Comtudo , já não podia recuar . Pediu mentalmente perdão á honrada memoria de seu pae , recordou-se com lagrimas da alma , da sua pobre irmã e resignou-se a tomar parte nos trabalhos horriveis d' aquella noute . Arrastado pois suavemente pelo duque , para o meio da sala que já vimos , cumprimentou os circumstantes e tomou assento n ' uma magestosa poltrona de pau brazil , trabalhada com esmero pela mão habil de Paulo Gonçalves , artista de merecimentos , de quem as historias se esqueceram com a facilidade com que se olvidaram de Pero d'Alemquer , audacioso piloto de Vasco da Gama , a quem de direito cabe a maior parte da gloria da famigerada descoberta das terras de India . A historia tem d' estes baixos . Nem sempre é a photographia do passado : ou porque na jornada a surprehenderam as trovas , ou porque a indifferença ou o servilismo a viciou . Foi por isso que a sciencia do povo creou aquelle venerando aphorismo : " Soldado faz a guerra , general lhe colhe os louros " . Passadas as primeiras impressões produzidas pelo ingresso de Samuel , o duque de Aveiro aproximou-se de um bojudo jesuita e com elle segredou alguns minutos . Seguidamente acercaram-se do mancebo , apresentaram-lhe um pequeno livro onde se via gravada a imagem do Crucificado , e , a um signal do sotaina , todos os circumstantes rodearam o grupo . -- Juraes ( dizia elle a Samuel ) , que haveis de concordar com todas as resoluções da junta e de as seguir cega e mudamente por mais difficeis e arriscadas que sejam ? Samuel estendeu a mão sobre o Christo , envidou um inaudito esforço e respondeu : -- Assim o juro . Depois , ficou meditabundo . Se bem que não duvidava já da existencia da conspiração , e conhecesse o alvo a que ella se dirigia , ignorava comtudo a resolução dos conjurados no tocante á fórma de a praticar . Esta incerteza torturava-o . Mil pensamentos horriveis lhe trabalhavam na mente . Ora se convencia de que a elle ia ser commettida a missão de regicida , ora se julgava sob as mãos do carrasco , ora finalmente se suppunha perseguido pelo punhal dos conjurados se prejurasse por amor de sua irmã , a quem devia protecção . Alguns momentos apoz esta lucta intima , sentiu pela segunda vez o contacto da mão do duque , que o empuxou com brandura para um dos angulos da sala , onde a conversa se tornava acalorada . -- Senhores : É tempo de darmos começo aos trabalhos d' esta noute , e de transmittirmos a Samuel d'Alencastre os segredos da junta . -- Que dizeis sr. duque ? ( respondeu D. Leonor de Tavora ) . Pois o conjurado d' esta noute não estava iniciado ? ... -- Perdão , senhora marqueza ( tornou o duque ) . Distingamos . Samuel d'Alencastre é inimigo irreconciliavel do ministro , e como tal o aproveitei . As iniciações não podiam ser-lhe feitas senão depois de introduzido aqui . Samuel , sentia comprimir-se-lhe o circulo do ferro , que , desde ha muito , lhe apertava o coração . Alfim , enviou nas azas da viração da noute um profundo ai a sua irmã , resignou-se com o seu destino , acompanhou os conjurados á sala de armas do duque de Aveiro e tomou parte nos ultimos e definitivos trabalhos da memoravel emboscada contra a real e sacratissima pessoa do senhor||_rei rei|_rei D. José . São onze horas da noute do dia trez do setembro de mil setecentos e cincoenta e oito . Grossas nuvens forram a abobada celeste e interceptam á lua os seus opacos clarões . As ruas estão desertas . Silencio tumular . Pela porta da real quinta denominada do Meio , em Belem , sabe um vehiculo particular , que entra depois no amplo recinto do velho palacio real , a que nos referimos em um dos anteriores capitulos . No interior d' este coche veem-se sentados El-Rei D. José e o seu valido Pedro Ferreira , por quem a nobreza , clero e povo experimentavam não vulgar antipathia . -- Que soubeste hoje que nos interesse , Pedro Ferreira ? No paço sabe-se já dos nossos ultimos amores ? Que se diz ácerca dos ciumes da rainha ? -- Nada que eu saiba , meu senhor . De sobra conhece Vossa Magestade o quão hei sido dedicado e espontaneo nas minhas communicações . -- Nós o sabemos , Pedro Ferreira ; nós o sabemos . Todavia , revelações ha que assás nos custam ... -- Perdão , meu senhor . Nunca escrupulisei perante Vossa Magestade , a quem de tanto sou devedor ... -- E que se rosna com relação aos fidalgos ? Continuam elles a enfadar-se com+nós ? -- De certo , meu senhor . Mil vezes hei dito a Vossa Magestade , que se precavenha contra Tavoras e Aveiros . O duque e a marqueza hão de tirar desforra condigna da recusa que soffreram ... -- E que desforra suppões tu que se nos tire ? -- Ignoro-o , meu senhor . Certo é porém que D. José de Mascarenhas não crusará os braços em presença do seu orgulho offendido . -- Razão te damos Pedro Ferreira . O duque de Aveiro é altamente orgulhoso e em excesso ingrato . Mas não nos arreceamos . Quando nos constar que se agita demasiado , saberemos reprimir-lhe as demasias . -- Mal vos irá , Real Senhor , se lhe esperardes manifestações apparentes . D. José de Mascarenhas saberá occultar-se e tramará nas trevas . -- Vel- o-hemos . E que se diz de Sebastião de Carvalho ? -- O que já tive a honra de informar a Vossa Magestade : Conserva despeitado o melhor do clero e da nobreza ... -- Pouco é isso , Pedro Ferreira , muito pouco . A nobreza e o clero são dous inseetos sociaes , cujas azas faz mister arrancar . -- Razão vos faço meu senhor . -- E que diz o povo ? -- O povo ... o povo nada diz , porque tem a consciencia de que nada vale . Pois que ha de dizer o povo , ou que valor teria o que o povo dissesse ? -- Enganas-te , meu amigo . O povo é a principal escora das nações . Este dialogo , como acima dissemos , passava-so entre El-Rei D. José e o seu valido Pedro Ferreira . Sahia o trem , repetimos , da real quinta do Meio e penetrava no recintho do palacio queimado , quando se fez ouvir uma energica detonação produzida por alguns bacamartes ou roqueiros que sobre elle se dispararam . Os cavallos , espantados pelo estampido dos tiros , retrocederam desgovernados até ao largo da Junqueira junto ao Forte que servia de habitação ao marquez de Angeja , desde que o terramoto de mil setecentos e cincoenta e cinco lhe desmoronára o seu palacio á Sé . El-Rei , ferido gravemente no braço esquerdo , e quasi desfallecido em virtude do muito sangue que perdia , vendo-se proximo da morada do marquez , manifestou ao seu valido a necessidade que havia de receber alli o primeiro curativo , pois que soffria horrivelmente , além de que o sangue lhe corria profusamente de duas feridas que recebera . Pedro Ferreira , tremulo e amedrontado , correu para fora do coche , -- cujo espaldar se encontrava destruido pela carga dos roqueiros , -- e bateu anciosamente á porta do titular . Em derredor do Soberano , seu valido e cocheiro fazia-se um silencio aterrador , interrompido de quando a quando por um gemido prolongado que sahia do interior do vehiculo , e que vinha arrancar os dous serviçaes d' Ei-Rei ás mais laboriosas cogitações . D. José , abandonado no trem , via abeirar-se-lhe o final momento . Palido , anciado e com as vestes ensopadas no proprio sangue , não formulava uma idéa nem possuia a consciencia da sua horrivel situação . No Forte todos dormiam a somno solto , se julgarmos pela calada que alli reinava . Segunda , terceira e quarta vez pegou Pedro Ferreira no descommunal martelo do portão e fez ouvir um ruido atroador . -- Quem bate ? ( perguntou então alguém n ' um diapasão de arremetter , deixando passar atravez as fendas da immensa porta , os tibios reflexos de uma luz escassa . ) -- Abra ( respondeu o valido com decisão . ) -- O seu nome ? -- Pedro Ferreira , particular de El-Rei . Nem depois d' este annuncio , o guarda-portilo do marquez de Angeja se resolveu a correr os enormes ferrolhos , e a franquear a entrada ao valido do Soberano , que de sobra conheceu . Por favor especial , limitou-se a encolher as iras que revelára na voz , e a dizer-lhe com esforçada brandura : -- Corro a dar parte ao meu senhor . Depois , ouviu-se interiormente o retumbar d' uns passos , que se extinguiu pouco a pouco . Decorridos que foram alguns minutos , El-Rei dava entrada no Forte , encostado ao valido e boleeiro , e a muito custo conseguiu aproximar-se da propria cama do marquez . O muito sangue perdido e a fadiga resultante do andamento desde o coche até ao leito , lançaram o Monarcha n ' um deliquio assustador . -- Chame-se um physico ... chame-se um physico ... ( gritava o marquez de Angeja ) . Em seguida , chamou de parte Pedro Ferreira . Até áquelle momento ignoráva tudo que se passára . O valido , ainda tremulo e attonito , narrou-lhe fielmente o succedido . -- Traidores ! ( bradou o fidalgo raivosamente . ) E eu que aconselhei o Monarcha a prevenir-se contra alguém ... -- Como ? ( balbuciou o valido com reservada intenção . ) Pois vós , senhor marquez , já nutrieis desconfianças ? ... -- Sim ( tornou o titular sem dar fé de que tratava com Pedro Ferreira , figadal inimigo do clero e da nobreza , e o mais habil intrigador do paço . ) -- E podereis dizer-me , senhor marquez , a que alvo mira a vossa desconfiança ? -- Talvez não sacrificasse a verdade se vos dissesse vêr n ' isto as mãos de Tavoras , jesuitas e Aveiros ... -- Jesuitas ? ! ... Pedro Ferreira , após a resposta do marquez , como que sentiu a apparição d' uma alma nova . Mais velhaco que intelligente , não tinha suspeitado ainda dos honrados filhos de Loyola como associados ao plano de regicídio . Colhida pois tão preciosa revelação , começou desde logo a urdir uma teia assás horrenda , que , além de o elevar no animo de El-Rei e seu ministro , lhe traria seguramente generosa recompensa . O marquez de Angeja , altamente inquieto , ora se abeirava do real enfermo , ora expedia novos creados em procura dos physicos , ora finalmente analisava de perto as feridas do Soberano , cujo sangue corria sem cessar . -- É mister soccorrel- o promptamente ( dizia elle de si para si ) . E tomando a fimbria d' um lençol de linho , passou a ligar o braço esquerdo de El-Rei . Quando terminava esta ligeira operação , foi surprendido por dous medicos , que passaram a soccorrer o ferido , fazendo-o remover depois para o paço com todas as cautellas que o seu estado exigia . Retrocedamos um capitulo . Na sala d' armas do duque d' Aveiro , encontram-se reunidos os conjurados . Um dos jesuitas arenga aos circumstantes , em sentido desfavoravel á vida do Soberano , e á segurança do seu principal ministro . D. José de Mascarenhas , lisonjeado em extremo com as expressões laudatorias do irmão de Torquemada , observa o auditorio , cujas impressões o satisfazem . Entre os ouvintes , porém , existia um que se apresentava desanimado e frio . Era Samuel . A um dos congregados , frade dominico , não escapou esta occorrencia . -- Fr. Onofre ( segredou elle a um outro frade ) : Não vos parece contrafeito o conjurado d' esta noute ? -- É certo ( respondeu este , fitando detidamente o orphão de Bernardim ) . -- Será este homem um espião disfarçado ? ... Que suspeitaes , fr. Onofre ? -- Os anjos que vos respondam . Samuel , não percebeu o dialogo . Absorvido pela repugnancia que lhe creavam no espirito os factos que occorriam , era-lhe impossivel dar fé do que em torno se passava . Os dous frades continuaram a segredar . De instante a instante o dominico suspendia a funcção dos lábios , carregava o sobreôlho e ficava-se como que aguardando a occorrencia d' uma idéa , que depois transmittia a fr. Onofre , mirando ao mesmo tempo o rosto de Samuel . Que trama combinariam ? Aguardemos os capitulos que vão seguir , e prestemos attenção ao jesuita -- orador . " Senhores ( dizia elle aos da junta ) : Os conjurados teem tudo a ganhar e nada perderão com a morte do Soberano . Senão , vejamos : D. Maria , cujos sentimentos religiosos vão acima do que pensaes , ao empunhar o sceptro será obrigada pelo sagrado tribunal da penitencia , que profundamente venera , a despojar Sebastião de Carvalho de todos os seus empregos e poderes . D ' est ' arte cahirá por terra o fructo malefico d' esses projectos que já vingaram e os que tem em mente realisar á custa do supremo abatimento do clero e da nobreza . " Isto é : O poder dos grandes não será por mais tempo offendido na sua recta latitude ; os autos de fé de que tanto ha mister a nossa santa religião , não serão banidos ; a Companhia de Jezus , de que sou indigno filho , continuará desassombradamente a derramar no seio da humanidade orthodoxa o balsamo sacrosanto das suas sãs doutrinas ; e finalmente todas as congregações religiosas hão de triumphar do desprestigio e reducção a que o impio as levou " . Um ligeiro murmurio soou na sala . Seguidamente o jesuita , retomando a palavra , continuou : " Mas ainda ha mais senhores ; muito mais . Certos deveis estar de quanto vale a intelligencia , a fidalguia e mais virtudes que concorrem nas pessoas dos muito nobres duques -- Aveiro e marquez de Tavora , D. Francisco d'Assis ; virtudes que teem sido menoscabadas e offendidas pelo estulto e devasso chefe da monarchia e seu infame sequaz " ... N ' este ponto D. Leonor de Tavora mordeu os labios de raiva , e D. José de Mascarenhas fez um gesto cholerico . O orador concluiu : " Pois bem . O duque de Aveiro empunhará um dia o sceptro , e D. Francisco de Assis será o seu principal ministro . As retortas do nosso venerando collegio dirão o resto . " Segunda vez se callou o Torquemada , emquanto que a nobreza illudida combinava em sua mente o plano de emboscada . Mas não tardou muito que o maldito filho de Loyola proseguisse no seu discurso dissolvente . A sua missão alli , e a dos seus confrades , consistia em converter os fidalgos em instrumentos cegos dos seus caprichos e vinganças . D ' este modo ensinavam elles a religião de Christo , toda paz , toda amor e caridade ! ! ! ... O duque d' Aveiro , perdido pela tôla ambição de ser soberano um dia , iria com o seu roqueiro aleivoso até onde aos proprios monstros repugnaria chegar . -- " Senhores ( continuou o jesuita ) . São horas d' evaccuar esta casa , pois que prestes virá o dia . Disponhamos , por ultimo , o modo d' ataque á pessoa d' El-Rei . " As perseguições que nos fazem , haverão fim ámanhã , se vós outros fizerdes cahir o impio aos golpes das vossas armas . E ' mister pois que aponteis firmemente , para que o perigo de vossas pessoas não surja após a dissolução da nossa esperança . " Para que triumphemos de similhante adversidade , devereis dividir-vos em tres grupos : O primeiro , que será composto de Antonio Alvares Ferreira , João Miguel , José Polycarpo de Azevedo , Manoel Alvares Ferreira e Braz José Romeiro , -- todos serviçaes de vossas casas , -- collocar-se-ha a curta distancia do portão da Real quinta do meio , e terá junto um fidalgo conjurado . Este grupo como aquelles a que vou referir-me , deverá achar , se bem montado e armado de mui firmes bacamartes . " El-Rei , sahirá por aquella porta , cêrca das onze horas ou meia noute , como é seu uso o costume : Então os emboscados desfecharão a um tempo contra o coche , cujas paredes deixarão facilmente penetrar os estilhaços . " Mais além , no caminho ordinario do Soberano , postar-se-hão a espaços os dous restantes grupos ( compostos da nobreza conjurada ) , os quaes desfecharão tambem por sua vez na passagem da sege , se tanto fôr mister . " Firmeza , disciplina e valor , nobres conjurados . " Nós , os religiosos associados a esta santa empreza , encontrar-nos hemos a essa hora entoando preces á Providencia , que hade lançar vistas protectoras sobre a nossa justa causa " . Quando o perverso jesuita punha ponto no discurso , ouviam-se cinco horas nas torres de Belem . O dia começava a despontar turvo e melancholico , como que impressionado pelas ultimas palavras do jesuita , que promettia dirigir as suas preces a Deus , para que , por sua intercessão , houvessem bom emprego os estilhaços dos assassinos ! ! ! ... Christo ! ... Christo ! ... Como se teem seguido os teus exemplos ! ... Penetremos no palacio d' Ajuda , após o ingresso d' El-Rei . Os cortezãos , aturdidos , interrogam o valido sobre a causa dos ferimentos . Pedro Ferreira , responde enigmaticamente , e segreda depois com um moço estribeiro . Decorridos alguns momentos , galopava elle n ' um fogoso cavallo em direcção a Lisboa . Se o seguissemos , vel- o-hiamos penetrar na habitação ordinaria de Sebastião de Carvalho . O ministro -- D. José , mal ouviu a narração dos successos d' aquella noute , cerrou os punhos e deixou que um maligno sorriso lhe despontasse nos labios . Pouco tempo depois , partiam ambos para o paço . Sebastião de Carvalho , mudo e concentrado , combinava mentalmente o mise-en-seme da tragedia mais hedionda , á medida que o seu vehiculo percorria veloz as ruas de Lisboa em direcção a Belem . Deixemol- o agachar-se perante os instinctos da vingança , que muitas vezes lhe embaciaram os limpidos crystaes d' aquelle homerico espirito . Deixemos que a natureza humana , mesmo no zenith da grandeza , se affirme pequena e vil quando despenhada nas alcárcovas da paixito . Não ha quadro sem luz e sombras . Ao gigante que deu a conhecer ao mundo que Portugal continuava a ser nação , -- que fez brotar d' entre o marasmo da indifferença indigena as vigorosas hastes dos melhores systhemas economico e colonial , -- que converteu em exercito respeitavel uma cohorte de poltrões armados , -- que deu vida á industria , á navegação e ao commercio , -- que abrogou leis impossiveis e creou outras necessarias , -- que deu a liberdade aos indios , -- que aniquillou os autos-de-fé , -- que dissolveu odios mil vezes peccaminosos entre christãos velhos e novos , -- que abateu o orgulho da nobreza , -- que expulsou os infames jesuitas , -- que limitou o poder papal , -- que protegeu a instrucção , -- que fez erguer de sobre os fragmentos d' uma cidade amalgamada , essa outra que so deburça hoje sobre as aniladas aguas do Tejo ... ao Titan do passado seculo , emfim , era mister sombrear essa tela grande , sublime , admiravel , por meio do fumo das fogueiras mais horrorosas , que , após uma série de supplicios incriveis , transformaram em pó os corpos massacrados d' innocentes e criminosos . Deixemol- o pois e não o despertemos d' aquella horrivel meditação . O dia ia prestes apparecer , quando o ministro chegou ao paço . Reinava alli a confusão , o tumulto . Escudeiros , pagens e fidalgos , tudo se agitava . A ' cabeceira d' El-Rei velavam os medicos da camara . D. José , desanimado e livido , gemia d' instante a instante . Os intrigantes agaloados , os mexeriqueiros servis e estultos , os reptis ascorosos , que em todas as épocas se teem consagrado apenas a gangrenar os thronos , -- a camarilha , emfim , -- avultava em todos os angulos do palacio , e discutia o caso dos ferimentos por mil fórmas inverosimeis . Aquellas almas nojentas e immundas como as feridas purulentas , bem diziam de si para si as trévas que occultavam a regicida mão , e affagavam a negra esperança de realisarem seus fins Havia tal , que pensava já em sacrificar á intriga o proprio pae , para mais cêdo lhe cahir nos bens ! ! ! Eram os corvos matreiros em de redor da presa desprecavida . Depois d' isto , que haverá de mais eloquente na tela das supremas monstruosidades ? A sangrenta epopéa de Nero onde avultam os nomes de Britannicus e Aggripina , não foi arremeçada aos bronzes da historia por mãos mais carnivoras , mais brutaes . Sebastião de Carvalho , apenas visitou o real ferido , fez-se rodear da camarilha e dos pequenos serviçaes . Todos lhe obedeceram . -- Chamei-os ( disso elle em tom cadente e magestoso ) , para lhes ordenar em nome das conveniencias da justiça o mais profundo silencio acêrca do succedido . A cidade deve ignorar o facto altamente criminoso occorrido ha poucas horas . Depois , encetando já o seu programma estrategico : -- É preciso descobrir a mão , que tão traiçoeiramente feriu a El-Rei . Questões de ciúmes foram o movei da acção Pois bem . Será descoberta de prompto , se da vossa parte houver prudencia . Aos que pela sua qualidade official houverem entrada aqui , lhes-heis que a uma queda desastrosa se devem os ferimentos do Monarcha ... Ia o ministro a terminar o seu pequeno aranzel , quando um reposteiro annunciou o nobre marquez de Tavora , D. Francisco d'Assis . A um signal de Carvalho todos