Marcellino Mesquita Os quatro Reis impostôres ( Romance da historia ) 1908 Antiga Casa Bertrand JOSÉ BASTOS & C.A 73 , RUA GARRETT , 75 LISBOA De Alcacer-Kibir a Alcantara El-rei " A historia é um romance " Em certo ponto , o Embaixador fez um signal ao Caïd , a escolta parou , e nós , acompanhados por alguns soldados , fômos , a pouca distancia , visitar uma ponte . Quando chegámos á margem , parámos ; não restavam da ponte senão algumas estacas na margem oposta . Estivemos alguns minutos olhando alternadamente para essas estacas e para o campo , absorto cada um nos seus pensamentos . O logar era realmente digno d' um mudo testemunho do espirito . Duzentos e noventa sete annos antes , no dia quatro de agosto , n ' aquelles campos trovejavam cincoenta canhões e revoluteavam quarenta mil cavallos debaixo do commando de um dos maiores capitães -- Africa , e um dos mais novos , mais aventurosos e mais desgraçados monarchas da Europa . Pelas margens d' aquelle rio fugiam em desordem , escorregavam no sangue , pediam misericordia , precipitavam-se nas aguas para fugirem ás cimitarras implacaveis dos arabes , dos berberes , e dos turcos , a flôr da nobreza de Portugal , côrtesãos , bispos , soldados hespanhoes e soldados de Guilherme de Orange , aventureiros italianos , allemães e francezes , e a cavallaria musulmana pisava seis mil cadaveres de christãos . Estavamos no terreno d' aquella memoravel batalha de Alcacer-Kibir que consternou a Europa e fez resoar um grito de alegria desde Fez até Constantinopla . Aquelle era o rio Makzem , n ' aquella ponte passava , no tempo da batalha , a estrada de Alcacer . Na visinhança da ponte estava o acampamento de Muley Moluk , sultão -- Marrocos . Muley Moluk vinha de Alcacer , o rei -- Portugal vinha de Arzila . Travou-se o combate nas margens do rio , na planicie que se estendia em torno de nós . Quantas imagens tumultuavam na nossa mente ! Mas a não serem as ruinas da ponte , não havia , uma pedra , um signal que recordasse o passado . De que lado tinha dado as suas primeiras cargas victoriosas a cavallaria do duque de Aveiro ? Onde tinha combatido Muley-Amed , o irmão do sultão , futuro conquistador do Sudan , capitão que pela manhã fôra suspeito de cobardia e que á noite era o rei victorioso ? Em que parte do rio se afogara Mahomed , o negro , fraticida descorôado , provocador da guerra ? Em que angulo do campo recebera o rei||_Sebastião Sebastião|_Sebastião o tiro de espingarda e dois golpes de cimitarra que mataram com elle a independencia de Portugal e as ultimas esperanças de Camões ? Onde estava a liteira do sultão||_Moluk Moluk|_Moluk , quando expirou , no meio dos seus officiaes , pondo o dedo na boca a impor o silencio ? Emquanto ruminavamos estes pensamentos , a escolta olhava para nós , de longe , immovel no meio d' aquella planura famosa , como se um manipulo dos cavalleiros de Muley-Hamed tivesse resuscitado , com o rumor dos nossos passos . Decerto , tenham d' aquelles soldados saberia que era aquelle o campo de batalha dos treis reis , gloria do seu paiz ; e , quando nos pozemos a caminho com elles , deitavam para um e para outro lado olhares curiosos , como para procurarem nas hervas , então floridas , alguma coisa que lhes explicasse a nossa paragem e a nossa contemplação . " Isto escreve um viajante italiano , de Amicis , atravessando Marrocos , n ' uma viagem a Fez , duzentos e noventa e sete annos depois d' esta batalha . Expliquemos . No paço da Ribeira , entre frades e jesuitas , a cabeça do piedoso imbecil que tinha o nome de D. João III , inclinara-se sobre o travesseiro , para não mais se levantar . Dos nove filhos que fizera em D. Catharina , irmã de Carlos V , nenhum restava . A série