Arthur LOBO D ' avila OS CARAMURÚS ROMANCE HISTÓRICO DE+A DESCOBERTA E INDEPENDÊNCIA DE+O BRAZIL Torquato Tasso -- Jeruaalemme Liberata . LISBOA João ROMANO TORRES -- EDITOR Rua D. Pedro V , 84 a 88 1900 AO LEITOR Causará , talvez , uma certa extranheza que n ' esta obra conjugassemos o descobrimento do Brazil com a sua emancipação ; porque aquelle facto histórico , é , pela grande maioria , considerado como uma gloria , e este , como um revez , na historia portugueza . Fizemol- o , porém , muito propositadamente , e precisamente porque entendemos ser conveniente destruir no espirito popular essa errada theoria , e pareceu-nos ser momento azado , para o fazer , esta celebração festiva do quarto centenario da gloriosa descoberta da Terra de Santa Cruz por Pedro Alvares Cabral . Segundo o nosso modo de vêr , e de encarar a missão histórica d' um povo , o valor e a significação d' um grande serviço prestado á humanidade , como é a civilisação e o desenvolvimento d' um rico paiz abençoado pela natureza , coroado pela sua emancipação , e pelo reconhecimento da sua maioridade , está , moral e philosophicamente , em uma altura por tal maneira elevada , que não póde resenttir-se das beliscaduras que o facto d' essa independencia póde ter dado ao amor proprio nacional , mal entendido , graças aos principios da maltadada sciencia de Machiavel , que foi , é , e será sempre : a perniciosa politica , -- e nada mais . Foi essa politica , e mais nada , que , por uma negação absoluta da lógica , levou as constituintes de 1820 a recusarem á grande colonia da America os direitos e regalias que pedia , ao passo que os gloriosos revolucionarios liberaes as queriam para Portugal . Mas a força e o movimento soberanos da revolução , que eram socialmente elevados e justos , passaram sobre essas pequeninas questiunculas entre figuras politicas , para consummarem o facto historico , inevitavel e logico , do advento simultaneo do regímen constitucional nos dois paizes . O Brazil , que a monarchia portugueza buscára como refugio quando a espada de Napoleão ameaçava destruir o seu throno europeu , e que , por esse motivo , fora elevado a todas as regalias de metropole , não podia rasoavelmente volver de novo á condição de colonia , justamente pelos votos dos liberaes , que pediam , ou antes , impunham , á realeza , a Carta , intimando-a a voltar a Portugal , já livre da invasão franceza . Bastaria este facto , só por si , para justificar as pretenções do Brazil , quando n ' esse paiz não houvesse todas as razões , sociaes e históricas , derivadas do seu desenvolvimento , da influencia que as idéas da grande revolução franceza tinham no Novo Mundo , e do exemplo das colónias inglezas e hespanholas da America , procurando e conseguindo a emancipação . Portugal que descobrira , civilisára e desenvolvera o Brazil , e pois tambem a gloria de lhe transmittir o fogo sagrado da verdade . D ' ahi a sua independencia , que era fatal e logica , mais conveniente e mais gloriosa , do que a teimosia que se aconselhava nas constituintes , para ter peiado e atrophiado um grande juiz , jungido a outro muito mais pequeno , que lhe dera a existencia como sociedade culta , que o equiparára a si , e que fazendo-se irmão seu , embora mais velho , não podia com justiça continuar a consideral- o menor e tutelado . Acima , pois , do despeito politico de occasião , o facto historico da independência do Brazil é uma gloria humana , e social , para o paiz que o descobriu e desenvolveu . Muito maior alcance e valor , socialmente e historicamente , do que os protestos egoistas das côrtes de 1820 , teem os factos do tronco monarchico portuguez desprender de si um ramo glorioso para constituir o imperalismo brazileiro ; de Portugal e Brazil , passageiramente malavindos , se tornarem sinceramente irmãos e amigos ; e de , materialmente , muito maior resultado auferir Portugal do Brazil independente , do que d' uma enorme colonia definhada pela falta de recursos d' uma pequena metropole . Eis porquê , na nossa humilde opinião , a independencia do Brazil pode e deve ser invocada como titulo de gloria para Portugal , a par da sua descoberta . A obra da independencia foi , pois , o digno e magestoso remate da não menos gloriosa tarefa da colonisação e desenvolvimento do Brazil , promovida pelos portuguezes , e começada alguns annos depois da assignalada descoberta de Alvares Cabral . O primeiro portuguez colonisador da Terra de Santa Cruz foi Diogo Alvares , fidalgo minhoto , que o destino , atravez dos incidentes de uma vida altamente aventurosa , transformou em rei , póde dizer-se , de tribus indias , com o nome de Caramurú ! Honrado e requestado pelos reis -- França , nunca o fidalgo minhoto deixou de se conservar fiel vassallo da coroa portugueza , e de concorrer , com todo o seu poder sobre os indios , para alargar a força moral e material do dominio da sua patria no Brazil . Este portuguez illustre , do qual descendem centenares de familias brazileiras , merece ser consagrado gloriosamente na historia a par do descobridor . Elle personifica bem essa predestinação dos portuguezes do norte do paiz , para serem , desde então até aos nossos dias , constantes e dedicados trabalhadores no desenvolvimento do Brazil . Em um seu descendente , permittiu-se a phantasia do romancista encarnar o typo dos liberaes cooperadores do primeiro imperador . Brazileiros de nascimento , ou portuguezes , todos eram social e intellectualmente filhos das grandes ideias que desde a revolução franceza agitavam a Europa . De uns e de outros , não ha que dizer senão bem , quanto á forma por que realisaram a emancipação , que , pela força dos phenomenos sociaes e politicos , tinha fatalmente de se dar , e só se deu quando as constituintes , cumprindo a missão que o destino lhes assignalára , de para elle concorrerem indirectamente com o seu egoismo , collocaram o filho de D. João VI na imperiosa necessidade , que até então lealmente evitára , de seguir o conselho que o rei seu pae lhe déra , com o ultimo abraço , ao despedir-se para regressar a Portugal -- " Bem vejo que o Brazil não tardará a separar-se de Portugal . N ' esse caso , se me não puderes conservar a corôa , guarda-a para ti , e não a deixes cahir em mãos de aventureiros " . Na eira minhota Rompia um dia calmoso de julho do anno de 1500 . Os malhadores , postados frente a frente , aguardavam o nascer do sol . Mal despontou no horisonte , os que olhavam para o Oriente descarregaram os malhos sobre a alta camada do centeio , e os do lado opposto imitaram-n* ' os , a compasso , fazendo cantar a eira muito ao longe , com o echo das pancadas , repetido pelas quebradas dos montes . Principiava a malhada , e esta , e as esfolhadas , e outras fainas agricolas , entrelaçadas de folgares , como as videiras no Minho se enroscam nos arvoredos , eram famosas no dominio de Santa Martha , perto de Ponte de Lima , residencia senhorial de D. João Telles , e ao mesmo tempo grande assento de lavoura minhota . O palacio acastellado erguia-se a distancia sobre um monte , coberto da magnifica vegetação d' aquella formosa provincia ; e a estatura esbelta e elevada da torre de menagem , desenhando a sua sombra n ' esse tapete de verdura , d' onde o castello emergia , vinha reflectir-se , como gracil figura de mulher , no espelho das aguas do poetico rio a que as hostes romanas chamaram Lethes , ou o rio do esquecimento , tal foi o receio de que , ao atravessal- o , a sua belleza lhes fizesse esquecer a patria distante . Em outra eminencia ficava a eira , aberta aos ventos de todos os quadrantes , ampla , vastissima , lageada , propria ao mesmo tempo para receber os golpes dos malhos e dos mangoaes , sobre montes de massarocas de milho , e de espigas de trigo ou centeio , e para sobre ella dançarem formosas lavradeiras , ao som das violas e guitarras . Isso , porém , seria á noite , na esfolhada tom que terminaria a festança do dia , que era cheio , e agora começava . Grande assistencia de visinhos d' ambos os sexos , com seus trajos pittorescos , seguia attenta a compita dos dois bandos de malhadores , que não interrompiam o pesado trabalho , na ancia de fazerem arriar de cançados os contrários . -- A eira cantava cada vez mais alto , o enthusiasmo subia de ponto , cruzando-se os apupos proverbiaes do acto e os vivas inarticulados , que romperam n ' uma acclamação estrondosa ao chegar um bando de gentis criadas , trazendo grandes cangirões do puro verdasco , mandado pelo senhor do dominio para reanimar as forças dos robustos batalhadores . Houve um momento de armisticio , e os malhos descançaram emquanto os cangirões se esvasiavam ; depois , a refréga seguiu com novo ardor , e só parou quando , pela volta do meio dia , o fidalgo , acompanhado pela familia e pelos visinhos illustres , convidados para a festa , lhes veio decretar o descanço , e ao mesmo tempo o assalto á refeição que os esperava nas cozinhas do castello , respondendo ao vivorio com que era recebido , com a phrase sacramental : -- Ide-vos a compôr os malhos ! -- Viva o fidalgo ! Viva o sr.||_D._João_Telles D.|_D._João_Telles João|_D._João_Telles Telles|_D._João_Telles ! -- repetiram novamente os camponezes em côro . Depois , a um aceno do senhor , o rancho foi descendo para o valle , emquanto o grupo dos nobres ficava contemplando do alto da eira o colear d' aquella serpente vistosa , formada pelas cores variegadas dos trajos , por entre a verdura da encosta , até a vêr trepar á eminência fronteira , e atravessar o eirado guarnecido de centenarias carvalheiras , sumindo-se pela alta porta do castello ! Brilhante era o acompanhamento de D. João Telles . Dir-se-hia um retalho da côrte de D. Manoel , cujo reinado venturoso começava por esse tempo , ostentando o fulgor das armaduras , o brilho das sedas e a magestade dos velludos , na scena formosa e condigna d' aquella paizagem do Minho . É que no castello de Santa Martha havia festa cortezã , como na sua eira havia festa campestre . A nobreza das redondezas fôra , mais uma vez , convocada para as suas salas , de altos tectos de carvalho lavrado , por um d' esses convites mysteriosos , com que D. João Telles , quebrando a reclusão em que vivia , com uma festa grandiosa celebrava o seu regosijo de velho portuguez de lei , quando a patria inscrevia na sua historia mais uma pagina gloriosa . Assim , o ultimo festejo realisado no castello de Santa Martha fôra destinado a celebrar a volta de Vasco da Gama da descoberta da índia . Eram difficeis n ' aquelle tempo as communicações da provincia chamada de Entre-Douro e Minho com o sul do reino . Mas , a despeito d' isso , fazendo largas despezas com postilhões , D. João Telles lograva andar em dia com todos os grandes successos da côrte , e saber muito antes dos senhores seus visinhos as novas que então mais interessavam á nobreza , as das armadas navegadoras dos mares d' Africa e do Oriente , em que todos tinham parentes ou amigos . Por isso , os fidalgos dos arredores , recebendo o convite do nobre donatario de Santa Manha , em que mysteriosamente lhes dizia que a malhada do centeio e a esfolhada coincidiam com a celebração d' um novo regosijo nacional , ardiam na curiosidade de saber que noticias teria o castellão recebido da côrte . Elle , porém , mostrára- se até então excessivamente mysterioso , respondendo com espirituosas evasivas ás discretas perguntas que a tal respeito os seus convidados lhe dirigiam , e desanimado por esta reserva , D. Aleixo da Cunha , veterano como elle d' Affonso V , deu novo rumo ao dialogo que traziam travado : -- Famoso centeio tendes este anno ! senhor||_D._João_Telles D.|_D._João_Telles João|_D._João_Telles Telles|_D._João_Telles , -- disse , apontando para o chão da eira . -- Assim Deus que o mandou seja louvado ! -- replicou o castellão ; e reparando n ' este momento em uma camponeza , vestida de lucto , que não seguira o rancho , proseguiu : -- Então , Maria ? porque não foste com as tuas companheiras fazer as honras das cozinhas de Santa Martha aos malhadores ? -- Ah ! bem sabeis , senhor ! que os folgares acabaram para mim , como para viuva ... -- Coitada ! -- exclamou D. Aleixo , intervindo na conversa . -- Sim ! de ti se póde dizer a trova do poeta á excellente senhora : nem casada , nem solteira , não és donzella nem freira ... -- Por minha desgraça ! -- exclamou a rapariga soluçando ... -- Animo , rapariga ! -- tornou D. João Telles , carinhosamente , approximando-se da lavradeira e tomando-lhe a mão . -- Tem esperança ! que algum dia el-rei nosso senhor concederá o perdão de teu marido , o meu afilhado Ribeiro ... -- Deus vos ouça , padrinho ! e permitta que não morra no degredo ... -- Alegra-te , Maria ! -- e D. João Telles , fazendo uma pausa , e relanceando um olhar aos que o rodeavam , sorrindo com intenção , concluiu : -- ainda hoje terás noticias d' elle por um seu companheiro de viagem ! -- Que dizeis ? ! -- exclamou D. Aleixo attonito . E , no auge da admiração , do grupo de fidalgos partiram repetidas perguntas . -- Pedro Alvares Cabral voltou ao Tejo ? ! -- Arribou a armada ? ! -- Recebestes novas de Lisboa ? ! -- Sim ! Grandes noticias temos da côrte . As náos com que Pedro Alvares se dirigia á India não voltaram ao Tejo , mas soffreram grandes tempestades ... -- Valha-me a Virgem ! que meu filho vae na capitaina ! -- exclamou uma dama afflicta ... -- Socegae , senhora ! -- apressou-se D. João Telles a dizer -- que embora acossados pelo temporal , chegaram os navios a porto e salvamento , com nova gloria para o reino ! ... -- Como assim ? ! -- obtemperou D. Aleixo -- se ha mezes apenas que Pedro Alvares Cabral sahiu para o Oriente ? -- Nada mais vos posso dizer agora -- redarguiu sorrindo o castellão . -- Esperae até á noite , e ouvireis um recem-chegado do outro mundo , que tudo vos dirá ... -- Novo mundo ! chamam ás índias Occidentaes descobertas por Colombo ha oito annos ! Iria lá ter a armada de Cabral ? ! -- Esperae até á esfolhada -- repetiu D. João -- e tudo sabereis . Por agora , bem o vêdes -- continuou , apontando para o terreiro do castello -- a malhada ainda não terminou e reclama os seus direitos ... Os malhadores ahi voltam , para enterrarem a velha . Com effeito , a turba dos camponezes , sahindo novamente do castello em alegre algazarra , atravessára o eirado , e descia o valle , dirigindo-se novamente para ali . Da multidão partiam estrepitosos vivas , gargalhadas e apupos , alternados com altos gritos de lamentação , soltados sempre por uma unica e mesma voz . -- Ai ! o viuvo ! como vem desesperado -- observou rindo uma fidalga . -- Não quer que lhe enterrem a sua velha ; é da praxe , -- ajuntou um cavalleiro . -- Eil- os que chegam -- accrescentou D. Aleixo , no momento em que , tendo subido a encosta , sobre a eira surgiram os primeiros camponezes . -- Bravo ! rapazes e raparigas ! como vocês veem enfarruscados ! -- excamou rindo o castellão . -- Alegro-me porque em Santa Martha seja rigorosamente observada a tradicção , e que os malhadores , assaltando as cozinhas com valor , fossem recebidos com não menor coragem pelas cozinheiras . -- Assim foi , sr.