CARLOS MALHEIRO-DIAS Filho de as Hervas ROMANCE LISBOA LIVRARIA EDITORA TAVARES CARDOSO & IRMÃO 5 -- LARGO DE CAMÕES -- 6 1900 FILHO DE+AS HERVAS PRIMEIRA PARTE Estava uma noite fria de inverno ; e sob o ceu toldado de nuvens , sem estrellas , Coimbra scintillava no escuro , coroada de luzes . D ' entre a espessura vinha o rumor monótono do rio . Rente a uma das portas havia um vulto de mulher e um vulto de homem , á espera . Comprado o bilhete para Lisboa e despachada a bagagem , Manoel veio ter com o amigo á porta da estação . -- Está tudo prompto ? -- Tudo . Falta um quarto de hora . Podemos conversar ainda um instante . O amigo puxou a gola de pelle de lontra do capote e tirou uma fumaça do cigarro , calado . A brasa illuminou por momentos , indecisamente , a cara da mulher : uma tricana morena , de olhos pretos , embrulhada n ' um chalé ; e a do rapaz : um homenzarrão chamuscado pelo sol , com um bigode preto de mosqueteiro . Manoel de novo fallou , passando o braço pelo pescoço do amigo . -- E o pequeno ? Posso estar descançado ? Não è nada ? -- Dentes ; são dentes . Vae socegado . Com tres dias de febre tudo passa . Quantos mezes tem elle ? -- Três . Três mezes e quatro dias . E a mulher , n ' uma voz de canto , a doce voz de Coimbra , murmurou : -- Coitadinho ! Mas Manoel queria saber tudo , afflicto desde pela manhã com aquella carta em que a mãe contava a doença do filho , ardendo em febre . -- Pode ser perigoso ? Dize ... -- Não . O nascer dos dentes é tão natural , não te parece ? como o crescer de altura . Se a creança fosse doente e fraca , sim . -- Então ? -- Podia ter convulsões ... Isso era grave . -- Como se chama o seu filho , senhor||_Manuel Manuel|_Manuel ? -- tornou a voz meiga e quente da mulher , em cujo timbre havia o eterno canto de quem recita lentos e musicaes alexandrinos . -- João . Ha de chamar-se João . Arrastaram passos no terreiro . A sineta badalou dentro , na gare . Á pressa os dois amigos abraçaram-se . -- Até á volta . -- Boa viagem . Debaixo do chalé o braço da rapariga surgiu , claro na manga do chambre branco , como um pescoço de cysne d' entre o agasalho das azas . Manoel apertou a mão quente da tricana , de olhos resplandecentes . Mais uma vez o amigo gritou : -- boa viagem ! -- e já dentro , Manoel voltou-se ainda , a velos partir pela escuridão , de vagar , chegados um ao outro , em caminho da ponte . Na gare o comboio estacava n ' uma linha negra e recta ao longo do caes . Como fechassem já as portinholas Manoel subiu para uma carruagem vasia , aninhou-se a um canto , accendeu um cigarro , pensando no amoroso par que ia em caminho de Coimbra , dizendo coisas ternas , simples como beijos . Lembrava-lhe tanto a sua vida , esse tranquillo e romanesco amor do companheiro , que todo o seu coração os seguia , no rumo de casa , penetrando na cidade adormecida , pelas ruas ermas áquella hora adeantada da noite . Desde o começo acompanhara o amigo na aventura d' esse amor de estudante , nascido pelo S. João , no anno atrazado , a ouviFa cantar nas fogueiras . Por essa noite de verão recamada de astros , a falia portugueza extasiara-os , com a sua melopeia de órgão , cantada por essa voz de ternura em que o sentimento ingenito da raça desabrochara completo e perfeito . O Queiroz deixara-se emfim vencer , animado pelo exemplo de Manoel , e acabara por prendel- o de tal maneira aquelle amor , que toda a sua existência se modificou até ás raízes e a muliíer o dominou logo ao primeiro beijo . Quantas vezes Manoel lhe tinha contado o ineffavel encanto da sua primeira conquista : -- a costureirita encontrada por uma tarde á esquina do Rocio ! Pouco a pouco fòra-o seduzindo com o vivo exemplo da sua ventura , exaltando a profundidade d' esses corações humildes que se dão n ' um só abraço para sempre . E n ' essa vehemente obra de sedução Manoel puzera toda a verdade . Com que sede de ternura tinha amado essa doce creaturinha , na gratidão de possuir pela primeira vez uma creatura , carne e alma , pagando-lhe o orgulho de a saber completamente sua , vivendo da sua vida , vendo pelos seus olhos , desejando com a sua vontade , abandonando-se toda , inteiramente ! Só a esse tempo conhecera o encanto de um primeiro amor quasi nupcial e quasi puro , pago do seu plebeismo pela profundidade da sua paixão e pelo repouso infinito da sua alma . Assim , os amores dos dois tinham crescido a par , como duas roseiras em volta de uma estaca ; amores collaços que um mesmo romantismo amamentou . Quando Anna viera a Coimbra passar dois dias , festejara-se no Choupal , com guitarras , o encontro das amantes . O Queiroz tinha mesmo improvisado duas quadras e de então para cá , animado , fazia versos . Manoel ia dar com elle ás tardes , improvisando , com a tricana sentada nos joelhos . Sobre esse amor exageradamente romântico , com todas as aggravantes de uma sinceridade ingenua , que o levava a comprar nas livrarias , ás escondidas , o Noivado do Sepulchro e as Rosas Murchas . Queiroz parecia o mesmo , desdenhoso e rude , temido de pulso , possuído de um desamor a fidalguias que lhe dava brado entre republicanos . Mesmo a principio antipathisara com elle , vendo-o áspero e bronco , irritante e vaidoso , no seu período de capas á hespanhola e paixões de viella , aureolado como um cavalleiro andante por uma scena grave , com navalhas , na Baixa . Só mais tarde , approximados á entrada de uma casa de penhores , Manoel poude vêr claro n ' essa alma simples e quanta fraquesa de coração escondia a fortaleza d' aquelies pulsos de labrego , de que o Queiroz dizia , faustosamente , que um murro ourava um touro . Incapaz de se acclimatar na estúrdia de Coimbra , tristonho e timido , essa amisade inesperada crescera rápida dentro do vazio da sua vida e uma ascendente irmandade de alTectos acabara de amarrar os dois , intimamente . Mais tarde , em Setembro , quando Anna tivera o filho , só o Queiroz lhe fora dar o abraço de coragem . Balouçado pelo comboio , de olhos postos no poço de treva que a janella abria sobi-e a noite , toda a historia de amor passou , como um pequenino romance de ternura , começado nas ferias grandes , havia já mais de um anno , desde a primeira vez que faltara á costureira , á esquina do Kocio , n ' essa longínqua noite de verão ; tão morna e calma que parecia ainda sentir a suavidade d' ella . Tinham acceso os candieiros . Apenas um resto de crepúsculo clareava mansamente a noite tépida . Carros e pregões enchiam de rumor a grande praça onde as fontes cantavam monotonamente nos grandes jorros d' agoa . Hora de transição , quando já desce a noite , a multidão acotovela-se nos passeios , arrastando lenta , na fadiga de um dia de trabalho , entre as chapas de luz das montras , que cortam as paredes de lençóes luminosos , e a linha dos grandes candieiros de ferro , vigilantes e accesos . Até á fachada grega do theatro , severa e branca ao crepúsculo , com a sua columnada jónica ao centro , onde o relógio põe uma nódoa espherica de luz , a praça estende-se mais longa , n ' um rumorejo de folhagens e ruido de vozes , com a cintura dos trens a toda a volta , o lento rodar dos americanos , todos os ruidos da cidade parecendo esvasiar no grande rectângulo da praça , a cujo centro a linha branca da columna corynthia ergue para os céus , de onde desce a penumbra , a suggestiva saudade de uma civilisação lapidar que já morreu . N ' esses princípios de noite , pelo verão , o sangue girava-lhe mais quente pelas veias , atordoando-o , reformando-lhe de audácia a timidez , no roçar pelas mulheres , baralhado na multidão que vae para o theatro , n ' essa ardente suggestão de amor que a noite traz . Fora por um fim de tarde assim que dera em seguir o vulto apressado da costureira , a futura mãe dolorosa do seu primeiro filho ; e lembrava-se da timidez com que se approximara d' ella , forcejando por sorrir , dando-lhe as bôas-noites , como ás outras , sem lhe comprehender a virtude assustadiça , sem respeitar o seu sagrado pudor de rapariga honesta ; e da sua vergonha ao ouvir a vozita tremula e humilde em que ella lhe pediu para a não seguir . Depois , todas as noites , seduzido de repente pela aventura , as horas levadas a esperal- a á esquina do Chiado , estremecendo ao vela aproximar-se , apressada , fugida aos apertos , desviada dos homens , com uma mantilha pela cabeça , o corpo justo num casaquinho pobre de fazenda azul com botões de madrepérola . Mas já não lhe fallava , timido e respeitoso , mostrando-se apenas para que ella o soubesse alli á sua espera , contente de a olhar e ir-se embora . Uma noite em que a esperava , no habito da aventura platónica , tão enamorado já da sua carita pallida e dos seus grandes olhos húmidos , justamente ao virar do Chiado para o Rocio , um homem cortou o passo á costureira , acotovelou-a brutalmente , como elle também fizera da primeira vez em que a vira . Era um sujeito gordo , pachorrento no andar , papudo de queixo , com uma nuca onde o cabello começava a embranquecer . A rapariga apenas estremecera , mais pallida sob a affronta , apressando o passo deante da perseguição com que a ameaçava o sujeito gordo . Manoel viu-a passar com os olhos esgaseados de medo , muito cosida á parede , perseguida de perto pelo homem ; e antes que tivesse passado o Arco do Bandeira no seu passinho de fuga , Manoel arrojava-se , indignado , decidido a defendera das propostas brutaes da creatura , possuído de um ciumento furor que lhe atirou n ' um instante á face com uma onda de sangue . Mas logo ás primeiras palavras , atabalhoadas , sem nexo , o homem endireitava-se sob a provocação inesperada . E como Manoel persistisse , a face inflammada , tratando-o de " cavalheiro " , o sujeito encrespou-se , lançou com uma voz áspera a pergunta decisiva : -- Com que direito ? -- É minha irmã ... Então o homem pedira desculpa , tirando o chapéo , sumindo-se na sombra de um portal , ás arrecuas . Desde essa tarde começaram a fallar ; de coisas vagas nos primeiros tempos , -- os palhaços do circo , o trabalho do atelier , -- como dois irmãos que de ha muito se não vêem . Manoel achegava-se á sua simplicidade , acompanhando-lhe as admirações , na participação dos seus gostos de pobre e das suas fantasias de enclausurada . O seu grande sonho , o maior de todos , era ir a S. Carlos , para as torrinhas , ouvir cantar uma opera , presencear os reis no camarote , fartar os olhos humildes no brilho das jóias , inundar os ouvidos de submissa com todas as harmonias da orchestra . Ás vezes , de inverno , sahia com uma companheira , corria ao largo de S. Carlos , fascinada , vêr chegar os trens e descer as fidalgas embrulhadas em pelles e veludos . Quando lhe passava pelas mãos um vestido de baile , na modista , distrahia-se em sonhos infinitos , parando de coser , a imaginar o corpo de mulher que o havia de pôr . E eram assim assomos de fantasia n ' aquella almasiía de pobre . Só mais tarde ella lhe contara toda a vida de miséria e desconforto , orphã de pae e mãe logo aos dez annos , aprendiz n ' ama costureira da Rua da Prata , recolhida por uma tia velha e ruim que a maltratava . D ' esse tempo de sujeição ficara-lhe uma saudosa melancholia , tendo visto morrer toda a familia quando a tia morreu de um aneurisma , por uma manhã de inverno . Vivia agora n ' um quinto andar da rua dos Fanqueiros , onde tinha alugado um quarto sem janella . E o seu maior pesar era aquelle : não ter sequer uma janella sua . Trabalhava muito . De inverno fazia serão , levando noites inteiras debruçada sobre a maquina de costura , adormecendo às vezes com a face cabida em cima de um corpete de baile ou de uma saia de setim , por uma sede honesta de independência , nascida do fundo da sua miséria , crescida na continuidade do seu soffrimento . Insensivelmente , Manoel ia-se entregando , familiarisado com a condição triste da plebeia , n ' uma affectividade cada vez mais intensa pela doce e submissa creatura . Acontecia-lhe tremer olhando o lento arfar dos pequeninos seios de Anna , juntos sob a fazenda do vestido como duas fructas nascidas da mesma haste . Ás vezes , vendo-lhe os olhos humedecer-se quando guardava por mais tempo a mão d' ella entre as suas , punha-se a duvidar , cuidando perceber que todo o seu corpo virgem estremecia , n ' um alvoroço escondido , como já amestrado no prazer ; e de uma noite em que a acompanhara até casa , sem