de casamentos consanguineos , sublimando nos successivos rebentos principescos as taras doentias , condemnara os filhos do lugubre fanatico a existências ephemeras . O que mais conseguiu viver foi um bastardo , D. Duarte ; naturalmente devido ao sangue da mãe e ás graças que lhe poria sobre a cabeça rapada a mitra archiepiscopal da Guarda . Viveu vinte e dois annos . Não se fizeram , á morte d' este rei , os prantos em prosa e verso , com que se celebraram em doloroso estilo os funeraes do pae , esse D. Manuel , esse mediocre e ruim vilão , a quem a generosidade chronistica não poude encaixar melhor cognome que o de venturoso . Cabe-lhe no entanto , para confirmação do dictado : quanto mais burro , mais peixe . Não havia vagar para chorar . O rei fôra uma figura kigubre , sangrenta , baixa , apagada na sua profunda ignorância e estupidez , sempre temido , jamais estimado . Debaixo da apparente grandeza o reino difinhava rapidamente . D. João II , um grande rei e um grande coração , a despeito do seu altissimo valor de pohtico , creara , pela ambição , a primeira causa da decadencia de Portugal : matara a monarchia popular de Aviz , fizera a monarchia absoluta . A vida era luxuosa , cara . Os nobres empenhados , quizeram oiro . Em honra dele correram , primeiro , ás colonias ; mas quando o rei foi o primeiro mercador e accummulou as riquezas do Oriente , acharam que era melhor , mais facil , mendigar-lhe as honras e as tenças e tornaram-se servis . O culto do rei trouxe , como sempre , a corrupção . A expulsão dos judeus matara o commercio . O rei estava empenhado , pobre ; pobrissimo o thesouro ; miseravel o povo , arrastando se esfaimado do campo para as cidades . Os annos de miseria sucediam-se : morria-se de fome sob os alpendres das casas , em Lisboa , pelas ruas , pelos becos . A população , dizimada os campos incultos , a industria morta . O Brazil e a India tinham exhaurido o paiz de homens validos . O resto dos energicos portuguezes andavam pela America e pela Asia , a batalhar , e a morrer . Os que cá estavam ou eram fidalgos inervados pelo luxo , transformados em côrtezãos , ou pobres que esmolavam a caridade , nos pateos dos fidalgos ou nas portarias dos conv ^ entos . O trabalho faziam-no milhares de escravos . Sobre este povo miseravel cahira a Inquisição prohibindo-lhe a liberdade do pensamento ; emquanto , surdamente minado , o altivo espirito publico , que tão nobre e tão grande fôra , morria ás mãos perversas dos Jesuitas , num ensino atrofiador , assassino ! Não havia tempo para chorar ! Uma afflicção intima , um mal estar geral , prenuncio de futuros e mais crueis desastres , oprimia grandes e pequenos . D. Maria , filha de João III levara a Filippe II , casando-se com elle , o direito á corôa portugueza , na falta de herdeiro portuguez . Um só havia . Esse tinha tres annos , era o unico neto do rei morto , filho do principe D. João , que morrera dezoito dias antes d' elle nascer , -- era D. Sebastião . A união , a encorporação da monarchia portugueza na grande monarchia hespanhola estava iminente . A independencia de Portugal tinha como unico amparo a vida de uma creança de tres annos , nascida entre sustos e anciãs populares , e cujo nascimento , anunciado pelos canhões e pelos repiques dos sinos , celebrado em tédéus , a imaginação popular cercou , mais tarde , de lendas , de aparições funebres , de signaes lugubres no céu . Rei morto , rei posto . D. Sebastião é aclamado rei aos tres annos ; mas fica como regente do reino sua avó||_D._Catharina D.