JARDIM DE+O POVO BIBLIOTHECA ECONOMICA TEMPESTADES DE+O CORAÇÃO ROMANCE CONTEMPORÂNEO POR J. B. De Mattos MOREIRA VOLUME I LISBOA TYPOGRAPHIA PORTUGUEZA 35 , Travessa da Queimada, 35 1868 PARTE I Flores e espinhos A festa As raparigas da aldeia de ... appareciam , risonhas e alegres , ás suas janellas , na manhã de vinte e tres de junho , vespera do dia do festejado S. João . Os corações das folgadas jovens palpitavam jubilosamente , ao lembrarem-se das horas venturosas que , em dia tão festivo , deviam passar , entregando-se aos prazeres da musica , da dansa , e , sobre tudo , ao do amor . Amor ! palavra que tanto encerras ! que tanto poder tens ! Umas vezes , guias-nos pelo caminho da felicidade , outras , indicas-nos** o trilho , apenas , e deixas-nos** perder no deserto arido das paixões ! O amor é similhante ao mar , que a uns enche de riquezas fabulosas , e a outros cava a sepultura ! O dia de que fallamos passou-se phantasiando folgares , e desenrolando esperanças , por consequencia , alegre . Não será a esperança uma alegria ? O crepusculo da tarde aproximava-se -- o sol ia esconder-se no horisonte . Via-se descer pelos torcicollos da serra o lavrador afanoso , que voltava á choupana humilde , cheio de fadiga , para confortar o estomago e descansar o corpo . O descahir da tarde na aldeia é um quadro magnifico ! Que sentimento ! que poesia ! Ao longo da encosta vê-se caminhar , qual caravana de peregrinos , as mansas ovelhinhas , tão mansas que uma creança basta para dominar e guiar um rebanho enorme . Os guizos e pequenas campainhas , que pendem dos pescoços dos brandos animaesinhos , formam uma orchestra tão estranha , que , senão nos delicia o tympano , encanta-nos o coração . Mais além , na quebrada da serra , divisa-se a ceifeira varonil , que avansa lentamente , na frente de dois soberbos boisinhos . O chiar monotono do carro que , ao perto , nos causa verdadeiro desprazer , quando se ouve em distancia tem um não sei que de agradavel , que diz optimamente com aquella solidão retoucada e verdejante . Como tudo é suave e melancolico ! Como o coração nos diz saudade ! Como o mundo se apouca , e a phantasia se alarga ! Atemos o fio da narração . As creancitas da aldeia de que fallamos soltavam á brisa o seu lêdo sussurrar , verdadeiros passarinhos na primavera . Cada uma vergava sob o peso d' um bom braçado de lenha , que ao matto haviam ido cortar , para fazerem a tão desejada fogueira ao santo pastor . Alegres e contentes , pulavam , embevecidas por aquelle folgar tão seu . As fogueiras de S. João e Santo Antonio são o pharol da infancia . A festa devia de ter logar n ' um sitio verdadeiramente campestre . Era um terreiro circumdado por muitas arvores d' uma belleza e frondosidade incriveis . Pairava pela athmosphera um odor agradabilissimo , provindo não só das flores silvestres , que de todos os lados cresciam , como tambem dos jasmins de Italia , e rosas diversas , que povoavam um pequeno , mas elegante jardim , delicioso tapete de boninas e verdura , sobre o qual se elevava , como santuario pacifico , a modesta casinha que dominava aquelle ameno quadro da natureza em flôr . A noite acabava de desdobrar o seu manto de sombras . As estrellas , lá do firmamento , lançavam seus olhares mysteriosos por sobre a natureza em trevas . Era tempo de accender a magica fogueira , e fazer subir os recreativos e indispensaveis foguetes . O rapazio , ancioso como estava , não fez demorar uma operação que tanto prazer lhe causava . Não tardou que grossas golphadas de fogo se elevassem em elegantes espiraes , e que o troar das bombas esturgisse . Tudo era alegria . Trocavam-se risos , succediam-se exclamações , finalmente , sentia-se uma algaraviada indefinivel . O já citado terreiro começou tambem de illuminar-se , por via d' uns balões , pendentes das arvores que torneavam o recinto . As garbozas camponezas e galhardos rapazes aflluiam de todos os lados , e esperavam , cheios de anciedade , que a musica se fizesse ouvir , para a dansa começar . Trocavam-se palavras de amor , n ' essa linguagem do campo , que tão pura é , tiroteavam-se olhares apaixonados e agitavam-se os corações campesinos n ' aquelles peitos adustos . Rompeu , finalmente , a improvisada orchestra , e de logo se viram pares diversos entregues ao prazer da dansa . Que de jubilo se respirava em tão singelo baile ! Todos os rostos denotavam alegria , todos os corações diziam prazer ! Que differença havia en re aquelle baile campestre e os da alta sociedade ! N ' estes , a vaidade impera , a intriga fomenta-sa e o fingimento campeia : n ' aquelles , a candidez renasce , a virtude caminha e a franqueza jamais desapparece ! Pouco depois , entraram na improvisada sala de baile duas senhoras , e um ancião respeitavel . Os camponezes descobriram-se , e conduziram os recem-chegados para um logar reservado , recebendo em paga os mais cordiaes agradecimentos pela deferencia que haviam tido . Cumpre-nos dizer quem eram estes novos personagens . O ancião era um antigo militar , que na grande contenda da emancipação da patria fôra um heroe esforçado , distinguindo-se sempre , pelo que tinha sido ferido mais d' uma vez . Sendo reformado , não só pela edade , como também pela decrescencia de forças , que deixara no campo da batalha , retirara-se para a aldeia de que fallamos , onde vivia soffrivelmente com o seu soldo de coronel . Depois das lides bellicas da mocidade , entendera , e entendera bem , que só o campo poderia dar verdadeiro descanso aos seus membros debilitados pelas fadigas da guerra . As flores são uma cama maravilhosa , as copas das arvores um docel magnifico . Raymundo de Almeida , que assim se chamava o velho militar , vivia uma vida pacifica e serena , no centro da natureza em galas , que o rodeava , e no meio das caricias e mil attenções da sua querida filha e da sua estimada esposa , que eram as senhoras que acompanhava . A esposa de Raymundo era D. Margarida , senhora que primava em bôas qualidades , e que seguira sempre seu marido , durante as vicissitudes da guerra , com a maior resignação e coragem . A filha idolatrada de casal tão digno tinha o lindissimo nome de Adriana . Era bella como os anjos , meiga como uma pomba ! O moreno ligeiro do rosto dava-lhe uma tal expressão , um sentimento , impossiveis de descrever-se . Os olhos , de brilhantes que eram , faiscavam . Eram negros , como as trevas , e radiantes como o sol . Vastas pestanas lhe formavam uma moldura sedosa , florestaes sobrancelhas lhe serviam de encantador docel . A phisionomia de Adriana respirava sentimento . Dissera-se a paixão incarnada . A vida do rosto , misturada com uma pronunciada ternura , fazia sentir por aquella virgem mais de que amor , adoração ! Adriana era muito querida de seus pais não só pela muita applicação que tivera ao estudo , como pela obediencia e meiguice que a caracterisavam . E não só seus paes a estremeciam , mas todos que a rodeavam , e mesmo muitos que só tinham conhecimento das suas virtudes . Nunca um desgraçado se afastou de Adriana ralado pela fome . Os seus haveres mais pertenciam aos pobres que a si propria . Estava até alta noite fazendo camisinhas , jalecos , calças , vestidos , para dar ás creancinhas necessitadas , e que o inverno não poupava . Em conclusão , Adriana era , por assim dizer , a caridade animada . -- Como é bom , e quanto me commove a alegria d' esta pobre gente , disse Adriana a seu pae . Agrada-me infinitamente a singelesa d' esta festa popular . Que rostos tão francos , que pareceres tão leaes ! Outro tanto se não observara n ' aquelle baile a que o pae me levou em Lisboa , quando lá estivemos no inverno . -- És uma tontinha , uma creança , não sabes o que dizes , replicou o antigo militar , sorrindo . -- Sei , sei . Olhe , meu pae , quer ouvir da creança a descripção d' um baile ? -- Quero sim ; isso me divertirá . -- O baile é uma hypocrita terribel . Esconde debaixo do sorriso fingido do galanteio affectado , os mais vis sentimentos . O baile é , muitas vezes , o calice que abriga futuras desgraças , e mesmo , crimes . Exemplo : A creança inexpriente é levada pela primeira vez a qualquer baile : ao transpôr o limiar da porta , tiram-lhe a venda , que até então lhe cerrava os olhos , e deixam-lhe ver , atravez do clarão deslubrante das luzes , um sem numero de sombras confusas , que lhe passam rapidamente pela imaginação , deixando-lhe o desejo de assegurar . " Que significa tudo isto ? pergunta a pobre sentindo-se deslumbrada . Que é que sinto e que vejo , meu Deus ? Todos me acham bella , adoravel , todos dizem amar-me ... Será lisonja ? Não , aquelles sorrisos não enganam , não ha duvida que me veneram . Oh ! quanto sou feliz ! Porém , será tudo isto um sonho ? ! " Sim , sim , um sonho , e que horrivel é o despertar ! Que de lagrimas a mulher derrama , ao vêr-se victima da sua vaidade , quando conhece , mas já muito tarde , que fôra personagem d' uma comedia , a cujo ensaio não assistira , que dera assumpto a algumas columnas de folhetim , que servira , finalmente , de alvo á critica , aos commentarios irrefflectidos e perigosos , suggeridos por uma apparencia duvidosa . -- Ha duas coisas que obrigam a mulher a refletir no que disse , meu pae : uma chega quasi sempre muito cedo -- e esta é a mais prejudicial -- a outra apparece demasiado tarde . A primeira é a deshonra ; a segunda , uma serie de desillusões espinhosas . Se a reflexão escapa d' aquella , esta lança-lhe as mãos , e segura-a com vehemencia . Isto é evidente , meu querido pae . No primeiro caso , a mulher embebida em falsos prazeres , recebendo amoravelmente galanteios sem nexo , deixa-se arrastar pelas seductoras palavras d' um homem sm coração até á morada da deshonra , cuja janella só o infame descerra depois da triste se despenhar . A luz torna-se portanto , desnecessaria , pois a sua apparição fôra demasiadamente tardia . No segundo