||_D._João_Telles D.|_D._João_Telles João|_D._João_Telles Telles|_D._João_Telles ! -- respondeu o que entre o bando fazia o papel de viuvo ; -- estas cachopas fartaram-se de atirar pázadas de cinza para cima d' esses malhadores , antes que elles lograssem chegar aos tachos e ás caçarolas ... E elles agora vingam-se em mim ! Querem enterrar-me a velha ! -- concluiu em tom comicamente lamentoso , apontando para uma boneca de palha , estafermo como os judas queimados em sabbado d' Alleluia , que os malhadores traziam estendida n ' uma padiola ... -- Pois não tens remédio senão conformar-te , -- respondeu-lhe o castellão rindo . -- Enterre-se a velha ! Enterre-se a velha ! -- gritou o rancho . E os malhadores , proseguindo na praxe da usança , começaram a andar com a padiola em torno da eira , cada vez mais depressa , seguidos pelo viuvo , tropeçando e cahindo propositadamente , entre os proprios lamentos e a algazarra das chufas , risadas e apupos dos camponezes . Dentro em breve , a correria tornou-se desesperada . O viuvo parecia fazer esforços inauditos por alcançar a padiola e arrebatar a velha empalhada . -- Conseguiu-o finalmente , e partindo á desfilada , com o estafermo sobre os hombros , seguido pelos malhadores , que o deixavam ganhar terreno , effectuou a ultima phase da velha uzança , trepando ao alto d' uma cerejeira , onde pendurou a velha em guiza de espantalho . Então , elevou-se da eira um vivorio estrepitoso , entremeado de bravos e applausos ao viuvo , que triumphante voltou ao eirado , trazendo na frente os malhadores , a quem , como a vencidos , impoz a pena de continuarem a malhar o centeio , tarefa que proseguiram a um gesto de D. João Telles , despedindo-se d' elles , emquanto dizia para os seus convidados : -- Voltemos ao castello , senhoras e senhores ! -- digamos adeus á eira , até á noite . O grupo dos cortezãos afastou-se , retumbaram novamente as pancadas dos malhos , e as lavradeiras , rodeando o viuvo , começaram de entoar os seus alegres cantares . A caminho do castello , o rancho dos convidados de D. João Telles foi-se fraccionando , ao sabor das conversas particulares travadas por diversos dos personagens que o compunham , e quando chegados ao valle , em cujo fundo corriam as mansas aguas do Lima , a meio da rustica ponte lançada sobre ellas , parou o ultimo par da nobre comitiva , -- um moço cavalleiro de esbelta e attrahente figura , e uma donzella de peregrina belleza e sympathico aspecto : eram Diogo Alvares , mancebo e fidalgo -- Vianna do Castello , e D. Anna Telles , sobrinha e pupilla do senhor -- Santa Martha . Houve um momento de silencio , que bem traduzia a difficuldade d' uma explicação necessaria : -- Estaes zangada ? -- animou-se o mancebo a perguntar . -- Zangada não , mas comprehendereis que satisfeita tambem não posso estar ... -- Porque razão , Anna ? -- Porque faltastes ao ajustado ... -- Vim a Santa Martha a convite de vosso tio ! -- Convidou-vos , para não faltar á cortezia , vindo a esta festa todas as suas relações de Vianna ; mas devieis ter-vos abstido de aproveitar o convite , para desvanecer as suspeitas de que me cortejaes e eu vos cotrespondo ... -- Mas que tem o senhor||_D._João_Telles D.|_D._João_Telles João|_D._João_Telles Telles|_D._João_Telles contra mim ? -- Nada que vos seja desairoso ... O motivo , já vol-o disse , franca e lealmente : pensa que a minha felicidade está em um casamento vantajoso , que ha muito tem em vista ... -- Mas que devo fazer ? ! -- Deixar-me conduzir , como vos pedi , a empreza de o convencer , sem melindrar a sua auctoridade , de que nunca acceitarei tal enlace . -- Prometteis-m ' o ? A donzella pareceu agastada com a pergunta , e depois de o fixar um instante concluiu com resolução : -- Só costumo prometter uma vez ! Já vos prometti ... -- Perdoae-me , Anna , -- começou o cavalleiro a dizer arrependido , e querendo tomar-lhe a mão ; mas n ' este momento ouviu-se a voz de D. João Telles , da testa da columna , chamando a sobrinha , que , depois de lhe responder , disse apressadamente a Diogo Alvares : -- Disfarçae quanto puderdes ... A ' noite , na eira , falaremos ... E afastou-se , a acudir ao chamamento do castellão , emquanto o mancebo , seguindo o conselho que lhe dera , acabava de atravessar a ponte , e fazendo um largo rodeio na matta , se foi juntar aos convidados por ella dispersos . O caderno de Pero Vaz de Caminha Chegou emfim a noite anciosamente esperada por velhos e novos , por nobres e plebeus . Aos novos seduzia-os a perspectiva da escamisada , larga sessão , nocturna e livre , de paixões e namoros ; aos velhos , o cumprimento da promessa de D. João Telles , de então lhes dar a saber as importantes novas chegadas da corte ; e a todos , a curiosidade de conhecerem esse mysterioso personagem que o castellão designára por : recem-chegado do outro mundo ! Por isso , quando a noite fechou de todo , a eira de Santa Martha regorgitava de gente . -- A scena mudára de aspecto , mas nada perdera em belleza . -- Pelo contrario . A luz brilhante , mas incommoda , do sol , que illuminára a malhada , era agora substituida por um luar formosissimo , que dava um encanto magico á paizagem , de entre as meias tintas da qual destacava , por sua alvura , o lagedo da eira e o caiado das casas . Lá em baixo , entre as sombras indecisas do arvoredo do valle , o Lima , como uma serpente prateada , fazia resplandecer aqui e ali a corrente das suas aguas . E sobre a eminencia fronteira , o castello , illuminado em cheio pela suave mas intensa claridade da lua , parecia tomar proporções grandiosas e phantasticas , como se lentamente fossem crescendo para o céo , entre a perspectiva aeria de um horisonte de côr indecisa , mas extremamente suave , as suas torres e ameias . Ao centro da eira , sobre o esbranquiçado lagedo , as camadas de centeio haviam cedido o logar a um alto monte de massarocas . Em torno , assentava-se uma extensa fileirade raparigas e rapazes , entregues á faina da esfolhada , e um espaço deixado em aberto , indicava os logares reservados para os escamisadores fidalgos , ainda entretidos no castello com as largas palestras que tinham seguido a merenda . D. João Telles dera ordem para que não demorassem o concerto por sua causa , e assim , as violas e guitarras trinavam acompanhando os desafios poeticos , que se iam succedendo , emquanto ás massarocas se tiravam a camisa e as barbas . Um serandeiro apaixonado , travado de razões poéticas , e incendido de amor por uma cantadeira afamada pela inspiração , pelo timbre encantador da voz e pela galhardia com que sustentava longos torneios , dirigia-lhe uma quadra ao sabor das trovas do tempo : E ella , requebrando a figura gentil , realçada com o trajar vistoso das lavradeiras de Santa Martha , com o grande lenço-chale de cores matizadas enlaçado na cabeça como um turbante , cahindo as pontas airosamente pelas costas , o peito carregado de ouro brilhando sobre a camisa alvissima , e a saia de riscas em todas as côres , deixando vêr os pés calçados nas chinellas em bico , não demorou a replica : Não faltaram applausos á conceituosa resposta , e o cantador , estimulado nos brios e na paixão , acudiu logo á deixa : Iam chegando n ' este momento os convidados do castellão , mas na eira tudo estava suspenso dos labios dos dois contendores , e assim , a pupilla de D. João Telles , que foi das primeiras a chegar , pôde tomar assento para a esfolhada , emquanto Diogo Alvares , que a seguia , se assentava ao seu lado , no momento em que a cantadeira retorquia : -- Ouvis ? -- perguntou-lhe D. Anna sorrindo . -- Segui o conselho d' esta quadra : vivei ledo e forro , em vez de vos captivardes ... Mas antes que o mancebo protestasse , o cantador replicou : -- Ahi tendes a resposta : captivo de amor por vós , não está em meu poder aforrar-me , e só de vós depende que eu não viva mais morto que vivo ... -- De mim não , Diogo Alvares ! Menina e moça , como se diz no romance , fiquei sem pae , e a sorte fez-me trocar a casa paterna pela de D. João Telles , meu tio . Segundo pae tem sido para mim , e não devo querer-lhe mal , por pensar em me assegurar o futuro , casando-me com um senhor de casa abastada ... -- Mas a riqueza é-vos indifferente , como me tendes dito ! -- Assim é ... quanto a mim ... mas não pensa do mesmo modo aquelle que da minha mão tem o direito de dispôr ... -- Direito ? ! -- Ou antes , sou eu que , por gratidão e respeito , não ouso rebellar-me ... -- Preferis sacrificar-vos e sacrificar-me ? -- Não ! Prefiro usar do meio , unico , para convencer D. João Telles ... -- Qual ? -- A brandura , a persuasão , o tempo . Ainda lhe não disse que repellia o seu projecto , mas ainda lhe não disse tambem que o acceitava ... Assim procuro ganhar tempo , ou para que abandone tal idéa , ou para que vós possaes declarar-vos abertamente , com probabilidades de resultado ... Sabeis o que é preciso para captivar D. João Telles ... -- Sei -- replicou Diogo Alvares com amargo sorriso . -- A fortuna ... -- Ou a gloria ! -- concluiu D. Anna , levemente reprehensiva , como defendendo o modo de vêr do tutor . -- Bem está -- concluiu Diogo Alvares . -- Uma ou outra alcançarei ; só vos peço dois annos de espera , antes de accederdes á vontade de D. João Telles . -- Ahi vindes outra vez , a querer que vos repita a promessa já feita ... Pareceis desconfiar de mim ... -- concluiu com desgosto ... Diogo Alvares ia protestar , mas n ' esse momento alguma coisa de extraordinario lhe chamou a attenção . O tanger das guitarras e as canções tinham parado subitamente ; o alegre bulicio da escamisada tornára- se attento silencio e espectativa , vendo surgir da encosta e avançar na eira o grupo dos convidados , em animada discussão , como de grande acontecimento . E poucos momentos volvidos , ao chegar o castellão acompanhado por um cavalleiro de meia edade , quando a claridade da lua lhe deu em cheio no rosto , muitos lhe proferiram o nome no auge da admiração : -- Gaspar de Lemos ! ! O caso não era para menor espanto e surpreza . Esse que ahi chegava , acompanhado por D. João Telles , era um dos capitães da poderosa armada de treze navios , partida havia pouco do Tejo , com destino á India , e que todos suppunham a taes horas sulcando as ondas do antigamente chamado Mar Tenebroso . -- Eis o recem-chegado do outro mundo ! -- exclamou o castellão , com um sorriso de orgulhosa satisfação . -- Depois , passado um instante de silencio , o rosto do velho companheiro d' armas do Principe Perfeito como que se illuminou com o enthusiasmo das glorias presentes , e com as formosas recordações do passado , ao dirigir-se ao capitão da frota de Pedro Alvares Cabral : -- É aqui , Gaspar de Lemos ! perante esta assembléa de nobres e plebeus , mas todos igualmente portuguezes no coração , que vos desejo ouvir narrar a forma por que Deus , em sua infinita graça , levou aquella gloriosa bandeira de Portugal á descoberta da Terra de Santa Cruz ! -- e D. João Telles , assim dizendo , apontava para o grande estandarte branco , com a larga cruz vermelha de Christo , distinctivo dos capitães-móres das armadas , que fizera içar na torre do castello para celebrar a visita d' aquelle que Pedro Alvares Cabral enviára ao reino a participar a el-rei||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel o importante descobrimento . -- Ouçâmos ! Ouçâmos ! -- repetiram vozes diversas -- emquanto o castellão indicava a Gaspar de Lemos que tomasse assento sobre um dos cestos vindimos , que , de boca para baixo , serviam de cadeira aos personagens mais qualificados , ao passo que a restante companhia se accommodava á oriental , no chão , de pernas encruzadas . Deslocou-se grande parte da assistencia , vindo formar roda ao grupo dos fidalgos , em cujo centro se achavam o castellão e Gaspar de Lemos , -- e aquelle , vendo finalmente todos attentos e accommodados , dirigiu-se de novo ao capitão : -- Vamos , Gaspar de Lemos , começae a vossa narrativa . -- Fraco narrador sou , senhor||_D._João_Telles D.|_D._João_Telles João|_D._João_Telles Telles|_D._João_Telles ! por isso melhor farei lendo as notas , que trago commigo , tomadas pelo escrivão da frota , Pero Vaz de Caminha , que sobre ellas escreveu uma carta a el-rei , da qual fui portador ! -- Seja como dizeis ! Gaspar de Lemos , desabotoando o pellote , tirou d' um bolso interior um caderno , que desdobrou , começando a lêr : -- " Em 8 de março , depois de celebrada a Santa Missa na ermida do Restello , na qual prégou o bispo de Ceuta , fazendo o elogio do capitão-mór , foi este despedido á beira-mar por el-rei||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel , que ali o abençoou e aos capitães , embarcando-nos todos emquanto a frota salvava . Só no dia seguinte , por os ventos serem ponteiros , pudemos sair a barra . Deixando o Tejo , com rumo ás ilhas de Cabo Verde , ahi fizemos aguada , e depois fez-se a armada ao sudoeste para fugir ás calmas e mais facilmente dobrar o cabo da Boa Esperança . " Em 24 d' Abril , porém , quando pelos cálculos dos pilotos nos deviamos achar a seiscentas e sessenta leguas de S.||_Nicolau Nicolau|_Nicolau , viu-se o mar cheio de hervas . No dia seguinte appareceram gaivotas , e finalmente , pela tarde , havia terra á vista ! percebendo-se um monte elevado e arredondado , encostado ao sul a uma serra mais baixa e tendo na base uma praia coberta d' arvoredo . Monte Paschoal lhe chamou o capitão-mór , por ser descoberto na Semana-Santa , e Terra de Vera Cruz ao paiz . Ao sol posto os navios lançavam ferro em bom ancoradouro , a seis milhas de terra , approximadamente , e em dezenove braças d' agua . " De madrugada navegámos para terra , indo na frente os navios que pediam menos fundo , sondando , até chegarmos a meia legua da praia , ancorando a armada em nove braças , na foz d' um rio , que Nicolau Coelho foi mandado a reconhecer . Quando entrou a barra , um grupo de selvagens , armados de arcos e settas , de côr acobreada e completamente nus , preparavam-se para a defeza . " O capitão fez-lhes signal de que vinha com animo de paz , e a seu convite depuzeram as armas . Vindo á fala , não foi possível entender-lhes a lingua , mas fez-se troca de presentes . Deu-lhes Coelho uma carapuça vermelha , o capuz de linho que elle mesmo levava e um chapéo preto , recebendo adornos de pennas que traziam na cabeça e um fio de contas , que pareciam perolas ordinarias . -- Levantando-se vento rijo durante a noite , o capitão-mór , por conselho dos pilotos , mandou levantar ferro e navegar ao longo da costa em demanda d' um porto . Percorridas dez leguas , encontrou-se um , capaz de dar abrigo a navios de alto bordo , e depois do piloto Affonso Lopes ter ido sondar o ancoradouro , fundeou a armada , dando o capitão a este logar a denominação de Porto Seguro . " Affonso Lopes , voltando das sondagens , trouxe dois indigenas , apanhados a pescar em uma canôa , moços de bella figura e feições agradaveis . -- Vinha um armado de arco e settas , e no alto da cabeça trazia complicado ornamento de pennas amarellas , alto de dois pés , e solidamente fixado sobre o craneo rapado com uma espécie de massame branco . -- Tinha tambem o lábio inferior furado , e passado atravez um pedaço d' osso branco do comprimento da palma da mão . " Recebeu-os Alvares Cabral com certo apparato que os impressionasse , -- vestindo-se ricamente , cingindo o pescoço com um bello collar d' ouro , occupando uma cadeira magestosa , collocada , á falta de estrado , sobre um tapete , e em torno do qual fez tomar assento aos seus officiaes . Era noite , e a scena foi abrilhantada com a luz de vellas . " Trazidos os selvagens á presença do capitão-mór , não pareceram impressionados com a cerimonia , conservando-se silenciosos . -- Passados instantes , um d' elles , fixando o collar , apontou para elle e para a terra , e o mesmo fez indicando um castiçal de prata . -- Julgámos que assim indicava haver no paiz esses metaes , mas depois reconheceu-se que só o seu brilho lhes attrahira as attenções . -- A custo provaram as iguarias e bebidas que lhes apresentavam ; mas em compensação , um d' elles estendendo a mão para um rosario de contas brancas , que lhe mostraram com outros objectos , depois de o pôr ao pescoço , metteu-o na boca e comel- o-hia , se o deixassem , parecendo disposto a fazer o mesmo ao collar d' ouro do capitão-mór , para que apontava ! " Ordenou Alvares Cabral aos capitães Bartholomeu Dias e Nicolau Coelho , que desembarcassem na companhia dos dois selvagens , a quem foram deixadas as armas que traziam , e oferecidas camisas , barretes vermelhos , rosarios , cascaveis e campainhas , de que muito gostaram , indo tambem para ficar em terra , Affonso Ribeiro , vosso criado , sr.