|_D._Catharina Catharina|_D._Catharina , senhora de dotes politicos incontestaveis . Mal toma posse da regencia , torna-se-lhe inimigo implacavel , o velho , ambicioso , fraco , irresoluto e vingativo cunhado -- o Cardeal D. Henrique . Jesuita , intrigando , sem descanço , a principio com os Jesuitas , Leão Henriques , seu confessor , e Miguel Torres , confessor da rainha , e mais tarde com os irmãos Camaras , de tal modo amarguraram o espirito de D. Catharina , que esta um dia se demitiu do cargo , e o Cardeal foi elevado a Regente . Na alma amortecida do velho cardeal , ao lado da ambição que o avassalara sempre , só ardia ainda o fanatismo religioso . Os jesuitas , mandaram , governaram , enriqueceram . A Inquisição medrou em poder e em riqueza . Os negocios do estado tornaram-se em conflictos fradescos . Os conselheiros austeros , os homens dignos retiraram se para as suas terras , não podendo opôr- se á incapacidade exaltada , á subjeição servil da maioria , ás ordens dos padres , dos frades , dos pregadores , dos jesuitas , dos inquisidores , de Roma . Esta santa regencia teve , infelizmente como tudo o que é bom , de acabar . No dia em que D. Sebastião fez quatorze annos declarou-se-lhe a maioridade e começou a reinar . Comparando as informações dos chronistas com o retrato da Univerisdade de Coimbra vê-se que D. Sebastião era loiro-ruivo , de estatura meã , olhos azues , barba loira e rala , rosto excessivamente comprido , o que provinha do desenvolvimento maior do queixo inferior , caracteristica da casa d' Austria . O rosto era asimetrico , sendo a metade esquerda maior do que a direita . O beiço inferior tres vezes mais grosso do que o superior e descabido . Tinha normalmente uma expressão austera que casando-se com as feições descritas lhe dava ao rosto o quer que fosse de desagradavel , á vista . Sendo baixo e grosso não deixava todavia , de ter certo ar nobre , sobretudo a cavallo . Foi muito bonito em creança . Era dotado de agilidade e força , qualidades que aumentou sempre , pelos exercicios que levava ao exagero . Corria lanças horas a fio , completamente armado sem que o peso da armadura parecesse fatigá-lo . Padeceu , em novo , de perdas seminaes e ainda aos desoito annos , tinha vagados , deliquios , que o obrigavam a apear-se do cavalo e a deitar-se no chão , até lhe passarem . Fisicamente , como se vê , D. Sebastião era um doente . A beleza infantil e a força que parecem , á primeira vista , signaes de saude , não são n ' elle senão sintomas confirmativos de profunda lesão organica . Por notavel coincidencia , o sangue dos principes aragonezes vem com Santa Izabel viciar a primeira dinastia ; o mesmo sangue vem com D. Leonor , casada com D. Duarte , arruinar , matar a do mestre d' Aviz . Um dos filhos d' este casal é Affonso V , perdulario , teimoso , desarrazoado : outro é D. Joanna , que casa com Henrique IV de Castella e é mãe da Beltraneja . Peregrina formosura , recebida em Castella com festas e torneios que trocou o marido por D. Beltran de la Cueva e causou guerras . O terceiro é D. Fernando , pae de D. Manuel , que tentando furtivamente ir á Africa fazer proezas , é agarrado no caminho . O sangue de D. Manuel , aragonez pela avó misturava-se com o da mulher D. Maria , filha de Joanna a Doida , aragoneza pelo avô||_Fernando Fernando|_Fernando , o Catolico , que morreu melancolico . O filho d' estes , D. João III é , scientificamente , um imbecil e para aperfeiçoar a raça casa com a outra filha de Joanna a doida , a rainha||_D._Catharina D.