poder mais , envolvera-a em um longo abraço de posse , pisando-lhe os seios contra o peito , empurrando-a para o escuro . Abandonada por um instante , na surpresa d' aquella violência , Anna resistira , n ' uma revolta de virgem que se defende e elle ia a retirar-se , humilhado e confuso , quando eila , n ' uma voz estremecida de lagrimas , lhe pediu para ficar . Escondida na sombra , a face alagada de pranto , contara-lhe tudo , por uma necessidade imperiosa de desabafo ; no remorso de o ter enganado , sabendo bem ser todo o seu amor que sacrificava n ' essa confidencia da sua pequenina alma intrépida de rapariga honesta . A meio de um abandono gélido de sosinha , presa pela esperança de um casamento que de novo lhe trouxesse um lar e uma familia , deixara-se seduzir por um empregado dos caminhos de ferro que lhe promettera casamento . Eram d' esse tempo , na vergonha de se sentir perdida e abandonada , os mais dolorosos dias da sua vida , tentando mesmo suicidar-se com phosphoros , salva a tempo , levada ao hospital , obrigada a confessar a razão do seu crime ; e a sua orgulhosa recusa de casar com o homem que abusara da sua mocidade , quando na policia lhe promettiam obrigal- o por lei a reparar a culpa . Por muito tempo a confissão d' aquella falta esfriou ò amor de Manoel . Via constantemente o outro , que a tivera virgem e perfeita , colhendo os seus primeiros beijos de amorosa e os seus primeiros delíquios de rapariga púbere . Mas pouco a pouco a ternura da linda creatura foi fechando essa fonte de orgulhosa e ciumenta frieza e uma compaixão suave renasceu ao fundo do seu coração fraco de amoroso . Só muito mais tarde a tinha tido , banhada em lagrimas de felicidade . Sempre aquella paixão soífrera o freio de uma desigualdade , que nunca deixara conjugar em absoluto as suas duas almas ávidas n ' um grande amor vivo e sem macula , mas nunca também , entre os sonhos , algum lhe deixou entrever que na egualdade sequer de um casamento a vida mergulhasse em horas tão infinitamente doces como aquellas . A vida foi boa e fácil até ao dia em que Anna sentiu que de tantos beijos algum descera emfim a fecundar-lhe o corposinho airoso . O tempo foi deformando barbaramente o idolo : a mãe ia rompendo a crysalida de amante . Já tarde , Manoel reparou no perigo d' essa situação que o tornava pae aos vinte e um annos , n ' ura começo de vida por esboçar sequer , e esse amor todo de sentimento passou a ser um amor todo de pensamento . Sentia-se culpado ; accusava-se de haver despedaçado uma vida . Talvez ella tivesse casado se a não perseguisse com o seu desejo e desviasse com o seu amor para aquella loucura sem remédio . Punha-se às vezes a pensar que preciosa esposa ella daria , assim honesta , boa , trabalhadora e passiva ; e sentia-se mais culpado do que o outro , tendo-lhe vencido a virtude resistente de experimentada . Anna também soífria , percebendo que o filho , deformando-a , lhe roubava o terno amor de Manoel . Foram tristes para ella os últimos cinco mezes , campo pacifico da rivalidade eutre o filho que creava nas entranlins e expulsava o pae , fazendo ~ se um logar no seu coração ; arrecadando , ainda invisível , a ração de amor a que tinha direito . Por seu lado Manoel inquietava-se , n ' um desassocego crescente , medindo de longe a catastrophe , toda a sua vida por um momento alvorotada , as ambições recuadas para mais tarde . Amigos aconselha vam-n* ' o a esquecer a mulher e a abandonar o filho . Um dos mais chegados , que era sócio da Mocidade Catholica , de repellão , concertando a gravata , decidira á sabida da missa do Loreto que tudo aquillo era uma porcaria . N ' um instante viu-se só , o coração repellindo bruscamente os falsos affectos de outros tempos , n ' uma repulsa que vinha de todos os cantos do seu corpo pelos amigos da véspera , egoístas e severos , contaminados desde o berço pelo preconceito feroz e deshumano . D ' esse despreso arrebatado , d' essa indignação maculada de nojo , reflorescera mais puro o amor compassivo e terno pela amante perdida . Alugara-lhe um terceiro andar com janellas para o rio , pagando-lhe prodigamente o seu capricho modesto , saciando o seu humilde olhar de soíTredora com os largos horisontes do rio immenso e profundo . Chegara depois o dia . Dia triste de chuva , escuro e turvo , onde apenas abriu o azul dos pequeninos olhos da creança . Corria-lhe um estremecimento á flor do rosto lembrando o terrível momento de anciedade , um ultimo grito dilacerante e ensopado de dôr -- e quando nos seus ouvidos rolava ainda a vibração aguda d' esse berro de agonia , o vagir brando do filho que nascera . Esse primeiro vagido de um sêr feito com a sua carne e com o seu sangue tinlia repousado na sua alma aberta como n ' um echo eterno ; ouvia-o sempre que o chamava do fundo da sua lembrança . N ' esse dia , ao entrar em casa para jantar , ficara um longo momento olhando a mãe , á espera de perceber , sob a sua fronte serena , falia r a voz do sangue , a annuDciar-lhe o neto que a fazia avó . Mas nenhuma ruga veio sulcar a serena fronte . A voz calma de todos os dias perguntou-lhe , no abandono da mão que elle beijava : -- Que fizeste até tão tarde ? Agora ia tornar a vêr tudo o que amava ; e a lembrança de que na bocca do pequenito podia haver já duas pequeninas pérolas , fazia-o sorrir enternecidamente . Quando o comboio rolou na estação , ainda o comboio do Porto não chegara , retardado na Pampilhosa por um desmancho na machina . Manoel desceu , e em frente de Coimbra , que era ao longe um rebanho de luzes tresmalhado n ' um outeiro , de novo uma leve tristeza o invadiu , pensando no amigo , mais feliz , sem um filho que lhe desviasse o amor da amante , absorvendo-o . Cortes de rio lampejavam entre troncos nus de choupos e só um grande pinheiro manso rumorejava a meio do charco espesso de treva que ensopava as terras . Teve de esperar quasi um quarto de hora , o comboio que devia chegar ás onze e trde Sousellas ás onze e trinta . Sosinho na gare quasi deserta , levou o tempo a andar entre a cantina e os armazéns de descarga , até que um toque de busina rasgou asperamente o silencio da noite frigidissima . Os pharoes do comboio surgiram ao longe , raspando a terra á distancia como duas brazas desmaiadas , crescendo a cada segundo de entre um rumor de monstro esbaforido que chega de galope . Em um instante toda a machina appareceu de frente , de pescoço alto vomitando faúlhas , golfando vapor por entre as rodas , e o comboio entrou nas agulhas com um grito oíTegante de cansaço , rolou n ' um fracaço por sobre os desvios gyratorios , que resoaram , e parou ao longo do cães com um ultimo embate de ferros entrechocados . No wagon para onde subiu , apenas um velho , de óculos pretos , um lenço de malha embrulhado no pescoço , dormitava a um canto , os pês cobertos com uma manta de xadrez . Manoel arranjou-se na outra extremidade , na sombra da carruagem obscurecida pelos veladores verdes passados sobre as lâmpadas do tecto , e a viagem recomeçou , monótona , pela noite escura , na fúria de ganhar os minutos perdidos , parando á pressa nas estações , passando Pombal e Yermoil n ' uma vertigem , com velocidades de cincoenta kilometros por hora . Era-lhe impossível dormir , distrahido a cada instante , o espirito accordado , n ' uma continua alerta de anciedade . Acontecia-lhe sempre assim á ida para ferias , contando as horas que o afastavam do longo abraço da mãe , do conforto da casa , do grande amor sentimental de Anna . A vida de Coimbra , desnorteada e bohemia , sem aconchego e sem commodidades , no desleixo da republica barulhenta e desordeira , enfastiava-o . Havia justamente no hotel , -- o celebre hotel da D.||_Joanna Joanna|_Joanna , -- um estudante de theologia , trasmontano de mãos pelludas , que arrastava os dias de chinellos de trança , arrotando o caldo verde e as refutações Ha3kel , fumando depois da sopa , comendo o arroz com a faca e atirando ao soalho as espinhas do peixe , por quem sentia uma repugnância instinctiva e crescente . No demais era uma mocidade tenaz nas tradições da estúrdia coimbrã , poetas e maldizentes , heroes de comícios , fallando em atirar os Braganças ao Tejo emquanto lambiam a colher do arroz doce . Toda essa vida de acaso deixava-o indifferente , incapaz de se interessar , n ' um desapego enorme e invencível . Desde pequeno fora sempre ? ssim , meditativo e tristonho , gostando de estofos , refugiando-se na sala de visitas , com dias inteiros a arrastar pelos sofás , roçando a face pelo damasco das poltronas , sofifrendo de um vago delírio de grandezas , que o fazia chorar com um fato sujo , passando horas em frente a um espelho quando lhe vestiam uma roupa nova . As mulheres gostavam d' elle em pequenito , no prazer de o sentir alegre sentado no regaço , estremecendo ao menor rngir de seda e quando lhe passavam pelos cabellos loiros as macias mãos brancas coalhadas de anneis . Já homem , o mesmo amor ao luxo continuava , com contemplações em frente ás vitrines dos ourives e das. casas de modas , fascinado pela seda e pela jóia . Como era delicioso aquelle primeiro almoço na sala de jantar , de janellas dando para o Tejo , com os seus severos reposteiros de veludo verde , os buffetes resplandecendo de pratas e a mesa de toalha muito branca , onde a louça velha da índia scintillava ! Depois do pae se levantar , partir para o Banco , elle costumava ficar ainda á mesa , tomando lentamente o chá , vendo passar nas agoas crespas do rio os vapores de Cacilhas e as catraias . Depois , a mãe vinha sentar-se a seu lado , e ficavam os dois a fallar d' essa rude e glacial vida de Coimbra , no hotel da D.||_Joanna Joanna|_Joanna . Ás três horas , sem ter dormido um instante , o comboio parou n ' uma grande estação illuminada . Ao fundo da carruagem o velho despertou , erguendo a cabeça . Uma voz dolente de estremenho gritou entre o rumor das portinholas abertas e o arrastar dos passos no asphalto : -- Entroncamento ! demora vinte minutos ! Então Manoel desceu , a desentorpecer as pernas . Na sombra distinguiam-se massas escuras de wagons esperando a sua vez de viagem ; e a norte , o comboio da Beira-Baixa riscava um grande traço negro na escuridão . Dois homens curvados empurravam de vagar nos trilhos ura grande fourgon de portas abertas . Por um instante a estação viveu com a vida ephemera das passagens de comboios . A grande machina resfolegava , entornando baforadas de fumo n ' uma lenta nuvem negra que subia . Do tender vinha o ruido de um martello estilhaçando carvão para a fome do monstro . Ainda a norte , á frente dos armazéns de carga , pedaços de comboios dormiam nos desvios , apagados e inermes . O signal do guarda-freio abria na sombra uma branca pupilla vigilante ; e suspensos nas gruas discos verdes estrellavam a noite . Vultos embrulhados em capotes , de orelhas sumidas na carapuça , vagneavam somnambulos na plataforma cada vez mais deserta . Ao longe uma locomotiva parada respirava ruidosamente com o offego de um animal em prostração . Na cantina , a cuja porta tinha parado agora , um cavador emborcava uma malga de café . Ao fundo , uma turma esfarrapada de emigrantes esperava que a empurrassem para o comboio . Uma mulher magra , com a cabeça amarrada no lenço vermelho de algodão , remoia um pedaço de broa . O resto eram homens , esmagados n ' um banco , as pernas pendentes , o olhar vesgo de somno e de tristeza . Esteve um momento a olhal-os , até que um empregado os expulsou d' alli , aos berros . Houve na turba um ruido de tamancos , o arrastar dos soccos ; um dos da malta pergunta se é aquelle o comboio para Lisboa . Manoel estacara , encostado á parede , a velos passar , vagarosos como um bando de animaes captivos , carregando alforges atulhados de farrapos , devendo o bando ter caminhado toda a noite para caçar de manhã o comboio que os ia vomitar a todos na proa de um navio . De longe um grito rouco partiu da locomotiva quieta . Durante um momento os pharoes cessaram de brilhar , encobertos de fumo ; e a machina approximouse aos guinchos , derramando sobre os trilhos uma branca nuvem de vapor , como a espuma de um açude . O barulho cavo de um desvio gyratorio cortou o silencio da noite em três grandes palpitações ruidosas e de novo um silencio pesou na noite fria . Faltavam dez minutos para a partida . Em frente aos wagons de carga homens despejavam