||_D._João_Telles D.|_D._João_Telles João|_D._João_Telles Telles|_D._João_Telles ! -- Ai ! O meu desgraçado marido ! -- exclamou afflicta a afilhada do castellão . -- Consola-te , rapariga ! -- acudiu o fidalgo -- por teres noticias d' elle , e saberes que está em paiz de boa gente e mais proximo do que se ficasse nas Indias Orientaes , como era seu destino . -- Por certo ! -- confirmou Gaspar de Lemos . -- Tão bem nos demos com as gentes do paiz descoberto por Alvares Cabral , que da armada até houve mancebos que desertaram para ficarem entre elles . -- Já vêdes , cachopa ! que não é muito pesado o degredo de vosso marido . -- Lá irão frequentes armadas , e qualquer dia ahi o tereis perdoado ! -- O céo vos escute , sr.||_D._Aleixo D.|_D._Aleixo Aleixo|_D._Aleixo ! ... -- Vontinuae , Gaspar de Lemos ! se vos apraz ... -- " Mal chegaram a terra , correram os selvagens pela praia , e , atravessando um regato , só pararam junto do sitio em que se achavam bastantes indios , nús e pintados de varias côres , aos quaes pareceram contar a sua aventura . Alguns se approximaram , que receberam presentes , e com elles se foi Affonso Ribeiro , a quem um ancião acolhia affavelmente . -- Dentro em pouco , os indios vinham confiadamente trazer aos bateis , agua , fructas e outros productos do paiz , recebendo fazendas , cascaveis e rozarios . Entre elles muitos havia armados de arcos e setas , com altos adornos de pennas na cabeça , e mesmo pegadas por todo o corpo , parecendo chefes graduados . Homens e mulheres eram geralmente bem lançados e de estatura elegante , se bem que não muito avantajada , e todos em geral pintados , mas tendo o corpo guarnecido de côres e dezenhos differentes , e os beiços , o nariz e orelhas furadas e atravessadas por argolas e prégos d' osso ou de metal . " Pela tarde d' esse dia , veio o capitão-mór , acompanhado pelos capitães , em bateis , navegar proximo á terra , mas não desembarcou , indo porém fazel- o em um ilhéo da bahia , escolhendo o logar para no proximo domingo de Paschoa fazer celebrar a missa . Ahi mandou levantar um docel , e debaixo um altar , muito bem adornados , em que o sacrificio foi celebrado por frei||_Henrique Henrique|_Henrique , capellão-mór da armada , acompanhado pelos frades que iam nos navios . Junto do capitão-mór , circumdado pelos capitães , e pelas tripulações , hasteava-se a bandeira de Christo dada no Restello por el-rei||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel . Terminada a missa , prégou frei||_Henrique Henrique|_Henrique agradecendo ao Altissimo o ter escolhido aquella armada portugueza para descobrir tão formoso paiz e n ' elle deixar implantada a Cruz . Multidão de selvagens assistia attenta ás cerimonias religiosas , e terminada a missa , quando o sacerdote subiu ao improvisado pulpito , os indios approximaram-se mais , assentando-se na terra , e assim estiveram emquanto durou o sermão . Quando acabou a prédica , ergueram-se , e fazendo resoar trombetas e buzinas , entregaram-se a danças e folguedos , expressando regosijo . " Depois , o capitão-mór e os officiaes , entrando nos bateis , atravessaram o braço de mar que separava o ilhéo da terra firme , e n ' esta vieram desembarcar . Os selvagens , embora armados , mettiam-se á agua , vindo ao encontro dos barcos , que ajudavam a avançar para a praia , e fazendo-se-lhes signal para que ali fossem depôr as armas , obedeciam promptamente , voltando desarmados a convidar os portuguezes a desembarcarem . " Apenas alguns homens o fizeram , trazendo de terra grande quantidade de marisco , que na praia acharam . " Pela tarde , reuniu Alvares Cabral a bordo da sua náo o conselho dos capitães , consultando-os sobre a conveniencia de expedir um dos navios da armada para Portugal , a levar a el-rei a nova do descobrimento , o que foi unanimemente approvado . Tambem se discutiu se conviria apprehender alguns indigenas para os enviar ao reino , mas foi geral opinião que não poderiam dar mais completas informações do paiz , do que dentro em breve o fariam os degredados que ali se deixassem , e que antes este acto de violencia podia causar má impressão nos selvagens , que tão doceis e amigos se mostravam dos descobridores . -- Com effeito , nos dias que ainda ali estivemos , se foram elles acostumando cada vez mais a tratar com os portuguezes , e embora difficilmente se fizessem comprehender , vinham ao nosso encontro logo que desembarcavamos , depondo as armas a distancia ao menor signal , e ajudando-nos a fazer aguada , e a cortar madeiras , com que os carpinteiros , por ordem do capitão , construiram uma grande Cruz , que , antes de partir , ali desejava deixar erguida como padrão de fé e da descoberta realisada . " Na véspera do dia fixado para esta ceremonia , o primeiro de maio , resolveu o capitão-mór dar aos selvagens um exemplo de respeito ao symbolo que ali deixaria , e , acompanhado por muitos cavalheiros e gentes das tripulações , desembarcou , dirigindo-se ao sitio em se achava encostada a uma frondosa chegados ali , todos se descobriram , e , ajoelhando , respeitosamente , convidando depois os que os imitassem , o que elles fizeram , com visivel respeito . " No dia seguinte , sexta-feira , 1° de maio , estando tudo disposto para a cerimonia , desembarcaram as tripulações , indo procissionalmcnte , com o estandarte bento alçado na frente , e os frades cantando , arvorar a Cruz em um logar escolhido , a dois tiros de bésta ao sul do rio . -- No sopé , foram postas as armas de Portugal e a esphera , divisa d' el-rei||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel . Armou-se um altar junto a ella , no qual frei||_Henrique Henrique|_Henrique celebrou a missa . " Os indigenas , agrupados a pequena disancia , imitavam os portuguezes em todos os seus movimentos de devoção , ajoelhando quando elles o faziam . -- A ' missa , o capitão-mór e alguns cavalleiros receberam os Sacramentos . -- Depois , tendo-se desparamentado e conservando apenas a alva , frei||_Henrique Henrique|_Henrique subiu a um pulpito , do qual prégou o Evangelho do dia e as vidas de S.||_Filippe Filippe|_Filippe e S.||_Thiago Thiago|_Thiago , que a egreja commemorava , observando-se , entretanto , que um indio de avançada idade , apontando , ora para o altar , ora para a Cruz , fallava aos seus , parecendo fazer-lhes uma pratica religiosa . " Foram então distribuidas aos indigenas muitas das cruzinhas de chumbo que Nicolau Coelho trouxera , e que eram restos do provimento levado por Vasco da Gama na descoberta da India , lançando-as frei||_Henrique Henrique|_Henrique ao pescoço dos selvagens depois de os ter feito beijal-as ; e para lhes infundir mais respeito ao sagrado symbolo , os portuguezes , desfilando a um e um , beijaram a Cruz grande que se acabava de erigir . " Alvares Cabral suppõe ser a terra que descobriu uma grande ilha , da qual avistou costas por mais de vinte e cinco leguas . -- Grande é a fertilidade do terreno , abundantes as agoas , temperado o clima , possante e viçosa a vegetação , doces e affaveis os seus naturaes . -- Taes são as informações com que me enviou a el-rei , nosso senhor , seguindo o capitão-mór sua derrota para as Indias Orientaes , onde , como sabeis , o leva o encargo de castigar o Samorim , rei -- Calecut , pelos aggravos feitos a Vasco da Gama . -- Famoso paiz deve ser esse que acabaes de nos descrever , Gaspar de Lemos ! Bemdita seja a Providencia , que prosegue concedendo a Portugal a realisação das aspirações de gloria e poderio , que em seugrande coração abrigava ei- rei||_D._João D.|_D._João João|_D._João o II , que Santa Gloria haja . -- Não menos ricas do que as Indias do Oriente mostram ser as do Occidente , a que pertencem estas terras agora descobertas por Alvares Cabral -- accrescentou o velho cavalleiro D Aleixo . -- Sim ! Não menos ricas de certo , e muito melhores quanto a naturaes . Ao passo que os orientaes são falsos e rebeldes com+nós , estes indios das Terras de Santa Cruz parecem mansos e leaes no seu trato ... -- Voltemos ao castello , -- disse D. João Telles erguendo-se -- que a noite avança e a ceia nos espera : Demais , estas raparigas e rapazes teem ainda muito milho a esfolhar , c muitos cantares que ouvir . como se apenas se esperasse esta auctorisação do fidalgo , para fechar o parenthesis aberto nos folguedos da escamisada com a leitura de Gaspar de Lemos , logo os instrumentos soaram , e o bulicio e a animação renasceram , ao passo que uma cantadeira erguia a voz de timbre argentino e requebrado : -- Ah ! -- disse , ouvindo a trova , Diogo Alvares para a sobrinha do castellão , com quem conversava a meia voz -- Gaspar de Lemos , com a narrativa do rico paiz descoberto por Alvares Cabral , e agora esta rapariga com as suas quadras , deram-me o conselho a seguir : partirei para a côrte , e de lá seguirei na primeira armada a buscar fortuna nas Indias do Occidente ... Duas horas durou ainda a esfolhada , e essas foram de certo as mais felizes , e ao mesmo tempo as mais anciosas , na vida e nos amores de Diogo Alvares e de D. Anna ; duas horas de protestos , de juramentos , de esperanças , de illusões , emfim , como tudo isso quer dizer , na realidade da Vida ... O protegido da rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor Não tardou em ser de todos conhecida a resolução de Diogo Alvares , que vivia modestissimamente no seu pequeno solar próximo a Deuchriste , passando os dias em ociosidade fidalga , na contemplação dos choupos e salgueiros das margens do Lima , ou percorrendo em caçadas os arredores de Cardellas , Serlães , Barco do Porto e Villar , todas essas formosas povoações que , desde Ponte até Vianna , adornam as pittorescas margens do Lima . A ' semelhança do senhor||_Rameswood Rameswood|_Rameswood , heroe d' uma novella de Walter Scott , Diogo Alvares comprehendera finalmente que lhe era impossivel a vida parca entre as arruinadas paredes do seu pequeno castello , e que , como bom minhoto , tinha de ir correr mundo para ganhar a vida . Hesitára por vezes ; o amor decidiu-o . D. João Telles exultou quando isto soube . -- Não que estimasse ver o joven fidalgo distanciar-se da sua pupilla , a quem melhor do que ninguem sabia que elle fazia a côrte , mas porque em fim o via dar o passo que , por vezes , estivera para lhe aconselhar , o que só não tizera para d' esse modo não tomar um qualquer compromisso moral quanto ao futuro dos namorados . -- Experimentado nas coisas da vida , e nos mysterios do coração humano , buscára conseguir o mesmo fim por uma fórma indirecta , que havia sido o propôr á sobrinha um casamento vantajoso com um seu amigo de confiança . -- Em sua consciencia , nunca pensára em tal , a sério . Sincero e leal , como era , logo que viu conseguido o fim que se propunha , foi o primeiro a applaudir a resolução de Diogo Alvares , ao qual , como amigo , offereceu valiosas recommendações para pessoas da côrte . Recusou , de começo , o mancebo , julgando taes movimentos de sympathia devidos ao desejo de quanto antes o vêr longe de Santa Manha , mas convenceram-n* ' o as razões da sobrinha de D. João Telles , com a qual o castellão tivera larga conferencia , expondo-lhe francamente que nada tinha contra a pessoa e caracter de Diogo Alvares , não se oppondo a que esperasse dois annos até vêr se elle alcançava uma situação que lhe permittisse pedil- a em casamento . D ' esta fórma , sem tomar compromissos directos com o mancebo , e dando tempo ao tempo , o senhor -- Santa Manha achava-se bem comsigo mesmo , não contrariando os sentimentos da sua pupilla , e uzando discretamente do seu valimento para ajudar o pretendente , nas luctas da vida que ia tentar . Diogo Alvares chegou pois a Lisboa trazendo , como a mais valiosa das recommendações , uma carta de D. João Telles para a rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , viuva de D. João II , que n ' esse momento entregue , como sempre , aos sentimentos piedosos que no seu coração de mãe enlutada se casavam com as dolorosas recordações da morte desastrosa do seu filho querido , o principe D. Affonso , se achava toda entregue ao projecto da fundação do mosteiro da Madre de Deus , nos terrenos denominados Horta das Conchas , em Xabregas , pertencentes ao solar de Alvaro da Cunha , e agora propriedade da sua viuva , D. Ignez , com quem a rainha andava tratando a compra . Foi ali que Diogo Alvares foi encontrar a desditosa mãe , a quem o céo parecia enviar constantemente accentuadas coincidencias a lembrarem-lhe o filho que perdera , nos papeis importantes que gentis mancebos da idade d' elle vinham imprevistamente assumir nos factos capitaes da sua vida . Assim , estando a rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor hesitante sobre a invocação que daria á casa religiosa que tencionava fundar , foi procurada por dois moços de singular gentileza , que , como diz a Historia Serafica e Chronologica da Ordem de S. Francisco , lhe offereceram uma imagem formosissima de Maria Santissima , para comprar , pedindo por ella tão avultado preço , que , apesar de muito agradada da obra , D. Leonor pediu uns dias para resolver . Deixaram os desconhecidos mancebos a imagem , e nunca mais appareceram a receber o preço . E foi assim que a rainha teve , como aviso do céo , que a indicação enviada por via d' aquelles jovens , que lhe recordavam o filho , era de que a invocação do futuro convento devia ser da Madre de Deus . D. Leonor , tendo pois ajustado a compra do palacio de Alvaro da Cunha , e solicitado do papa||_Julio Julio|_Julio II a licença apostolica para a fundação d' aquella nova casa religiosa , ia frequentes vezes visitar a propriedade , passando largas horas a contemplar da Horta das Conchas o espectaculo formoso do Tejo , cujo estuario magestoso se desenrolava a seus pés . -- Diogo Alvares percorria os jardins , em busca d' alguem que lhe indicasse onde encontraria a rainha , quando , ao virar d' uma alameda , guarnecida de alto buxo , divisou a poucos passos uma religiosa encostada á varanda sobranceira ao rio . Parecia embebida na contemplação do magnifico panorama , não dando pela sua presença . -- Minha madre ! podereis dizer-me onde encontrar Sua Alteza ? A religiosa voltou-se ao ouvir estas palavras , e dando com os olhos no mancebo , pareceu tomada de vivissima impressão , exclamando : -- Santo Deus ! que similhança ! -- mas logo , dominando-se , perguntou-lhe com voz affavel : -- Procuraes a rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor ? -- Senhora ! sim . -- Sou eu ! -- concluiu , sorrindo doce e tristemente . Diogo Alvares , mais impressionado ainda pela dolorosa e sympathica expressão d' aquelle rosto e d' aquella figura de mulher , do que pela consideração da sua alta gerarchia , approximou-se em silencio , e ajoelhando , beijou-lhe longamente as mãos , como se fôra a uma santa . A mãe desditosa comprehendeu , melhor ainda do que a rainha , o sentimento d' esta reverente homenagem . Houve um momento em que o deixou estar a seus pés , contemplando-lhe em silencio o rosto ; depois , com accento de grata melancholia , convidando-o a erguer-se , disse-lhe : -- Quanto me recordaes o meu filho ! Muito vos pareceis com o vosso fallecido principe D. Affonso ! -- Que Santa Gloria tem , senhora ! porque está no céo como um anjo que era ... Duas lagrimas assomaram aos olhos da rainha , que por instantes chorou em silencio , fixando as agoas do Tejo , essas agoas que vinham lá da Ribeira de Santarem , onde se dera o tragico successo , e que d' hi a pouco se haviam de confundir na vastidão do mar , como as suas lagrimas desappareciam na immensidade da sua dôr , enorme , sempre a mesma , depois de tantos annos , se não era que o perpassar do tempo ainda a augmentava ... Por fim , o animo varonil de D. Leonor dominou a situação . Enxugando os olhos com um fino lenço de rendas , que tirou de sob a especie de habito de monja que trazia vestido , e que enganara Diogo Alvares , fez-lhe signal que o seguisse , e tomando assento em um banco de pedra , interrogou-o : -- Sois o mancebo que me fez entregar uma carta de D. João Telles ? -- Deu-me a honra de me recommendar a Vossa Alteza ... -- E quereis seguir na primeira armada para a Terra de Santa Cruz ? -- Senhora ! sim ! -- Não vos custa deixar Portugal ? vossos paes ! ... vossa familia ? ! ... -- Sou só no mundo , senhora ! -- Sois feliz ! -- exclamou involuntariamente D. Leonor . -- Estaes livre de pezares ! Quando chegar a vossa hora , partireis do mundo sem saudades , como agora partireis por esse mar fora ... -- Pelo contrario , senhora ! Aqui deixo caras e saudosas recordações ... Deixo amigos , deixo aquella que um dia ha de commigo constituir familia ... Mas a necessidade , o dever de manter alto o nome que herdei , levou-me a procurar , como os homens novos da minha creação , o futuro n ' esse paiz que Portugal gloriosamente tem descoberto ! -- Dizeis bem , Diogo Alvares ! e não attenteis no que acabaes de me ouvir , expressão d' esta amargura que vive constantemente commigo , mas que não é , Deus me perdôe , o que a um futuro cavalleiro deve aconselhar a que foi rainha d' esta nobre terra , reservada pela Providencia a tão grandes destinos ... Vós partilhareis d' elles , por certo ... -- Assim me não falte a protecção de Vossa Alteza ... -- Contae com ella , mancebo ! Mesmo sem a recommendação de D. João Telles , a quem muito prézo , bastava que tanto vos parecesseis com o meu chorado Affonso , para em vosso interesse fazer quanto puder . -- vos-hei eternamente grato , senhora ! -- respondeu commovido Diogo Alvares , -- e se não estivesseis tão distante de mim pelo nascimento , procuraria agradecer-vos , amando-vos como filho ... -- Não é o nascimento , mancebo , que isso torna impossivel , mas sim haver logares no coração que só pódem ser occupados pelos que a natureza creou para isso : nem vós poderieis querer-me como filho , nem eu vos poderia amar como mãe ... O que a morte levou , ninguem mais o torna a dar . -- vos-hei eternamente grato e affeiçoado , senhora . -- E com isso me fareis feliz , crêde , Diogo Alvares ... E porque na verdade a pobre mãe era feliz , entretendo-se com o joven que physicamente lhe recordava o filho que perdera , a tarde passou rapida , e só quando a noite chegou , É que D. Leonor percebeu quanto tempo durára a maior das audiencias que na sua vida concedera a alguem . -- Faz-se tarde , mancebo ! e por certo os que me acompanham extranharão esta demora ... É que nunca , olhando para as aguas do Tejo , tão docemente me pareceu estar com aquelle que perdi ... Que me importa o mais ? Vinde commigo ! Voltemos á cidade , e ámanhã procurae-me no paço d' Alcaçova . Quero apresentar-vos a el-rei||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel meu irmão , e elle vos nomeará para a armada que se aprésta . D ' ahi a dias estava cumprida a promessa , e Diogo Alvares não desamparava a Ribeira das Náos , ponto de reunião de todos os maritimos d' aquelle tempo , e dos que pretendiam selo . Um acontecimento importante era ali incessantemente discutido : constava que D. Manoel chamára de Sevilha , com urgencia , o celebre navegador florentino Americo Vespucio , que tendo sido empregado da grande casa commercial dos Medicis , a qual tinha importantissimo trafico com a Hespanha , e sendo por ella enviado , na qualidade de agente , a Cadiz , procedeu á liquidação de contas com o armador Juanoto Berardi , tambem de Florença , e ao tempo vecino de Sevilha e amigo de Christovão Colombo . Morrendo Berardi , em 1495 , Vespucio acceitou o encargo de liquidar os seus negocios , e aproveitando o édito do mez de abril -- 1494 , do rei||_Fernando Fernando|_Fernando o Catholico , que declarára livre , mediante certas clausulas , o commercio das Indias do Occidente , descobertas por Colombo , partiu em uma armada de commercio , em que iam também Juan Dias de Solis , Juan de la Costa , e de que , provavelmente , Vicente Ianez Pinson era o capitão-mór . Por duas vezes , entre 1495 e 1499 , Vespucio percorrera as costas das Indias do Occidente , ganhando fama como maritimo conhecedor d' aquellas paragens e do seu commercio , motivo por que o rei -- Portugal o escolheu para ir na armada que destinava a estudar a Terra de Vera Cruz , descoberta por Cabral . Seduzido pelas vantajosas propostas do monarcha portuguez , e a despeito dos conselhos dos seus amigos , que lhe faziam notar a muita consideração em que o tinham os reis Catholicos , Vespucio chegou a Lisboa precisamente no momento em que estavam promptas a fazerem-se ao mar as tres caravellas mandadas apromptar pelo rei venturoso . Sobresaltaram-se os brios dos capitães portuguezes , a quem a longa serie de proezas maritimas , desde as primeiras navegações dirigidas pelo infante||_D._Henrique D.|_D._Henrique Henrique|_D._Henrique , davam titulos indiscutiveis , tendo as recentes façanhas de Bartholomeu Dias , de Vasco da Gama e de Alvares Cabral , mostrado que em paiz algum havia navegadores maís sabidos e mais arrojados . Levantaram-se protestos contra a outhorga do commando da armada a um extrangeiro , e por fim foi elle commettido a Gonçalo Coelho , indo Vespucio na qualidade de pratico . Foi n ' esta armada que embarcou Diogo Alvares . A sorte , porém , havia escripto que a estrella do seu destino , que esperava encontrar radiante quando se mettesse ao mar , se converteria , pelo contrario , em signo funesto logo que se dispozesse a partir . Havia tempo , que nas cartas de D. Anna encontrava passageiras allusões a soffrimentos physicos , e pedindo a D. João Telles informações a tal respeito , respondera-lhe , evasivamente , que a saude da sua pupilla não era tão boa como antigamente , sendo possivel que tivesse de vir á côrte para consultar algum méstre , como então se chamava aos clinicos . Chegára o dia 13 de junho de 1501 , e tendo-se despedido na vespera da rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , contava Diogo Alvares deixar o Tejo , logo que a viração da tarde fosse propicia para a armada partir . Tudo se dispunha nas caravellas para levantarem ferro dentro em poucas horas , quando entrou a barra , e veio subindo o rio , um bergantim dos que frequentemente navegavam de Portugal para as costas da Hespanha e da proxima Africa . -- A ' medida que o bergantim se approximava , parecia a Diogo Alvares descobrir pessoa conhecida na figura de homem que se distinguia á prôa , e passados momentos , com alegria misturada de inquietação , reconhecia D. João Telles . -- Fundeou o navio proximo das caravellas , e falando-se facilmente com o porta-voz , soube o mancebo que o castellão de Santa Martha aproveitára a partida do bergantim de Vianna do Castello , para mais commodamente trazer a sobrinha a Lisboa . Diogo Alvares estava n ' um verdadeiro tormento . A disciplina não lhe permittia deixar a caravella prestes a soltar as vélas , e ao mesmo tempo D. Anna , segundo lhe dizia o fidalgo , não podia subir á tolda , doente como vinha na camara . Assim passaram algumas horas crueis . Por fim , contra o que se previa , o vento fixou-se da barra , tornando difficil a sahida da armada , que o capitão-mór addiou para o dia seguinte . As tripulações tiveram licença para desembarcar , e Diogo Alvares , saltando n ' um batel , fez-se conduzir a bordo do bergantim . Ao portaló veio D. João Telles abraçal- o , fazendo-lhe uma prevenção que o inquietou : -- Esperae um instante ... Convém que previna Anna da vossa chegada ... Está muito fraca ... -- Mas que doença tem ? -- perguntou o mancebo apprehensivo . -- Não sei ! Não o souberam dizer os physicos do Minho ... Veremos se o descobrem os de Lisboa ... Volto já ... E o fidalgo desceu a escotilha , deixando Diogo Alvares entregue aos seus tristes pensamentos . Em que situação de dolorosa anciedade ia elle partir para uma longa viagem ! Passados momentos voltava D. João Telles : -- Podeis descer ... Espera-vos ... Diogo Alvares seguiu-o , e assomando á entrada do camarote em que D. Anna se achava deitada n ' um beliche , teve de fazer um esforço violento sobre si mesmo , para conter a dolorosa impressão que a sua vista lhe causára , tamanha era a mudança que na formosa menina se operára , tão profundamente accusava a existencia d' uma doença grave , que a consumia ... Sem poder articular palavra , Diogo Alvares beijou-lhe as mãos . Estavam de gelo ... -- Ah ! Felizmente ainda chegámos antes da partida da armada ... Ainda te posso ver uma vez ... Dizer-te um ultimo adeus ! E D. Anna falava com um enthusiasmo , com uma paixão , que nunca uzára para com elle , e mais ainda na presença do tio . O mancebo confundia-se , e inquietava-se , percebendo-lhe a exaltação febril . -- Socega , minha querida Anna ! A viagem comballiu-te ... -- Qual ? Sinto-me melhor , mais forte ... Fez-me bem o ar do mar ... Se fosse comtigo por esse oceano fóra , em poucos dias estaria curada ... -- Que lembrança ! -- Não póde ser ... bem o sei ! ... -- exclamou com accento de profunda tristeza . -- É forçoso que nos separemos , por muito tempo talvez ... Deus e a Virgem te protejam nos trabalhos que vaes passar , para dispôr o nosso futuro ... -- Assim o espero , e já provas tive de que as tuas préces em meu favor teem sido attendidas ... Encontrei na côrte uma dedicada protectora na rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , graças á vossa carta , sr.||_D._João_Telles D.|_D._João_Telles João|_D._João_Telles Telles|_D._João_Telles ! ... -- Não tanto á minha recommendação , como ao facto de muito terdes recordado a Sua Alteza o filho estremecido por quem chora . -- Li a carta em que narrou ao tio o vosso encontro , e enterneceu-me ! Conheci quantas saudades a tua presença avivou na memoria da rainha , mas percebi tambem que , longe de te querer mal por isso , te ficou agradecida pelo muito que o conhecer-vos adoçou a sua dôr ... N ' este momento , vieram avisar D. João Telles de que o esperava o batel , em que desejava ir a Lisboa antes de fazer desembarcar a doente . O fidalgo despediu-se dos promettidos esposos , que ficaram sós . -- Ides habitar o palacio d' Alfama ? -- Sim . Deve estar tudo disposto conforme o tio ordenou . -- Agrada-te a troca de Lisboa pelos campos do Minho ? -- Ah ! Não ! A não ser a alegria de te ver ainda , de me despedir de ti , toda a minha ambição era antes só vir á côrte quando já fosse tua mulher , mulher do cavalleiro que a rainha ha de armar por sua mão , quando voltares d' esta viagem , em que ganharás honra e fama ... -- Se o não conseguir , não será por me faltarem as préces e os votos de dois anjos : tu e D. Leonor ... Bem os preciso , que por mim fracos merecimentos possuo ... -- Tal não digas ! que és ingrato comtigo mesmo . Descendes de bom sangue ; não farás menos do que fizeram teus antepassados . Como elles , és digno de partir d' estas praias do Restello , onde el-rei veio despedir Vasco da Gama e Pedro Alvares Cabral , d' estas praias a que os navegadores portuguezes voltam sempre com os navios carregados de riquezas , e as bandeiras mais cobertas de gloria ... Como elles , tu voltarás senhor de um nome famoso ! ... -- Só para t ' o offerecer o desejo ... -- Ah ! com que satisfação e orgulho o acceitarei ... E D. Anna discorreu por muito tempo sobre projectos futuros , com extraordinaria imaginação , com uma verbosidade , com uma alegria febril que inquietava o mancebo . A sciencia estava longe então de conhecer n ' estas particularidades os symptomas da terrivel doença que lhe minava a existencia . Diogo Alvares , sem mesmo possuir o saber dos clinicos do tempo , sentia-se , mau grado seu , inquieto , com aquella eloquencia , aquelle fogo , em que a excitação febril , combinando-se com a elevação do caracter , nobre e forte , da mulher do Minho , de todos os tempos , lhe revelavam a cada momento uma individualidade nova n ' aquella que pensava conhecer intimamente . Umas vezes , D. Anna fallava-lhe , animando-o , aconselhando-o , como se fosse sua mãe ; outras , era a noiva apaixonada fazendo-lhe os mais ardentes protestos e juramentos ; outras , ainda , dir-se-hia que , n ' uma especie de fugitiva apprehensão , de quem borda apenas uma teia de brilhantes illusões , a saudade a enternecia , e fazendo-a desesperar da felicidade na vida , a levava a ter sobre tudo esperança e certeza de que haviam de ser unidos e felizes , n ' uma outra existencia . Assim passou o dia , dia que ficou memoravel na existencia dramatica e accidentada de Diogo Alvares , sem que elle jámais pudesse dizer se fôra o mais feliz ou o mais lugubre de quantos passára n ' este mundo . Quando os dois amantes se despediram , as estrellas brilhavam já no céo : D. Anna , que dizia achar-se muito melhor , teve forças para se erguer e vir acompanhar Diogo Alvares , e quando pela ultima vez lhe apertou a mão , indicando-lhe uma estrella brilhantissima que fulgurava no escuro da abobada celeste , disse-lhe : -- Vês aquella estrella tão formosa ? te-ha nos mares que vaes percorrer ! Olha para ella todas as noites : será como se olhasses para mim ... -- Assim farei , juro-t ' o -- disse a custo o mancebo ; e o coração apertou-se-lhe , ao lembrar-se que bastas vezes , pelas noites silenciosas do seu querido Minho , quando o coração se lhe apertava mais com as saudades dos entes estremecidos que perdera , se perguntára antes , se não seria o seu espirito que partindo da terra fora accender mais um d' esses astros fulgurantes do céo ... Na " volta " de Santa Cruz Pela madrugada seguinte , estando o vento de feição , largou do Restello a pequena armada de tres caravellas , que , sob o commando de Gonçalo Coelho , el-rei -- Portugal mandava a reconhecer a Terra de Santa Cruz , descoberta por Alvares Cabral , que n ' aquelle momento ia a caminho da India . Tomou a armada o rumo das Canarias , em que não tocou , dirigindo-se aos baixios de Pargos , perto da costa d' Africa , onde se forneceu de peixe salgado . Tres dias depois , continuava a sua derrota tocando no porto -- Bezeguide ou Bezenique , um pouco a sudoeste de Cabo Verde , onde hoje está estabelecida a colonia franceza de Goré , para fazerem aguada . Partindo d' este porto , navegaram dois mezes , sendo mais de quarenta dias sob temporal desteito , e tendo attingido , segundo os calculos de Vespucio , cinco gráos de latitude ao sul do equador , encontraram emfim terra . Fundearam além do cabo depois chamado de S.