|_D._Catharina Catharina|_D._Catharina , irmã de Carlos V , um epileptico . Dos filhos que não morreram , antes de casarem , um , foi D. Maria , que deu a Filppe II de Hespanha , o filho D. Carlos , corcunda , gago , e louco , que o pae , segundo parece , mandou matar ; o outro foi D. João , fallecido aos 16 annos , pae de D. Sebastião Qualquer medico , pelo que fica dito , concluirá com a maior certeza que D. Sebastião -- é um degenerado , um epileptico . Tal era bastante ; mas nos dez annos do seu reinado o que fez e o que disse completa , absolutamente , o diagnostico tirado á priori . Quando está em Cintra , muitas vezes , levanta-se da cama alta noite , sahe do palacio e mete-se pelos bosques mais espessos , só , sem socio algum e monologando , passeia , passeia , até que o cansaço ou o somno ou a luz do dia o fazem recolher a casa . Em Lisboa escolhe os dias de temporal desenfreado ou as noites e metido n ' um fragil barco , proa á barra , increpa os ventos e as fúrias , desafi-ando os elementos . É um alucinado , direis , e não é outra cousa . Quando a côrte está em Almeirim levanta-se tambem , muitas vezes de noite , sahe , anda por fóra largo tempo . D ' estas excurções diz o cronista : contam-se cousas que por menos criveis se deixam de referir . Veremos que cousas são . Em Lisboa levanta-se da cama , pelas onze horas , acorda o pagem da campainha , que dorme ao pé do leito , pedelhe a espada e ordena-lhe : vem . Sabem os dois , sós . Vão andando ao longo rio , e em certo ponto , pede-lhe a espada e vae só pela praia e tanto se demora que o pagem adormece ; o que o Rei folga de ver porque assim entende que o não espreita . Outras vezes , mete-se n ' um batel com Sancho de Toar , saltam da banda d' alem num areal , o rei afasta-se até ir encontrar-se com um homem que veio de Belem , sósinho , n ' um bote . Demora-se com elle duas ou trez horas e voltando a Sancho de Toar , regressam a Lisboa . Por cuja causa , diz o cronista , se fallam conjecturas de que o rei havia alguma especie de illusão e engano de entendimento . Combinando estas misteriosas divagações nocturnas com a repugnancia que lhe inspiravam as mulheres , o leitor comprehende que o alucinado se desdobra em pedrasta . Esta repugnancia que lhe atribuiram ao fanatismo religioso , ao desejo de pureza que o irmanava a um cavaleiro templario no voto intimo de castidade , não lhe veiu só da educação da unica pessoa de quem gostou no mundo , o mestre Luiz Gonçalves da Camara , jesuita e valido , mas , sobretudo , da sua organisação miseravel , defeituosa . É natural que o mestre lh'a exacerbasse , quem sabe mesmo por que processos . O que é certo , é que a unica pessoa que D. Sebastião estimou a valer , a unica por quem chorou , ao saber-lhe da morte , foi por elle . Não era porque o Camara fosse atrahente , porque segundo o embaixador de Veneza de então : era de presença rustica e pouco agradavel , rejubilava pela falta de um olho que o desfigurava e pelo defeito que lhe prendia a fala , às vezes . Segrêdos do amor ! Era um invejoso . Nos torneios , nas caçadas , quem se lhe avantajasse , tinha immediatamente uma demonstração de desagrado , de resentimento . Por jactancia , n ' um exagerado amor e consideração de si mesmo , por futuras proezas heroicas que havia de fazer , insultava um dia em Alcobaça os reis que se não tinham distinguido , nos campos da batalha . Nas conversações faz continuamente esta pergunta : o que é o mêdo ? Quando alguem narra o feito heroico de um capitão , de um bravo , tem sempre esta phrase : Se não fosse D. Sebastião quizera ser esse . Ao ouvir prudentes conselhos de D. João de Mascarenhas , imagina que o heroe de Diu é um cobarde e propõe a uma junta de medicos o decidir : se um homem valente pode ser medroso na velhice . Nem a este nem a Luiz de Athayde os quer levar á Africa para não se encontrar ao lado de fracos . Ao duque d' Alba o famigerado e sanguinario guerreiro pergunta em Guadelupe : dizei-me , duque , de que côr é o mêdo ? A que o duque , o primeiro general do seu tempo , velha raposa , respondeu : Senhor , é