dispersaram e desappareceram em seguimento . D. Francisco entrou na sala . O gesto franco , a voz em regra , a naturalidade d' acção , aquelle todo , emfim , por onde se traduzia a mais cabal tranquilidade , eram testemunhos eloquentes da sua innocencia com relação ao crime d' aquella noute . Mas Sebastião de Carvalho não o julgou assim : Imaginou-o um réu convicto , disfarçado em bom actor . As grandes perspicacias também se illudem . No entanto era o marquez o unico dos da casa dos Tavoras , que tudo ignorava acêrca do succedido . A marqueza fiava pouco de seu marido para emprezas d' esta ordem Seu filho , José Maria de Tavora , mancebo de poucos annos e de bondades inexcediveis , frequentava as reuniões do duque , tão sómente por acompanhar sua mãe . Já o mesmo se não dava com o filho primogenito , Luiz Bernardo de Tavora , também marquez d' este titulo , o qual , deixando-se arrastar pela intriga jusuitica , nutria como sua mãe um odio excessivo pelo Soberano e validos . D. Francisco d'Assis , e seu filho José Maria , eram pois dous innocentes . Trocados que foram os cumprimentos do costume , o ministro assestou a sua enorme luneta , mirou D. Francisco e , deixando-se sorrir enigmaticamente , poz-se á espera de que elle lhe dissesse os porquês que o levaram ao paço . Esta insolita visita que condemnou o titular , pesada hoje na balança da consciencia , sem resentimentos de paixões , tem o peso da prova mais inconcussa do quanto D. Francisco não fôra cumplice nos ferimentos do Soberano . Pois quem seria o imbecil , que , depois de realisado um crime de tal monta , não buscasse esconder-se ao mundo , com receio de que elle o accusasse de criminoso após algumas d' essas fataes manifestações , que á consciencia chagada não é dado evitar ? Porque não appareceu também seu filho Luiz Bernardo ? Porque se occultou D. José de Mascarenhas ? ... Perguntemol- o ao primeiro que buscar encobrir seus crimes . Mas não lh'o perguntemos , não : Colloquemos- nos antes em face d' elle , fitemol- o apenas , porque o desgraçado raro deixará de dizer na fronte , no gesto e na palavra , o que d' affrontoso lhe residir na alma . D. Francisco , que passára a noute do delicto em uma festa de parentes , só no regresso a sua casa soubera do occorrido . Quando sahira para o baile , ficava sua esposa ligeiramente molestada ... Concitado pelo desejo de conhecer minuciosamente o facto , e compelido ainda pelo dever , fez rodar para a Ajuda o seu vehiculo , afim de offerecer os seus serviços ao rei . Mas , Carvalho , não lhe&lhes+o consentiu que se abeirasse do Soberano , fazendo valer n ' esse momento as tolices da pragmatica , e convencendo-o de que o Monarcha precisava de repouso . Depois , e porque das palavras do marquez não transpirasse aquillo que pretendia , pediu-lhe licença para expedir algumas ordens , declarando-lhe alfim , que os ferimentos não eram graves e que os attribuia a manejos da rainha ... E separaram-se . Sebastião de Carvalho , ficou-se com o maligno sorriso a saltitar lhe nos labios , e o velho titular sahiu do paço com a consciencia tranquilla . Quando os cavallos do real vehiculo retrocederam espantados até ao largo da Junqueira , o grupo que desfechára contra o Monarcha correu a reunir aos outros de que o leitor já tem noticia . O duque d' Aveiro ardia em desejos de conhecer o resultado da criminosa acção . Não menos desejosos se achavam Luiz Bernardo e sua mãe , que montada n ' um famoso ginete e de roqueiro em punho aguardava o momento de disparal- o contra El-Rei . Mas , qual não fôra a sua raiva quando os primeiros conjurados lhes relataram o que havia acontecido ? ! -- Pelo inferno ! ( bradou o duque de Aveiro com voz de Stentor ) . -- Quantos desfechastes ? ( interrogou convulsamente a marqueza ) . -- Eu , João Miguel e José Polycarpo ( respondeu Antonio Alvares ) . -- E teu irmão ? ( continuou a titular mordendo os labios ) . -- Senhora ( accudiu Manoel Alvares ) : o roqueiro que se me deu , trahiu-me a meu pesar . -- Maldito ! ( bradou D. Leonor n ' um accesso de desespero ) . Agora é fugir d' aqui . Ámanhã procederão a mil pesquisas , e ai de nós se nos descobrem ! Pronunciadas estas palavras pozeram-se a caminho . Era horrivelmente magestoso o espectaculo offerecido pelos conjurados . Montados em corpulentos solipedes com as patas embrulhadas em grossas telas , plenamente disfarçados , armados de bacamartes , silenciosos como rochedos , -- as suas presenças fariam medo aos proprios sicarios das Bardenas . A noute com o seu manto de trévas completava esta tragedia d' Eschylo . A ' medida que os noctivagos se aproximavam dos seus palacios , entravam n ' elles mediante precedentes precauções , para não serem vistos por pessoa alguma . D. Leonor de Tavora , chegada que foi á primeira sala da sua vasta residencia , arremeçou o bacamarte e começou a expandir-se n ' uma série d' imprecações . A não larga distancia , escondidos n ' um quarto contiguo , escutavam-a uma serva da casa e seu amante ... , Realisava-se n ' este momento aquelle velho aphorismo : Demonio faz e Deus desfaz . A marqueza