||_Roque Roque|_Roque , e tomaram posse do paiz em nome do rei -- Portugal . Mandaram embarcações á descoberta , que voltaram dizendo os tripulantes não terem visto habitantes , comquanto a terra devesse ser povoada . Repetiu-se o desembarque no dia seguinte , para fazerem agoada e lenha , e já então appareceram alguns selvagens nos cimos dos outeiros proximos da praia . Não accedendo , porém , aos convites dos portuguezes para se approximarem , deixaram estes nas margens varias mercadorias , entre ellas espelhos e campainhas , que lhes queriam offerecer , e embarcaram novamente . Mal se afastaram , desceram os indigenas das eminencias , vendo os navegantes do mar os signaes de alegria e admiração com que tomaram posse do seu thesouro . Na manhã seguinte , as alturas appareceram guarnecidas de indios , que accenderam muitas fogueiras , como a chamarem a attenção dos navegadores para voltarem a terra . Assim fizeram , mas desembarcando , continuaram os indigenas a conservar-se a distancia , receiosos . Chamavam , porém , os portuguezes para que os seguissem ás suas habitações . Offereceram-se dois marinheiros para correrem o risco de o fazer , e internaram-se levando algumas mercadorias , ficando ajustado que a armada esperaria por elles cinco dias . Tendo-se passado , porém , seis sem que voltassem , resolveram os portuguezes procural-os . Achavam-se , como de costume , guarnecidas as eminencias por selvagens , que d' esta vez tinham trazido comsigo suas mulheres , as quaes fizeram adiantar ao encontro dos portuguezes , como parlamentarias , o que parecia fazerem contra vontade . Para as animar , resolveram os portuguezes mandar um só homem a recebel-as , escolhendo para isso um moço de grande força e agilidade , voltando elles a embarcar . -- Cercaram as indigenas o enviado , com grandes demonstrações de curiosidade , mas entretanto desceu d' um outeiro uma outra mulher , que , chegando por detraz d' elle , com um páo lhe descarregou violenta pancada na cabeça , derrubando-o . Tomaram as outras immediatamente o infeliz , arrastando-o comsigo , emquanto os indigenas , correndo á praia , disparavam as settas contra os bateis . -- Tinham os portuguezes encalhado as embarcações em um banco d' areia proximo , e no primeiro momento , surprehendidos pela repentina aggressão , só cuidaram de as pôr a nado para se fazerem ao mar . -- Mas logo , cobrando animo , responderam ao ataque disparando algumas espingardas contra os indios , que em confusão fugiram para os outeiros . Com elles foram as mulheres , arrastando o corpo do infeliz mancebo , e logo que alcançaram uma eminencia , com grandes signaes de regosijo o mutilaram , e accendendo uma fogueira ahi assaram pedaços de carne , que immediatamente comeram ! Queriam muitos portuguezes desembarcar e vingar a infeliz victima d' aquella horda de antropophagos , mas não o permittiu o capitão , como Vespucio conta na sua relação da viagem . Partindo d' este logar , de funesta memoria , seguiram a costa mais alguns gráos para o sul , encontrando populações mais dignas de com ellas se travar relações . Ahi se deteve a frota alguns dias , e tão amigável trato tiveram os navegantes com os indigenas , que tres d' elles se offereceram para os acompanhar na sua navegação costeira , que tinha por fim estudar o paiz e as suas producções . Em todos os pontos que tocavam , se mostravam os indigenas igualmente affaveis , recebendo os portuguezes da melhor fórma , trocando os productos da terra pelas mercadorias que lhes offereciam . Eram estes indios extremamente elegantes de constituição , fortes , e melhor pareceriam ainda , se não fossem os estranhos atavios de plumas que lhes ornavam a cabeça e traziam também pegados a varias partes do corpo , quasi todo pintado a côres . Nos beiços , nariz e orelhas , pendiam-lhes argolas e outros enfeites de osso . As mulheres só tinham as orelhas furadas , mas estas largamente , trazendo como que compridos brincos d' osso que lhes chegavam aos hombros . Não obstante , da observação dos seus costumes e das suas habitações , em que descobriram pedaços de carne pendurados , que de começo os portuguezes suppozeram ser de caça salgada , reconheceram que estes indios eram tambem antropophagos . E ás observações dos portuguezes contra tão horroroso alimento , responderam naturalmente : que não o havia para elles melhor , do que a carne dos inimigos mortos em combate . Exceptuando esta repugnante circumstancia , tudo no paiz concorreria para captivar os portuguezes . Vegetação esplendida , rica de fructos e sementes de varias especies , aguas limpidissimas , flores das mais bellas formas e enebriantes aromas , aves de brilhante plumagem e harmoniosas vozes , tudo se conjugava para lembrar um paraiso terrestre n ' esse abençoado torrão a que os portuguezes tinham chegado a 28 de Agosto , dando por esse motivo o nome de Santo Agostinho ao cabo que d' elle avançava para o mar . Navegaram dobrando-o , depois de longa estada n ' estas paragens , e em 4 de Outubro descobriram a embocadura do rio de S. Francisco , e no primeiro de Novembro uma formosa bahia , a que deram o nome de Todos os Santos . Depois navegaram para o sul , e successivamente descobriram o Cabo de S. Thomé em 21 de Dezembro , e no 1º do anno o porto a que chamaram Rio de Janeiro . Pelo mez adiante tinham descoberto mais o porto -- Angra dos Reis , a Ilha de S. Sebastião e o Rio de S. Vicente . Mais para o sul ainda , descobriram o porta a que denominaram de Cananea , e aqui deixaram um degredado , que por algumas dezenas de annos viveu n ' estas paragens , communicando com os navios portuguezes que ali tocavam . O espirito aventureiro , a ancia de descobrir paizes , ardia em todos os corações . Dos que mais se entregavam a estes sonhos de gloria era Diogo Alvares , e assim , constantemente incitava Vespucio a que aconselhasse o capitão-mór a devassar novos horisontes . Deixando este ultimo porto em 15 de Fevereiro de 1502 , entranharam-se no mar , para sudoeste , mais de quinhentas legoas . Em 3 de Abril uma tempestade medonha obrigou-os a cassar todas as vélas , correndo em arvore secca por alguns dias . -- As noites eram excessivamente longas nestas paragens , chegando a durar 15 horas ! O frio era rigorosissimo . -- A7 de Abril descobriram costas , ao longo das quaes navegaram , mas completamente deshabitadas . -- O temporal crescia cada vez mais , ameaçando fazer naufragar os navios nas costas desertas , a temperatura dizimára já as tripulações , os viveres começaram a escassear . -- N ' estas criticas circumstancias , tendo feito promessas de missas e romarias , deu o capitão-mór ordem para mudar de rumo , tomando o de Portugal . Segundo os calculos depois feitos pelos mais auctorisados geographos , estas horrorosas paragens , em que a armada de Gonçalo Coelho esteve prestes a perder-se , eram as costas da Georgica Austral . Seguindo na volta de Portugal , o rumo de nordeste , e das costas africanas , em 10 de Maio chegavam ao porto -- Serra Leoa . Ahi queimaram uma das caravellas , que já não podia navegar , partindo para os Açores , aonde tocavam quinze dias depois , e finalmente em 7 de Setembro davam fundo no Tejo , depois de perto de anno e meio de navegação . A longa e trabalhosa viagem que a armada de Gonçalo Coelho acabava de fazer , não foi apreciada no reino como merecia , e este facto tornou-se muito sensivel para Diogo Alvares , não só porque interessava ao seu futuro , mas porque tendo-se ligado durante ella por estreita amisade com Vespucio , instruira-se profundamente nos conhecimentos maritimos , commerciaes e politicos , em que o florentino era eminente , e conhecia o erro commettido pelo rei -- Portugal . Com effeito , n ' esse tempo , D. Manoel , como os influentes na governação do reino , tinham todas as esperanças e attenções postas no fascinador Oriente , e julgavam dos resultados das emprezas maritimas segundo as riquezas de q- ue as náos voltavam carregadas . Não alcançavam mais as suas vistas , por então , do que o resultado immediato . Já não fizera grande bulha a descoberta de Santa Cruz por Alvares Cabral , e menos valor se ligou a esta segunda viagem a essas paragens , para as quaes tres caravellas haviam partido , e só duas voltavam , sem trazerem ouro e ricas especiarias , como vinham da India , e apenas o páo brazil , que , ainda assim , pelo seu valor , d' ahi a pouco havia de fazer substituir pelo seu nome o de Santa Cruz , primeiro dado pelo descobridor áquella terra . Dias depois de Diogo Alvares ter chegado a Lisboa , achava-se com Vespucio na Ribeira das Náos , quando , no meio de grandes acclamações e regosijos , desembarcou João da Nova , que voltava da India com os navios da sua armada abarrotados de especiarias . Um amargo sorriso deslisou no semblante do florentino : -- Ahi tendes , Diogo Alvares ! como em Portugal se avaliam as navegações ! Ah ! D. Manoel receberá talvez ainda uma dura lição , como recebeu D. João , o II , que santa gloria haja , quando não confiou no que lhe assegurava Colombo ... -- Tende esperança , Americo ! Já fallei á rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor na relação da nossa viagem que estaes acabando para entregar a el- rei ... Contei-lhe como , em vosso grande saber das coisas do mar e do que concluís das observações dos astros , feitas nas vossas viagens , estaes convencido que a terra descoberta por Colombo , é parte do mundo diversa da que habitamos e da Asia , e que , penetrando mais pelos mares terriveis até aos quaes chegámos , se dará a volta a esse continente e se terá mais curto caminho para as Indias Orientaes ... -- Sim ! Iria jural- o ! E se outra vez me metter ao mar , será com navios , meios e regimento dado por el- rei para tentar tal empreza . -- Tenho fé que n ' ella vos acompanharei ... -- Sim ? Contaes embarcar novamente ? Nada me tendes dito , Diogo Alvares ! de vossos negocios particulares . Que noticias tendes da saude da vossa promettida ? -- Animadoras , graças a Deus ! D ' aqui a dias partirei para o Minho ... Só espero que tenhaes acabado o vosso relatorio para o lêr a D. Leonor , antes de ser entregue a el-rei . -- Vou para casa concluil- o . -- Passae por lá amanhã , cedo , e podereis leval- o á rainha vossa protectora ... E os dois amigos despediram-se e separaram-se , no momento em que se ouviam , já distantes , os echos dos vivas com que o povo saudava João da Nova e os capitães seus companheiros , que se dirigiam ao paço de Alcaçova , onde el-rei os esperava . N ' esse mesmo paço , d' ahi a dias , recebia D. Manoel , muito em particular , a Diogo Alvares , a fim de com elle se informar minuciosamente sobre o que Americo Vespucio sustentava no relatorio da sua viagem . -- A leitura fizera impressão ao monarcha , e mais ainda o que lhe dissera a rainha sua irmã , espirito do mais largo alcance , educado nas profundas vistas politicas d' esse grande rei de quem fôra esposa . -- Qual é a vossa opinião ? Diogo Alvares ! -- perguntava ao mancebo o rei venturoso . -- Não achaes demasiada ousadia , esta de Vespucio , assegurando que na sua proxima viagem passará ao Levante , pelo sul ? ! -- Senhor ! Novato como sou na arte da navegação , não me sinto com valor para discutir as affirmativas d' um marinheiro como Americo Vespucio ... Mas o que posso assegurar a vossa alteza , é que durante a nossa longa derrota o vi sempre estudar , dia e noite , a terra , o mar e o céo , e sustentar que , do que observava , lhe vinha a convicção de que era um " Novo Mundo " o paiz descoberto por Colombo , e não como este pensa , uma parte da Asia ... -- Sim , é o que sustenta no relatório ... -- Como tereis lido , senhor ! Vespucio diz que os auctores antigos affirmam que para lá da linha do equinocio , na direcção do sul , não ha mais terra firme , mas somente o mar Atlantico . Ora , a verdade , senhor ! é que nós encontrámos terra algumas centenas de legoas para o sul da linha , e essas terras são povoadas . -- Esse ponto é importante ... Mas , paizes e gentes barbaras ... -- Quem sabe ? senhor ! Não encontrámos , é certo , vestigios de n ' elles haver metaes preciosos . Mas tanto como se os tivessem valerão , se por elles se poder fazer a passagem para oeste , e se n ' elles se poderem refazer as armadas que , mesmo pelo Cabo da Boa Esperança , navegam para as Indias do Oriente ... D. Manoel pareceu bastante impressionado com estas palavras , e como se lhe acudisse uma idéa subita : -- Esperae -- e começou procurando algum documento no monte de papeis que tinha na sua frente . -- Deixae-me vêr o que diz João da Nova ... Um sorriso de desdem e despeito , que não escapou a el-rei , passou fugitivo no rosto de Diogo Alvares , que se conservou em silencio . Entretanto , D. Manoel lia os relatorios dos dois navegadores , cotejando um com outro . Passados momentos , com visivel satisfação , se dirigiu a Diogo Alvares , sorrindo ... -- Ah ! vós não gostaes do castelhano . Não morro tambem de amores por elle , não , como não morre Vasco da Gama , nem Bartholomeu Dias , nem D. Francisco d'Almeida , e comtudo , todos reconhecemos que João da Nova é homem que sabe mandar uma náo ... -- Quem duvída , senhor ? Mas d' ahi a saber tanto como esses illustres navegadores , ou como Americo Vespucio ... -- Pois , ouvi , Diogo Alvares : João da Nova , no relatorio d' esta sua ultima viagem , faz afirmativas que confirmam a idéa que Vespucio hoje tem , a mesma que primitivamente tinha Colombo : affirma que as especiarias que se encontram nas Indias Orientaes , e de que traz os navios carregados , não são lá creadas , mas trazidas d' outros paizes do mundo , que se encontrarão navegando em volta pelo occidente ! Recommenda que se siga a costa de Malaca , que fica já para o sul da linha do equinocio ! -- Ahi tendes , senhor ! -- exclamou Diogo Alvares , triumphante . D. Manoel , depois de reflectir por alguns instantes , ergueu-se , e dando a audiencia por terminada , despediu o mancebo com estas palavras : -- Estudarei o assumpto e avisarei os do meu conselho sobre quanto Vespucio diz na relação da sua viagem , e estae certo , Diogo Alvares , que se mandar nova armada , como propõe , e vós desejaes , haverá um navio de que ireis por capitão . N ' este momento entrava na sala a rainha||_D.Leonor D.Leonor|_D.Leonor , que , ouvindo estas palavras , commovida se dirigiu a el-rei : -- Agradeço do coração a vossa alteza o favor que se dignou conceder a Diogo Alvares ... -- E eu , senhora ! como poderei agradecer-vos e a sua alteza a protecção com que me honram ? -- e o mancebo beijou suecessivamente as mãos a D. Manoel e á rainha sua irmã ... -- Agora , Diogo Alvares , podeis já partir para o Minho , a levar esta boa nova á vossa promettida , que graças a Deus vae muito melhor , como em carta me diz D. João Telles ... -- Partirei ainda hoje , se el-rei não manda o contrario ... -- Pois não partireis , Diogo Alvares ! senão d' aqui por dias , e consolae-vos da demora , porque ireis na minha companhia ... -- Como ? senhor ! -- Vou á Galliza visitar a casa do Bemaventurado Apostolo S.