caso , as phases são bem differentes : a desgraçada tem vivido cercada de enganos , de ephemeras agradabilidades , de devaneios chimericos , não sabendo o que é amargura nem goso . -- Confundindo estes dois sentimentos , para ella ha apenas o viver . Quando as rugas começam de invadir-lhe o rosto , é então que essa mulher , do mundo chamada , concentra na mente todas as phases do seu banal passado , e termina por convencer-se de que fôra apenas um brinco dos homens , a virgula d' uma oração . E sabe , meu pae , quem fez parar e refletir essa mulher ? foi o despreso dos homens , que , quando joven , lhe beijavam as plantas , e que , depois , vendo apenas restos dessa bellesa tão contemplada , passam juntos a ella , sorrindo malignamente , e como que envergonhados de a terem venerado . Então , a infeliz observando o pouco que vale , lastima as miserias de que o mundo transborda , e soffre , soffre muito , porque é a primeira vez que o coração lhe diz sentimento . A clausura é o seu unico linitivo ; por isso , apressa-se em abraçal-a , e em tribunar a Deus que os homens nunca lhe souberam inspirar -- amor ! Já vê , meu bom pae , que um baile é , muitas vezes , o prologo do infortunio , o assassino da alegria . Adriana sentia-se fatigada . Fitou tristemente o primeiro objecto que se lhe deparou , conservou-se immovel . A serenidade do rosto tornava-a divina : parecia tocada pelo dedo da inspiração . Raymundo , o honrado militar , estava como que assombrado ; recopilava e admirava em silencio as verdades amargas que sua filha proferira . Não sabia que responder ; similhante dissertação maravilhara-o ; julgara rir-se das disparatadas considerações de sua filha , e via-se forçado a curvar a cabeça em frente do talento . Entretanto , a festa estava cada vez mais animada . Aquellas innocentes almas , cuja profundura era assás limitada , gosavam tanto , ou mais , que o avaro quando se revê nos seus thesoiros . O folgar era commum . O leitor deve , certamente , ter assistido já a alguma d' estas scenas campestres , em que o prazer é rei . O homem do campo com pouco se diverte ; não é preciso muito tambem para o entristecer . Basta o tropeçar de qualquer homem para o alegrar -- basta o leve soffrimento d' uma mulher para o consumir -- uma anecdota espirituosa enche-o de verdadeira satisfação , uma historia sentimental commove-o , torna-o taciturno , martyrisa-o . Escuta a narração com uma anciedade cohstante , e , quando ouve citar , por exemplo : -- a morte da mulher perjura , assassinada pelo amante zelozo -- o viajante assaltado por terriveis bandidos , que , depois de lhe roubarem a bolsa , o amarram ao tronco d' uma arvore -- o naufrago seguro a uma das vergas , e luctando com a furiosa agitação das ondas , ou , finalmente , outra qualquer scena tenebrosa , sente um horrivel calefrio , treme como a bandeira agitada pelo vento , cerra os olhos , mesmo sem querer , e não cahe desmaiado , porque o varapau que tem ao lado o ampara . N ' essa noite dorme mal , e sonha com o ponto lobrego da narração ouvida . Este é propriamente o bom camponio , o camponio superficial , aquelle que coça a cabeça quando lhe fallam , porque , cumpre notar : ha duas cspecies de camponios : ha o camponio estupido e o velhaco . Aquelle que esboçamos pertence á primeira especie . O camponio velhaco é terrivel : desconfia de todos , até de si proprio . Quando apparece no logar um casaca , como elles dizem , olham-n* ' o atrevidamente , dirigem-lhe ditos asnaticos , mas agudos , e não descansam sem o apuparem , como se fôra um toiro , ou sem lhe fazerem conhecer a fortaleza do braço , e a rigidez do cajado . Ninguem tranzija com elles , que sahe logrado . Em quanto um olho simula chorar , o outro procura alguma coisa a que deitar a mão . Os camponezes continuavam dansando . Adriana contemplava-os com uma especie de singela , mas tocante satisfação . A alegria desenhava-se em lodos os rostos . Os amores novos brotavam aqui e ali , espontaneos e sinceros ; os antigos estreitavam-se , á força de mil protestos d' uma lealdade eterna ; e se alguns arrufos se levantavam , como uma nuvem negra , n ' aquelle céu todo esperanças , depressa se dissipava com o encanto de novas e doces expressões . Passavam-se as coisas d' este modo , quando um successo imprevisto veiu interromper a alegre festa . Eis o caso : Havia perto do logar festivo uma pequenina casa , que servia de guarida a uma desgraçada familia , que vivia rodeada da maior pobresa , quasi na indigencia . De repente , viu-se aquelle miseravel albergue invadido por um terrivel incendio , occasionado , provavelmente , pelo lume de algum foguete , que penetrasse atravez das enormes fendas que havia no telhado . Uma mulher sahiu d' aquelle ponto inflammado , gritando com verdadeiro desespero : -- Salvem , pelo amor de Deus , o meu querido filho ! É o meu unico amparo e consolação ! Salvem m ' o ! salvem-m ' o ! exclamava a desventurada mãe com uma expressão horrivel . As chammas redobravam de intensidade ; cada vez se tornavam mais medonhas , não se atrevendo ninguem a affrontal-as . Não se via o menor movimento ; dissera-se um conjuncto de estatuas . -- Ai ! que me morre o meu filho ! bradava com extrema angustia a infeliz mãe . Do repente , viu-se apparecer , afastando a populaça , um moço de parecer resoluto , e dirigir-se á velhinha , que derramava abundantes lagrimas . -- Onde está seu filho , boa mulher ? ... -- Além , entre as chammas que o matam ! Ó meu filho ! meu pobre filho ! O desconhecido não ouviu mais nada ; precipitou-se por entre a multidão , com a celeridade do raio , e embrenhou-se n ' aquella immensa fogueira , desapparecendo á vista dos espectadores de tão tenebrosa scena . Que terrivel theatro ! A cratera do Vesuvio não infundiria maior respeito . Foi tal a admiração dos circumstantes , que ficaram como petreficados . Apenas um grito se fez ouvir : era Adriana que havia desmaiado . A pobre menina , extremamente sensivel e timida , não poderá assistir a espectaculo tão terrível . Apenas vira a casa em chammas , a pobre mãe clamando soccorro para seu filho , a immobilidade , finalmente , de todos , que assim commettiam , quasi , um assassinio , pois que não corriam , não a dominar o incendio , que isso era talvez impossivel , mas a salvar o infeliz que estava prestes a ser victima da horrivel catastrophe , vendo esta impassibilidade culpavel , sentiu-se indignada . A indignação tão bem cabida succedeu um tremor convulsivo . Depois , o apparecimento do arrojado desconhecido , que intrepidamente se lançara entre aquellas ondas ardentes , fizera-a vacillar . O interesse por elle fôra momentaneo . A perplexidade apoderara-se da virgem . Devia applaudir a coragem do desconhecido ? O dever , a humanidade , diziam-lhe : -- sim ; porém , o louco ia certamente succumbi no centro d' aquellas linguas de fogo ; por isso , o coração dizia-lhe : -- não . Taes sensações foram superiores ás suas forças ; cerraram-se-lhe os olhos , e desmaiara em seguida . O terror desenhava-se em toda a sua hediondez nos rostos adustos d' aquella massa bruta . A athmosphera apresentava um aspecto afogueado , que parecia o terrível sorriso do assassino feroz . O ar quasi que escaldava . O chammejante montão recrescia de hediondez . Todos julgavam morto o intrepido desconhecido . De repente , viu-se apparecer , como um phastasma de fogo , por entre as labaredas errantes , o destemido moço , trazendo nos braços aquelle por quem arriscara a vida ! Dissera-se , ao velo atravessar aquelle redemoinhar de fogo , que Deus o tornara incombustivel , para poder praticar uma acção tão heroica e generosa ! A admiração , o espanto , a alegria foram geraes . Ouviu-se um -- Ah ! -- unisono , que faria inveja ao melhor ensemble . O povo custava-lhe a acreditar o que via . -- Foi um milagre ! exclamavam algumas mulheres . -- Aquillo não é homem , é o diabo ! accrescentavam outras , benzendo-se . -- Isto só por bruxaria ! Cruzes ! cruzes ! que é coisa má ! A pobre mãe , essa , não soltava uma palavra , sequer : havia ajoelhado , e orava ! A electricidade applicada ao amor Ninguem se atreve a duvidar do poder da electricidade , nem tão pouco da sua rapidez . Os physicos mais abalisados teem tirado d' ella vantagens numerosas , como é sabido . Pois apesar da proficiencia dos peritos , apostamos que muitos ignoram que o amor possue esse fluido em grande escala . Qual será a rasão porque , muitas vezes , nos sentimos estremecer em presença d' uma mulher que vemos pela primeira vez ? Sabe , leitor , como se deve chamar a esse estremecimento involuntario ? Electricidade . Sim , que não é outra coisa . E que sensiveis choques muitas vezes experimentamos ! Ora , é sabido , que a electricidade faz-se sentir em dois pontos , não muito distantes , quasi ao mesmo tempo . É essa a rasão porque , ao entrarmos n ' uma sala adornada por gentis senhoras , dirigimos a vista , ao acaso , sem tenção alguma , para um logar certo , onde deparamos com uma firmeza de olhar , e expressão taes , que estremecemos e fazemos estremecer a mulher que nos fita : eis a electricidade . Os dois corações comprimentam-se , praticam rapidamente na sua linguagem desconhecida , e promettem desde logo uma estima tão mutua , quanto verdadeira . Foi isto justamente que succedeu a Adriana e ao arrojado desconhecido . Apenas se viram , conheceram que a indifferença não existia para os separar . No livro da vida de cada um d' elles , aquelle dia devia figurar como uma das paginas mais importantes ! Depois do deploravel accidente , e , ainda mais , depois da inesperada salvação do infeliz rapaz que , por pouco , ia sendo victima do terrivel incendio , Raymundo offereceu a sua casa para provisoria habitação dos desgraçados que haviam ficado sem abrigo . -- Obrigada , sr.