fardos na bocca rasgada de um fourgon e da carruagem correio vinha um bater constante de carimbo , n ' uma pancada monótona que nunca mais findava . Manoel recolheu-se , arripiado de frio ; e quando o comboio recomeçou a andar fechou os olhos , aconchegado ao seu canto , na sombra que as duas luzes mortiças das lâmpadas mal desfaziam em dois círculos trémulos no tapete . A agoa dos esquentadores esfriara . Sentia os pés gelados e tinha as mãos adormecidas dentro das luvas . Grescera- lhe um peso na cabeça , uma grande necessidade de dormir . Ainda por um quarto de hora esteve á escuta , reparando no ramôr surdo das rodas , áspero nas subidas , e na cadencia ruidosa da marcha . Por vezes a respiração da locomotiva era mais alta ; as vidraças tremiam sob os stores ; um estremecimento de pavor parecia correr por todo o immenso corpo do comboio até ao ultimo wagon , para socegar de novo lentamente . Uma meia inconsciência penetrava-o , embalado na monotonia d' aquelle rumor continuo ; e assim quieto ia recordando o filho como da ultima vez que o olhara , pequenino , aconchegado ao peito branco da mãe ainda doente . Uma das mãosinhas , minúscula e c6r de rosa , manchava apenas a alvura da camisa de Anna ; e a boquita ávida sugava o peito morno , veiado de azul como um mármore suave . A mãe adormecera , prostrada , depois de uma noite em febre . A luz direita da vela punha uma nódoa quente de ouro na alvura do seu peito descoberto e havia no oval d' aquelle rosto , de pálpebras descidas e pestanas compridas como antenas de insecto , um ligeiro escavado de soffrimento . Mas a bocca da creanca , fatigada , deixara de sugar o peito arfante ; a mãosita encolheu-se e o seio livre , á chamma doirada da vela , na brancura da carne e da roupa , abriu um pequeno circulo côr de rosa onde uma gotía de leite ti ^ emeu , escorregou e foi perderse na renda da camisa ... Á partida de Santarém , quando o comboio estremeceu ao primeiro arranco da locomotiva , Manoel acordou sobresaltado no espanto de haver adormecido . Ao fundo da carruagem o mesmo homem velho dormitava , a mão enrugada pendente , o cachenez preto enrolado no pescoço . De encontro ás vidraças já os transparentes verdes clareavam á luz nevoenta da manhã e as luzes de azeite , nos globos de vidro , palpitavam quasi mortas . O mesmo ruido monótono de ferragens acompanhava a correria do comboio , com o contínuo raspar das rodas , entre a trepidação da machina espavorida , varando os nevoeiros baços da manhã . Dormira uma hora , quando muito , e na surpreza d' aquelle somno breve , olhava as terras fumegantes onde as oliveiras derramavam immoveis sombras tristes . Só duas horas mais e o comboio rolaria na estação do Rocio , sob a marquise enfumaçada . Nunca , -- ia em três aunos que estava em Coimbra , -- ferias tinham levado tanto tempo a chegar . Haviam sido dois mezes e meio de anciedade , com setenta dias lentos á espera de um só dia -- o dia da partida . Já as seis horas de viagem llie pareciam eternas , na impressão de que o comboio mal andava , galgando de vagar as distancias enormes , atravez a planície fumegante e os olivaes cinzentos . Nos longes manadas de pinheiros mansos alastravam rasgando a neblina e estendiam-se campos embranquecidos de geada ao cimo dos barrancos defendidos por piteiras hostis , de um verde bronze , com apparencias de plantas guerreiras e artificiaes . O dia alvo , vaporoso e frio , ia traçando de vagar os contornos das coisas . Eram agora dois moinhos que passavam ao longe n ' uma altura , de azas partidas , como pássaros mortos . Pinhaes rompiam do solo em grandes rebanhos que se juntavam e misturavam nas dunas saibrentas e enrugadas . Mas logo adeante os terrenos chãos recomeçavam , esperando o rio , fazendo-se mais baixos e passivos para lhe arranjar um leito ; e as terras são feias e tristonhas , consumidas na sua paixão eterna pelo rio que lhes foge e as não quer banhar com a sua espuma . O comboio cortou pelas dunas alagadas , ribatejo acima . A paysagem desenvolve-se , húmida , -- com seus talhões de lodo entre os canaes barrentos , cheios com a maré , -- algida e nua , devastada em salinas , tiritante sob as compressas d' agoa , e ao longe , na penumbra da madrugada fria , a tremura do rio barra o liorisonte , escorrendo debaixo de um céo ensopado de névoa , branco e leitoso como uma immensa chapa de vidro fosco . Ás cinco e meia , com deseseis minutos de atraso , o comboio parou em Sacavém , n ' um lamentoso berro que repercutiu no valle nevoento até ao rio . Manoel correu a vidraça , debruçado , na contemplação das terras conhecidas . Nas agoas sujas catraias balouçavam ; e até ao longe , por detraz dos telhados sombrios , como um cannavial , o molhe de mastros surgia na bruma . A chaminé da fabrica de moagem fumegava no céo cinzento e o rio espraiava-se á esquerda , como um lago quieto . De novo em marcha , o comboio galgava distancias , na sua trepidação de rodas e choque de engates e correntes , com paragens breves em Braço de Prata e Olivaes , despresando o resto , no seu desdém soberbo de expresso que cumpre um dever chegando á hora da tabeliã . Manoel , de pé , ia seguindo o crescer da casaria , as edificações transbordantes da cintura ; e tudo lhe revivia saudades do seu tempo de idylio , passando as hortas desertas e abandonadas onde ia d' antes jantar em companhia d' ella , nos mezes abrazados de verão . Tremulas linhas de luzes traçavam ruas . O montão de paredes avolumava-se , atulhando de sombras espessas os terrenos , passando como um esboço por entre a névoa branca ; e lá para baixo , descendo até ao rio , desenhavam-se os bairros operários de Xabregas . Mesmo por um instante cuidou vêr a Calçada da Madre de Deus , n ' um grande canal barrado de nevoeiro . Voltaram depois as terras despovoadas e tristes , de olival e pasto ; e logo outra vez o rio e a cidade , as velas e as casarias , ruas ermas e brancas , salpicadas de luzes , abrindo pequenos nimbos de oiro no nevoeiro . Depois , as capulas azues da praça de touros surgiram ao longe e todo o edifício , n ' uma mancha vermelha , enorme , entre os troncos das arvores despidas , passou de relance , arrastando a visão alegre das festas , nos domingos de sol e de poeira . Ás barreiras os guardas agulhas carregavam a alavanca , erguendo a bandeira ; as pancadas sonoras das campainhas de alarme respondiam-se , vigiando a marcha do comboio , desviando-lhe os perigos , pondo alerta todas as estações , abrindo caminho ao monstro esbaforido e galopante ... E emfim Campolide , o aqueducto rendilhando de negro a neblina , o deposito circular das machinas á direita , de onde sania uma pequena locomotiva de manobras em silvos ríspidos ; o collegio e o hospício das irmãs dos pobres á esquerda , n ' uraa altura . Por uma azinhaga um grupo de trabalhadores passou somnolento , um instante parado a olhar o comboio . Dado o signal para a partida , quando a carruagem se embrenhou na escuridão do túnel , Manoel , de pé em frente á portinhola , sentia uma grande anciedade , espiando a treva . O comboio corria com rumores resoantes de bigorna , varando o negrume . Quando o túnel deixou de abafar o grunhido áspero da machina , Manoel avançou com a face encostada á vidraça , olhando a parede gottejante onde se quebravam ondas brancas de fumo ; e logo a carruagem reentrou na claridade nevoenta do dia . Sob a nave illuminada uma confusa vozeria vinha desde o fundo , das portas abertas ; e o comboio parou , com um estremecimento prolongado que fez resoar os pratos das defezas . Elle então , de pè , tendo levantado a gola do casaco , chegou a maleta para a porta , á espera de um carregador que lh'a levasse , debruçado na janella , olhando a grande estação ruidosa onde o comboio esvaseava os passageiros . Emquanto remexia nos bolsos , á procura do bilhete e da guia , voltava-se , despedindo-se do companheiro de viagem que dobrava tranquillamente a manta de xadrez . Era para tudo um grande olhar de amigo , ao tornar a vêr a enorme galeria enfumaçada com o seu janellão ogival abrindo uma grande mancha de claridade na parede do fundo , os muros recobertos de cartazes , as lâmpadas eléctricas descendo da trama dos tectos os seus brancos clarões , illuminando as três naves de luar até ao fundo , ás duas boccas negras dos túneis , onde se erguiam os discos vermelho e branco dos signaes . Na grande linha do comboio portas abriam-se ainda , vomitando gente . Da carruagem-correio dois homens despejavam saccos de lona com a correspondência do Norte e os três fourgons de bagagem , de portas corridas , eram assaltados , n ' um ruido de malas cahindo nas carroças , volumes enormes que tremiam na queda ; o comboio vasculliado e saqueado n ' um instante , liberto da sua carga . A machina socegava , de êmbolos parados como braços estirados em descanço , e toda ella offegava de fadiga , vomitando um rolo de fumo negro , n ' um hálito espesso que ia quebrar-se nas vidraças da galeria , boiando , rasgando-se nas volutas e nos arcos . Durante um instante Manoel esteve parado , vendo descer do sleeping duas senhoras embrulhadas em capas de viagem com rebuços de pelles . Emquanto um homem de ulster passava a um moço de hotel uma infinidade de malas e volumes , a mais nova das mulheres , olhando em volta , batia a plataforma com o guarda-chuva de castão de oiro . Manoel voltara-se , calçando as luvas , deixando-se banhar suavemente de civilisação , e seguiu na esteira das mulheres até ao salão de entrada , assaltado pelos agentes de hotel , recusando o Pelicano e as Duas Nações , emquanto o guarda-fiscal revolvia a roupa branca da maleta , vasculejando os frascos de toilette . Desde a repartição acanhada e suja do correio até aos cartazes de espectáculo , sujando o grande lance da parede em face da escadaria , tudo permanecia como d' antes , na vastidão do átrio onde o comboio escuava os passageiros . Manoel entregou a guia para o despacho da mala ao carregador e sahiu para o terraço , â espera . Apenas as grades de ferro das rampas e a balaustrada do pateo , com as suas altas columnas , marcavam linhas nos primeiros planos do nevoeiro denso . Nas escadas do Duque a casaria alastrava manchas ascendentes . Os candieiros da calçada do Carmo abriam na bruma pupillas scintiliantes a que os nimbos prestavam orbitas indecisas . O morro do castello , ao longe , subia e espraiava-se , incrustado de casas , como um immenso casco de navio incrustado de moluscos , e era todo um trecho da cidade que se despenhava além , transpirando luzes vacillantes , estravasando rumores . O lago de bruma submergia o vale acompanhando os declives . Sob o vapor branco sentia-se palpitar a grande cidade antiga . Manoel deixava errar a vista pela immensa névoa , reconstruindo a topographia da cidade , desenterrando do sudário os membros disformes de Lisboa , esquecido na sua contemplação , na ávida sede de a tornar a ver , erguendo a velha cabeça coroada de ameias , acordando do somno , despertando á luz de mais um dia . Atraz do castello a cerração menos densa clareava ao incêndio de um sol ainda distante e em frente , ao cimo da correntesa de bruma que descia pela calçada do Carmo n ' uma enxurrada fluida , as ogivas desmanteladas do mosteiro de Nun'Alvares debruçavamse em abraços , como as arcas fossilisadas de um mastodonte . Tinha ficado immovel , olhando o rumorejante lago de neblina , apoiado á varanda de ferro . O carro do correio descia as três rampas , passava a primeira plataforma n ' um estrondo ; e durante momentos aquelle fragor encheu os espaços ermos , dominando o sussurro da cidade estremunhada . -- Está a mallinha no trem , meu senhor ... Então Manoel desceu para tomar o carro que esperava em baixo . Para encurtar caminho atravessou pela balbúrdia dos armazéns de bagagem e já fora , no passeio , parou ainda um instante , a olhar . Em frente erguia-se o theatro de D. Maria com a sua varanda sobre arcadas . Á esquerda , os cafés alinhavam , silenciosos e fechados ; apenas ao fundo , n ' um desvão de sombra , uma lanterna vermelha sangrava como uma grande chaga solitária . A espaços um vulto manchava a nevoaça , deslisando apressado , quasi impalpável , e era triste aquelle despertar silencioso da cidade para o trabalho , na manhã glacial de Dezembro . A estação recahira em silencio , depois da febre passageira que a animava pela chegada matinal