de Tavora foi eloquente de cholera durante o pouco tempo que se conservara alli . Depois , ergueu-se , empunhou uma lanterna e dirigiu-se á sua alcova . A serviçal e companheiro , tão depressa tomaram nota da sahida da fidalga , emergiram da confusão que os surprehendera ; e abrindo depois paulatinameute a porta da pequena camara , divisaram sobre o tapete da sala o bacamarte ou roqueiro , que por milagre se não disparára quando a marqueza o repeliu . -- Que significará isto ? ( interrogavam-se mutuamente os dous homisiados ) . Depois , recordando-se e traduzindo sem esforço o monologo da titular , acabaram por convencer-se de que ella era cumplice n ' um crime de gravidade . Algumas horas após os factos referidos , toda a cidade sabia da emboscada , não obstante Sebastião de Carvalho fazer propalar que os ferimentos do Soberano se deviam a outra causa . Deixemos por um pouco o ministro -- D. José proseguir nos seus terriveis planos ; deixemol- o actuar com toda a força do seu prestigio sobre o tribunal processante ; deixemos os conjurados entre a incerteza e o receio da vindicta da lei ; deixemos que o duque d' Aveiro se retire com licença para o campo , e passemos a occupar-nos dos dous primitivos personagens d' esta historia . Apenas D. José de Mascarenhas déra por findos os trabalhos d' aquella noute de conspiração , a que o leitor assistiu , o orphão de Bernardim correu para sua casa com ligeireza indizivel . Quem lhe fitasse a fronte aos primeiros alvores matutinos , que surgiam palidos e melancholicos , tomar-lh ' a-hia pela fronte d' um cadaver . Oscilante e horrorisado pelo que vira e ouvira ... quasi fóra do mundo positivo ... não déra por dous frades inquisidores , que o seguiram desde o palacio ducal até á casa da Pampulha . Chegado junto de sua irmã , não teve poder em si que evitasse o lançar-se-lhe ao pescoço e beijal-a loucamente . Branca , mais pallida e abatida que Samuel , pois que gastára a noute em mil receios , recebeu com lagrimas a apparição do mancebo . Depois fitou-o detidamente . A incerteza do olhar , a profunda tristeza que revelava , a ausencia d' uma noute , aquella bolsa com ouro , ernfim , tudo a levava á crença de que elle se perdera . Comtudo nem um queixume . Resolvida d' antemão a seguir-lhe os passos , esperava em silencio o momento proprio para lhe pedir perdão d' erradas conjecturas , ou então para incital- o a trilhar melhor caminho ... Como Branca se illudia ! Samuel não passava d' um desgraçado . Se um dia o desespero o levou a pensar no roubo , foi porque a sociedade , negando-lhe o trabalho , lhe apontou tal recurso . As sociedades cultas são assim . N ' outros tempos quando a civilisação residia na penumbra , quando os homens se distinguiam dos brutos apenas pela fórma , quando finalmente a noute da ignorancia envolvia a todos nas suas espessas sombras , as sociedades -- tão á mingoa de leis ejaculadas de observação e saber , -- faziam consistir no amor reciproco o seu codigo , e tinham no coração o seu supremo areopágo . Batalhões de sabios juncaram a crôsta do globo : Desde então o coração dos velhos povos foi substituido pelo craneo dos modernos legisladores . E em cada paragrapho das actuaes leis um freio , e no conjunto d' ellas um absurdo . Punem e não evitam ! Soberba sapiencia ! Se o homem furta como ultimo recurso para matar a fóme que o crucia , ergue se d' alli um codigo com aspecto de tyranno e observa-lhe : -- És um ladrão ! ... Depois repelle-o para a athmosphera venenosa das enxovias , ou remove-o para os páramos d' um exilio . Se , ao contrario , esse homem cruza os braços , curva a cabeça perante a espada da miseria e se deixa morrer emfim , surge d' além outro codigo e , com esgares de tragedia , adverte-lhe : -- És um suicida . O inferno vae tragarte ! ! ! ... E em seguida , como se fôra pouco o medonho supplicio das avernaes fogueiras a que a alma é condemnada , pega-se-lhe no corpo e nega-se-lhe um buraco em seis palmos de sagrado ! Tenebroso dilemma ! ! ! ... Se tudo isto não fosse baixamente estolido e grotesco , seria altamente desanimador e cruel . Á humanidade infeliz restaria apenas um meio para não cahir no inferno e livrar-se da cadêa : Desfazer-se do estomago , que tem atulhado o paiz do Bonga e o imperio -- Satanaz ! Regressemos á nossa historia . Samuel , como de costume , relatou a sua irmã todos os acontecimentos da noute , o declarou-lhe que nunca entrára em seu espirito a negra resolução d' erguer mão armada contra reis ou plebeus . Branca , que pouco a pouco sentia dissipar as suspeitas que injustamente nutrira , ouviu a narração de Samuel com horror indescriptivel . -- Socega ( lhe disse elle serenamente ) . Tenho uma idéa que decerto nos salvará . -- Oh ! falla ! . . falla ! . , por Deus t ' o peço . -- Olha : Embrulha os poucos trapos que possuimos e fujamos de Lisboa . Esse ouro com que o duque quiz comprar o fructo d' uma torpeza chegar-nos ha para a jornada . -- Graças ! ( bradou a orphã erguendo as mãos ao ceu ) . Fujamos , sim ... fujamos já , que Deus ha de proteger-nos . Pouco tempo depois , quando