||_Raymundo Raymundo|_Raymundo , disse a pobre mãe . A sua bondade está sempre a ver-se . Depois , voltou-se para o salvador de seu filho : -- E ao senhor que hei-de dizer ? Como poderei agradecer-lhe o serviço que me prestou ? E as lagrimas corriam-lhe pelas faces , serenas e puras , como o orvalho matutino cedendo á influencia do sol . Eram lagrimas que exprimiam o supremo reconhecimento ; eram perolas brotadas da fonte mais pura ; o deposito d' aquelle liquido era o coração . -- Não tem que me agradecer , bôa mulher ; fiz o meu dever . Além d' isso , os anjos presidem sempre a estas eventualidades , o que faz desapparecer a menor sombra de perigo . Isto foi dito pelo desconhecido , n ' um tom insinuante e olhando para Adriana , que , cuidadosa , fornecia alguns soccoros ao salvado das chammas , o qual haviam deitado sobre um banco de musgo . N ' este ponto tornou a eletricidade a operar . Os dois corações estremecem . O barco fôra lançado á agua . Qual será o resultado da viagem ? Será amena , ou tempestuosa ? Eis o que ninguem póde prever . Se apraz ao leitor , seguiremos o baixel e observaremos os factos . O qye não posso é assegurar-lhe a bondade da viagem , bem sabe quanto ellas são variaveis e differentes . Prepare-se para gosar lindas manhãs de abril , soberbas tardes de outono , e agradaveis noites de estio ; espere ver jardins recheados de odoriferas e gentis flores , lagos replectos de magia , alamedas extremamente copadas , e onde se respira amor , etc. , porém , conte tambem com tenebrosas noites de inverno , com campos cheios de phantasmas , com raios e trovões , emfim , com mil coisas que desgostam e atormentam . O meu caro leitor vae examinar um quadro , cuja frente é candida e meiga como uma pomba , sendo o reverso , pelo contrario , negro e pavoroso como uma coruja . A vida é uma medalha : d' um lado , lyrios e rosas , do outro martyrios e saudades . Cada ser tem a sua medalha , consequentemente , todos teem angustias e praseres . Apresentação É tempo do leitor conhecer o heroe do accidente narrado . Eis a sua certidão : D. Jorge de Portugal e Mascarenhas , solteiro , filho de D. Pedro de Portugal e Mascarenhas , marquez do Açude , e de D. Leocadia , etc. Natural de Lisboa . Edade 23 annos . Signaes caracteristicos : olhos escuros como o gaz do Porto , bocca regular , nariz idem , rosto pallido , fronte elevada , cabellos negros , porte airoso e maneiras distinctas . N. B. É conde do Pinhal Viçoso . Agora já conhecem o temerario moço . Se o encontrarem alguma vez , olhem-n* ' o com admiração , e felicitem-o , se quizerem . Continuemos . Antonio , que assim se chamava o salvado das chammas , era um rapazote dos seus quinze annos . Apesar da pouca edade , era elle que trabalhava para sustentar sua mãe . A pobre creança foi levada paara casa de Raymundo d'Almeida , onde lhe foram ministrados os soccorros necessarios . Quando conduziam o doente , Raymundo aproximou-se de D. Jorge , dizendo-lhe : -- É tempo de lhe certificar o quanto me maravilhou a sua extrema audacia ; e bem assim de encarecer , quanto possivel , a nobre acção que praticou . Ha factos a que só a temeridade póde dar nascença . -- Talvez que o arrojo fosse grande , mas a satisfação que sinto , pelo resultado do que fiz , ultrapassa essa grandeza . -- Bem respondido , atalhou Raymundo ; similhante resposta ennobrece duplicadamente quem a profere , isto quando ella parte do coração , como agora aconteceu . E apertou a mão do fidalgo . -- Se não fosse indiscripção , continuou o velho militar , perguntava a quem tinha tido a honra de apertar a mão ? -- Quem recebeu essa fineza , foi Jorge de Portugal e Mascarenhas . -- O sr. conde do Pinhal Viçoso ? ! Desculpe v. ex.ª tel- o tratado com demasiada franqueza ; porém , não o conhecia pessoalmente , apenas o seu nome me não era estranho . Cumpre notarmos que este curto dialogo fôra proferido pelos inlerluctores , pelo prado , sendo acompanhados por Adriana e sua mãe . Adriana , ao saber a nobreza de Jorge , soltou um gemido imperceplivel . -- Descansemos um pouco , meu pae , disse ella . Estas pedras , cobertas de verdura , estão mesmo a dizer-nos que nos sentemos . Não desprezemos o conselho . Depois accrescentou . sem que ninguem ouvisse , mechendo apenas os labios : -- Ah ! coração , que me enganaste ! Effectivamente , aquella alma tão simples e pura , soffrera uma dôr terrível . O seu pensar de vinte annos sonhára n ' um momento todas as venturas imaginaveis . A idéa d' aquelle moço tão ousado , cuja apparição repentina viera tanto a proposito , borbulhava-lhe constantemente nos sentidos , com a effervescencia da agua em cachão . Não sabia por que , mas sentia que Jorge lhe não era estranho . Parecia-lhe que havia já muito que se conheciam e estimavam , e que essa declaração de nobreza vinha destruir todo arraigado affecto , collocando entre elles uma barreira impenetravel . O que é a imaginação aos vinte annos ! Como ella se expande pelas campinas da incerteza ! Adriana soffria . Um debil tremor lhe percorria todo o corpo , similhando a planta tenue agitada pela brisa da tarde . Sentia , por um d' esses avisos extraordinarios e mysteriosos , que chegam sem que se saiba d' onde partem , que a sua existencia , até então tranquilla e cheia de simplicidade , ia mudar . A idéa d' essa mudança , e o temor que lhe inspirava , collocava-lhe o espirito em horrivel compressão . Apoiada ao braço de sua mãe , pensava e soffria . -- Na verdade , sr. conde , continuou Raymundo , o acto que v. ex.ª praticou , é duplicadamente para admirar . partir da própria bòcca d' um nobre ! -- Porque diz duplicadamente ? -- Porque , numa época em que a nobreza possue ainda em subido grau altivez e soberania , perdoe-me v. exª a franqueza , é para maravilhar que um fidalgo arrisque a sua vida para salvar um simples camponio . Factos d' esta ordem são rarissimos , por isso , mais dignos se tornam de ser registrados . -- O sr.||_Raymundo_d'Almeida Raymundo|_Raymundo_d'Almeida d'Almeida|_Raymundo_d'Almeida tem , talvez , rasão em stigmatisar , em parte , a primeira classe da sociedade . Effectivamente , a nobreza admitte uma divisão bem distincta . Una não só são nobres pelo sangue , como pelo coração ; outros são apenas por descendencia , ou então a custo d' alguns punhados d' oiro , e estes são os mais perigosos . O homem que , durante uma longa serie d' annos , não foi mais que um ente respeitado pelos servos , a quem pagava , ou então por algum capacho de casaca e luva de côr duvidosa , porque , em geral , aquelles que se presam de ter sentimentos , não prestam culto a qualquer ser rodeado de metal , unicamente por essa circumstancia , esse homem , repito , colocado de repente n ' uma posição muito superior á sua esphera , arroga-se uma soberania intoleravel , que o conduz até ao despotismo , ou faz tocar o ridiculo , tornando-se o alovo de todas as chufas . A nobreza pretenciosa é perigosissima , e ao mesmo tempo insoffrivel . Remontemos á antiguidade . o que vemos ? Os povos opprimidos pelo terrivel feudalismo , derramando gota a gota o seu suor , emquanto os senhores se electrisam na effervescencia dos festins . Desperdiçam rios de oiro n ' aquellas impudicas bacchanaes , porém , se um miseravel lhes vem implorar uma esmola para sua familia enferma , não prestam ouvidos , e mandam despedir o importuno , que lhes veiu distrahir a attenção , no meio do seu folgar . Miseria , e ignominia ! Se o servo se não descobria ao avistar o senhor feudal , ainda que este estivesse a grande distancia , era azorragado cobardemente . Os nobres deificavam-se a si proprios . Vergonha e infamia ! Felizmente , com o correr dos tempos , e sopro do progresso , a nobreza tem perdido parte dos habitos despoticos que possuia , e hoje admitte já uma divisão , o que n ' outras eras não acontecia . -- Bonito fallar , e extremamente raro , por partir da propria bôca d' um nobre ! -- D ' um nobre , que se conduziu como o mais ignaro villão , pois dissertou largamente , sem se importar com a presença d' estas senhoras , que devem de estar , não só despeitadas , mas replectas de aborrecimento . -- Nem uma nem outra coisa , objectou a mãe de Adriana . Gostamos de ouvir a linguagem da verdade , e , n ' este caso , consulte o sr. conde a sua consciencia , e verá o que ella lhe diz a nosso respeito . -- Eu , pela minha parte , accrescentou Adriana , concordo inteiramente com a opinião de minha mãe . -- Nem era de esperar outra coisa , disse D. Jorge , dirigindo-se a Adriana . A candura exterior de v. ex.ª , deve de concordar , forçosamente , com os seus sentimentos internos . -- O sr. conde tem o defeito , desculpe-me v. ex.ª a franqueza , de todos os cortezãos . -- Qual é , pois , o meu defeito ? perguntou D. Jorge , sorrindo . -- O ser lisongeiro . Os senhores da côrte têem por habito a lisonja , a qual muitas vezes redunda em mordaz epigramma . É a sua arma favorita . -- Não quer admittir uma excepção ? -- Temporaria ? É difficil , comtudo , é possível . -- Não , minha senhora , permanente . -- Ó sr. conde , isso seria mais que excepção , seria um phenomeno admiravel . -- V. ex.ª é implacavel ! Prefiro evitar a discussão , e appellar para o tempo . Naturalmente , visto o senhor seu pae me haver acolhido tão favoravelmente , não será esta a ultima vez que nos vejamos , por isso , os factos me justificarão . -- N ' esse caso , dá a batalha por terminada ? perguntou Adriana com galanteio . -- Não , minha senhora , peço apenas treguas . A conversação continuou fluctuante e incerta , isto já em caminho para casa de Raymundo . Apenas chegados , D. Jorge disse : -- Sr.||_Raymundo_d'Almeida Raymundo|_Raymundo_d'Almeida d'Almeida|_Raymundo_d'Almeida , o prazer que em mim trasborda , por ter a honra de travar conhecimento com uma familia , tão delicada quanto respeitavel , é difficil de exprimir . Vão , talvez , chamar-me lisongeiro , adulador , que sei eu ? principalmente sua filha , que , n ' este ponto , é mais severa do que um juiz ; embora ; julguem-me como quizerem . Tenho a consciencia do que digo por consolação . Qualquer juizo contrario que façam a meu respeito , não será mais que poderoso incentivo para attribulados remorsos . -- Tanto não duvido da sua dedicação , que me atrevo a fazer-lhe um convite . Tenha paciencia , sr. conde , v. ex.