dos comboios correios . Uma carroça de lixo passou aos solavancos , vinda da Avenida . No Carmo soavam lentas as seis horas ; apagavam-se os candieiros ; luzes submergiam no vapor denso e aquoso que entupia o largo . O céo abria uma pálpebra de cego , embaciada e vesga ; e agora , subitamente , os rumores propagavam-se . Manoel chamou o carro e a tipóia abalou , passando o Rocio , embrulhado em névoas ^ com as fontes emmudecidas ; entrou na rua do Ouro , deserta ; e já ao passar a rua do Arsenal a chuva principiou , miúda e compacta , alagando os passeios , penetrando os espessos véos de nevoeiro . No rio apenas punhados de mastros rompiam rente á margem , todo o Tejo desapparecendo sob a cerração profunda e branca . No Aterro o movimento era maior ; operários passavam em passos vagarosos , caminhando a dormir sob o aguaceiro , as mãos batendo as penias . Da estação do caes de Sodré um tramway de Cascaes partia , rumorejaale , pela chuva . Á medida que o carro se aproximava , Manoel 5 entia- se mais impaciente , na anciedade quasi dolorosa de levantar o filho nos braços e beijar as brancas mãos de Anna . Ambos viviam em Santos , n ' um terceiro andar dando sobre o Tejo , para onde Anna mudara desde que o seu corposinho elegante e perfeito começara a deformar-se com a gravidez . Alli tivera a creança , no fim de Setembro , por uma triste tarde de chuva , e alli ficara , n ' um encantamento pelos vastos horisontes desassombrados , com o vasto rio azul correndo em baixo , resignada da perca do amante , agradecida por esse iar que elle lhe dera , aquelle amor que elle tinha trazido ao frio isolamento da sua vida solitária , semeiando ^ nfcre beijos no seu corpo branco a consolação d' aquelle amor materno . Agora , indo tornar a vePa , depois de dois mezes de ausência , um grande amor sensual voltava do mais profundo do seu seio : as saudades de um tempo feliz supplicando os mesmos doces beijos , lembrando-lhe as suaves caricias das alongadas mãos alvas e macias , de phalanges côr de rosa . E assim ia reconstruindo a antiga discórdia do seu coração e da sua consciência , na asperesa d' aquelle sacrifício de a não ter quando ella se abandonava a cada instante , toda sedenta de amor como outr'ora , purificada ainda pela sua aureola de mãe e pela longa castidade do seu tépido corpo de amorosa ... Manoel subiu as escadas devagar , parando ao fim de cada lance , nos patamares escuros . Lembrava-lhe a primeira vez que por alli subira em companhia d' ella , por um claro domingo de Maio , e o longo quarto de hora em que Anna ficara , embevecida e sorridente , debruçada á janella , olhando o vôo lento das velas e o deslisar das gaivotas no azul profundo das agoas . Custara-lhe a acreditar que fossem todas d' ella as três janellas abertas sobre o espaço , dominando o Aterro para a direita até Relem ; o immenso coagulo de telhados , que se estendia até á Sé , para a esquerda ; e a planice liquida do rio , vastíssima , alastrando do nascente ao poente , onde toda a vida das agoas convergia , com as procissões das catraias sahindo a barra , á pesca , a chegada dos transatlânticos , o continuo vae-vem dos vapores e navios , soltando aos ventos as cabelleiras negras da fumaça ou distendendo e armando os brancos dorsosdos velames . Quantas vezes tinham os dois subido , presos n ' um longo beijo , aquelles três andares ! Cada degráo , de os vêr tanto passar tinha uma historia , testemunha de entradas a deshoras , de volta de grandes passeios aos arrabaldes , do recolher tardio do theatro , em que as escadas eram subidas n ' um instante , na pressa de se verem sós , nos braços um do outro ... Alli esquecera ella por um abraço um grande ramo de papoulas e mais alem vira-a chorar , supplicando-lhe que ficasse , subisse ao menos até ella adormecer , não podendo dormir sem o ter á sua beira ... Fora n ' aquelles degráos que lhe deixara pouco a pouco a dolorosa certeza e o amargo convencimento do fim dos seus amores . Da ultima vez que a tivera , desagradado já do seu corpo imperfeito , ella viera acompanhal ' o até ao ultimo degráo , banhada em lagrimas , embrulhada n ' um chalé , a alumiar-lhe o caminho ... A cada andar , em frente ás portas , ruidos transpiravam : o arrastar de uma cadeira , um choro de creança ^ vozes , tinir de louças : o madrugar dos pobres para o trabalho , pela manhã gelada de inverno . Apenas da clarabóia a luz suja do dia nevoento descia , illuminando mal a velha escada rangidoura com o seu corrimão vacillante no apoio . Mas em cima , no terceiro andar que ella habitava , dominando os telhados , o ar livre e infinito dos mares e das planícies entrava pelas janellas e todo o dia o sol batia as velhas adufas , traçando esteiras de oiro no soalho . A chuva murmurava na clarabóia , sobre o vestíbulo lavado , quando já elle subia as ultimas escadas . Deixou-se então estar um momento silencioso e quieto , gosando de a saber alli a dois passos , á sua espera , embalando o berço do seu filho . Ergueu depois o braço , puxou o cordão da campainha . Passos resoarara logo dentro e uma voz branda , amestrada na sujieição e na caricia , perguntou : -- Quem é ? -- Eu -- o Manoel . A porta abriu-se e no corredor escuro elle viu-a de pè , em saia branca , despenteada , com um chalé vermelho botado pelas costas . Ficou um instante callado , olhando-a , na admiração de a encontrar mais mulher , com o vasto e doce olhar tranquillo um pouco pisado pela vigilia . Ao pegar-lhe nas mãos o chalé descahiu , descobrindo-lhe o pescoço e os hombros até á raiz branca do seio . Era outra mulher que tinha na sua frente , sem o resalto ósseo das clavicnlas , de pescoço lizo e perfeito , o colo redondo como um peito de ave . Brandamente chegou-a a si , n ' um lento gesto de posse , beijando-a na testa , e quasi se esquecia do voto severo , deixando-se banhar pelo seu calor , sentindo a morna quentura do seu seio de mãe abrasando-lhe as mãos e os longos cabellos soltos roçar-lhe pelas faces . No estreito abraço em que a tinha encostada á parede , meia despida , um doce desejo de a possuir voltava mais intenso , sentindo-a forte , retemperada no soíTrimento , tendo resurgido mais bella , de uma belleza mais perfeita , da agonia purificadora do parto . Gomo fosse a beijara de novo , ao carvar-lhe a cabeça , viu-a inundada de pranto , os olhos razos d' agoa , as faces banhadas de silenciosas lagrimas . Levou-a então suspensa até á sala , á procura do filho , lembrado da carta que o dizia doente , ardendo em febre , e já as suas mãos tremulas lhe desmanchavam o abraço , no desvio d' aquelle outro amor que o absorvia . -- Elle ? Onde é que está ? Anna aconchegara o chalé ao colo nú , ruborisada , na vergonha da sua fraqueza e da sua esperança ; e como Manoel lhe retomasse as mãos , interrogando-a ainda , ella levou-o até á porta do quarto , limpando um resto de lagrimas . -- Que teve elle ? o que foi ? -- Schiu ! Pouco barulho : está a dormir ... A sua mão levantada era quasi transparente a uma restea de sol que transpirava da adufa . Ao entreabrir a porta o seu corpo vergou-se e Manoel , impaciente , mal reparou nos brancos globos dos seus peitos , poisados nos entremeios de renda da camisa . A chuva continuava , alagando de pranto as vidraças , e uma grande nuvem foi obscurecendo a luminosa mão de Anna ainda suspensa . -- Está ainda doente ? -- E a febre ? -- Não -- já passou . Vem vêr como elle dorme , o rico anjinho ! Na alcova obscura apenas a lamparina , sobre uma cadeira , abria nas taboas do tecto uma circumferencia de luz onde as sombras dos dois se balouçavam . -- Alli ... Era o seu filho , n ' um berço de ferro com cortinados de setineta azul , á beira da cama de Anna . Ficaram os dois á porta , sem dar um passo , esmagados pela emoção d' aquelle ajuntamento . Manoel sentia-se envolver outra vez pelos seus braços , tendo-a suspensa de novo ao seu pescoço , banhando-lhe a face de lagrimas , emquanto olhava a cabecinha do filho , pousada na travesseira branca . Aquella mancha côr de rosa na alvura da roupa , nascera dos seus beijos , era a ílôr da arvore das suas veias , o fructo do seu sangue . Então sentiu-se estremecer e n ' uma voz quasi supplicante de quem pede uma graça : -- deixa-m ' o beijar ! -- Mas não o acordes , não ? Tem o somno tão leve ! E limpava as lagrimas com as costas da mão , alquebrada pela felicidade immensa d' aquelle primeiro beijo . -- Adormeceu ainda ha pouco ; vê ... Tinha descoberto a lamparina para que Manoel o visse melhor ; e emquanto elle ajoelhava , debruçado sobre a pequenina respiração , branda como um esvoaçar de insecto , a mãe espiava-o com toda a alma nos olhos querendo ler-lhe na face o seu contentamento deante do filho nascido do seu corpo , na vaidade da sua tarefa quasi divina de creadora , semeando a terra de vida , perpetuando a espécie , trazendo o seu tributo de esperança á humanidade de amanhã . Viera ajoelhar-se também do outro lado do berço , aconchegando a roupa em volta do pescoço da creança . Na obscuridade silenciosa da alcova os dois olharamse , sonhando nos doces beijos que tinham preparado aquelle fructo loiro . Mas Manoel acabou por erguer-se sob o olhar doce e triste com que ella o fitava , convencido da brutal deshumanidade de uma convenção que os separava , prohibindo-lhe aquella família que elle creára e a que o seu coração inteiro pertencia . Tristemente , rodeou a vista pela alcova até á grande ema desfeita , de lençoes atirados , e onde o peso do lindo corpo de Anna deixara ainda um rasto . Depois , emquanto a mãe , que se levantara também correndo o cortinado , abafando o berço , vestia um corpete e passava uma saia , Manoel reconstruia em pensamento a scena terrível n ' aquella cama , agora silenciosa , e onde a vira torcer-se , arquejante , as mãos presas ás grades da cabeceira , pedindo que a matassem , n ' uma angustiosa voz em que tremiam todas as libras do seu corpo dilacerado . E da evocação d' esse lance de tragedia , tão humano e tão simples afinal , a amante reapparecia-lhe aureolada , com um socego de heroina na fronte clara , um ar de apasiguamento em todo o rosto , desde que essa sejreta força de maternidade desabrochara na sua carne , occupando-lhe todos os instinctos , desenvolvendo a concordância physiologica do seu corpo de mulher amorosa e fecunda . Olhava-a de novo na penumbra , erguendo o braço redondo , apenas escavado na articulação , para enfiar a manga do corpete , com gestos de uma ave ao levantar o vôo . Desapparecera a sua antiga graça feita de maneirismos e de amuos . Havia agora uma seriedade intensa na sua face pallida em que resplandeciam os olhos . Sequestrada ao sol pela clausura do atelier , a sua pelle conseguira o tom macio de uma rosa branca aberta n ' um solitário . De tanto a olhar , a sua alma honesta e recta padecia , emquanto a vaga consciência de um alto dever a cumprir ia subindo como um lento fumo de sacrifício do seu seio magoado . Mas Anna acabara de vestir-se e ambos saíram da alcova , sem ruido , para não acordar a creança adormecida . A sala occupava as três janellas de adufa , com tecto de taboas pintadas de branco . As paredes erana forradas a papel verde , que elle mesmo tinha escolhido quando mobilara a casa . Nas janellas desciam cortinas brancas de fustão ; e eram todo o luxo da casa , com a cama e o berço , aquellas cortinas de donzella e o rico papel verde riscado de oiro , que escondia as velhas paredes mal rebocadas . Ao centro da sala havia a mesa pobre , coberta com um panno de crochet , e a um canto , perto da janella do fundo , ficava a machina de costura : uma Singer alugada ao mez . Eia assim de uma serena castidade esse ninho de amante onde tudo respirava a honesta canceira de uma vida . -- Está tudo em desordem , não é ? Fazia tenção de me levantar muito cedo , e ter tudo arranjado ... Afinal é isto que tu vês : parece uma feira da ladra ! A sua bocca abria-se n ' um alegre sorriso , mostrando os dentes muito alvos . Tinha torcido a vaga de cabello , enrolando-o na nuca , á pressa , preso por dois ganchos ; uma mecha cabia ainda sobre o hombro , fugida da fronte , escondendo a orelha onde uma conta de oiro reluzia . Manoel caminhou até á janella , a abriv as gradesda adufa , deixar entrar a luz do dia fosco , mais á vontade desde que a via satisfeita , com essa honesta alegria de trabalhadora que lhe illuminava o olhar de uma