os dois jovens se dispunham a partir , foram surprehendidos por dous irmãos negros que , em nome do Santo Officio , intimaram Samuel a acompanhal- os á inquisição . O infeliz ficou petrificado . Branca , quando o mancebo sahiu , soltou um grito agudo e cahiu desalentada . A inquisição , horrivel tribunal que se intitulava do Santo Officio , onde milhares de desgraçados soffreram tratos do inferno em nome de Jesus -- modelo de amor e paz -- , foi introduzida em Portugal poucos annos depois do primeiro quartel do século XVI , a rogos do Soberano mais cruel , estupido e impostor , que Portugal tem produzido . Este monstro coroado , esta fera , que os zoologos não saberiam classificar , era tillio do venturoso D. Manoel , monarcha um pouco injusto e até ingrato , mas não tão estolido nem tão feroz . Chamava se aquella hydra D. João III , a quem os velhos chronistas baptisaram de piedoso ! Estupenda mentira , se não foi supino escarneo ! ... Dez annos apoz a sua acclamação ( 1521 ) , impetrou elle de Roma o estabelecimento d' aquella monstruosidade , n ' estes reinos , admittindo n ' elles ao mesmo tempo a nefanda companhia de Jesus , de medonha recordação . Instalou-se a primeira inquisição n ' uns velhos cazarões do Rocio denominados Paços dos Estáos , mandados construir em mil quatrocentos e quarenta e oito pelo infante||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro , quando regente e defensor de Portugal , afim de facilitar pousada aos embaixadores estrangeiros e fidalgos das provincias , que se encontrassem na côrte . D. João III , levou tão longe as provas da sua inexorabilidade , que , abandonando os paços da Ribeira , fez habitação ordinaria no palacio do Santo Officio , não o incommodando nem dolorosos clamores , nem o som baço e horrivel dos torniquetes applicados por mãos brutaes contra os corpos dos desgraçados ! Não o incommodavam , não . Cada grito que soava , e que traduzia como que um mundo de soffrimento , transformava-se em seus ouvidos n ' um bello hymno de gloria pelos serviços que prestava á igreja a despeito da impiedade ! Infernal selvagem ! Por occasião do pavoroso terramoto de mil setecentos e cincoenta e cinco , desappareceram de sobre o chão do Rocio os velhos Paços dos Estáos , para no mesmo sitio se edificar identica estancia de supplicio e dôr . Carlos Mardel , architecto de fama , foi o encarregado d' esta infame construcção , não se esquccendo de satisfazer aos desejos dos inquisidores no tocante á segurança das masmorras , de sociedade com o que de mais crú e pavoroso se lhes podesse imprimir . A contrastar com as prisões do palacio , exhibiam-se as bellas casas dos santos padres do tribunal , todas luz e ornamentos , possuindo mais um excellente jardim com seu lago , gondollas e estatuas , para recreio dos bons servos do Senhor tão massacrados de torturarem milhares e milhares de infelizes , cujos principaes delictos contra a Santa Egreja consistiam quasi sempre no facto de possuirem alguns bens , ou não possuiam nada mas tinham bellas esposas e filhas tentadoras ... Era justo pois que apoz tamanha faina em proveito da fé catholica , lhes fosse dada uma mansão de fadas para seu goso e as odorosas exhalações de alguns mimosos vegetaes para satisfação do olfacto , tantas vezes offendido pelo cheiro da carne humana queimada no Rocio . Embalados pelos zephyros matutinos que lhes beijavam as faces rubras dos cangyrões , -- chegando-lhes aos ouvidos os ultimos ais das victimas trituradas nos calabouços como derradeiras notas d' um langôr d' agonia , -- os malditos emergiam sempre d' aquelle mixto d' effluvios agradaveis , auras môrnas e arruidos de dôr , ou para o confissionario -- seu principal ponto estrategico -- ou para o lume dos autos-de-fé , ou para os serralhos , emfim , onde eram verdadeiros sultões por mercê das fogueiras em que queimavam as familias de mil forçadas concubinas ! Ao tempo em que a nossa historia se passava , achava-se em construcção a nova casa do Santo Officio . Comtudo , funccionavam já não poucas enxovias para proveito dos inquisidores , massacre dos infelizes e vergonha da humanidade . Samuel foi pois conduzido a este antro de torturas pelos dous familiares . Durante o tansito cobrou animo desde que pensou nos seus crimes , e ouviu á consciencia que não era criminoso . No entanto , toda a vez que lhe lembrava o duque , descórava e até tremia . Longe andava elle da traição que se lhe armára . Chegado á inquisição , viu que sobre si se fechavam as grades d' uma cadeia e que um dos irmãos-negros que o acompanharam era um dos frades dominicos , com quem estivera em Belem . Samuel ficou confuso . Debalde apellava para o proprio racciocinio , no empenho de resolver semelhante enigma . Por mais d' uma vez se convencia de que era victima d' um logro . Mas de repente , taes juisos caducavam em presença d' outros , que o levavam á crença de que alguém buscava experimental- o no tocante ao regicidio . Então o mancebo socegava . Submerso na profundeza das trevas que lhe innundavam o carcere , e rendido ao poder do cansaço , que o prostrava , encostou-se por ultimo a uma tarimba de carvalho e pouco a pouco adormeceu . Duas horas de somno levava já , -- somno cortado por amiudados estremecimentos , -- quando a porta da masmorra gemeu sobre os seus gonzos . N ' este momento despertava o infeliz . Depois , levou as mãos aos olhos , ergueu a cabeça e olhou em de redor , como que para certificar-se do local que habitava . Julgava um sonho a sua estada nos carceres do Santo Officio . Esta feliz ambiguidade cedeu prestes o seu dubio logar á mais limpida desillusão : D ' um lado os gritos lancinantes de mancebos e anciãos a quem em nome de Jesus se lhes quebravam os ossos , -- do outro o rumor roufenho das machinas de tortura no seu mister infernal , -- aqui os altiloquos juramentos d' uns , -- acolá as forçadas confissões de outros , -- e em toda a pare a dôr cruenta na plenitude da sua ferocidade ! Este desconcerto de clamores horrisonos , associado ao som cadente e monotono das exhortações dos frades , feriram depressa os ouvidos do mancebo , imprimindo-lhe no espirito a tenebrosa certeza da sua horrivel situação . Comtudo restava-lhe a consciencia de que não era delinquente para merecer taes castigos , e tinha esperanças de que em breve se lhe daria a liberdade . Como elle se enganava ... Não era delinquente ? ! ... E quantos o foram no meio d' essas milhares de hecatombes com que os frades deliciaram os olhos do fanatismo brutal ? Os factos que o respondam . -- Irmão ( disse um frade penetrando na enxovia e abeirando-se do mancebo ) : É chegada a hora dos vossos interrogatorios . Acompanhae-me . Sois accusado de um grave crime . Samuel , fitou estupidamente o frade . O enigma do seu inesperado encarceramento nas prisões do Santo Officio , assumia agora as proporções de um mysterio . Aquellas ultimas palavras proferidas pelo frade , vinham , como enorme camartello movido por mão gigante , destruir-lhe a ultima esperança de liberdade . -- Um grave crime ? ! ... ( dizia elle em soliloquio ) . Qual ? ... A reunião do duque ? ... Mas a inquisição também lá estava ! ... Oh ! meu Deus ! ... meu Deus ! ... que desgraçado que sou ! ... Samuel , desalentado e lacrimoso , caminhou lentamente para fóra da prisão . Dous alabardeiros da casa o esperavam á porta silenciosa e friamente . Depois caminharam . Na rectaguarda do grupo marchava o frade a grande custo , mercê da sua obesidade . Decerto não era esta a melhor prova de aturadas penitencias e repetidos jejuns . O mancebo e companheiros desceram e subiram cenienares de escadas e percorreram uma infinidade de corredores ladeados de masmorras , em demanda da casa do julgamento . Na passagem através este horrendo labyrintho , grande numero de individuos mais palidos do que a morte se approximavam das grades dos seus ergastulos , e pediam em alta grita o fim dos seus martyrios ! Outros não appareciam , mas soltavam gemidos tão lacerantes , que abalavam e compungiam . O frade , não se incommodava com isto ! Para elle estes lamentos de alma não possuiam valor . Eram-lhe cousas familiares . Após seis minutos de caminho penetraram na casa do tribunal . Sobre uma especie de proscenio , que se elevava do chão pouco mais de meio covado , e refastelados em negras poltronas de sola , viam se alguns frades de S. Domingos , tendo na sua frente um venerando crucifixo , testemunha silenciosa de mil horriveis cannibalismos . N ' uma meza separada da do grupo de inquisidores , mas collocada tambem n ' um extremo do tablado , encontravam-se alguns notarios do Santo Officio , manejando grossas pennas de ave com que traçavam alguns exoticos caracteres em papel ou pergaminho . N ' outro nivel da casa sobresabiam alguns equuleos ou pôtros , apparelhos de suspensão , pyras , funis e outros hediondos petrechos de pavoroso supplicio . Junto d' elles divisavam-se tres ou quatro algozes , que aguardavam mudamente as ordens do tribunal . Todos estes infames ( frades e carrascos ) , tinham estampada na face a maldade dos seus instinctos . Dir-se-hia uma porção de demonios fugidos do inferno para flagello da humanidade . Samuel , foi obrigado a abeirar-se de um dos juizes . Uma folha myrrhada exposta ao sopro de um tufão não oscillaria raais . -- Irmão ( começou o frade com embusteira brandura ) : Sabeis que santo logar é este ? Samuel fez um signal de aflirmação . -- Pois bem . Em nome de Deus Padre , de Deus Filho e do Divino Espirito Santo , vos emprazo a responder-me . Depois , continuou : -- Sobre vós pesa a culpa de um delicto enormissimo . Que os anjos vos insinuem a confissão , afim de que os nossos corações não hajam de confranger-se ante o espectaculo da tortura a que sereis dado , se acaso vos recusardes a ser sincero . Dizei , meu irmão , fostes hontem a Belem ? -- Sim . Fui . ( Respondeu o orphão persuadido de que havia de acabar pela absolvição ) . -- Muito bem . Estivestes então no palacio de D. José de Mascarenhas ? -- É verdade . -- E que se passou alli ? Samuel ficou silencioso . Desde que se convencera de novo de que o Santo Officio desejava apenas experimental- o , -- o caminho a seguir era só este .