||_Thiago Thiago|_Thiago , mas antes de partir quero deixar resolvida a viagem que Vespucio propõe ; e quando nos separarmos no Minho , seguireis para o solar de Santa Martha , levando comvosco o alvará da vossa capitania . Ide agora com Deus ! Sem poder encontrar palavras que traduzissem a sua alegria , e as suas grandes esperanças no futuro , Diogo Alvares ajoelhou , agradecendo ao rei , e despedindo-se do monarcha e de D. Leonor , correu a annunciar ao navegador florentino a boa nova . Não tinha de ser Algum tempo depois , D. Manoel partia de Lisboa para a sua piedosa romaria , tendo antes resolvido que se aprestasse uma nova armada para ir ás Terras de Santa Cruz , sob o commando de Gonçalo Coelho , indo Vespucio e Diogo Alvares por commandantes de dois d' esses navios , alguns dos quaes pertenciam ao estado , e outros eram de armadores , a quem fôra permittido encorporal- os na expedição . Tudo sorria a Diogo Alvares , que , ao receber o alvará da sua nomeação , tivera a honra de ser armado cavalleiro pela rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor . Apezar d' el-rei ir incognito , aforrado , como então se dizia , á sua romagem , era numeroso o sequito que o acompanhava , no qual se contava o bispo da Guarda , prior de Santa Cruz de Coimbra , a cujo mosteiro D. Manoel ia visitar a sepultura de Affonso Henriques , fundador da monarchia , D. Diogo Lobo , barão d' Alvito , D. Martinho de Castello Branco , D. Nuno Manoel , guarda- mór d' el-rei , D. António de Noronha , escrivão da puridade , e o marquez de Villa Real , além de outros cavalleiros , entre os quaes Diogo Alvares . Fez-se paragem em Coimbra , onde el-rei se demorou visitando a sepultura do primeiro e glorioso rei -- Portugal , em cujos degráos ajoelhado orou por muito tempo , distribuindo depois muitas esmolas pelos necessitados da cidade , e ordenando a construcção d' um mausoléo mais grandioso , que hoje ali se admira . Seguiu depois o monarcha a Montemór-o-Velho , e a Aveiro , e d' aqui ao Porto a visitar a sepultura de S.||_Pantalião Pantalião|_Pantalião , que mandára construir como el-rei||_D._João D.|_D._João João|_D._João II deixára ordenado no seu testamento . Achava-se a comitiva régia n ' esta cidade , da qual seguiria a Valença , passando depois á Galliza , e visitando no regresso alguns pontos do Minho , devendo D. Manoel hospedar-se nos solares d' alguns senhores , entre outros no de D. João Telles , em que assistiria ao casamento de Diogo Alvares com a sobrinha do castellão , quando toda esta risonha perspectiva se transformou no mais negro dos quadros . Estando no Porto , veio ao encontro de Diogo Alvares um postilhão , que a toda a pressa se dirigia a Lisboa a chamal- o , porque o estado da saude de D. Anna repentinamente se aggravára pela fórma mais assustadora . O moço cavalleiro teve apenas tempo de se despedir d' el-rei , que procurou animal- o com palavras de esperança : -- Ao Apostolo S.||_Thiago Thiago|_Thiago pedirei pela saude da vossa futura esposa , Diogo Alvares ! e quando regressar da Galliza , espero que terá melhorado , e que assistirei ás vossas bodas . -- Deus o queira , como vossa alteza deseja ; mas não sei que terrivel presentimento me peza no coração . E o cavalleiro despediu-se do rei , dominado pela maior anciedade ; saltou sobre o cavallo que o postilhão tinha á redea , junto á entrada da pousada real , e , seguido por este , partiu a toda a brida . Assim percorreu a distancia que separa o Porto do Alto Minho , parando só para mudar de ginete . Depois de ter atravessado o Vizella , o Cávado e o Neiva , para encurtar caminho , cortando sempre a direito , na direcção da foz da Lima , chegava uma tarde sobre as margens d' este , poucas leguas distante de Santa Manha . -- Seguiu por aquelles formosos campos tão seus conhecidos , que havia ainda pouco pareciam sorrir-lhe de longe e chamal- o para a realisação das mais risonhas esperanças da sua vida , e que por esta hora melancholica do entardecer , lhe davam uma tristeza infinita , como que a dispol- o para lugubre futuro . Com um temor , com um receio que nunca sentira entre os mais imminentes perigos das tempestades que arrostára no mar , o mancebo ia-se approximando do solar de D. João Telles . Intimamente desanimado , e como se a esperança o tivesse já abandonado , deixára de esporear o cavallo , morto de fadiga , e este , moderando o andamento , caminhava agora a passo . E o cavalleiro , entregue aos seus lugubres pensamentos , deixava-o ir assim , tendo-lhe passado a ancia de chegar , e sendo substituida por uma cruel agonia intima , como por uma dolorosa lucidez , que a distancia lhe fazia já antever um quadro fatal que o esperava . A luz crepuscular ia-se esbatendo cada vez mais , a cambiar para as trevas da noite , e já difficilmente deixava perceber as povoações , dispersas a alguns kilometros de distancia . -- Faltava apenas uma centena de passos para alcançar uma volta do caminho da qual se veria o castello , quando repentinamente veio ferir os ouvidos do cavalleiro um echo sinistro , que parecia ir-lhe até ao coração como a lamina d' um punhal ! Os sinos da capella do castello , cujo som tão bem conhecia , tinham começado a dobrar , tristemente , a finados ! Diogo Alvares , contrahindo o seu systema nervoso por uma commoção subita de terror , esticou as redeas do cavallo , que parou . Mas logo , n ' uma reacção immediata , a exaltação , traduzida na anciedade , fizeram-n* ' o atacar violentamente os flancos do pobre animal , que parecendo comprehender a angustia do cavalleiro , que lhe pedia um ultimo sacrificio , largou n ' uma carreira desesperada . Então , por aquelles meandros e voltas do caminho , o correr desordenado do pobre moço , foi o d' um cavalleiro phantastico em sinistra ballada . Cahia a noite , mas Diogo Alvares poude distinguir , fluctuando sobre o castello , a meia haste , como se fôra uma ave de máo agouro , a bandeira de D. João Telles : -- e momentos depois , no meio d' aquella confusa angustia em que galopava a toda a brida , umas luzes , movendo-se lentamente , brilhando e desapparecendo , como fogos-fatuos , que o coração lhe fazia comprehender claramente : era um cortejo funebre , que atravessava o terreiro do castello , dirigindo-se á capella . D ' ahi a pouco , á entrada d' esse terreiro , um cavallo cahia extenuado acabando de passar a ponte levadiça ; e o cavalleiro , prostrado com elle , erguia-se repentinamente , correndo como louco para a ermida , cuja porta , aberta de par cm par , deixava vêr no interior illuminado uma eça erguida . Diogo Alvares foi lançar-se , prostrado pela dôr , nos degráos do catafalco , desafogando emfim em convulso pranto . O castellão , que ajoelhado orava a pequena distancia , reconhecendo-o , ergueu-se , como para o abraçar , mas o infeliz parecia tão estranho aos que o cercavam , tão exclusivamente entregue á sua dôr , que o fidalgo , respeitando-a , não o perturbou . Assim decorreu muito tempo . Por fim , D. João Telles acercou-se d' elle , e ajoelhando ao seu lado , abraçou-o , dizendo-lhe entre soluços : -- Coragem , Diogo Alvares ! ... Respeita a vontade de Deus . O mancebo fixou-o dolorosamente , e apontando para a eça , a custo respondeu : -- Eis as bodas que me esperavam ! ... A vida acabou também para mim ! ... O patriota Decorreu mais d' um anno sobre os successos que temos narrado , e pelos fins de 1503 ainda Diogo Alvares , completamente entregue ao lucto e á dôr , se obstinava no seu proposito de nada mais querer saber do mundo , acabando os seus dias retirado na solidão do seu modestissimo e arruinado solar minhoto . Instancias de Vespucio , de D. João Telles , da rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , do proprio monarcha , tudo fôra incapaz de conseguir que o cavalleiro desistisse da renuncia á capitania da náo para que fôra nomeado ; e a armada partira nos começos de maio , emquanto Diogo Alvares , inteiramente desinteressado dos projectos de gloria sua e da patria , que sonhára , e prezo constante da saudade e da tristeza , se comprazia em percorrer os logares em que fôra tão passageiramente feliz , e que a todos os momentos lhe recordavam o ente adorado que perdera . O espirito atribulado , n ' essa revolta do pensamento e do coração , ante o facto brutalmente natural da morte , que a todos surprehende , com que ninguem se conforma de começo , e a que só o passar do tempo traz um lenitivo , na perspectiva d' um fim identico , comprazia-se-lhe na frequencia d' esses logares , em que lhe parecia achar-se em contacto com o espirito da mulher amada . Por uma tarde dos fins do anno de 1503 , Diogo Alvares regressava da sua visita diaria ao tambem solitario e acabrunhado castellão de Santa Martha , e ao jazigo da desventurada D. Anna , quando , já proximo da sua casa de Deuchriste , sentiu tropel de cavallos , e dentro em pouco viu surgir da estrada real dois cavalleiros , cujo apparecimento foi logo seguido por estas exclamações : -- Vespucio ! -- Diogo Alvares ! O afamado navegador apeou-se apressado , deixando o cavallo ao cuidado do escudeiro que o seguia , e correu para o amigo , que estreitou nos braços . -- Eis-vos de regresso , Americo Vespucio ! graças a Deus ! -- Para vos encontrar cada vez mais triste , e mais abatido , Diogo Alvares ! do que se tivesseis ido commigo dizer ao mar as vossas dôres e afogal- as nas suas ondas ... -- Fallaes como quem ama o oceano , que não morre ... É diverso amar um ente querido e velo arrebatado pela morte ... O mar , a que vós tanto quereis , encontraes-lo sempre ... Aquelles que a morte leva ... não voltam mais ... -- E a fé ? e a esperança ? de que nos servem ? cavalleiro ! A mim , é a fé em Deus , que me esclarece as ideias com o que de novo me mostra na terra e no céo , que me anima a seguir pelos mares desconhecidos , á descoberta de novos paizes ... -- Bem o sei ... -- É a esperança , que , no meio das tormentas , nos faz luctar para evitar o naufragio e chegar a salvamento . -- Convenho ... -- Naufragastes uma vez nos escolhos da vida ! ... Mas quem vos diz que não podereis ainda chegar a bom porto ? que não podereis ainda encontrar a felicidade na terra ? -- diz-m ' o o coração ... Sei que isso é impossivel ... -- Não ha impossiveis na vossa idade , mancebo ! -- replicou o florentino , com o accento de auctoridade que lhe davam os seus cabellos , que iam já encanecendo ... -- Eis-nos chegados ao meu humilde solar -- disse Diogo Alvares , sorrindo tristemente . -- Desculpareis , Americo Vespucio ! a pobre hospedagem que vou dar-vos . -- Bem quizera , apezar d' isso , prolongal-a , querido amigo ! mas venho apenas para vos dizer algumas coisas importantes , e de madrugada partirei ... -- Mas é impossivel ! ... -- Pelo contrario ... Não póde deixar de ser ... Vou apressadamente a caminho de Hespanha ! -- De Hespanha ? ! Entravam n ' este momento em uma sala terrea do arruinado castello de Deuchriste . Na lareira ardiam já os troncos de carvalho , a combater o frio de dezembro , e á luz da fogueira , o navegador viu o espanto que se pintára no rosto do seu amigo . Desviou involuntariamente os olhos dos seus , e , um tanto confuso , como quem lhe custava a confissão , explicou : -- Deixo o serviço de Portugal e volto para o de Fernando e Isabel de Castella ... Diogo Alvares , que , com um gesto , convidára o florentino a tomar assento em um escabello , junto d' uma grande mesa , e que o ia imitar , interrompeu o movimento , e indireitando a acabrunhada figura , ao passo que o rosto se lhe animava , vibrou rijo golpe com o punho cerrado sobre a mesa , que gemeu : -- É impossivel ! Americo Vespucio ! Voltardes ao serviço de Castella ? ! -- Ah ! Graças a Deus ! -- exclamou satisfeito Vespucio . -- No vosso coração arde ainda o amor da patria , sob o gelo amontoado pela dôr ... Quando me tiverdes ouvido , abandonareis este retiro , e correreis á côrte , a servir Portugal , como eu o quizera servir , mas não posso , porque , para os vossos compatriotas , sou apenas o piloto florentino ... o extrangeiro ... Diogo Alvares , concentrado , sentou-se , e attento replicou : -- Escuto-vos , Americo Vespucio ... Fallae ! -- Para que bem avalieis o alcance das prevenções que vos quero fazer , no interesse d' este paiz , é preciso que vos relate a viagem em que não quizestes ir com+nós . -- Alguma coisa tenho ouvido : fostes de Lisboa a Cabo Verde , e d' ahi navegastes para o sul , buscando terra na Serra Leoa ... -- Convinha-me isso para mais facilmente dobrar o Cabo de Santo Agostinho ... e ao capitão-mór , para ali mostrar ufano a sua armada de seis navios ... -- Não perdeis ensejo de criticar Gonçalo Coelho ... -- Com razão sempre . -- Assim , queria demorar-se na Serra Leoa , mas não pudemos aguentar-nos , e seguimos para o sudoeste ; passámos a linha em 10 de Agosto , e tendo navegado mais de quinhentas leguas para o sul , vimos distinctamente uma ilha no horisonte . E com o tempo , a capitaina bateu , e naufragou em umas rochas , perto d' ella . -- Salvaram-se , creio ? -- Sim ! Só o navio se perdeu . -- Fui mandado a buscar um porto na ilha , e approximei-me