felicidade quieta . A chuva não cessava , opaca á distancia , n ' uma sobreposição de vêos brancos que mais e mais esboçavam as coisas até á mancha . Da rua subia o rumor dos passos nos iagedos edo Aterro chegava o rodar dos americanos , sob o aguaceiro . Uma grande paz inundava a casa de um repouso infinito , parecendo emanar da clara figura de Anna . Durante um instante os dois estiveram a olhar-sé e logo ella , sorridente : -- Vens cheio de pó . Tens a cara toda suja de carvão e estás mais magro . Aproximava-se , cahindo n ' uma cadeira , com as duas mãos no encosto , toda voltada para elle , revolvendo-lhe o rosto com os olhos luminosos . -- Já não usas o cabello como d' antes ! -- Fica-me assim melhor ... -- Isso ê que não . Gostava mais de te ver com elle d' outro modo . -- E tens o bigode mais crescido . Já deve arranhar a tua barba ... Manoel sorriu vendo-a seria e grave , absorvida na sua contemplação . -- Estou um homem ! -- Sim , um homem ... Uma reticencia de tristeza nascia na sua voz caridosa , um pouco tremula . -- Também tu estás uma senhora , mais mulher , outro ar . Estás até mais bonita ... ! Houve uma rotação de iris dentro das suas orbitas ; as pestanas bateram por um segundo como uma pennugem em que se assopra . E de toda aquella ancia apenas transpirou um monosyllabo : -- Eu . . ! Manoel viu-a n ' esse gesto de resignação vivendo de um passado , toda a sua vida futura crescendo como uma triste arvore de cemitério sobre uma felicidade morta para sempre . Depois d' essa syllaba triste a bocca dolorosa cahira-lhe sobre os nós dos dedos , e assim vergada , com a mecha de cabello escorrendo da fronte , Anna continuava a olhal- o , com duas rugas de meditação na testa branca . E de novo a sua clara voz se elevou , apasiguada : -- A Maria de a Graça está boa ? -- Veio á estação dizer-me adeus . -- Sempre com o Queiroz ? -- Sempre . -- Ah ! A voz voltou a velar-se-lhe . Depois de um esforço , crescendo com a mão pela face até á orelha e vergando mais a cabeça sobre o peito : -- E ainda são felizes ? -- Como nós ... d' antes . Singelamente Anua teve o gesto de quem comprehendia , e Manoel , um instante callado , continuou para encher esse silencio mortificante : -- Moram agora na rua do Cego , numa casita com quintal . O Queiroz comprou guitarra : já toca alguma coisa e acompanha fados . Sabes aquella voz da Maria da Graça ? -- Atè lhe chegaram a fallar para ir cantar na Sé , pelas festas . -- Ás vezes é meia-noite , ainda vou dar com elles em cantoria . -- E ella ? Sempre bonita ? -- Mais gorda , mas sempre bonita . Os olhos , aquella maneira de andar ... -- Está na mesma . Anna tinha-se erguido , chegada a elle , como para um abraço . Estavam em frente á janella e Manoel podia vera bem á luz . Os olhos brilhavam á altura da sua bocca , o que a fazia mais baixa do que elle quasi duas mãos travessas . A gola desapertada do corpete descobria-lhe um trecho do pescoço onde a epiderme ganhava uma tecitura de pétala . No rosto um pouco redondo vivia uma doçura intensa , apenas desmanchada pela curva enérgica do queixo , que dizia a firmeza d' aquella pequenina alma de valente . A bocca sobretudo era um prodígio de graça e de bellesa , desde o fransido dos lábios atè aos colares de dentes muito brancos , de um claro esmalte sobre o côr de rosa das gengivas . Os olhos eram largos , cheios de luz e comprehendimento . De a olhar , Manoel sentia crescer o ardente desejo de rehavePa , recordando as revoluções luminosas dos seus olhos no esquecimento dos deliquos . Mas ella , percebendo talvez no ardor do seu olhar a vaga de desejo que ameaçava vencera , pousou-lhe as mãos nos hombros : -- Vem lavar-te , anda ... Estás cheio de pó . E mais uma vez o encantamento desmanchou-se e uma grande serenidade desceu dentro do seu coração sobresaltado , emquanto ella foi encher a bacia de agoa , estender-lhe a toalha , com delicadezas de serva que se humilha . E já com as mãos brancas de sabão , voltando-se : -- Ouve cá : e a creança o que teve ? -- Febre ; teve muita febre . Nem imaginas o meu susto ! -- Era talvez dos dentes . -- Não ; parece que não . O medico veio cinco vezes . Quando a febre passou disse-me que tinha tido medo das convulsões . Manoel , que enxugava o rosto , endireitou-se de repente , pallido . -- Convulsões ? Elle disse convulsões ? -- Disse . Esteve a examinar-me o leite , perguntou-me se tu eras doente . -- E tu ? -- Que não ; que eras forte como um castello . Mas Manoel pousara a toalha , vestia lentamente o casaco , perturbado , na súbita evocação de uma miséria de familia quasi esquecida : a avó materna internada em Rilhafolles depois de vinte annos de convento . E essa doida , morta no furor de um delirio mystico , resurgia agora com o pescoço envolto em rosários , as mãos descarnadas sempre juntas n ' uma oração sem íim , extinguindo-se lentamente , na esperança allucinada de entrar no céo e eternamente viver ao pé de Deus , no paraiso infantil da sua crença . Elle mesmo herdara alguma coisa d' essa loucura com a sua sensibilidade doentia e crises de desfallecimento inexplicaveis . Da parte de Anna havia as mortes prematuras dos pães : a mãe consumida por uma thysica galopante ; o pae alcoólico e epiléptico , com accessos de cólera de que Anna ainda fallava com terror , apparecendo um dia morto nas escadas com um ataque . Então uma dòr profunda varou o coração de Manoel , á ideia de que o seu filho era talvez o martyr innocente de toda essa pavorosa derrocada orgânica , e uma vontade dominou-o , crescendo no seu espirito , imperiosa : -- deixa-m ' o vêr . Não me disseste a verdade : elle está doente ! Anua ficou a olhal- o , na surpreza de o vêr assim de repente pallido e tremulo , com os olhos embaciados de lagrimas . -- Está bom , juro-te . Que tens tu ? Meu Deus ! -- Quero velo . Tinha sahido para a sala , impaciente , exigindo o filho : que lh'o fosse buscar , que o trouxesse alli para elle o vêr . Anna continuava de pé , emudecida , as mãos cahidas manchando a saia preta , sem comprehender a inesperada razão d' essa angustia que o suffocava e estremecia todo . -- Vae buscal- o ! E quando a viu encaminhar-se para a alcova , lenta e perplexa , ficou anciosamente á espera , como se fossem a decidir de toda a sua vida . Uma pancada mais forte de chuva tombou , ruidosa , açoutando as vidraças , e o dia obscureceu ainda mais sob o grande diluvio . Anua correra as cortinas do berço , debruçada sobre a respiração calma da creança . Esteve um momento a velo dormir , hesitante , sem animo de interromper aquelle somno tão profundo . -- Até é peccado acordar este anjinho ! -- Torna a adormecer depois ... Faze-me a vontade . Tenho que ir e quero velo ... Ela então resolveu-se , puxou a roupa do berço e ergueu o filho nos braços , aconchegando-o ao peito . A creança , acordada , abriu os olhos , desatou a chorar . E emquanto o apertava ao seio , a mãe cuidou comprehender tudo : a razão d' esse súbito rogo de Manoel , insistente e desesperado , de vêr o filho . -- Julgas que não è teu ? Vê ! vê ... ! São os teus olhos , o teu cabello , as tuas mãos ! ... Doia-lhe o orgulho ferido ; o seu corpo crescera sob a offensa n ' uma tal revolta de honestidade que todo o rosto estremecia : os lábios descorados e as pálpebras vacillantes . -- É teu . De quem querias que fosse ? De quem ? de quem ? dize ... Nem que o quizesse negar não o podia : tem tudo o que ê teu , os teus olhos , a tua bocca , o teu cabello ! A creança , assustada , abria os grandes olhos azues e Manoel ficava suspenso , revendo-se no filho , enlevado no encantamento de o vêr tão pequenino e lindo como um pássaro arripiado e cheio de susto . -- Ainda duvidas ? Dize : ainda duvidas ? Mas então Manoel pareceu ouvir , atordoado por aquella voz afflictiva e revoltada . Teve um grande gesto , balouçando a cabeça n ' um enérgico protesto : -- Não , não ; não era ... ! Tu não sabes : não era isso ... Fallaste em convulsões e eu tive medo . Pensei que me quizesses enganar para não me fazer soffrer logo á chegada . Ah ! tu não comprehendes , bem vejo que tu não comprehendes ... Anua ergueu a triste face lavada de lagrimas . Com o ar de uma confusão infinita olhou Manoel ; depois vergou de novo a cabeça , sem fallar , e um tal irradiamento de felicidade vinha da sua cabeça baixa que elle , commovido , acabou por sorrir com uma indulgente ternura , vendo-a submissa , enleada pela vergonha de ter duvidado do seu coração e da sua consciência . Deante da cabecinha loura do filho todo o temôr se dissipava como uma nuvem que o vento leva . Elle cresceria forte e bello , de cabellos cor de oiro e olhos côr do céo , tão pequenino agora que dois seios o alimentavam e um regaço o continha , grande e forte um dia para se talhar na terra o seu logar . Seria medonho que esse corpinho branco e delicado pudesse abrigar os instinctos de um alcoólico furioso ou os delírios senis de uma alienada . Só em olhar a doçura da linda mulher que o concebera e quanto amor e quanta belleza iam n ' esse branco e doce leite com que elle se creava , uma grande esperança accendia-se dentro do seu coração reconfortado . Os avós tinham ficado nos túmulos , indiíferentes á germinação d' essa flòr incontaminada ; e como era bom sabero são e forte , capazde descer um dia á vida rude e trabalhosa , na difficil conquista de uma ventura na terra ! Anna cahira n ' uma cadeira , esquecida no seu silencioso choro , sem ousar ainda erguer os olhos . A creança , um instante callada , piscando os olhitos feridos pela luz , recomeçava a gritar , revolvendo a cabecinha apenas coberta de uma pennugem loura de canário . Para o acalmar , a mãe desapertou o corpete aconchegando-o mais a si . A sua longa mão branca revolveu a camisa , ergueu o seio redondo e claro , entumecido de leite , onde apenas uma ligeira areola escara , em volta do mamillo cor de rosa , contaminava a alvura . Entre os dedos , de articulações róseas , apertou o bico do peito , chegando-o atè á pequenina bocca voraz que já tacteava . Manoel , sentindo a necessidade de quebrar esse silencio , enxugar essas silenciosas lagrimas sem fim , puxou também uma cadeira , apoderou-se de uma das lindas mãos abandonada : -- Para que choras ? Não vês que tudo passou ? Não valia a pena vir eu cá para te fazer chorar ! -- Bem sabes por que choro . -- Toma o lenço . Euxuga esses olhos . Não os vás estragar com lagrimas ! Anna ousou erguer a cabeça , logo baixa outra vez na contemplação do filho que bebia o seu leite , se alimentava da sua vida e do seu sangue . Manoel olhava a voracidade da pequenina bocca còr de rosa collada ao peito redondo e morno em que a creança pousara também a mãosinha n ' um gesto de posse . -- Que fome que elle tem ! -- Isso sim ! Antes de adormecer esvasiou-me o seio . Está aqui está a dormir . do que elle gosta é do calor do peito . Vaes vêr como adormece . De espaço a espaço a creança parecia cançar-se , parava de sugar , deixando o bico do seio apertado nas gengivas ; mas logo abria os olhos , os beiços ávidos avançavam e ouvia-se de novo o manso sussurro de uma fonte escorrendo dentro da pequenina bocca esfomeada . Ás vezes , depois d' essas paragens , era preciso que Anna lhe aconchegasse o peito e o comprimisse um pouco . Manoel , calado , olhava sempre o tépido seio redondo , abraçado de veias de um azul muito pallido , como as raizes por onde corria a seiva d' essa maravilhosa ílôr de carne branca . Fora , n ' uma torre , bateram horas , e Manoel levantou-se . -- Sete horas ! Tenho que ir . -- Fica mais um instante ! Só até elle adormecer ! -- Faz-se tarde . A mão de Anna cresceu ao longo do seu braço , parou no seu pescoço , cariciosa ; e a melodiosa voz supplicou : -- Só meia hora . Tomas café commigo : a Rosa não tarda ... Olha , ahi está ella ! Ao som da campainha a creança deixou de mamar , abrindo os olhitos azues , attenta . E logo Rosa entrou enfiada e surpresa , mirando muito Manoel . Elle pasmava ao vela mais crescida , quasi esbelta nos seus trese annos de anemica , com os cabellos atados n ' uma fita , trazendo enfiada no braço uma cesta com pão e hortaliça . -- Bom dia , Rosa . -- Bons dias , senhor||_Manoel Manoel|_Manoel . Foi preciso empurral- a a meio da sua confusão , tendo parado deante d' elle , apoiada a um guarda-chuva enorme que escorria . Anna levantara-se , reprehensiva : -- A boas horas , sua preguiçosa ! Mas