ª , com uma singeleza e boa fé admiraveis , testemunhou-me a sua generosa affeição , por isso , soffra-lhe as consequencias . Ámanhã é o vigessimo anniversario de minha filha , e , por esse facto , tenciono reunir alguns amigos para commemorar , d' alguma maneira , um dia que , felizmente , minha filha tem sabido tornar querido ... -- Meu pae ... atalhou Adriana , ligeiramente envergonhada . -- Então , queres que cale o que o coração não póde reprimir ? Não , isso jámais eu farei . Porém , como ia dizendo , sr. conde , desejava que v. ex.ª me fizesse a honra de occupar um logar n ' esse humilde serão , onde a amisade será a presidente . -- Confunde-me , na verdade , a sua attenciosa deferencia , tanto mais , que ha pouco disse que só amigos assistiriam á festa . Longe de dar honra , acceitando o convite , sou eu o honrado ; por isso , ámanhã , cheio de jubilo e reconhecimento , assistirei a essa reunião , cuja causa é aliás justissima . Dizendo isto , apertou a mão de Raymundo , e despediu-se das duas senhoras o mais respeitosamente possivel . Depois , desatou a redea do cavallo , que estava presa a uma arvore , e montou , dizendo : -- Até ámanhã . O cavallo , sentindo os ferros agudos das esporas tocarem-lhe o ventre , deu um salto por avante , partindo em seguida a galope . Adriana seguiu com a vista aquella sombra , que se afastava rapidamente , e que mal se distinguia por entre as arvores da estrada . Impressões e duvidas Adriana possuia um d' esses corações breves e fogosos , que pairam constantemente sobre a alegria e a tristeza . Quer um , quer outro sentimento , vivia n ' ella ephemeramente . A que se poderá attribuir incerteza tão cheia de volubilidade ? Diligenciemos descrevel- o . Adriana não era uma mulher vulgar . Era um d' esses entes privilegiados , que Deus lança ao mundo assim como uma obra que o ha de honrar . Adriana era dotada d' uma intelligencia elevada , e possuidora de uma qualidade immensamente rara : o gosto estudo . Desde os mais verdes annos fizera consistir o seu maior prazer na leitura de bons livros . Despresára sempre o fraco do seu sexo , isto é , a predilecção desordenada pela moda , e entregára- se de coração ao estudo . Quer dizer , preferiu o caminho que conduz á grandeza , despresando o que nos leva á ruina . A escolha parece , á primeira vista , natural , e até vulgar , porém , infelizmente , não só é extraordinária , mas rara . As senhoras , em geral , preferem os atavios do corpo aos adornos do espirito . Ha , comtudo , excepções , e Adriana merece occupar o primeiro logar . O seu rapido e variavel sentir provinha , pois , da intelligencia cultivada , e do fogo dos poucos annos . Ora , a rasão e a edade são duas partes hecterogenias , o que dã em resultado uma lucta gravissima . Adriana , observando o proceder generoso de D. Jorge , amara-o ; vendo , depois , que o seu amor ecoara no peito do fidalgo , sonhara , n ' um momento , todas as delicias do futuro . Trabalhou a edade . Apenas Jorge desappareceu , que o coração começou de socegar um pouco mais , principiou a rasão a aclarar-lhe os factos , e a obrigai-a a reflectir . Bem depressa se lhe patenteou toda a verdade . D. Jorge era nobre , filho , naturalmente , d' um pae altivo e zeloso dos seus fóros de nobreza , portanto , jamais consentiria em similhante enlace . Porém , tinha ella alguma prova do amor de Jorge ? Não . Logo eram intempestivos os seus receios . Comtudo , sentia uma voz secreta dizer-lhe que o seu pensar não era aerio . Por outro lado , quem lhe assegurava a pertinacia do pae do fidalgo ? Adriana passou toda a noite fazendo estas e outras considerações , que , mau grado seu , a entristeciam . Era o amor que pela primeira vez a atacava , e com elle chegara a incerteza , a desconfiança , o desassocego , emfim . O pró e o contra apresentavam-se a cada momento . A cabeça e o coração estavam em pleno combate . Adriana só pela madrugada poude conciliar o somno , e , ainda assim , acordou cedo , e extremamente sobresaltada . Levantou-se , e dirigiu-se instinctivamente para a janella . O dia estava lindissimo . Um sol radiante dava plena animação a tudo quanto podia abraçar . As flores pareciam saltar de contentes , tão expressiva era a sua apparencia . Adriana olhou com avidez na direcção do caminho que Jorge havia tomado na vespera , e tal era a sua alteração , que parecia ainda distinguil- o por entre a ramagem . Effeitos de um coração despertado pela primeira vez . Adriana passou todo o dia na maior anciedade . As horas pareceram-lhe seculos . Muitas vezes uma nuvem sombria lhe passava pelo pensamento ; porém , era bem depressa desvanecida pela alegria que a rodeava . Tanto seus paes , como servos , exultavam com a lembrança d' aquelle dia : Adriana não era ingrata , associava-se com elles no regosijo . O prologo d' uma declaração Ao anoitecer chegaram simultaneamente alguns amigos , que Raymundo havia convidado . A sala da reunião estava simples , mas elegantemente adornada . Não se viam ricas tapeçarias , nem soberbos espelhos de Veneza , nem custosas porcelanas de Sevres , nem tão pouco moveis de subido preço , primando em lavores e embutidos , nada d' isso ; os adornos de que fallámos eram todos devidos ao trabalho e habilidade de Adriana . As mesas estavam atacadas de pequenos enfeites de diverso labor . Via-se nas paredes quadros magnificos , quer em figura , quer em paisagem ; e finalmente , uma infinidade de bordados e curiosidades , que provaram o raro talento da manufactora . Raymundo d'Almeida , sorrindo com um sorriso de paternal orgulho , obrigada a idolatrada filha a mostrar as suas obras aos convidados , o que ella fazia visualmente envergonhada . Quem mais attenciosamente a observasse , lhe-, sem duvida , uma certa abstração . Effectivamente , Adriana não estava ali n ' aquelle momento ; ao menos o seu pensamento pairava por outros logares . Pensava em Jorge . A sua demora penalisava-a . " Se lhe terá acontecido alguma desgraça ? Não virá ? Porque tarda tanto ? " Eram estes e outros pensamentos que a dominavam , quando a porta se abriu , e uma criada aununciou : -- O sr. conde do Pinhal Viçoso . D. Jorge comprimentou a assembléa , e dirigindo-se a Raymundo , disse : -- A minha demora não provem da mingua de desejo de me ver n ' uma casa tão respeitavel , e no centro duma assembléa tão illustre , mas do receio de ser antecipado , e , portanto , importuno . -- Qualquer que fosse a hora a que o sr. conde viesse , acredite que seria sempre bem recebido , respondeu Baymundo . O fidalgo inclinou-se . -- Minha filha , continuou o pae de Adriana , mostrava aos nossos amigos os seus trabalhos , quando v. ex.ª entrou . -- Espero que a minha presença , objectou D. Jorge de Mascarenhas , não sirva de obstaculo á exposição , e até , se me concedem licença , corro a encorporar-me nas fileiras dos admiradores . -- O sr. conde , habituado a frequentar as grandes salas , que belleza poderá encontrar nos meus pobres trabalhos ? replicou Adriana . -- V. ex.ª disse-me hontem que eu possuia o defeito da lisonja , e eu descubro-lhe hoje o mau sestro da modestia . Já vê que também a accuso , e que , portanto , as hostilidades continuam a vigorar . Ora , pois , vejamos quem vence . E a delicada exposição continuou a ser minuciosamente observada . -- Victoria , victoria ! exclamou D. Jorge . Este abençoado quadro vem fortalecer exuberantemente a minha asserção , e derrotar sem piedade a minha antagonista . Vejam , minhas senhoras e senhqres , reparem na perfeição d' esta pintura , e digam-me se os loiros me não pertencem . Examinem a firmeza d' estes braços , o excellente collorido e a precisão das sombras . Effectivamente , era um quadro magnifico . Os circumstantes haviam-se acercado , e contemplavam , visivelmente gostosos , a excellencia da obra . Adriana sentia-se confundida no centro d' aquelles encomios ; um purpureo colorido lhe animava as faces . Sem embargo , similhantes encarecimentos eram interiormente recebidos pela sua vaidade de mulher . Desenganemo-nos , por muito exemplar que seja qualquer senhora , por muito indifferentista que deseje parecer , tem indubitavelmente uma parte maior ou menor de vaidade . Isto é um axioma . Por isso , Adriana , apesar da confusão exterior , sentia vibrar-lhe na alma as palavras de Jorge . As senhoras apraz-lhes sempre que as elogiem . Preferem , em geral , um panegyrico exagerado , que ellas mesmas conhecem ser falso , a uma verdade cruel , que , todavia , lhes aproveita . A franqueza não lhes agrada . O exame continuou animado o faceto . -- Oh ! eis um bonito album , disse Jorge . Vejamos . -- Está ainda muito pobre , sr. conde . Digne-se v. ex.ª enriquecer-lhe uma das paginas , com uma só linha , que seja . -- Ó minha senhora , fraca riqueza poderei fornecer , porque , n ' esta parte sou um verdadeiro indigente . Não obstante , diligenciarei obedecer a v. ex.ª N ' este momento as criadas entraram na sala para servirem o chá . Os observadores tomaram os seus logares . O relogio começou a dar cadenciosamente dez horas . -- Eis a hora , exclamou Raymundo . Faz n ' este momento justamente vinte annos , que Deus se dignou dar-me por filha um anjo . Acceita , minha filha , a prenda com que costumo commemorar o teu natalicio . Adriana recebeu de seu pae um abraço , onde se revelava o supremo amor paternal . Em seguida , correu a beijar sua mãe . Depois d' esta scena de familia , os convidados apressaram-se a offerecer a Adriana um brinde qualquer . D. Jorge foi a unica excepção d' aquella regra . Conservava um rigoroso silencio , e dominava-o um pensar profundo . Por um capricho do acaso , achava-se sentado ao lado de Adriana . Recostou-se com calculada negligencia , e com a maior naturalidade , e perguntou , baixando a voz , e um tanto commovido : -- E eu , que lhe hei de offerecer , minha senhora ? Adriana guardou silencio . O coração da donzella começava de agitar-se . Jorge insistiu : -- Acceitaria v. ex.