da cor da prudencia . É impaciente , é impetuoso , é brutal . Porque o aio o velho e nobre D. Aleixo de Menezes o não deixa sahir n ' um cavallo por ensinar , insulta-o . Porque em Cintra um camarista o adverte de que se não ria d' um velho fidalgo trôpego que o vem visitar , dizendo-lhe que n ' aquelle estado o puzeram as feridas recebidas em Africa , bufa tanto e com taes palavras de enfadamento , que o camarista sahe do paço e retira-se para Lisboa . É um glutão , é um mentiroso , como se verá . A perversão dos sentimentos affectivos é completa . A avó , que o estimava , apressa-lhe a morte com desgostos ; a D. Maria , sua tia , a quem deve inumeros favores , chora-lhe a morte fazendo justas e torneios antes de um mez de enterrada ; ao Cardeal , ao Prior de Crato trata como inimigos . Os proprios amigos , os mais chegados , aquelles a quem mais parecia estimar estavam sempre na iminencia de uma ruptura de relações , porque , como estimava , agora , detestava e aborrecia , logo . A todos estes factos de jactancia , de inveja , de vaidade extrema , de perversão sexual e affectiva , de impulsivismo , de dolo , de glutonice , juntam-se para completar a confirmar a epilepsia de D. Sebastião o misticismo e a tenacidade , a obstinação n ' uma dada enipreza , ideia que salta por cima de todos os obstaculos , fixa , invencivel -- a ideia fixa epileptica . Quer ser o capitão -- Deus ; assim o pede nas suas orações ; assim o recommenda aos padres para que lh'o consigam nas d' elles ; assim o solicita de D. Maria de Menezes no dia em que ella professa em Xabregas . -- Que quereis que peça para vós ao meu divino esposo ? -- Pedi-lhe que me faça seu capitão , responde o rei . Aos dez annos quer fazer longos jejuns . A avó oppõe-se . Como para ser capitão é preciso ter tropas , arranja tropas ; e como para dar que fazer ás tropas é preciso matar ; arranja o alvo . É a Africa , é o arabe , é o barbaro ! Conquistar a Africa ; levar uma expedição ás Indias , voltar pela Pérsia ; destruir o islamismo , nas muralhas de Constantinopla , taes eram as pequenas emprezas em que se deliciava a sua imaginação doentia . A Africa estava ali a dois passos . Na costa de Marrocos tinhamos ainda praças importantes . Era preciso conquistá-las todas , fazer um imperio . Sentia-se Alexandre ; cria-se maior do que Albuquerque , o Capitão de Deus . Começa a exercitar-se : vae ao Algarve como em simples excursão , mas com o fito de se encontrar com os corsarios da costa . Tenta ir á India ; mas o Cardeal afirma-lhe sob juramento de que não haverá esquadra que o leve . Então começa a planear em segrêdo e em 1574 , um dia , desaparece . Grande consternaçcão na côrte e na cidade . Onde estará ? onde iria ? N ' isto vem uma carta de Lagos em que D. Sebastião explica que vae á Africa e que os fidalgos que o quizerem seguir que vão lá ter com elle . Foram alguns e lá partiu para Ceuta e d' ali para Tanger , onde escaramuçou com os arabes . D ' estas escaramuças em que os arabes fugiam , porque nem vinham para combater mas para espiar , o Capitão de Deus concluiu que era facilimo conquistar Marrocos , visto que todos fugiam dos golpes da sua espada e voltou ao reino com a ideia mais firme , mais enraizada da grandiosa conquista . E não pensou mais n ' outra cousa . Nem nas intrigas do Cardeal , nem nos despeitos da avó , nem no estado miseravel do paiz , sem gente , sem agricultura , sem industria , sem ter que comer . Conquistar Marrocos , eis tudo ! Um facto extraordinario veio determinar D. Sebastião . Muley-Hamed derrotado por Abdel-Mulek e Muley Moluk em quatro batalhas , foi expulso de Marrocos e veiíi á pressa mendigar o socorro de Filippe II . O astuto Filippe nem consentiu que elle