Rosa levantou o focinhito pallido , desculpou-se : -- Estive á espera da leiteira , lá em baixo á porta , mais de meia hora . -- Trazes o pão ? -- Trago , sim , senhora||_Anninhas Anninhas|_Anninhas . -- Vae accender o lume e faze café ... Depressa , mexe-te ! E forte , ouviste ? -- Está bonita a rapariga , affirmou Manoel , risonho . -- Não è ? E trabalhadora . Se tu visses ! ... A creança tinha adormecido sem largar o peito , a mãosinha fechada no collo da mãe ; e foram ambos deital- a no berço , á alcova . Demoraram-se depois a conversar na sala , á espera do café , Anna querendo saber tudo : se elle ainda estudava , á noite , como d' antes ; se sempre mandara fazer uma batina nova e se fora chamado ; se dera boa conta de si como das outras vezes . -- Olha lá , e a filha do albardeiro ? -- A filha do albardeiro ? -- Não , Manoel não se lembrava da lilha do albardeiro . -- Do largo da Fornaihinha ... O teu namoro ... -- Ah ! a Gertrudes ? Casou . Casou com um ferrador . E mil perguntas : se a Maria da Graça já tinha comprado as arrecadas de oiro , -- o seu grande sonho ! -- e como ia o senhor||_Queiroz Queiroz|_Queiroz , se era ainda o mesmo ; se tinha por lá visito a Santa Izabel , que viera do Porto para uma egreja de Coimbra . Manoel explicava , encantando-a com exageros de conto de fadas , alimentando n ' um sonho de oiro e luz aquella linda cabecinha romântica . Descreveu-lhe a Santa Izabel com o seu manto arrecamado de pedras , o regaço vertendo flores , os longos pés afilados em calçaduras de brocado ; e tão doce e bella que parecia ter descido do céo á alma do artista , por milagre , deixando-se adivinhar e deixando-se vêr , com o seu disco de oiro nos cabeilos . Nos outros tempos Manoel alimentava um maravilhoso céo constantemente dentro d' aquella alma ignorante , erguendo-a de sobre a terra n ' um continuo delírio de sobrenatural ; e tornava a encontrar agora os mesmos olhos espelhantes , alagando-se de claridade , batendo as pálpebras como azas que se elevam . Quando a tinha , com a imaginação inundada de clarões e de estrellas , atordoada pelas historias de pagens e princesas , de santas e feiticeiras , a sua voz sussurante parecia conversar com as visões , arrastada por uma tal vertigem de felicidade e goso que às vezes , debaixo do seu peito , sentia-a desmaiar . Manoel alegrava-se de a ver ainda obediente , facilmente hypnotisada á sua voz , suspensa e enlevada , com ae mãos no regaço . Já ella cuidava ver a rainha santa , com a cabeça envolta n ' um branco véo de linho , de coroa goda nos cabeilos ruivos , o real corpo santificado vestido de túnica e de manto e nas alongadas mãos de raça , um pouco emaciadas , por entre os dedos pallidos e finos de devota as rosas ir cahindo , escorregando , transformando-se em oiro por milagre . De dentro , da cosinha , chegava o leve sussurro trepidante da agoa a ferver e ouviam-se os passos de Rosa , ligeiros e diligentes , indo e vindo . Manoel parou um instante de fallar , foi até á janella espiar a rua , voltou com outra conversa . Fallouse de Coimbra , na recordação dos três dias de festa do anno passado -- o jantar no Choupal , o passeio no Mondego , com guitarras , e a celebre ceia de arrufadas e lampreia no café da Viuva Violante . -- Lembras-te ? o Queiroz foi empenhar o relógio no Favas do Arco do Bispo ... Ai se lembrava ! E os ciúmes da Maria da Graça , muito atordoada com o vinho fino ! O que ella tinha chorado n ' aquella noite ! -- Coisas passadas ! concluiu Manoel , erguendo-se . Foi quando Rosa entrou com a bandeja , trazendo o café . E emquanto Anna , depressa , arranjava a mesa , chegava as duas cadeiras , enchia as chicaras , Manoel passeou pela sala a vèr os figurinos pregados com alfinetes , nas paredes . Começando em aprendiz n ' um grande atelier de modista na rua do Ouro , Anna passara a vida entre sedas e veludos caros ; e d' essa longa intimidade com as rendas e os setins ; no fundo da sua alma pousara o requinte de uma graça , elevando-a de continuo aos paizes do sonho . As suas mãosinhas sabias conseguiam milagres , inventivas e fantasiosas , no arranjar de uma prega , o pousar de uma pluma ou renda , o soltar de uma manga . Na execução do modelo a sua fantasia libertava-se , emendando e compondo ; e agora , com uma ireguezia mais pobre , o prodigio continuava , descendo das sedas ás setinetas , dos veludos aos velutilhos , das rendas de Chantilly e de Bruxellas ás rendas de Guimarães e de Villa do Conde . Manoel tinha parado em frente á machina de costura , olhando uma grande vaga de tulle e seda branca deitada na cadeira . -- É um vestido de casamento . -- Para aquella loira do numero treze . Mas Manoel não se lembrava , esquecido da loira do numero treze . -- Por cima do açougue . Não sabes tu outra ! Estava sempre a namorar o brazileiro da casa de hospedes ... -- Então é com o brazileiro ? -- Não , é com um alferes . -- Ah ! -- Vem tomar o café , que arrefece ... E depois de um silencio , estendendo uma colher de assucar : -- E tu , não pensas em casar ? -- Porque perguntas ? -- Sei lá ! D ' aqui a pouco vae sendo tempo . Manoel olhou-a , admirado de a ver assim tranquilla e risonha , como acostumada de ha muito áquella ideia que a elle acudia pela primeira vez . -- Casar ? Eu ? Que tolice ! -- Tolice porque ? É uma coisa que ha de acontecer : está escripto . Não te dou cinco annos ! Não has de ficar toda a vida solteiro . Precisas de ter a tua casa , a tua família , como toda a gente ... -- E tu ? -- Ah ! eu não me afflijo ; estou socegada . Quando vier a morrer sei que tomas conta do teu filho . O resto que me importa ? O que não queria era morrer em estando tu solteiro . Era-te isso ao depois mais difficil . Manoel ouvia-a fallar , serena e quieta , occupando-se da sua felicidade e do seu futuro ; e ao presenceal- a assim generosa , humilde e resignada , pela primeira vez no seu coração ingénuo e agradecido entrava a ideia de a ganhar para si eternamente . Como lhe seria socegada e feliz a vida se pudesse , livre e bom , arrancara a esse cruel sacrifício immerecido , pagando a sua divida , elevando-a atè a si , sem dôr e sem remorsos ! Um dia outra mulher acabaria por conquistar-o , talvez menos bella e menos pura , mãe de seus filhos , feliz conquistadora do seu lar , em prejuízo d' aquella linda rapariga que consentira em deformar o corpo e destroçar a vida para lhe offerecer n ' um sumptuoso vaso de sacrifício um pouco de prazer e um pouco de amor . Fora elle que a arruinara , levando-a cega e de rastros , n ' uma sede de felicidade e de amor por esse caminho de calvário , recusando-a e fugindo-lhe desde que o corpo passivo e submisso se tornara perigoso , santificado pela germinação da flor do seu sangue , terreno de onde nascera um rebento da sua carne . Por um instante ficou pensativo e calado , procurando uma consolação , uma alegria com que dotar aquella almazinha de mãe entristecida . E já ella , inquieta , se levantava quasi da cadeira . -- Que tens tu ? -- Estava a pensar n ' elle . Queres baptisal- o , não é ? A Maria de a Graça podia ser a madrinha . O Queiroz dava cá um pulo com ella . Arranjavam-se assim as coisas . Posso escrever ainda hoje e elles que marquem o dia . Anua erguera-se n ' um delumbramento , pousando as mãos abertas na cabeça loira de Manoel . -- Ai , que alegria , Manoel ! Mas vê bem se pode ser ! Não vá isso trazer-te complicações . E já o seu olhar deslumbrado se obscurecia , meditando no obstáculo , n ' uma confusa consciência de perigo . Mas Manoel protestou , dominado por esse sentimento de bondade e justiça que lhe alegrava toda a alma . -- Que complicações querias tu que houvesse ? Ha de ficar a creança por baptisar ? Ora essa ! Não senhor , havemos de ir escrever os nossos nomes á egreja . Hoje mesmo previno o Queiroz . Anna escutava-o , suspensa , como se Manoel lhe fallasse em casamento , atordoada por tanta felicidade junta . Quando elle partira para Coimbra a creança tinha ainda poucos dias e mal ella se começava a levantar , penosamente , sentindo ainda todo o corpo como uma ferida aberta . A esse tempo Manoel fallara vagamente do baptisado , como de uma coisa sem pressa , addiada para mais tarde e Anna , pouco a pouco , vendo-o esquecido , findara por sujeitar-se , comprehendendo no seu silencio a intenção de apenas perfilhar o filho depois de formado , quando se sentisse independente e livre , vivendo do seu trabalho . Ella mesmo , muito tempo indecisa , acabou por resolver levar o filho a baptismo com os visinhos do segundo andar -- a mulher do relojoeiro e o guarda-livros , -- resignada á vergonha de occultar o nome do pae , na esperança de que Manoel repararia mais tarde essa injustiça . Durante um mez inteiro soffrera com a meditação dolorosa d' aquelle passo , ferida nos seus escrúpulos de honesta , magoada na sua delicadeza de mulher e no seu orgulho de mãe . Resolvera-se emfim , cançada de ouvir a visinhança murmurar e a lavadeira dizer de oito em oito dias , erguendo nos braços vermelhos o pequenito branco : -- Credo ! Até è peccado não o fazer christão ! Agora , que só esperava pela partida de Manoel para baptisar o filho , elle vinha oíTerecer- se para a acompanhar á egreja , juntar o seu nome ao d' ella , dizer deante de Deus que a ambos pertencia aquella vida , que elle plantara no seu seio e que ella creava . -- Oh ! meu Manoel ! meu Manoel ! que alegria tu me deste ! Manoel sentia-se alegre ; tinha feito o seu dever . Beijou-a longamente na nuca , sob os frisados castanhos , e ambos voltaram ao café que arrefecia , sentados de novo á mesa onde se deitava um morno raio de sol descido de uma clareira azul pelas janellas abertas . Por momentos a sala viveu n ' aquella quentura luminosa . Os dois esqueciam-se á mesa , roçando os joelhos , pairando de mil coisas , atordoados pela ventura de estarem juntos no grande socego da casa , aquecidos pelo mesmo raio de sol , como se fosse-a verdadeira vida que começava , amorosa e feliz , longe do mundo , n ' um grande idylio sem flm. Nunca elle a pudera expulsar do coração , que a doce creatura tinha sido a primeira a possuir , única que se deixara amar e o tinha amado , feliz de se entregar inteira ao seu prazer ; e como nos bons tempos , depois d' esse longo intervallo de amor , Manoel ia sonhando na alegria de rehaver para sempre o thesoiro perdido . Tinham fallado de Coimbra e elle ia promettendo a realisação de um impossível sonho -- o leval- a com o filho : alugar um certo casinholo branco , de paredes cobertas de vinhas , a meio de um souto de carvalhos verdes , que banhavam os pés envelhecidos n ' um lago de oiro pela floração do tojo e da giesta . -- E as aulas ? -- lembrou Anna , receosa , com o dedo na face , ante a seria visão do obstáculo . -- Ficamos a dois kilometros de Coimbra ; meia hora de caminho , indo de vagar a acompanhar-te o passo . -- Para que lado é ? -- Para cá do rio , perto de Santa Clara . Vê-se a cidade ao longe por entre as arvores . É o mesmo que estar no campo . Até ha grillos ! Com as mãos de Anna entre as suas , fallava-lhe do prazer infinito d' essa vida , acordando pela manhã com o chiar dos carros , adormecendo á noite com o canto dos gailos . A casa era pequena e pobre , com tectos de traves e um alpendre colmaço onde cresciam papoulas e margaridas no principio d' Abril , o que lhes dava um jardim suspenso como os da lenda . Toda a riqueza das terras cultivadas se estendia ao redor , com largos campos de centeio e milho doirando os horizontes ; e ao longe o choupal derramava uma nuvem trenmla de prata onde o sol suspendia longas redes de oiro todo o dia . Anua escutava silenciosa , respirando de manso , e só as suas pálpebras , de instante a instante , desciam lentamente sobre os grandes olhos reflexivos . Como seria bom e fácil estudar alli , comprehender a sciencia , desalterar essa sede orgulhosa e dominante de saber , ao lado d' ella , no farfalho das suas saias engommadas , no grande descanço do seu affecto , vendo-a crear o filho entre a saúde das vastas terras fecundas , encaminhando-lhe os primeiros passos e ensinando-lhe as primeiras falias ! Pelo verão jantariam na grande saccada de madeira , sob o alpendre , ouvindo ramalhar os carvalhos , ondular as cearas e zumbir as vespas e os besouros . Levavam a Rosa para ajudar no serviço da casa e podiam ter gallinhas no terreiro , uma horta , um pomar ... -- E uma vacca , Manoel . É de uma grande economia ter uma vacca . -- Sim , também podemos ter uma vacca . E elle , todos os dias depois do almoço , iria á cidade para as aulas , voltando em seguida pela grande estrada sólhenta , na pressa de refrescar os beiços na húmida fonte da sua bocca . Os dias correriam alegres , mansos como um rio , vendo nos campos a charrua ir e vir como uma barca n ' um lago , deixando atraz de si um grande sulco ; as cearas nascer , crescer e tombar sob as foices ; os biaços das vides rebentar , cobrirem-se de pâmpanos e cachos , e as folhas cahir côr de rosa e doiradas . Ante a felicidade tão simples e tão impossivel os dois meditavam , deixando-se adormecer no engano de a gosar . Seria a vida sabia e santa , longe do egoismo das sociedades más e cubiçosas , fugindo ao fatalismo da eterna lucta e do desassocego eterno , a única em que se poderia conciliar o seu amor e a sua felicidade , o seu coração e a sua consciência . Mas fora , na mesma torre , soaram oito horas e Manoel ergueu-se , acordando para a realidade , bruscamente disperto d' esse bello sonho de familia e de virtude , que se desfazia como um collar de contas a que partem o fio . Os dois olharam-se , de pé , desilludidos até ás lagrimas . Anna chegou-lhe o chapéo , ajudou-o a vestir o sobretudo , abriu-lhe a porta da alcova para beijar o filho ainda antes de partir , e já no corredor , de novo os seus dois corapões se escutaram n ' um abraço , feridos pela mesma certeza do impossivel : -- o impossivel de serem felizes , o impossivel de salvar aquelle pequenino de três mezes que dormia no berço de ferro , sob os cortinados de setineta azul ! Havia três dias que Manoel tinha chegado e a chuva não cessava , miúda e continua , encharcando Lisboa . Logo pela manhã , ao levantar-se , as janellas m-ostravam-lhe o Tejo barrento , submerso na chuva , desfazendo-se sob o infinito véo branco em que apenas os cascos dos navios e o deslisar das fragatas de carga alastravam manchas fluctuantes . A Outra Banda desapparecia inteiramente na neblina que o sol mal rompia de quando em vez como uma aranha de oiro caminhando por uma teia . O grito das lanchas a vapor era mais rouco trespassando o chuveiro , e a instantes o arquejo dos monstros sob a nevoaça espessa -- o entrar de um paquete ou deslocar de draga rente ao cães , -- ganhava resonancias humanas de agonia . O Aterro , em baixo , estendia-se enlameado e viscoso até aos entulhos e assoreamentos da margem , atravessado pela corrida dos comboios , derramando á passagem lentas nuvens de fumo . No ledio d' esses dias regelados e tristes , Manoel arrastava o tempo de poltrona em poltrona , fumando um eterno cigarro , espreguiçando-se n ' um continuo bocejo , feliz em poder enterrar os pês nos tapetes felpudos e sonhar às vezes sobre uma pagina de livro , ocioso e tranquillo , no calor de estufa das salas . Depois do almoço , uma tipóia levava-o agasalhado da chuva até á casa de Anua , Alli ficava horas , cahido na cadeira de verga , ao lado da janella , vendo-a trabalhar ou dar o peito ao filho . Essa dupla vida satisfazia-o , conservando-o n ' uma suave atmosphera de amor e de doçura , vindo do beijo da mãe ao sorriso do filho , contente de se sentir acarinhado por todos e a mesma e constante adoração acompanhar-lhe os passos . Depois que abdicara do seu prestigio de amante , os beijos de Anna tinham o pudor honesto de uma noiva e muitas vezes acontecia-lhe corar a um abraço mais longo ou palavra mais quente . Mas quando ouvia tocar a campainha , como um animal perdido que ouve a voz do dono , estremecia toda e cahiam-lhe as pálpebras ao vèr entrar Manoel , estendendo a fronte ao beijo do costume , mais curvada sobre a costura para repousar da emoção que a agitava . Manoel tirava as luvas , entregava o sobretudo a Rosa , que lhe trazia a creança para o collo , e alli se ficava uma hora cora o pequerrucho nos joelhos , n ' uma alegria de creança que brinca com a boneca . Ás vezes Anna recommendava cuidado , reprehensiva e inquieta . -- Olha que o magoas ! Com todas essas voltas ainda o pões doente ... Manoel erguia-o nos braços , rindo quando o via sorrir , chamando-lhe " seu garoto " , atè que a creança choramingava , estendendo um bico de amuo , impaciente e zangada . Anna travava então a machina de costura e tomava conta do filho . Iam depois ambos deital- o dentro á alcova . No silencio da casa apenas o zoar da agulha na Singer ruidava , acompanhando o escorrer da chuva nas vidraças . Os dois tinham raras conversas entrecortadas de silêncios , menos á vontade desde que a creança não estava alli entre elles a achegafos . Nunca mais tinham voltado a fallar d' essa vida de Coimbra : o sonho impossível de se juntarem e continuar a amar longe do mundo . E nos silêncios longos em que ambos cabiam , Manoel seguindo as espiraes de fumo do cigarro , Anna attenta ao caminhar precipitado da agulha nos alinhavos , a mesma amargura agitava-os . Como o receio de Anna fosse vel ' o partir um dia , desconsolado e triste , para nunca mais voltar , ferido pelo remorso de a vèr soíTrer , ella procurava encaminharo para longínquas conversas que tentava illuminar com trinados de riso , convencendo-o de uma alegria , dando-lhe o espectáculo de uma felicidade . Passaram assim os três primeiros dias . O Queiroz tinha escripto , marcando o dia de Reis para o baptisado . A creança parecia completamente boa e o medico , que viera ainda uma vez , tranquillisara Manoel , depois de exigir de Anna grandes passeios , menos horas de trabalho e uma alimentação racional e sadia que a recompozesse da extenuante fadiga da creação . A verdade è que Anna passava as noites a chorar , com accessos de febre , atormentada pelo presentimento de uma desgraça próxima , e alta noite tinha que levantar-se , sem conseguir adormecer , perseguida por uma inquietação todos os dias crescente . Corria então ao berço , a olhar o filho , lacrimosa e afflicta , passando horas açapada no soalho a chorar . Justamente n ' essa manhã Manoel acordou pensando n ' ella , alarmado por esse definhar rápido da amante , com a suspeita d' esses choros escondidos , adivinhando-lhe as lagrimas no pisado das pálpebras . Ainda na véspera lhe encontrara uma pallidez de soffredora que o abalara de commoção e de receio e tinha agora bem assente a resolução de lhe prohibir o trabalho e redobrar de cuidados , vencidos os escrúpulos que o retinham de estremecer aquella castidade de mãe purificada por uma longa abstinência de amor . Fora o receio de multiplicar os laços que os prendiam e sacrificar á sua paixão o filho que lhe dera , o forte motivo d' aquelle afastamento . A principio , Anna acceitara facilmente esse obrigado divorcio , envergonhada de ainda o desejar com o corpo deformado , não tendo para dar-lhe a antiga harmonia da sua forma e a fresca mocidade da sua carne . Por seu lado Manoel , no primitivo terror de a sentir mãe , exhorbitando assim do emprego de amante , recuara ante o irremediável d' aquella situação tão delicada e tão grave . Desde que não podia eleval-a até esposa , tendo a mansa creatura a sua macula , elle o seu preconceito , preciso se tornava estancar aquella fonte de amor . Continuar a tel- a e possuil- a no simulacro de lar que se haviam creado , representava um futuro de guerra com os pães , as hostilidades abertas com a familia , a vida desesperada de um expulso e de um pobre . Depois o filho , se os unira com laços de sangue por ura interesse de coração , mais afastara os dois do desejo e do amor , q agora a vida seria boa e pacifica se de todo a amante erguesse vôo para o paiz das coisas mortas e só a mãe ficasse , libertada e serena , n * esse lindo corpo novo e fresco de amorosa . Era todo um largo plano que elle meditava , sem pensar que não basla ao coração da mulher o affecto de mãe e que era exactamente n ' esse amor maternal , exagerado e profundo , que residia a inseparável chamma sensual de que o filho nascera . Desde que lhe era prohibido continuar a amaFa tornava-se preciso que o filho compensasse a amargura de a perder e trouxesse egualmente ao coração de Anua uma consolação e um grande premio . Era necessário creal ' o forte e bello como um anjo tutellar , viva razão de todos os sacrifícios , capaz de fazer esquecer os antigos amores , chamando a si todas as forças sentimentaes d' aquelle triste coração doente . Manoel entrevia já a alegre vida futura , despojando-se da sua parte de amor para a dar ao filho , vendo-o crescer ao lado da mãe , louro e branco , de largos olhos azues cheios de luz , perpetuando a lembrança da sua primeira paixão dos vinte annos . Quando pela ultima vez se olhou ao espelho a concertar a gravata , uma grande paz descançava o seu espirito . Foi então correr os transparentes , deixar entrar a luz do dia sujo de inverno . Quando desceu para o almoço teve uma grande surpresa ao vêr que já todos tinham almoçado , passando já das onze e meia . Apenas a mãe e o irmão estavam ainda á meza , ella lendo o jornal , o pequeno a encher os bolsos de biscoitos . O creado sahia levando pratos , e ao fundo , o parafogo japonez tinha uma nódoa de oiro de encontro ao braseiro do fogão já acceso . A mãe pousara o jornal , vendo-o chegar . -- Sim senhor , a boas horas ! Mas Manoel desculpava-se , beijando-lhe as mãos . -- Porque não me chamaram ? Estes dias de chuva enganam tanto ! E erguendo nos braços o irmão : -- Viva , seu maroto ! Já deu a sua lição de inglez ? Era uma creança loura e fransina , de cabellos cahindo em cachos luminosos sobre o cabeção azul do fato de marujo , e tão leve que Manoel a suspendia toda ao ar sem lhe sentir o peso . -- Não ? Ainda não ? Ah ! miss||_Walsh Walsh|_Walsh está hoje muito preguiçosa ! E os comboios ? Como vão os comboios ? Em cima , no corredor da sala de engommados , a creança tinha uma grande estrada de zinco onde rodavam locomotivas de folha , ruidosamente . De manhã á tarde o petiz alinhava trens , enchia e esvasiava wagons , esquecido de tudo , passando horas inteiras absorvido , com accessos de choro se o iam arrancar ao seu brinquedo . Ás vezes , no silencio da casa , ouvla-se a desesperada voz da creança gritando do corredor : -- Mamã ! Mamã ! Venha depressa ! Houve um terrível desastre ! E era algum carro de rodas para o ar ou uma locomotiva tombada em frente a uma porta que assim a estremeciam de emoção , transfigurando-a , arrancando-lhe lagrimas . Depois , resignada , enchia o babeiro de wagons e logo recomeçavam a gyrar locomotivas . Manoel , depois de a pousar , tinha-a beijado ainda . A creança mettera as mãos nos bolsos , saccudindo a cabeça , onde houve a agitação de uma luminosa vaga de oiro . E depois de reflectir um momento , com os olhos no tapete : -- Ó mamã : posso tirar uma amêndoa ? -- Não , que te faz mal . Mas Manoel intercedeu por elle , acabou de lhe encher os bolsos de goludices . O creado entrava , dando os bons-dias -- e emquanto Manoel , da travessa de christofle que elle pousara a seu lado na toalha branca , se servia de carne fria -- o Domingos permittiu-se também uma reprehensão . -- O nosso menino , hoje , a modos que lhe soube bem a cama ... O Domingos era um velho creado que andara com Manoel ao colo . Escudeiro do avô , viera da província ia em dezoito annos , carregado de luto , quando o morgado das Infantas morrera de uma lesão na sua quinta da Beira . Educado no respeito antigo , fiel a uma tradição guardada piedosamente na província , o Domingos respeitava em Manoel o descendente do seu primeiro amo -- aquelle grande senhor que morrera aos sessenta e cinco com uma cachopa de vinte a chorar-lhe á cabeceira . Domingos era assim uma rehquia de familia , continuando a lenda d' esse avô pródigo e romântico que espatifara a fortuna com cavallos e mulheres , separado dos filhos logo depois de viuvo , no seu ódio entranhado á cidade e aos liberaes , tendo conseguido viver até ao ultimo dia como um dissipador , hypothecando e vendendo campo a campo todas as terras , e de quem Manoel apenas conhecia um soberbo retrato de Lupi , representando-o aos quarenta annos , n ' uma pose do século xvni , com um chapéo desabado e uma capa côr de avellã com alamares . Manoel estirava os pés no tapete , sentindo-se bem na grande sala de aparadores e bufetes resplandecendo de pratas , servido pelo velho Domingos , de suissas já brancas , com o collarinho