ª a minha dadiva ? A pergunta ficou ainda sem resposta . O peito da virgem parecia estalar . -- Nem sequer uma palavra lhe mereço ? Foi tal a expressão d' aquella pergunta , era tal o sentimento que d' ella transluzia , que Adriana , cedendo a um impulso do coração , disse , o mais sumidamente possível : -- Acceitava ! ... -- Reflicta bem n ' essa palavra , replicou Jorge , preso d' uma commoção misturada de alegria . -- Não tenho que reflectir ... retorquiu Adriana . -- N ' esse caso ... offereço-lhe o meu amor ! Adriana fez um movimento repentino , que felizmente não foi notado , pois todos conversavam desapercebidamente . Todavia , foi grande a emoção . Que melhor offerta podia esperar uma virgem , cuja alma era toda affecto ? ... As palavras de Jorge soaram-lhe como celestial melodia . Sonhara , e o personagem principal d' esse doirado sonho começava de indicar-lhe o trilho da venturosa realidade . E depois era a primeira vez que Adriana sentia afagar-lhe os ouvidos essa palavra , alvo constante de todos os corações -- amor ! A formosa donzella mal podia occultar os intimos sentimentos ; talvez que se trahisse se , por ventura , uma das senhoras não viesse em seu auxilio , ainda que involuntariamente . -- Então , sr. conde , esqueceu-se do album da minha amiga ? -- Não esqueci , minha senhora , respondeu D. Jorge , aguardava apenas a occasião propria . Em seguida , levantou-se , dirigiu-se para a jardineira , abriu o album , pensou alguns momentos , principiando depois a transportar para o papel o que lhe viera á mente . Passados alguns minutos , exclamou : -- Prompto ! -- Vejamos , expressaram algumas vozes . -- Se v. ex.ª me quizesse acompanhar ? ... disse o moço namorado a Adriana , n ' um tom tão meigo , que não seria exagero tomal- o como supplica . Adriana sentou-se ao piano , cujas teclas furam comprimentadas pelos dedos mimosos da virgem , que encetou com bravura um exercicio em oitavas , terminado por um acorde brilhante . O delicioso orgão das salas deixou ouvir a expressiva walsa dos Dois mundos , esse sentido canto que sempre nos commove . Findo o retornelio , Jorge recitou os versos que escrevera . Não os transcrevemos , porque o fidalgo não tinha pretenções a poeta , poeta de fórma , porque de essencia era-o como poucos . Comtudo , devemos confessar que não era coisa que fizesse desmuronar a velha Arcadia . Eram umas strophes sentidas , allusivas , em parte , ao natalicio de Adriana , firmando-se depois no amor filial , e desenvolvendo , por ultimo , umas suaves e brilhantes theorias sobre o amor em geral . -- Bravo ! bravo ! exclamaram os ouvintes . Adriana lançou a Jorge um olhar de reconhecimento . O resto do sarau passou-se agradavelmente , dividindo-se a musica e a dansa pelos moços , e o jogo pelos velhos . Quasi ao romper da aurora , terminou a festiva e familiar reunião . A alvorada do novo dia teve dois hymnos em seu louvor : as preces sentidas de Adriana , e o canto dulcissimo da cotovia . A carta D. Jorge de Mascarenhas afastou-se da casa de Raymundo d'Almeida , embebido n ' uma tristeza suave , que , penalisando-o por um lado , o alegrava por outro : quer dizer , o pesar que lhe causava o apartar-se de Adriana , compensava-o a lembrança de que o seu amor era , senão retribuido , ao menos acceito . Dirigiu-se , pois , para um antigo palacio de seu pae , onde viera passar alguns mezes de verão . Apenas chegou , encaminhou-se sem demora para o seu quarto , sentou-se á secretaria , e começou de escrever a seguinte carta : " Minha senhora : " É tão grande e verdadeiro o jubilo que me anima os sentidos e acaricia a alma ao dirigir-me a v. ex.ª , que , forçosamente , os desacertos serão em subido numero na carta que vou tentar escrever-lhe . " Ó minha senhora , as almas sublimes na terra são tão raras , que , quando o acaso nos faz deparar com um desses anjos , sentimos uma voz mysteriosa dizer-nos : -- ahi tens a felicidade ; não a deixes escapar , embora o preço porque a devas possuir seja uma serie de sacrificios ; esses sacrificios , essas dores , quaesquer que sejam , serão compensados logo que te bafeje a ventura , que era para ti um sonho . Trabalha , que a retribuição corresponderá ao esforço . -- Em vista , pois , d' este aviso do mysterio , deveria eu calar os instinctos do meu coração ? deveria entregar-me a um platonismo cruel e desesperado ? Porque , francamente , minha senhora , a vista de v. ex.ª produziu em mim um effeito magnetico ! Pelo amor de Deus , não chame a isto lisonja , é a verdade , a pura verdade . Depois , o conhecimento que tive do seu pasmoso talento , e das suas excellentes qualidades , foi , também , um poderoso incentivo para a realisação do meu amor . Hoje , sinto que a minha vida está ligada á sua , e que uma vez esse sublime tio despedaçado , a morte , ao menos moral , será o resultado do fatal quebramento . Consentirá v. ex.ª em contribuir para o doloroso extremo de uma existencia que a adora ? Recorde-se dos remorsos , minha senhora . Não , uma alma tão pura , que parece , por assim dizer , em contacto com Deus , não póde , por fórma alguma , praticar um acto infernal . V. ex.ª plantou no deserto do meu coração o arbusto do amor ; alimente-o , robusteça-o , desenvolva-lhe a seiva , não o deixe fenecer , e a sombra protectora d' esse oasis maravilhoso a deffenderá de todo o mal , e velará por v. ex.ª , com o duplo fervor do reconhecimento e da paixão . " Jorge de Mascarenhas . " D. Jorge , ao terminar esta carta , tomou a respiração , como se ficasse alliviado d' um peso , que o opprimira durante a escripta . No dia seguinte , pela tarde , montou a cavallo , e dirigiu-se para a habitação de Raymundo d'Almeida . Apenas avistou o alvo das paredes , divisou no mirante do jardim um vulto , que as lentes do seu coração lhe annunciaram ser Adriana . Os olhos da joven fitavam-se , sem o menor desvio , na direcção do caminho que D. Jorge seguia . Esperalia-o-Adriana ? Porém , o fidalgo não lhe prevenira a vinda ! Não , mas o presentimento , originado pelo amor , tomára esse encargo . Sem questão , Adriana aguardava D. Jorge de Mascarenhas . Aproximou-se o sympathico fidalgo , e comprimentou alegremente a motora da sua vinda , lançando-lhe um sorriso que queria dizer : vê que não faltei ... ao que não prometti ? ... A altura do mirante era limitada ; de fôrma que D. Jorge , montado como estava , chegava , quasi , ao cimo do muro . -- Que feliz me julgo por tornar a vela minha senhora ; disse o enamorado cavalleiro , perfilando-se com a parede . Então recebeu gostosa a minha offerta de hontem ? Conserva-a sem repugnancia , não a repudia ? -- Senhor conde ... -- Não me trate com tanta gravidade , Adriana , confie mais em mim ... -- Afaste-se , sr. conde ; minha mãe chama-me , não convém que nos surprehenda . D. Jorge , ouvindo estas palavras , apressou-se em lançar a carta no regaço de Adriana . Esta , tomou-a precipitadamente , e desappareceu por uma alameda de variegadas dhalias , que ia dar á habitação . Duvidas -- O sonho A carta de Jorge foi bem recebida . Adriana leu-a cinco vezes , no espaço de trinta minutos , o que se pôde traduzir por : ama com frenesi o conde do Pinhal Viçoso . Um mez depois , D. Jorge de Mascarenhas havia travado relações mais intimas com a familia de Adriana , o que não é para admirar , pois ninguém ignora a franqueza que no campo predomina . Os dois namorados viam-se todos os dias , conversavam longas horas , que , para elles , corriam com a velocidade d' uma locomotiva . Comprehendiam-se e amavam-se . Muitas vezes , percorriam os campos , acompanhados de Raymundo d'Almeida , cavalgando soberbos animaes . Adriana , com o sei immenso vestido de cauda , com o seu elegante chapeo á amasona , chicoteando o vigoroso animal , afim de o obrigar a fazer continuos corcovos , apresentava um aspecto tão magestoso , que obrigava , tanto seu pae como D. Jorge , a fital-a extasiados . O fidalgo não pedira officialmente a mão de Adriana , dissera , apenas , ao seu futuro sogro : mo originai ; o que , mais claramente fallan- : -- Amo sua filha apaixonadamente , com esse amor digno , que Deus sabe abençoar ; comtudo , não lhe peço desde já consentimento para um enlace , que fará a minha felicidade , primeiro , porque não me julgo ainda com esse direito , segundo , porque antes que duas almas se unam , é mister que se conheçam os genios mutuamente , afim de saberem se n ' essa união estará o ramilhete de duas existencias . O matrimonio é a ligação perpetua ; portanto , deve ser olhado com toda a seriedade . Entrar n ' elle como em qualquer loteria , é muitissimo perigoso . Cada premio está para cem brancos . Se , com o tempo , eu e sua filha conhecermos que , unindo-nos , um futuro de rozas nos espera , terei então muito prazer em lhe rogar que não roube a duas almas a ventura que anteveem , e de que lhe serão sempre gratas ! Raymundo gostara d' esta franqueza . Acreditara mais n ' aquella reserva , que n ' uma decidida precipitação . Os dois namorados passaram tres mezes em delicias , embriagados sempre por esses pequenos nadas que constituem amor . D. Jorge vinha todas as tardes a casa de Raymundo d'Almeida , onde passava horas de oiro junto á sua Adriana , lendo qualquer romance , em quanto a virgem costurava . O bom velho e sua mulher contemplavam aquelle quadro de ventura , com uma satisfação inaudita . O viver de Jorge e Adriana era o mais simples possivel . Afastados do bulicio da cidade , o seu amor deslisava puro como o arroio da encosta ; seguia o seu ininterrompido caminho