entrasse na fortaleza de Peñon-de- los Velez , aonde se dirijira . Desenganado pelo rei catolico , Muley-Hamed veio pedir o auxilio de D. Sebastião . O pedido não podia vir mais a proposito . D. Sebastião recebeu-o com o maior prazer . Dava-lhe azo a proseguir com maior força a realisação da sua ideia . Desculpava-o , de certo modo , perante a má vontade geral . O cherife prometia-lhe Larache como recompensa ; elle faria que Larache fosse o imperio . Como penhor de confiança entregou-lhe a chave de Arzilla , abandonada por D. João II . Reuniu o conselho . O conselho oppoz- se ; não o ouviu . Mandou a Madrid pedir a Filippe II um auxilio de tropas ; para o resolver falava-lhe em casar com uma das filhas . Houve uma conferencia entre os dois reis em Guadalupe . O duque d' Alba mostrou o perigo de uma invasão pelo interior de Marrocos , o que deu origem á pergunta sobre o mêdo e á resposta do duque . Ficou assente : D. Filippe prometteu cinco mil soldados e cincoenta galeras . Não era nada . Portugal não tinha gente . Seria um milagre arranjarem-se os dez mil homens que o rei mandara alistar . Escreveu ao grão duque de a Toscana a pedir-lhe quatro mil soldados italianos ; a Guilherme de Navarra outros tantos allemães . E dinheiro ? Hipotheca no estrangeiro as drogas da India ; lança um imposto cruel sobre o sal e mais um por cento sobre todas as mercadorias ; levanta os dinheiros dos cofres dos orphãos e dos depositos ; finta os municipios , no que só o de Lisboa tem de pagar 30:000 cruzados ; pede a particulares ; faz contribuir os moleiros conforme as vendas ; recebe do clero para lhe não tomar as terças dos bens , segundo a ordem da bula da cruzada , 150:000 cruzados ; suspende a fiscalisação dos bens dos christãos-novos por 10 annos , por 285:000 cruzados de donativo e mais cem mil de emprestimo ; recruta a torto e a direito para obrigar os resgates a dinheiro . O rei andava doido de contentamento , a exercitar-se em jogos e corridas continuamente , para se tornar incansavel . Esta loucura começou a invadir os fidalgos , rapazes novos cheios de audacia e como o rei se preparava luxuosamente em armas e bagagens , começaram aquelles a querer hombrear em fausto e empenharam-se , alguns para sempre , com fatos de seda recamados de oiro e armaduras carissimas . Em vez de agua e bolacha , diz um escriptor , compravam dôces e conservas ; as tendas eram forradas de seda , e nos serviços de prata , havia vasos e taças de extraordinario valor . Cada fidalgo era um pequeno rei . A lucta contra tal designio afervorava-se á medida que se via mais próximo o dia da partida . Os conselheiros , os homens sensatos , os velhos capitães experimentados , o cardeal , a avó , Filippe II , verdadeira ou falsamente interessado , opunham-se pela prece , pelo conselho , pela auctoridade . D. Sebastião sorria de uns , zombava de outros , não ligava importancia a nenhum . Filippe II não se cansava de lhe escrever ; escreveu-lhe o duque d' Alba : os embaixadores andaram n ' uma roda viva a trazer recados . Escreveu lhe Jeronymo Osorio ; o papa Pio V aconselhou-o . Tudo debalde . Dizia-se até que , como D. Sebastião fazia sempre o contrario do que lhe aconselhavam , Filippe II lhe aconselhava a que não fosse na expedição se a fizesse , com a certeza de que assim mais o resolvia a fazel-a e a ir . O que é certo é que já cansado de teimas e dos arrufos do rei dissera um dia : -- Pois que vá ; se vencer terei um bom genro ; se fôr vencido terei um reino ainda melhor . A expedição estava pois resolvida . D. Sebastião passava o dia com os soldados , em exercicios , ou com os fidalgos , em jogos , ou nas galés assistindo aos preparativos . Andava radiante ; elle que era em geral , concentrado