engommado e a ferradura de prata espetada na gravata de fustão . Fora , a chuva continuava , escurecendo os céos , resoando nas vidraças , e esse ruido persistente e egual de agoa a cahir penetrava a sala de uma grande melancolia , abafando-a n ' uma penumbra de crepúsculo , onde só os passos do Domingos resoavam , fazendo tilintar os cryslaes do guarda-louça . O almoço correu lento , prolongado por aquelle bem estar calmo e morno . Fallou-se n ' uma ida a S. Carlos , ã noite , ver os Huguenotes a no baile da Condessa de Sande . O Domingos tinha sabido a aimoçar em baixo na cosinha e um silencio de abandono adormecia a casa , onde apenas o relógio império , em cima do fogão , batia de vagar os quartos de hora . Uma grande pionia preta esfolhava na toalha , uma a uma , as pétalas fúnebres , enormes . Quieto de preguiça , Manoel encostara-se na cadeira , deixando abrir o chá , ouvindo a mãe , roçal- o a vaga tristeza dos seus grandes olhos um pouco pensativos . Olhando-a , reparava no seu rosto fatigado , onde transpareciam vestígios da antiga belleza : na linha esbelta do seu pescoço grego , ainda liso e branco , a formosura do olhar -- vasto e claro como um céo em que fosse sempre meio-dia -- e a massa escura do cabello , de um castanho apagado , com lampejos de oiro nos tVisados da nuca e manchados de prata sobre as fontes , coroando a brancura emaciada da face oval um pouco longa . Ein toda a delicadeza nervosa das suas feições havia um cunho de raça , um clarão que alli pousara , vindo de muitas gerações atraz , tendo vencido mais de um século de decadência . Era porque a achava mais bella , rejuvenescida pela ternura intensa do olhar , a linha encantadora do nariz com azas interiormente côr de rosa , a soberba do pescoço mythologico e as alongadas mãos maravilhosas , enredadas de veias azulinas e em que ardiam sempre , por um luxo predilecto , intensos fulgores de jóias . Uma bátega mais forte de chuva varreu as vidraças e Manoel voltou-se , olhando o Aterro alagado e o vasto rio escuro . -- Como chove ! -- Tens que sahir ? perguntou ella , correndo os olhos claros pelas janellas onde se quebrava o aguaceiro . -- Tenho . E depois de um silencio , occupado em descascar uma laranja : -- Mas vou de carro . O cêo era agora negro e compacto , de um tom ameaçador de tempestade , e um lento trovão rolou ao longe , para o mar , n ' um prolongado e tremulo mugido . O rumor dos americanos continuava entre o ruido da chuva nas calçadas e escorrer das gotteiras . Por um grande instante ouviu-se apenas a trepidação sobresaltada de um carro que passou á desfilada para a banda de Santos . Manoel olhava distrahido as janellas escorrentes , com a cabeça vergada nas costas da cadeira , remechendo os bolsos á procura de um cigarro . A mãe levantou-se para chegar o bule , encher de novo a chávena de chá . Uma rosa desfez-se sem ruido , acompanhando a pionia , n ' um molhe amarello e doirado de pétalas que mancharam a alvura da toalha -- e ella , pousando a chicara , depois de um trago , perguntou : -- Tens alguma coisa que te afflija ? Manoel ergueu lentamente a cabeça , desconfiado e receoso , e a voz tremia-lhe um pouco respon * dendo : -- Eu ? Não ; não tenho nada . Que hei de ter ? A mãe encolheu os hombros , recuando um pouco a cadeira , emquanto na sua mão pallida a chicara de porcellana fumegava . -- Sei lá ! Estou a estranhar-te . Sinto-te triste . -- É dos teus olhos . -- Talvez seja , filho . -- És tu que pareces triste ... -- Dóe- me um pouco a cabeça . Manoel palpitou de receio , como á visinhança de um perigo . Bem no intimo tinha um enraizado amor a esse lar pobre e triste que lhe pertencia , e acordava no fundo do seu peito , ainda vago e confuso , um instinctivo sentimento de defesa . -- Talvez te faça bem deitares-te um pouco . Experimenta ; quem sabe ? Arrastara a cadeira para a beira da mãe -- e apoderando-se das longas mãos venozas manchadas de anneis , olhava-a com uma curiosidade crescente , no espanto de a vêr mais acabada , as fontes embranquecidas de desgostos , os lábios cabidos no cansaço de toda a sua longa vida honesta de esposa e mãe que tinha visto já morrer três filhos . -- Doe-te muito ? Dize ... Muito ? Pensava em como . seria doloroso e cruel estremecer aquella querida existência delicada . -- Isto passa ; è d' este tempo assim -- não cessa de chover ! -- Vem sentar-te na cadeira de balanço -- descai > ças a cabeça . Tinha-se erguido , beijando-a nos olhos , -- e foi arrastar-lhe a cadeira para perto do fogão . A chuva cahia em grossas contas , pesada e basta . Um tramway de Cascaes , que passava , berrou entre o aguaceiro . Na casa ao lado alguém tocava a valsa da Bohemia e o odor das cascas de laranja embalsamava a sala suavemente . Manoel desceu os transparentes , fechando mais ainda a penumbra triste . -- Estás melhor assim ? -- Estou . Agora estou melhor . Por que não me contas tudo ? Para que guardas segredo ? -- Â mãe é o melhor dos amigos ... -- Mas se eu não tenho segredos . . ! Que ideia a tua , agora , de repente , de querer vèr- me á força triste e com segredos ! Ella balouçou a cabeça n ' uma forte duvida -- e estendendo a mão em cujo dedo minimo um grande rubi sangrava , pousou-lh ' a no hombro , vo ! tando-se toda na cadeira com um rugir manso de sedas . -- Ha muito tempo , desde as ferias grandes , que te sinto mudado . Não tens mais a alegria que te fazia rir a toda a hora . Quando foste para Coimbra , da ultima vez , levavas alguma grande apprehensão , que nem sequer me beijaste na despedida . Emfim , tu lá sabes ... Mas não te queria ver triste -- com a tua edade é-se alegre . Manoel ouvia calado , revolvendo com a tenaz a braza do fogão , avivando o lume . Ella cominava , entregue ao seu presentimento , os braços magros cabidos inertes sobre os joelhos , as mãos pendentes . -- Por mais que faças não me consegues enganar . Leio nos teus olhos muita tristeza e muita apprehensão . E agora lembro-me de quando isso começou , vae em seis mezes , inesperadamente ... A esse tempo , no seio de Anna , o seu filho crescia -- e eram d' esse tempo as primeiras angustias , o começo da sua inquietação ! Surprehendia- o que todas as dores por elle soffridas , até as mais occultas , tivessem deixado rasto no ignorante coração da mãe , como se esse coração ainda sentisse dentro da carne vasada do seu corpo . Sentia agora a necessidade de lhe apagar a duvida , desviando-a para longe da verdade , comprehendendo que ella não resistiria áquelle golpe . Para bem de todos tornava-se preciso encobrir e esconder esse falso lar de amargura onde vagia o seu pequenino . Seria justo deixal-a morrer na sua ignorância , poupar-lhe o desgosto d' aquella tristeza . E disse-lhe , sorrindo : -- Gomo tu te aílliges sem razão ! -- É preciso entrar na vida com muita alegria para sahir d' ella com muita resignação , filho . Queria vêr-te mais rapaz ... Toda a gente começa a extranhar-te Não appareces ; ninguém sabe de ti ! Ás vezes perguntam-me o que fazes que ninguém te vê . -- Julgas então ? ... -- Sim , sim , não vaes a parte alguma e nada te interessa ... -- Se tu me interessas mais que toda a outra gente ! -- Mas sahes , desappareces , ficas horas inteiras lá fora , não sei por onde ... É que tens alguma má coisa que te prenda ! Má , sim , porque a não confessas ... Elle olhou-a fixamente , procurando lêr no fundo do seu espirito -- e vendo-a balouçar a cabeça n ' uma pesarosa altitude de insistência , atirando-se ao perigo : -- o que , mamã ? -- Sei lá ! Algum amor ... Manoel esteve calado por um instante , na vacillacão de uma resposta . Depois , lentamente : -- Quem não teve um amor na minha edade ? -- Mas ha amores que prendem e amores que desilludem ... -- E o meu ... -- Receio que seja dos primeiros -- dos que prendem . Manoel ergueu-se devagar , olhando as brazas morrer em palpitações de chamma , ferido em pleno coração pela injustiça d' aquelle preconceito que a mãe defendia como um dogma . Á sua virtude talvez doesse também a abominável phrase , porque a sua voz tremia um quasi nada , rebelde e tarda , na confusa consciência do grande erro . Elle adivinhava a angustiosa lucta que se devia travar n ' esse momento ao fundo d' aquelle brando coração -- o receio de magoar o filho no seu amor e a revolta de uma intolerância ancestral de convenção a atiral- a para a frente , de olhos cegos . E afinal , dominando-se por um esforço : -- És ainda muito novo para casar e é preciso sempre o homem saber com quem se casa . Cada um deve casar no seu meio com mulher sua egual . Só de uma egualdade de condição pôde resultar uma egualdade de affeicão ... Por um instante a sua voz parou , receosa , e como visse o olhar reflexivo de Manoel , cobrando animo , ia a proseguir , quando elle lhe tomou carinhosamente as mãos e disse : -- Podes viver tranquilla . Essa mulher nunca pensou em casar commigo . -- Mas então ... -- Sim , como as outras ... Um sorriso nasceu na face austera da mãe abertamente , -- e na sede de socego que a dominava , ousou a pergunta : -- E foi só tua ? Elle fez um esforço , debateu-se um momento na vaga consciência do immerecido insulto e respondeu a verdade na cobardia também de lhe mentir : -- Não . -- Ah ! respiro ! E a mãe abria-lhe os braços , livre do peso que tanto fatigara o seu coração , sem saber , no seu convencional orgulho de familia , ciosa da sua casta e do seu nome , que na corrente d' essa alegria se afogava uma creancinlia do seu sangue . -- Talvez agora me julgues mal e injustamente ; penses que eu sou uma egoista e uma orgulhosa . Toda a bòa mãe é uma egoista , tilho . Nós consentimos em soffrer por todos para poupar uma pequena dôr a um filho , mas para lhe poupar essa pequenina dôr somos capazes também de fazer soífrer o mundo inteiro . Mais tarde , quando fores pae , has de perdoar-me e has de comprehender-me . -- Assim -- tornou Manoel tristemente -- para me defender serias capaz de accusar tua própria mãe se fosse viva ? -- Porque perguntas isso ? -- Por nada : é que te admiro ! Agora estás tranquilla ? -- Sim ; estou socegada . Teu pae também andava inquieto ... -- Foi melhor assim ... Depois d' aquelle sacrifício parecia a Manoel que mais a amava e queria , e emquanto a beijava , commovido , parecia-lhe vêr a imagem de Anna caminhar para elle , trazendo-lhe n ' um sorriso o perdão do seu crime , offerecendo-se ao martyrio , resignada e paciente , com um triste gesto de immolada . Então todo o seu coração se abriu para a receber , sentindo crescer a sua divida de amor por essa doce creatura que depois de lhe ter sacrificado a felicidade ^ a virtude , o futuro , ainda se julgava recompensada na sua miséria e na sua dôr quando elle descia a bocca sobre a sua face tão pura , recordando-lhe n ' um beijo o festivo passado dos seus amores . Eram agora as duas que elle abraçava , com os olhos razos d ^ agoa , juntando-as no coração , aproximando as inimigas no mesmo culto , apasiguado pela certeza de que as saberia amar com o mesmo fervor e congraçafas talvez na mesma obra de justiça e reparação . Cessara emfim de chover e o nevoeiro suspendia com lentidões de panno de theatro . Ao longe um bando branco de nuvens subia o céo azul , lentamente , levado por uma brisa . Sob o sol doirado , Aldeagallega ao longe illuminou-se . A cidade anima va-se , resurgindo do diluvio , ondeante e cheia de corcovas na sua enormidade de mar com sete vagas immoveis . N ' uma altura o castello de S , Jorge cravava no morro a garra das muralhas e mais abaixo , na encosta , as torres da Sè subiam , negras e quadradas , erriçadas de postes telegraphicos . Tinham-se encostado os dois á janella e Manoel lembrava-se agora de que Anna o esperava mais cedo n ' esse dia , querendo que elle assistisse ao l : ? anho da creança -- e um leve sorriso correu-lhe pela face , na antevisão do filho patinhando no banho , todo nu , estendendo na agoa os seus membrosinhos cor de rosa . -- Tenho que ir . Queres alguma coisa lá de fora ? -- Porque estás tu a rir ? -- De te ver mais alegre ... Ella teve um gesto benevolente de incrédula , pousando-lhe a mão no hombro , e com uma indulgente ternura , não o querendo reter , lembrou as horas de jantar ; que não faltasse -- tinham a Viscondessa e ia-se fazer um plum-pudding . Manoel prommetteu : -- não faltaria ao bolo inglês e á Viscondessa . O Domingos foi buscar a cima o sobretudo e a bengala .