a par do socego e quietação da aldeia . " Quem quer prazer suave e amor divino " Feche na mansa aldeia o seu destino . Diz Thomaz Ribeiro no seu D. Jayme , e diz uma grande verdade . O amor no campo é puro , como o ar que lá se respira . Nada o distrae ; em quanto na cidade as tentações são aos milhares . O amor nas capitaes , principalmente , é genero sem extração ; a falta de procura é notavel ; está quasi fóra do mercado . Chegou-se a ponto que , se um inexpriente , ou atrevido , se trahe , dizendo que ama uma mulher , é apupado e tido como original ; o que , mais claramente fallando , equivale a passar-lhe um diploma de ... tolo . Uma tarde , estavam os dois namorados conforme o costume , sentados perto um do outro . Jorge lia , e Adriana bordava . Esta porém , interrompia a cada passo o seu trabalho , não para escutar mais attentamente a leitura de Jorge , mas para dar largas a uma especie de meditação , que a dominava . -- Que tens , Adriana ? perguntou o fidalgo , estranhando o procedimento da virgem . -- Nada , meu Jorge , respondeu Adriana , sorrindo angelicamente . -- Nada ! tu enganas-me , tens por força alguma coisa que te afflige . Não tentes illudir os olhos d' um amante . -- Pois bem Jorge , sim , estou triste . Presinto que ruim nova vamos em breve saber . Sinto o coração opprimido . Diviso no horisonte da nossa ventura , uma nuvem bem sinistra . Adriana apertou com vehemencia a mão de D. Jorge . Aquelle aperto parecia supplicar todo o auxilio de que um homem póde dispôr . -- Que creança és , minha Adriana ! Sabes tu , que esses receios me ufanam e alegram ? Duvidas , despeitada talvez ? Vanglorio-me , porque vejo quanto receias perder a nossa felicidade desejada ; regosijo- me , por conhecer d' essa forma o teu grau de amor . Adriana agradeceu com um olhar extraordinario a suave interpretação de D. Jorge de Mascarenhas . Conservaram-se mudos alguns momentos , pensando cada um , naturalmente , em objecto que tendia ao mesmo fim . Aquelles que se estimam verdadeiramente e comprehendem , edentificam-se , por assim dizer . Parece existir entre as duas imaginações um fio electrico , que transmitte os menores pensamentos . Direi mais ha entes que se não comprehendem , adivinham-se . Adriana foi a primeira a romper o silencio , aventurando a seguinte pergunta , que parecia repassada d' um amargo cogitar : -- Dize lá , Jorge , gostavas de acordar um dia não te lembrando a menor occorencia do nosso amor ? Tornares novamente ao tempo em que me não conhecias ? -- Que dizes , Adriana ? Similhante pergunta ... -- Perdoa , Jorge , que queres ? estou hoje celebre . Sinto as idéas em desordem . Nãosei que voz mysteriosa me diz , que eu , longe de te dar a felididade que mereces , te farei desgraçado . Desgraçado ! o meu Jorge que tanto amo , e por quem daria mil vidas ! Esta idéa martyrisa-me cruelmente , atormenta-me , rala-me , faz-me soffrer d' uma maneira espantosa ! -- Socega , minha Adriana , afasta para bem longe esses teus infundados receios , que não passam d' um sonho juvenil . Tonta , e ao mesmo tempo injusta e má ; tens em maior conta o teu chimerico presentimento , do que a realidade do nosso presente tão feliz , e do nosso futuro tão venturoso e cheio de esperança ! És muito má , repilo . E perguntas-me se desejava acordar esquecendo-te , como se esse despertar não fosse a morte ! Que mal te fiz , para que me apunhalas com palavras tão agudas ? -- Perdoa-me , Jorge , perdoa-me , que queres ? o amor torna a mulher supersticiosa . Agora conheço que sou uma louca , uma insensata . Descansa , que nunca mais te communicarei as minhas creancices . Sabes o que deu aso aos meus sustos , e , quasi , descrenças ? Foi um sonho . -- Um sonho ? -- Sim , um sonho hem terrivel ! Sonhei que estava n ' um campo onde as florinhas se encontravam por todos os lados , e cujas variegadas côrcs formavam , conjuntamente com a verdejante relva , um tapete do mais soberbo matiz . Os passarinhos , esses sublimes cantores dos bosques , saltavam d' um para outro ramo , soltando ao vento os seus harmoniosos gorgeios . Emfim , meu Jorge , era um recinto todo magia , todo amor . Eu e tu , Jorge , estavamos sentados á beira d' um pequeno ribeiro , cujas crystalinas aguas corriam brandamente , meigas e puras como o sorriso da mãe para seu filho . Nós , com os braços entrelaçados , contemplavamos todos aquelles devaneios da natureza , e , assim tão juntos , gosavamos , sosinhos , no remanso da solidão , delicias que só um coração amante póde imaginar . De repente , o viçoso prado transformou-se n ' um deserto sem fim , as virentes flores foram substituidas por espinhosos cardos , as debeis e gentis avesinhas , por passaros noctivagos , que soltavam ao vento o seu piar descompassado e tenebroso , e , finalmente o diphano ribeiro foi metamorphoseado n ' uma medonha gruta , da entrada da qual escura e horrivel , sahiu um terrivel voador , que , segurand- te com as suas enormes garras , te arrancou dos meus braços , sem que eu podesse , apesar da furia com que procurava deter-te , impedir tão cruel separação . Ah ! Jorge , como eu soffria ! Á maneira que eras arrebatadamente elevado , ia eu perdendo as forças , e procurando a terra ; de forma que , quando a minha vista não podia já alcançar-te , desmaei , jazendo horisontalmente no solo . A immensidade nos separava ! ... E Adriana apertava convulsamente a mão de Jorge , parecendo temer que , realmente , lh'o arrebatassem . O moço fidalgo conservava-se silencioso ; um sorriso de ventura foi a replica que poude oppor . Gosava interiormente todo o amor de Adriana . Castellos no ar -- Estás melhor ? perguntou Jorge a Adriana , no dia seguinte . A donzella sorriu com meiguice , e estendeu a mão ao fidalgo . -- Perdoas-me ? disse ella . -- Perdoar-te , meu anjo ! -- Sim , porque estou certa que hontem muito te affligi com os meus receios absurdos . -- Não nego que me penalisaste um tanto ; mas fui bem compensado . -- Como ? -- Com a expressão franca do teu sentir , que me assegurava o amor da minha querida Adriana . -- Duvidas , acaso ? -- Quem duvida dos anjos ? -- Lisongeiro ! ... -- Tu às vezes és muito má . -- Ah ! sempre me reprehendes ! -- É para te emendares . -- O corarão não recebe ensino . -- Ousar é sempre bom ; experimenta . -- Não posso cohibir-me de cerios momentos de tristesa . Ha , felizmente , uma consoladora alternativa . Hoje por exemplo , sinto-me bastante alegre . -- Deveras ? -- Deveras . Hoje descerra-se-me o futuro cheio de luz . Não tens experimentado fechar os olhos quando o sol de estio nos bate de chapa ? Afigura-se-nos um mundo novo . É tudo côr de rosa e brilhante . Vemos milhares e milhares de suppostos atomos , que se cruzam de continuo , borbulhando , borbulhando , como a queda d' uma levada . Hoje tudo se me apresenta assim . -- Sentes-te feliz ! Tens fé no futuro ? perguntou Jorge , apertando a mão da virgem . -- Confiio em ti . -- Crês bastante no meu amor ? -- Creio . -- Obrigado , Adriana . Houve um momento de silencio . Ambos se embebiam em ternas esperanças . Adriana foi a primeira que descerrou os labios : -- Havemos de ser muito felizes , não é verdade ? -- Oh ! sim , muito ! -- Olha , Jorge , embora tu queiras viver em Lisboa , porque podes lá divertir-te , no verão é que não dispenso virmos passar dois ou tres mezes n ' estes pitorescos sitios . -- Viremos , sim , viremos juntos , sempre juntos . -- Mandaremos arranjar o pavilhão do teu palacio d' além da ponte ... não sabes como ? -- Não ; dize lá . -- Olha , a casa de jantar deve dar para o rio , e as paredes devem de estar vestidas de verdura e toucadas de flores . Ha de ser muilo bonito e agradavel ! O rio , especie de refrigerante alcatifa , as rosas e madre-silvas , docel encantador . Tudo frescura e aroma , tudo quietação e felicidade ! -- Es uma louquinha ! -- Porém , agora me recordo : sou muito egoista : tenho apenas phantasiado o que poderá distrahir-te . -- Julgas que não gosarei com as tuas alegrias ? Isso me bastará . -- Mostras-te tão pouco exigente , porque és ainda namorado , quando fores esposo será outra coisa . -- És injusta . -- Pois serei ; mas deixa-me continuar : Tu , naturalmeate , hasde entregar-te ao prazer da caça , mesmo porque estar constantemente ao lado d' uma mulher , embora se estime , torna-se material e aborrecido . Correrás , pois , montes e valles em caça d' alguma pobre perdiz , e eu , ao descahir da tarde , irei esperar-te lá abaixo á fonte . Voltaremos para casa , onde descansarás das tuas fadigas , isto no terraço do jardim , que fica voltado para o nascente , e em que o luar bate de chapa . -- Que dizes ? -- Digo que me enlouqueces com esses sonhos de amor ! -- Bravo ! ha pouco chamaste-me louca , agora tu mesmo te julgas atacado . Ignorava que esta doença fosse contagiosa . -- A alegria transmitte-se . -- Não te arrependes de me haveres conhecido ? -- Quem se arrepende da felicidade ? -- Quem a não aprecia . -- Mas é que eu tenho-a em grande conta . -- Queres que te agradeça ? -- Quero que me estimes . -- Innutil recommendação . Olha , Jorge , o que haverá de mais suave que um amor correspondido ? Quando se ama , a vida torna-se-nos num paraiso permanente ; as flores parece que exalam um perfume enebriante , recebe-se a alvorada com o sorriso nos labios e o prazer n ' alma , porque é mais um dia de ventura que vae raiar . -- Sim , sim , o amor tem o condão de transformar as indoles mais perversas . Dae ao scelerado um lampejo de coração , e a metamorphose será rapida . -- O amor , na sua accepção verdadeira , é uma emanação do ceu , um sorriso de Deus . Almas ha bem enfesadas e rachiticas , acceita-me a figura , porque o sentimento jamais as inflammou . Os materialistas da epoca , não comprehendendo os mysterios do coração , lançam-lhes um sorriso de escarneo , julgando salvarem-se pela indifferença . Pobres nescios , que tanto se similham