até quatro leguas de distancia d' ella , mas o resto da armada tinha então desapparecido . -- Só ao cabo de oito dias tornei a avistar uma caravella , para a qual me dirigi , e voltámos juntos á ilha , e depois de termos feito aguada e lenha , como o resto da frota não apparecia , navegámos para a Bahia de Todos os Santos , onde nos deviamos encontrar no caso de nos termos separado . -- Que tempo gastastes ? -- Dezesete dias ! Na Bahia nos demorámos dois mezes e quatro dias , e como os demais não apparecessem , julgámol- os perdidos , e continuámos sós a explorar a costa para o sul , como era nosso fim . -- Fostes mais além do que na passada viagem ? -- Sim . Communicámos com todos os portos já conhecidos , e , mais para o sul , chegámos a um cabo que dobrámos , apesar do frio que n ' aquellas regiões fazia , e encontrámos um porto , em que nos demorámos cinco mezes ... -- Cinco mezes ? ! -- Para carregarmos os navios com uma rica madeira que ali abunda , avermelhada , que serve para fazer tinta , e a que os naturaes chamam brasil . Tão rico nos pareceu este genero , que entendemos conveniente deixar ahi fundada uma feitoria , como as que se vão estabelecendo nas Indias do Oriente , -- e assim construimos uma pequena fortaleza , que armámos com doze peças tiradas dos navios , e lá deixámos vinte e quatro homens de guarnição ... -- Grande serviço fizestes , na verdade ! ... -- Não pensam como vós na côrte -- replicou Vespucio , sorrindo irónica e tristemente . -- Logo o percebemos , quando a Lisboa chegámos , depois d' uma viagem de setenta e sete dias ... -- Mas o que se passa ? -- Ouvi , agora que estaes ao facto da nossa viagem ! -- Dizei ... -- Não me foi possivel conseguir , como era meu designio , alcançar o caminho das Indias do Oriente dando a volta pelo mar do sul . -- Entendo que esta gloria pertenceria de direito a Portugal , uma vez que mais utilisaria com isso do que Castella , por já possuir os dominios descobertos por Vasco da Gama . Mas na côrte de Lisboa não se cura d' isso , sem pensarem que a divisão do Oceano feita em 1493 pelo papa||_Alexandre_VI Alexandre|_Alexandre_VI VI|_Alexandre_VI , dando a Castella a posse das descobertas para o sul da linha estabelecida na bulla , incita Fernando e Isabel a estabelecerem relações e dominio nas paragens em que , aliaz , os portuguezes foram os primeiros a navegar . Eis a razão por que volto ao serviço de Castella . Em primeiro logar , o empenho de realisar esse sonho grandioso de Colombo e hoje meu ; depois , os meus proprios interesses : Vou para velho e estou pobre , apesar de ter arriscado tanto a vida no mar ... -- Estaes então desligado de obrigações com el-rei||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel ? -- Sim ! E só a vós , como amigo , falo , leal e francamente ... Amanhã , no mar , seremos inimigos quasi : a minha obrigação será pugnar pelos interesses de Castella ; a vossa , pelos de Portugal ... -- Decerto -- Quiz explicar-vos o meu procedimento ... Que ha um caminho para o Oriente , pelo sul , é para mim ponto de fé ... Gloria e proveito terá o reino que o descobrir ... Eu vou tental- o por Castella ... Previno-vos lealmente , já que na côrte me não escutaram ; se tendes egual fé , procurae ser melhor ouvido do que eu , fazendo-o tentar pela vossa patria ... -- Sim ! tenho essa fé , e tental- o-hei , -- exclamou Diogo Alvares , erguendo-se , como inspirado , e dirigindo-se a uma janella , que , aberta , deixava passar a claridade suave d' um luar de dezembro . -- Do coração desejo que sejaes vós o vencedor ! -- Não sei ! Mas ao menos , morrerei enpenhando-me n ' isso ! Vêdes aquella estrella ? Vespucio ! -- disse Diogo Alvares , fazendo approximar o navegador da janella -- é a estrella do meu destino , que brilha pallidamente ao pé da lua radiante ! mostrou-m ' a aquella que perdi , na vespera de deixar o Tejo ! É a imagem da minha existencia , em que a felicidade só fugitivamente brilhou ! Não deixo porém de a vêr todas as noites , como se fora o espirito da minha desditosa Anna , a dizer-me que o unico amor capaz de tomar o logar do seu , é o amor da patria ... -- Ah ! eis-vos , emfim ! resurgido para a vida ! Quando o dia vinha rompendo , sahia do pequeno solar de Deuchriste o navegador florentino para continuar a sua jornada . Depois de ter caminhado um quarto de legua , parou em um ponto cm que a estrada se dividia , e chamando o escudeiro , disse-lhe : -- Voltae por esse caminho á côrte , onde vos espera a rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , e dizei a sua alteza que julgo ter desempenhado a missão que me deu , a seu contento ... O escudeiro , como se já esperasse tal mensagem , saudou-o : -- Que Deus vos guie a Castella , e nas futuras navegações da vossa vida ... -- Fortuna e venturas vos desejo tambem , amigo ! E os dois cavalleiros separaram-se , seguindo Americo Vespucio para o norte e o escudeiro para o sul . O naufragio Decorreu ainda algum tempo , em que no espirito de Diogo Alvares a irresolução predominou , sob o aspecto d' uma verdadeira lucta travada entre os seus sentimentos de portuguez , o ardor natural da juventude , e os do apaixonado , a quem , por uns certos phenomenos da vida , a desventura trouxera prematuramente a reflexão da idade provecta . Que ia tentar ? que ia fazer ? perguntava-lhe esta segunda individualidade , em que a sua entidade se desdobrava . Se todas as ambições de fortuna e gloria tinham sido intimamente ligadas no seu pensamento á ideia de dourar uma existencia partilhada com aquella que perdera , que mais podia agora querer , se não tinha ambições pessoaes , do que passar o resto da vida na solidão dos logares que essa creatura habitára , visitando todos os dias a sua sepultura , simulando , tanto quanto lhe era possivel , uma união de todos os momentos , por via do pensamento , com o seu espirito , e , materialmente , não se arredando dos restos que d' esse querido ser ainda existiam na terra ? Mas depois d' isto , acordavam os sentimentos do portuguez e do cavalleiro . E estes diziam-lhe : que as leis da cavallaria , que então representava socialmente a fórma pratica da elevação dos sentimentos , consideravam fraco e pusilanime aquelle a quem a dôr e o lucto fazia embainhar a espada e quebrar o escudo , e que as lanças mais valiosas , quando a morte da sua dama as impedia de se romperem em sua honra , passavam a romper-se exclusivamente pela patria , buscando a morte no desesperar secreto da vida e na ancia mystica da existencia futura . N ' estas hesitações se achava o solitario de Deuchriste , quando o veio decidir uma carta da rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , que no seu espirito fez a maior impressão . Nunca na sua vida alguem lhe escrevera tocando mais profundamente as cordas do seu dolorido coração . -- A mãe , a viuva , e a rainha , tinham conjugado em uma só as suas differentes eloquencias , despertando em Diogo Alvares os sentimentos de orphão , de prematuro viuvo , e de patriota . Tão profunda foi a impressão , que todas as demais subjugou , e n ' uma resolução de suprema força de vontade , arrancou-se d' aquelles logares tão queridos ao seu padecer , animado pela convicção d' um sacrificio , sem duvida premiado em uma existencia futura . Quando chegou a Lisboa , veio deparar com um espectaculo que mais ainda o confirmou n ' este pensamento ! Todo o paiz soffria ! Desde el-rei até ao mais humilde vassallo , cada um , na sua esphera , se sacrificava ás duras condições do momento ! A fome estendia por todo o Portugal as suas negras azas , aterrando os mais fortes com a perspectiva do lugubre cortejo da peste e da morte , que ordinariamente a seguiam . E todos se sacrificavam , desde o monarcha , que mais uma vez tinha de abandonar a realisação do seu sonho de passar ás terras d' Africa , a combater os mouros , para mandar antes navios e dinheiro por toda a Europa , a obter pão para os esfomeados , até ao humilde camponez , que vira a ceára perdida de um dia para o outro . Com esse espirito altamente caritativo que distinguia a fundadora do hospital das Caldas da Rainha , da misericordia , do convento da Madre de Deus , e de tantas outras instituições de caridade , com a agudeza de vistas e a virilidade de animo com que acompanhára o tormentoso reinado do Principe Perfeito , e por vezes , nos lances mais difficeis , ajudou o rei seu irmão a governar o leme da náo do estado , a rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor entregava-se á execução de urgentes e caridosos expedientes para suavisar a sorte dos esfomeados , quando Diogo Alvares se lhe apresentou . -- Lembrae-vos , infeliz cavalleiro ! quantos choram n ' este momento , como vós , a perda de entes queridos , arrebatados pela morte horrorosa da fome , e antes de nos occuparmos dos vossos soffrimentos , ajudae-me a minorar os seus ... Fazei de meu secretario . -- A's vossas ordens , senhora ! -- respondeu Diogo Alvares , a ajoelhar , para escrever o que D. Leonor lhe dictasse , como era do estylo fazerem os secretarios do rei , no despacho . -- Deixemos o ceremonial ; assentae-vos n ' esse escabello , que melhor ficareis , pois que bastantes ordens tenho a dictar-vos . E por algumas horas , o improvisado secretario da viuva de D. João II , escreveu documentos da ordem d' esses que andam publicados , em que a rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , dirigindo-se ás corporações municipaes e outras do paiz , sobre as quaes tinha enorme prestigio , bem como aos administradores das suas propriedades , a todos pedia auxilios , ou dava ordens , com o caridoso fim de soccorrer as populações a braços com a fome . Terminada a correspondencia , D. Leonor perguntou de subito a Diogo Alvares : -- Não tendes curiosidade em conhecer as Indias do Oriente ? Um pouco surprehendido , o mancebo replicou : -- Senhora ! se tornasse a embarcar , preferia antes volver de novo á Terra de Santa Cruz ... -- É pena ! Serieis outra vez capitão d' um navio ... -- Pertencente ás armadas de Alvares Cabral e de Vicente Sodré , que para ali vão partir ? -- Enganaes-vos , cavalleiro ! Guardae para vós só , que é ainda segredo de estado , o que vou dizer-vos : uma só armada partirá em breve para a India , sob o commando de D. Vasco da Gama ... -- Ah ! triumpha pois o sentir geral do povo ... -- Assim é . Pedro Alvares Cabral pediu esta manhã a el-rei meu irmão , que o dispensasse da capitania-mór . -- Mas , vinde commigo -- concluiu erguendo-se , -- são as horas do despacho real , e preciso falar a el-rei antes ... A rainha viuva atravessou , seguida pelo mancebo , a ala do paço da Alcaçova , em que se alojava provisoriamente , até áquella cm que ficavam os aposentos de D. Manoel . Quando passava em uma grande sala de espera , cheia de cortezãos , que a meia voz discutiam o acontecimento que a todos preoccupava , o commando da armada a partir , D. Leonor disse a meia voz para Diogo Alvares , indicando-lhe um cavalleiro de imponente figura , que vinha em sentido inverso : -- Eis o descobridor da India ! -- e demorou o passo , de modo a encontrar-se com elle . O almirante do mar das Indias comprehendeu , porventura , a sua intenção , pois que em vez de se limitar a parar , inclinando-se á passagem da rainha , como faziam os demaís fidalgos , dirigiu-se-lhe e , ajoelhando , beijou-lhe a mão . Todas as attenções se fixaram n ' elles , e com accento que fosse ouvido , D. Leonor disse-lhe : -- Guarde-vos Deus , sr. almirante ! Se eu governasse , vós irieis de novo á India , porque no mar vos fez Deus tanta mercê ... -- Depois das mercês de Deus , a maior que tenho recebido são as palavras de vossa alteza ... D. Leonor seguiu para os aposentos do monarcha , mas todos tiveram aquella phrase pela confirmação do boato , que desde a vespera corria com insistencia , de que o descobridor do Brazil , desgostado por el-rei ter repartido em duas divisões a armada , nomeando Vicente Sodré , parente de D. Vasco da Gama , capitão-mór d' uma , se exoneraria , e que o almirante seria então escolhido para commandar em chefe todos os navios . Depois de se demorar algum tempo a sós com el-rei , D. Leonor assomou á porta d' uma pequena sala contigua , chamando Diogo Alvares . -- A nomeação do almirante vae ser conhecida . Levará as dez náos que se aprestam , e Vicente Sodré irá sob as suas ordens . Mais cinco náos se lhe irão juntar brevemente , sob o commando de Estevão da Gama . Quereis ser um dos seus capitães ? Vae castigar o Samorim das offensas que fez a Alvares Cabral ... Que melhor occasião podereis ter para illustrar o vosso nome ? -- Senhora , é n ' isso que menos ponho a minha ambição . Servir a pátria obscuramente , com a dedicação e a modestia d' um missionario , é a única fórma que posso acceitar ... Na vida , tudo que hoje ambiciono , é não a passar na ociosidade ; mas os sonhos de gloria , esses acabaram por uma vez ... -- Quem sabe ? mancebo ! Não façaes taes protestos , que são incompativeis com a vossa edade ... Sois homem de nobre coração , e por muito que tenhaes soffrido , haveis de obedecer ás leis da natureza ... Perdestes uma grande affeição , é certo , a de D. Anna ; mas é mais do que natural que outra encontreis digna de a substituir ... -- Perdão , senhora , mas vossa alteza engana-se ... Tenho isso por impossivel ... -- Não digaes tal , Diogo Alvares ! ... Por muito que vos custe a perda que soffrestes , acreditae nas palavras de quem é mestra nas dores d' esta vida : a vossa é das que o tempo consegue curar ... E quem sabe ? talvez um dia , quando voltardes , eu vos apresente um remedio digno de vós e d' aquella que hoje choraes , -- concluiu a rainha sorrindo com intenção ... -- Que dizeis , senhora ? ! -- exclamou Diogo Alvares , levemente desgostado ... -- Está bem , não vos agasteis com quem tanto se interessa por vós e só a vossa felicidade deseja ... -- Perdoae-me , senhora ... -- Vejo que é cedo ainda para vos falar d' uma parte dos meus planos que vos dizem respeito : Occupemos- nos do que já se póde resolver ... Se não ides á India por capitão d' uma náo , o que pensaes fazer ? -- Partir no primeiro navio d' armador para a Terra de Santa Cruz ... -- Em um navio d' armador ? vós ! um cavalleiro ! -- Senhora ! não é batalhando que ambiciono servir a patria ... Se o quizesse fazer , partiria para a India , como me aconselhaes , e que se trata de conquistar ... Em Santa Cruz , outra é a missão que Portugal tem a cumprir . As gentes são naturalmente pacificas , e mais se obterá d' ellas pela doçura do que pela força . -- Por muito que deslumbrem os governantes do reino as phantasticas riquezas das Indias do Oriente , acreditae , senhora ! que todo aquelle que , como eu , teve occasião de vêr esse admiravel paraiso terrestre da Terra de Santa Cruz , não póde acreditar que no mundo haja torrão mais predestinado por Deus , para o homem d' elle tirar a riqueza , não por via da guerra , mas pelo trabalho aturado e pacifico de todos os dias , na labutação dos campos ... Com quanto la não se tenha encontrado o ouro , que tenta e cega os que vão ás Indias Orientaes , a riqueza e a fortuna estão ali patentes em todos os mil variados productos da terra ... -- Acredito , Diogo Alvares ... Já se averiguou mesmo , que o páo brazil não é menos valioso para o trafico mercantil do que as ricas especiarias do Oriente ... -- E muito d' ellas , senhora , lá se encontram . Acredite vossa alteza , um dia chegará em que se reconheça que muitas são nascidas n ' essa outra parte do mundo , a que , como pensava Colombo , e hoje sustenta Vespucio , e como elle muitos navegadores afamados , pertence a Terra de Santa Cruz . -- Praza -- Deus que vos não enganeis , que da confirmação d' essas supposições só virá mais proveito e mais gloria a Portugal ... Tambem os Corte Reaes assim pensam , e não só que pelo sul de Santa Cruz se encontrará caminho para o Oriente , mas que para o norte da Europa ha ainda paizes a descobrir ... Porque não ides com elles ? seria viagem de menos demora ... -- Perdôe vossa alteza , mas justamente pretendo sahir de Portugal não para viagem de ida e volta , mas para me demorar , fixando-me no paiz descoberto por Alvares Cabral ... Com as informações que lá obtiver , auxiliarei os que tentarem a navegação pelo sul para o Levante ! -- Que dizeis ? Diogo Alvares ! -- exclamou D. Leonor com visivel angustia . -- Quereis desterrar-vos ? E os vossos amigos ? O vosso Minho ? pensaes abandonal- os para sempre ? ... -- Para sempre não , senhora ! mas por muito tempo ... Asseguro , porém , a vossa alteza , como á minha segunda mãe , que , embora distante , não me lembrarei menos dos amigos e da patria . Pouco tempo depois , partia a grande armada que , sob o commando do almirante do mar da India , se dirigia ao Oriente , a castigar o Samorim , rei -- Calicut . Foi solemne e imponente a despedida que el-rei e a côrte fizeram no Restello a D. Vasco da Gama , mais significativa ainda do que a anterior , muito imponente , de Pedro Alvares Cabral , e do que a primeira para a viagem da descoberta . Pela tarde , quando o bulicio acabára na margem do rio , e o Restello ficara deserto da multidão de povo de Lisboa que viera assistir á partida da grande frota , a porta da pequena ermida do Restello , já fechada , abriu-se novamente , e um frade da ordem de S.