á raposa da fabula ! Jorge estava encantado pelas palavras de Adriana . Cada syllaba lhe reflectia o coração , cada letra lhe espelhava a sublime comprehenção da alma . Admirava a intelligencia da interessante menina , e expandia-se em suave embriaguez . -- Estás um verdadeiro philosopho , minha querida Adriana , disse elle . -- Desagrada-te a philosophia do coração ? -- Maravilha-me e encanta-me ! -- Se soubesses quanto exulto por me comprehenderes ! ... -- As melodias comprehendem-se sempre , e escutam-se em admiravel extasis . -- Já vejo que a lisonja , em ti , é vicio . Ouve-me , porém , ainda . Como hoje me sinto alegre , quero abrir-te a minha alma . Olha , repara bem , toda eu sou amor ; d' elle vivo , elle me alenta , elle me póde tambem matar . Que haverá de mais bello que a ligação perpetua de dois entes pelo coração ? Gosar em commum os mesmos prazeres , penar reciprocamente eguaes soffrimentos , alimentarem-se ambos com uma seiva unica , viverem d' uma só vida , partilharem crenças e desesperanças , afogarem saudades nu " m mutuo consolo , amarem-se , finalmenle , com esse amor santo , que provém de Deus ! A mulher é uma fracção do homem , este uma parte d' aquella : formae d' elles um amalgama sublime , e tereis a felicidade ! Um fervoroso aperto de mão , foi tudo que Jorge poude exprimir , tal era a emoção que o dominava . Esse aperto , porém , dizia muito mais que um turbilhão de palavras . A linguagem muda nem sempre é a menos expressiva . Adriana , de dia para dia , redobrava de valor aos olhos do fidalgo . Cada novo pensamento enunciado era manancial de sublime candura . As palavras tocantes da virgem aquentavam suavemente o coração de Jorge . Os dois jovens namorados passaram ainda felizes momentos , phantasiando delicias , projetando mil gosos por vir , entregando-se , finalmente , aos aprasiveis sonhos doirados , que o vulgo chama castellos no ar , e que são o ramilhete attraente dos vinte annos . Ah ! o ideal ! Felizes daqueles que d' elle vivem ! O positivismo de momento para momento mais feio se torna . O ideal é a esperança , a esperança é a ventura , a ventura é o enthusiasmo , o enthusiasmo é a vida ! ... A separação Entretanto , o inverno aproximava-se , e D. Jorge devia , portanto , regressar a Lisboa . Não estava , porém , muito disposto a fazel- o . Os rigores da estação não o amedrontavam , nem a tristonha solidão lhe causava o menor gesto de enfado . A capital , com os seus elegantes salões , com seus bailes esplendidos , theatros cheios de animação , mulheres deliciosas , não era para elle mais que uma cidade chamada Lisboa . D ' ella , apenas o nome lhe não esquecera . Porque tudo isto ? Porque D. Jorge amava verdadeiramente Adriana , e estava certo de possuir o que ella tinha de mais encantador -- o corarão . O amor tem uma força incalculavel , infinita ; e quando se arraiga de veras ao coração , não ha conveniencias que se respeitem , conselhos que se attendam ; esquece-se familia , patria , amigos , a honra titubia muitas vezes , o mundo , finalmente , desapparece da imaginação , antolhando-se , apenas , um deserto immenso , habitado unicamente pelo ente a quem amamos . D. Jorge fazia consistir a sua felicidade na posse de Adriana , por isso , o seu unico desejo era estar junto d' ella , receber e tributar mil caricias , que lhe embriagavam a alma , divinisando-lhe a existência . Teve , porém , que resignar-se , sugeitando-se a essa fatal lei do destino , que impiedoso apenas concede ao homem , por cada mil gosos provaveis , um instante de sonhadas delicias . As horas de sublime quietação , e de suprema ventura , tinham que terminar . Tambem a açucena é candida e pura , e , comtudo , fenece ; tambem a avesinha inoffensiva e meiga é victima do desalmado caçador . A felicidade é como a ave e a flor : tem por algoz o tempo , ou o mundo . Qual dos dois será mais destruidor ? O pae de D. Jorge , vendo que seu filho não regressava à capital , escreveu-lhe , intimando-o a voltar immediatamente . O pobre moço ficou deveras consternado por similhante intimação , que o obrigava a afastar-se da sua querida Adriana , e tambem por ignorar o motivo que levara seu pae a ser tão breve e terminante . Porém , que remedio senão partir ? Jorge respeitava seu pae , não com esse respeito , filho unicamente do medo , mas com o que parte da intelligencia . Comtudo , assustava-se com a idéa de communicar a Adriana um apartamento , ainda que temporario . Conhecia optimamente que o amor é egoista , e que , portanto , uma separação , por muito pequena que seja , affecta sempre qualquer coração amante . Todavia , era indispensavel que Adriana soubesse de tão imprevista partida . Jorge fez os seus preparativos de jornada , e dirigiu-se a casa de Adriana . Esta , ao ver o aspecto de partida do homem que era toda a sua ventura , sentiu um terrivel aperto de coração . Separar-se do seu Jorge , sem ter preparado o coração para a dor provavel de um despedimento imprevisto , sem ter pedido forças á sua alma , conselhos á sua rasão , coragem á sua fraqueza , era o que lhe parecia impossível . Similhante realidade magoou-a extremamente . -- Então o que é isso , Jorge , partes ? perguntou ella angustiosamente . -- Parto , sim , meu anjo ; porém , a volta será breve . -- E que é que te obriga a partir ? -- Uma intimação de meu pae . Bem vês que não devo esquivar-me . -- Porém , o motivo ? -- Ignoro-o , e é isso que me faz temer um pouco . Não sei se algum mau accidente entraria na casa de meu pae . O rosto de Adriana soffria gradualmente uma transfiguração dolorosa . Dissera-se uma variada cristalisação de saes , tal era a contracção daquelas feições regulares e bellas . O fidalgo , vendo tão saliente amargura , sentiu o coração trasbordar-lhe de cicuta . Um gesto bastara para que elle conhecesse o fel que derramava , bem a seu pesar , no peito da pobre Adriana . A mudez é para os amantes verdadeiros uma linguagem . O amor puro é tão sublime , que se confunde , na percepção , com o Omnipotente ; Deus falla-nos sem que oiçamos um unico som : com o amor succede o mesmo . Dizer amor , é dizer Deus , ambos são puros como um seio de virgem . Jorge olhou Adriana com uma aguda tristeza , que mal tentava disfarçar , e disse : -- Porque esse pesar que de prompto annuveou a tua limpida fronte ? Descreste acaso do teu Jorge ? O visivel esmorecimento , que o teu rosto denuncia , em que se baseia ? Bem sei que uma separação entre quem se ama nunca transpira alegria ; porém , deverá ella dar nascimento á desesperança ? Offendes- me com a tua descrença , Adriana . -- Cala-te , Jorge , cala-te , que muito mal me fazes com as tuas palavras . o que sinto não é descrença , é saudade prematura , e , para que o negar ? duvida . Nota , porém , que não és tu o motor da minha falta de confinça , oh ! não , que muito confio no teu amor ; o que dá aso á terrível incerteza de que estou possuida , é teu pae , teu pae envolto no farto manto de nobreza , teu pae , cujo orgulho jámais consentirá que seu filho espose a miseravel filha d' um burguez . Oh ! como esta idéa me punge e dilacera a alma ! -- Socega , Adriana , disse Jorge , a quem as duvidas da sua desposada começavam de inquietar . Os teus receios são meras aprehensões , apenas ; não devemos , portanto , affligir-nos com um mal que nos não sobreveio , e que , talvez , nunca nos acommetta . -- Tens rasão , Jorge , objectou Adriana disfarçando o seu intimo soffrer , e tentando acalmar o leve encapelamento do rosto de Jorge , signal evidente de próxima borrasca . Sou uma louca em conjecturar coisas que nos atormentam . É bom combater o mal que chegou ; porém , é péssimo exacerbal- o antes do seu nascimento . A minha culpa , comtudo , merece absolvição , por ser filha do amor que te consagro , e do muito que temo perder-te . Oh ! mas expulsemos esses maus pensamentos , e fallemos da nossa felicidade futura . -- Sim , fallemos d' esses dias de oiro , que juntos havemos de passar ! ... exclamou Jorge , cheio de amor e completamente despreoccupado . Os dois apaixonados amantes sentaram-se um perto do outro -- porque o dialogo precedente tivera logar no vão da janella que dava sobre a estrada -- entrelaçaram as mãos , apertando-as com paixão , e começavam de novo de semear no futuro as mais agradaveis e odoriferas flores , quando o som rouquenho da corneta da mala-posta se fez ouvir , som , para elles , mais terrivel que o da trombeta do juizo final . Ambos estremeceram instantaneamente , como se houvessem collocado as mãos sobre um apparelho electrico . Olharam-se , e esse olhar de fogo dizia : " tanto amor vae ser separado ! ... " A carruagem aproximava-se . D. Jorge levantou-se , não largando a mão de Adriana , que estava gelada e tremula . -- Adeus , meu anjo ! disse elle preso da maior commoção . Confia em mim , e tem fé no futuro , que nos encherá de delicias ! Adriana não poude responder ; sentia que as forças a abandonavam . Jorge , impedido pela paixão , apertou-a nos braços , pela primeira vez , e depoz sobre a face gelada um beijo de fogo . Effectivamente , a ardencia aquentou a pelle mimosa , porque um leve colorido assomou ás faces da donzella . A commoção da amante não conseguiu apagar o pudor da virgem . Jorge precipitou-se pela porta , fugindo aos impetos do seu abrasado coração . Era tempo ; mais um segundo e seria tarde , a carruagem teria passado . Adriana correu ao muro do jardim , palida , tremula , e disse n ' um tom , meio afflictivo e meio melancholico , notando-se-lhe na falia uma saliente tremura : -- Adieu , George , peut-être à jamais ! Estas palavras , repassadas da mais cruel amargura , foram proferidas em francez , para não serem percebidas pelos demais passageiros . Em seguida , Adriana olhou em roda , colheu á flor que menos lhe distada da mão agitada , e arremeçou-a a Jorge , que se sentava na almofada da carruagem . Fatal destino ! horrível augurio ! A flor colhida ao acaso ... era um martyrio ! Regresso a Lisboa O coração humano é frágil como o vidro . Embora uma porção de individuos apregoem a sua fortaleza moral , para mim é de fé que é esta uma regra que não possue uma unica excepção . O homem , engolphado n ' uma supposta philosophia , julga-se couraçado contra todas as paixões , proclama em alta voz a sua firmeza de pensar , e , um bello dia , porque uma mulher , apesar da superioridade do seu espirito , o olhou com uma indifferença cheia de altivez , tenta subjugal-a , e , se ella resiste , eil- o rojando-se-he aos pés , ralado pela nenhuma importancia que essa mulher lhe tributa , e morto por que ella se digne , uma vez sequer , olhal- o de frente , e responder-lhe a uma das suas palavras . Eis , pois , abatido esse septicismo apparente . Septicismo , castello de fumo , que o sopro d' um desejo malogrado lança por terra ... Donzellas desprezadas , moços desditosos em negocios de amor , quereis submetter de prompto o vosso tyranno ? Passae da escravidão ao poderio senhorial , e vereis que sublima metamorphose se opera no vosso viver amoroso . Se o coração humano tem a desgraça de ser assim organisado ! só depois do bem se definhar se reconhece a bondade do passado , e a horribilidade do prezente . O homem ama a mulher em duas épocas bem distinctas : quando casa , isto é , quando a vaidade lhe vem enebriar os sentidos , e quando ella morre , isto é , quando esse ente creado por Deus para allivio e consolação do homem desapparece para todo o sempre ! Jamais imaginam o vacuo ; só o positivo lhes faz crer n ' elle . Já se vê , pois , que embora nos julguemos extremamente fortes , moralmente fallando , o tempo , esse perpetuo destruidor da materia , vem sempre , muitas vezes a pesar nosso , derrubar o edificio que haviamos construido , e que reputavamos indestructivel . D. Jorge de Mascarenhas não era supersticioso , julgava-se até robusto em materia de superstição , mal terrivel que tantas victimas tem immolado ; comtudo , chegou-lhe tambem a sua vez de ser atacado de frouxidão . A flor que Adriana colhera ao acaso , e lhe arremeçara , que , como dissemos , era um martyrio , junta ás palavras memoravelmente tristes , que a virgem proferira em francez , alliada ainda ás duvidas por ella tantas vezes expendidas , e outras tantas por elle rebatidas , tudo isto , ligado em terrivel fusão , lhe incutia n ' alma o mais cruel sofrimento . Aquella flor deixara de ser para elle uma simples planta : tornara-se um desastroso symbolo . Similhava-se a essas aves agoirentas , percursoras infaliveis da tempestade . D. Jorge de Mascarenhas , no fim d' uma jornada , tão incommoda quanto terrivel , por causa dos lugubres pensamentos que lhe haviam assaltado a imaginação , e trasbordando de saudades , chegou , finalmente , a casa de seu pae . Um coração assombrado Entremos agora com o leitor no gabinete de s . ex.ª o sr. marquez do Açude , pae de D. Jorge de Mascarenhas , e oiçamos o dialogo que vae seguir-se , porque está em intimo contacto com o fio principal d' esta historia . -- Vem cá , Jorge , disse o marquez , deixando entrever nos macilentos láaios um expressivo sorriso . Pelo que vejo , o ar dos campos fazia-te esquecer que , a bastantes leguas de distancia , teu pae te esperava ancioso e cheio de saudades . Confessa que o nome de ingrato te não é mal cabido . Jorge estava maravilhado pela rara bonhomia de seu pae , porque o marquez era um d' esses typos altivos , que interpretam a nobreza como uma soberania absoluta , e que julgam possuir os seus foros heraldicos no cimo do nariz , por isso , não baixam jamais a fronte , com receio que elles se deslizem precipitadamente , internando-se , com a violencia da queda , no solo , ficando d' essa forma para sempre perdidos . -- Engana-se , meu pae , os deveres de filho não foram despresados , nem a ingratidão me deve ser applicada , porque o meu coração conservou sempre a amisade que os extremos paternaes de v. ex.ª souberam conquistar . Longe , como estava , nunca o nome de meu pae foi olvidado , nem jámais a sua lembrança me deixou de visitar com uma corôa de saudades na fronte . -- Porque , pois , tanto te demoraste ? perguntou o marquez , lançando a seu filho um olhar escrutador . D. Jorge poude vencer uma leve commoção . -- Porque sentia que a vida simples da natureza que me rodeava se edentificava commigo , tornando-me a existencia tão brilhante , como a magestade singela que ostentava . Quando estendia a vista por sobre aquellas verdejantes campinas , sentia dilatar-se-me a alma e ennebriarem-se me os sentidos . O socego do campo fazia-me esquecer dos vaevens da corte , e concentrar por tal forma a felicidade , que a desgraça , de que o mundo tanto abunda , apresentava-se-me vagamente como um mitho . -- Bravo , bravo , como vens poeta ! disse o marquez , franzindo levemente o sobr'olho . Pelo que vejo , não voltavas á capital por causa de algum volume de idyllios que tentavas elaborar ? -- Não , meu pae , contentava-me em lêr no livro da creação , cujas paginas rescendem aromas deliciosos , malisadas pela celeste poesia que as esmalta . -- É tal o ardor do teu expressar , que se a tua estada no campo se prolongasse , renegarias a nobreza do nosso nome , e farte- ias ... modesto pastor . Realmente , é muito para preferir a manta remendada do camponio , aos pergaminhos que nossos avós tão honrosamente conquistaram , e nos legaram . O marquez , fallando d' esta fórma , deixava transluzir uma ironia repugnante , acobertada , comtudo , com uma jovialidade mal fingida . Jorge sentia-se levemente indignado . -- Meu pae exagera ; entre Cresus e Job ha uma grande distancia , e toda a distancia tem um meio . O ser nobre não impõe a condição de só admirar o soberbo edificio da cidade , e despresar a singela cabana do camponez . A perfeita disposição e simplicidade do colmo satisfazzem , muitas vezes , tanto a vista , como a pesada architectura d' um palacio . O rio é menos precioso e magestatico de que o Oceano ; comtudo , tem tambem a sua importancia , e a feição do bello é n ' elle muito mais pronunciada . As suas margens , mais ou menos pitorescas , refrescam , em quanto que a immensidade do mar escalda . Jorge sentia-se como em terra estranha ; a vellada ironia de seu pae torturava-o . Resolveu , pais , passar a negocio mais serio , e em que a franqueza occupasse o seu respectivo logar . -- Porém , meu pae , continuou elle , ainda me não disse o motivo que o levou a apressar tão terminantemente a minha vinda . Confesso que receiei que inesperada catastrophe houvesse assaltado o nosso lar ; todavia , ainda não apercebi a menor mudança que podesse entristecer-me o coração . -- De certo , pois que não é de tristezas que temos a tratar , muito pelo contrario , dum assumpto alegre , e que tende á tua felicidade . Se assim não fôra , não abreviaria tanto a tua vinda ; porém , era tal a minha anciedade , que não pude resistir ao desejo que tinha de te annunciar , o mais breve possível , o teu risonho futuro . D. Jorge de Mascarenhas , longe de se alegrar pelas promettedoras palavras de seu pae , sentiu um estremecimento repentino e doloroso . Vago e ao mesmo tempo terrivel presentimento o assaltou repentinamente . Sem saber porque , lembrou-se de Adriana . Caprichos do inexplicavel ! Mysterios do coração ! -- Muito me lisongèio , meu pae , por lhe ouvir palavras que comprehendem um sorriso , redarguiu Jorge , tentando dissimular a leve perturbação porque passara . -- O dever d' um pae é cuidar sem descanso na prosperidade de seus filhos . Não ignoras que não sou uma excepção d' essa regra , antes me preso de ser um dos seus mais fieis executores . -- Faço-lhe justiça , meu pae , atalhou D. Jorge , com o coração repassado de incerteza , e receando pelo desfecho do prologo encetado por seu pae . O marquez recolheu-se um momento , signal evidente de que ia entrar na acção . -- A classe dos nobres , na qual occupamos um logar distincto , tem restricta obrigação de cuidar dos seus fores , e conservar a arvore genealogica , de que somos um ramo . Por isso , resolvi fazer um enxerto maravilhoso , ligando a nossa casa á dos condes -- S. Francisco ... -- Não o comprehendo , meu pae ! murmurou o pobre moço , attingindo , bem a seu pesar , o fim de tal revelação , mas tentando ainda illudir-se , como um esforço supremo . -- Eu me explico mais claramente , disse o fidalgo , assumindo um tom decisivo . O conde de S. Francisco propoz-me a tua união com sua filha , e eu entendo que similhante enlace é em tudo vantajoso . A casa de S. Francisco allia a uma nobreza de antiga data , e de irreprehensivel memoria , uma riqueza fabulosa . Um tal conjuncto não deve despresar-se , por isso , acquiesci de prompto , manifestando o quanto me penhorava similhante distincção . Imagine-se o que Jorge sentiria ao ouvir uma revelação que em tudo contrariava os seus sonhos de ventura . Cada palavra soltada por seu pae lhe cahia no coração , como gelo em agua fervente . A figura angelica de Adriana apresentava-se-lhe vagamente na imaginação . Via-a aproximar-se , aproximar-se , tocal- o , emfim , com os seus porpureos labios , e , depois , quando tentava segural- a em frenetico amplexo , afastar-se , afastar-se , até perder-se n ' um horisonte de fogo . Um minuto bastara para destruir seculos d' uma ventura sonhada . Jorge , na sua imaginação escandecida , afigurava-se-lhe impossivel que os labios de seu pae podessem descerrar-se para proferir palavras que envolviam um veneno mortifero . Eram como um raio , que lhe penetrava no coração , assombrando-lhe a alma . -- Porém , meu pae , balbuciou o pobre moço , com as feições horrivelmente contrahidas , deve concordar que o casamento envolve uma existencia inteira ... e n ' esse caso ... -- Previno-te de que não admitto a menor replica . Dei a minha palavra de nobre , e um fidalgo nunca se retrata .