||_Jeronymo_collocou- Jeronymo|_Jeronymo_collocou- collocou-|_Jeronymo_collocou- se no limiar , como se esperasse alguem . No rio , não muito distante da terra , viera fundear , havia instantes , uma náo de armador , tendo largado com pouco panno do ancoradouro de Lisboa , em frente da casa da Mina . De bordo , largou um batel , que veio encalhar na praia defronte da capella de Santa Maria de Bethlem , e Diogo Alvares , saltando em terra , encaminhou-se para o monge ... -- Boas tardes , frei||_Marcos Marcos|_Marcos ! -- Seja Deus comvosco , sr.||_Diogo_Alvares Diogo|_Diogo_Alvares Alvares|_Diogo_Alvares ! ... -- A que horas esperaes sua alteza ? -- Não póde tardar ... Vac ~ e para as tres , que foi a que marcou . -- Justamente ahi vem uma liteira no caminho de Lisboa ... Será a rainha ? ... Até já . -- E o cavalleiro , afastando-se da porta da ermida , foi ao encontro da pequena comitiva , que se approximava do lado da cidade . Compunha-se ella da liteira , conduzida por dois carregadores , seguida por um escudeiro , e atraz d' este outros dois carregadores , para revezarem aquelles . Quando Diogo Alvares chegou a alguns passos de distancia , as cortinas foram corridas , e D. Leonor ordenou aos portadores que parassem . -- Aguardae-me aqui . -- E dirigindo-se ao mancebo : -- Vejo que estaes resolvido , Diogo Alvares , a levar por deante o vosso proposito , pois que me esperaes para vos dizer adeus ... -- Assim é , senhora ! Venho de bordo da náo do armador , que ainda hoje largará para Santa Cruz , onde fui dispôr o meu alojamento . -- E nem mesmo a minha ultima proposta é capaz de vos demover ? Tendes o coração morto para o amor ? -- Como querieis que me ligasse a essa das vossas damas em cuja affeição por mim me fallastes , se me sinto preso da saudosa recordação d' aquella que perdi ? Seria enganar , prometter o que não posso cumprir ... -- Mas , ao menos , não faltareis ao que hontem vos disse , não é verdade ? Dentro em tres annos voltareis a Lisboa a vêr-me ... -- Juro-o a vossa alteza ... Só o não farei , se antes a morte me levar , ou caso de força maior a minha vontade tolher ... O meu fim é estabelecer-me em um bom porto -- Santa Cruz , crear ali uma feitoria , chamando para o meu lado alguns dos degredados que Gonçalo Coelho deixou em varios pontos na sua ultima viagem , dispôr os naturaes a bem receberem os portuguezes que ali aportarem , e cultivar aquelle abençoado paiz , tirando do seu solo as riquezas que encerra , e mandando-as para Portugal ... -- Pois bem , antevendo como era inabalavel a vossa resolução , mancebo ! fiz o possivel para vos ajudar n ' esse difficil e patriotico emprehendimento . A bordo da náo , em que ides partir , encontrareis alguns dos indios que as armadas d' el-rei meu irmão teem trazido de Santa Cruz , e que sob as vossas ordens para ali voltam . Já entendem a nossa lingua , já conhecem e apreciam os nossos costumes , respeitam o nosso nome ... Occupae-os na vossa empreza ; vos-hão as relações com os seus irmãos , entre os quaes vos ides estabelecer ... Um especialmente vos recommendo ... Carijó se chama . É christão , e de boa indole ... se-vos-ha . -- Ah ! quanto vos devo , senhora ! Bem razão tenho para vêr em vós a minha segunda mãe ... -- Sim , Diogo Alvares ! dizeis bem ... E a minha sorte n ' este mundo é esta : serem-me arrebatados successivamente os que tenho por filhos ... -- Não vos afflijaes , senhora ! -- Deus assim o quer ... Cumpra-se a sua vontade . Entremos , -- concluiu commovida , indicando a porta da capella a que chegavam , -- a pedir-lhe que , ao menos , a separação não seja para sempre ... Diogo Alvares não teve animo para responder , tão commovida estava a rainha , e tão negros pensamentos eram os seus , despertados por estas palavras . D. Leonor tomou a agua benta que frei||_Marcos Marcos|_Marcos , de joelhos , lhe apresentou , e com o hissope aspergiu o cavalleiro . Depois , tomando-o pela mão , dirigiu-se para o altar da Virgem||_de|_Bethlem de||_de|_Bethlem Bethlem|_de|_Bethlem , e , ajoelhando os dois , oraram por bastante tempo ante essa imagem de tanta devoção para os homens do mar , e á qual el-rei||_D._Manoel D.|_D._Manoel Manoel|_D._Manoel fizera o voto de erguer um mosteiro em agradecimento da descoberta da India . A luz do sol , fugindo e empallidecendo atravez das pequenas ogivas da pobre ermida , chamou a rainha á realidade da vida : -- Ide , Diogo Alvares ! O navio só por vós espera ... -- Já pedimos bastante a Deus , que nos escutará ... -- Parti , que ainda aqui ficarei ... O cavalleiro , mesmo ajoelhado como estava , cobriu de beijos as mãos que ella lhe estendia , dizendo a custo , e esforçando-se por reter as lagrimas prestes a saltarem-lhe dos olhos : -- Deus vos animará , senhora ! ... Lançae- me a vossa benção ... D. Leonor assim fez , e o mancebo , recebendo na mais recolhida e respeitosa attitude a honra que pedira , ia partir , quando a rainha , erguendo-se de subito , como obedecendo a uma força superior , lhe disse : -- Quero abraçar-te , Diogo Alvares ! porque me peza não ter abraçado o meu Affonso na fatal sahida para a Ribeira de Santarem . Dir-se-hia que não havia ali rainha e vassallo , mas sim mãe e filho , que se uniam n ' um apertado abraço de custosa despedida . -- Vae agora na guarda de Deus e da Virgem . O cavalleiro partiu , e a rainha ajoelhou novamente nos degráos do altar ... D. Leonor orou por muito tempo , e só de vez em quando tirava os olhos da imagem da Virgem||_de|_Bethlem de||_de|_Bethlem Bethlem|_de|_Bethlem , para voltar a cabeça a vêr se ainda não partira a náo , fundeada justamente defronte da ermida . Por fim , em uma d' estas occasiões , viu o navio já coberto de panno , com o ferro suspenso , que principiava a navegar . -- Guiae- o sobre as aguas do mar , Santa Maria de Bethlem ! e feita esta ultima préce , D. Leonor ergueu-se , e sahindo da capella , veio até á beira-mar , como attrahida pelas saudações de despedida , que de bordo lhe fazia Diogo Alvares ... A náo distanciando-se interrompeu esta correspondencia , e ainda a rainha se demorava fixando os olhos no navio , que se afastava . -- As margens do Tejo ! As margens do Tejo ! -- exclamou . -- Que esta despedida do Restello , não seja para sempre ... como a da Ribeira de Santarem ! Dir-se-hia que o coração de D. Leonor antevia o horisonte carregado que esperava o cavalleiro . Poucos foram os dias de bonança na derrota da náo para a Terra de Santa Cruz . Durante ella , não perdera fogo Alvares um só ensejo de fazer que se lhe affeiçoasse o indio que a rainha lhe dera por cicerone , instruindo-se em conversação com elle , nos costumes das gentes entre as quaes ia estabelecer-se . Pertencia esse indigena á tribu dos goyanazes , felicitando-se o mancebo quando reconheceu não ser de antropophagos . Carijó se chamava , como dissera a rainha , que fizera preceder este nome pelo de Manoel , com o sacramento do baptismo que em Lisboa recebera . -- Senhor ! -- protestava Carijó ao mancebo , -- haveis de gostar dos meus irmãos , que são affeiçoados aos portuguezes , pacificos e leaes . Vivem em cavernas , e não em bonitas casas como as de Lisboa , mas não comem gente , e só da caça e da pesca se sustentam . Muito podereis ensinar-lhes . -- Sim ? Pois estranho que , como já me disseste , Carijó ! se não dêem a cultivar a terra e a criar animaes , vivendo em um paiz tão dotado pela natureza ! ... -- Tambem agora percebo quantas riquezas deixam de aproveitar , e aprendi-o vendo os campos -- Portugal , de que tiraes tantos productos ... Se attenderem aos conselhos que por minha boca lhes dareis , emquanto não comprehenderdes a nossa lingua , poderãofazer do nosso paiz um dos mais ricos de Santa Cruz ! Assim , em praticas d' esta ordem , iam passando os longos dias da navegação . Depois de tocar na Serra Leoa , a náo seguiu directamente com rumo á Bahia de Todos os Santos . Na vespera do dia em que , segundo os calculos do capitão , se devia avistar a costa , levantou-se um grande temporal . O tempo foi carregando cada vez mais , tornando-se medonho com o fuzilar dos raios , o estampido dos trovões , e a escuridão tenebrosa do horisonte . Apezar de tomadas todas as precauções , e de se ter caçado todo o panno , a náo corria em arvore secca , com velocidade extraordinaria , aterrando a tripulação com o perigo imminente de irem dar á costa . Era impossivel fazer governar o navio , contra a força das ondas e do vento que o impelliam , segundo os calculos dos pilotos , na direcção da terra , que não podia estar longe . A noite desceu , percebendo-se isso pelo tempo decorrido , e não porque tivesse havido sensivel transicção para trevas mais carregadas . Alta noite , distinguiram-se de bordo uns fogos longinquos , havendo um momento em que a esperança renasceu nos corações , reconhecendo-se que o navio corria ao longo da costa , e a tripulação entoou em côro o Bemdito , dando graças ao Altissimo . N ' este momento , Carijó approximou-se de Diogo Alvares , e disse-lhe em voz baixa : -- O perigo é maior do que nunca , senhor ! Se continuamos a correr n ' esta direcção , iremos bater nos recifes de Mairagiquig , os quaes não pódem estar longe ... -- Porque julgas isso ? -- Porque essas fogueiras só as accendem durante a tempestade os tamoyos , que lhes ficam proximos . Diogo Alvares , conservando a maior serenidade de espirito , foi dar em segredo o aviso ao capitão , e este mandou as possiveis manobras para afastar o navio d' aquelle perigoso rumo . Houve ainda algumas horas em que a esperança de salvamento mais animou todos , porque o vento mudou um pouco e o navio obedeceu ao leme , aproando para o mar . Mas , subitamente , recomeçou a soprar violentamente do nefasto quadrante que impellia os infelizes a morte certa , ao passo que ia amanhecendo , e , como para maior crueldade da sorte , bastante claro , deixando perceber no horisonte os rochedos que precediam a costa ! No auge da afflicção , fazendo promessas e dirigindo préces ao céo , quantos homens o leme admittia empregavam esforços inuteis para desviar a náo do abysmo a que corria ... Subitamente , esta mesma esperança desappareceu : com um ranger sinistro , o leme , assim forçado , quebrou-se , e a náo , livre já d' aquella fraca peia , encaminhou-se para a voragem , com uma impetuosidade medonha . No ar , retumbavam os lamentos , as préces , as maldições , tudo confundido na confusão d' um terror louco . E já se distinguiam claramente , a poucas milhas , emergindo das aguas , entre o cavado das ondas , os negros rochedos proximos da costa , sobre os quaes o navio se ia despedaçar ... Pretendendo ainda encontrar uma taboa de salvação , a voz do capitão retumbou , com uma ultima ordem : -- Arriar os bateis ! Então , confusamente , n ' um turbilhão tumultuoso de competencia , a tripulação arrojou se aos barcos , demorando , em vez de abreviar , o seu lançamento á agua ... Emfim , organisou-se este derradeiro expediente , e foi já empunhando machados , e ameaçando de morte os que não respeitassem as suas ordens , que o capitão e o piloto conseguiram fazer-se escutar para determinar a embarque : -- Vós em primeiro logar , senhor||_Diogo_Alvares Diogo|_Diogo_Alvares Alvares|_Diogo_Alvares ! -- disse o capitão ; -- vindes a bordo como passageiro ... -- Enganaes-vos , capitão ! serei o ultimo a embarcar ; e não percaes tempo em insistencias inuteis , que a minha resolução é inabalavel ... -- Mas é impossivel ! ... -- Respeitae a minha vontade ! De contrario , irei buscar a patente do rei , com que venho n ' esta náo de armador , e que em certos casos me dá auctoridade superior á vossa ... -- Basta , senhor ! Sois um valente mancebo , e honro-me em vos obedecer . Embarquem os mais velhos ! -- ordenou o capitão ... A difficil passagem para os bateis , no meio d' aquelle vertiginoso correr do navio , fez-se entretanto depressa , tal era a ancia dos desgraçados em o abandonarem , na certeza de que em breve se despedaçaria de encontro ás rochas . Um só batel faltava para receber os ultimos foragidos , quando em torno do navio começaram a surgir , nas occasiões em que as vagas mais fundo cavavam , negras pontas de rocha . A costa , e os grandes rochedos , estavam apenas a algumas centenas de braças ... -- Depressa ! Depressa ! -- exclamou o capitão -- estamos já nos recifes ! O navio vae bater ! A ordem cumpriu-se , e só ficaram no convez da náo , já desprovida d' amurada , que os mastros e vergas cahindo tinham arrazado , o capitão , Diogo Alvares e Carijó , que não se afastava do lado do cavalleiro . -- Embarcae ! Ordenou o mancebo ao capitão ... -- Quereis deshonrar-me ? -- interrogou este . -- O capitão deve ser o ultimo a abandonar o navio ! -- Em nome d' el-rei assumo o commando -- replicou Diogo Alvares -- abrindo o justilho e mostrando o alvará . -- Obedeço ! --