e pouco expansivo . Os remadores lembraram-se tambem de solicitarem do rei o adiamento da expedição . Era uma corporação de pezo ... o rei mandou-os embora . O duque||_de|_Medina_Coeli de||_de|_Medina_Coeli Medina|_de|_Medina_Coeli Coeli|_de|_Medina_Coeli tambem deitou epistola e não foi mais feliz do que os de mais . Era uma lucta continua e improficua . A avó , essa então , lançada por elle á margem , não cessava de pedir a todos que se opozessem , decididos , á empreza e já doente parece que peiorou quando viu que eram baldados todos os esforços . Foi adoecendo mais e mais até que morreu a pedir : Não o deixem ir á barbaria , não o deixem ir á barbaria ! Por essa occasião D. João de Mascarenhas o velho heroe da India um dia , com a auctoridade dos annos e dos serviços , fallou mais alto : D. Sebastião chamou-lhe cobarde . -- Cobarde ? replicou o velho fidalgo levando instinctivamente a mão á espada ; cobarde , eu ? -- Ou fraco , replicou o rei . -- Senhor , exclamou erguendo altivamente a sua bela cabeça de velho ; tenho oitenta annos para vos aconselhar e vinte e cinco para vos servir . A resposta altiva se fez calar D. Sebastião não o dispoz a favor do velho guerreiro a quem mais tarde prohibiu que o acompanhasse á Africa , como já disse . Ainda , já no mais adeantado da expedição , Muley-Moluk que era o mais sabio e mais distincto homem que occupara o throno de Marrocos , guerreiro habilissimo , politico não menos habil , escreveu ao rei . E dizia-lhe : que não permittiria mais a entrada aos turcos nas suas terras -- os turcos eram temidos na Europa -- que desejava a amizade do rei -- Portugal e daria á roda das praças da Africa portugueza espaço para os portuguezes cultivarem como lhes aprouvesse , garantindo-lhes munições e viveres . Estranhava que el-rei se ligasse com Muley-Hamed que ainda havia pouco combatera contra os portuguezes em Mazagão . A carta era habil e séria . D. Sebastião quando a leu , riu-se . Riu-se e disse para os que lhe estavam perto : Vêde como Muley-Moluk receia a minha espada . Não fosse elle completamente doido e teria respondido , nobremente , ao prestigioso sultão . Ao saber-lhe da resposta ou pelo menos do desprezo que mostrara pela sua nobre tentativa de paz Muley-Moluk disse indignado . -- Peior para elle . Sobre um ladrilho podre da Africa darei duas batalhas ao rei -- Portugal . D. Sebastião rejubilava . A azafama era enorme em Lisboa , nos estaleiros onde os operários trabalhavam até os domingos , com licença prévia da egreja . Pelas ruas , pelas praças era um inferno . A cidade era um quartel de soldados estrangeiros , falando todas as línguas , o hespanhol , o italiano , o allemão ; com fatos de todas as cores , com armas de todos os feitios . Havia descantes , jogos , rixas . De uma vez travaram-se allemães e portuguezes á Boa Vista e houve mortes . De outra vez foram os portuguezes e os hespanhoes que se bateram no Rocio , como em campo de guerra . D. Sebastião condemnou á morte todo aquelle que puxasse pela espada , nas ruas de Lisboa . Foi improficua a ordem . Os marinheiros eram de má raça e a ordem só começou a reinar na cidade quando os foram separando para as praias onde tinham de embarcar . Emfim , reunidos todos os elementos de homens e de armas que fôra possivel arranjar , promptas as galés , calados todos os murmurios , pela empreza inevitavel , D. Sebastião faz o seu testamento , escreve-o elle proprio , manda buscar a Santa Cruz de Coimbra a espada de Affonso Henriques , e com uma bandeira nova bordada ricamente , uma corôa d' oiro fechada -- corôa de imperador , -- com o sermão já feito para a coroação pelo confessôr , manda embarcar . Dez dias depois , a 25 de julho , por um vento favoravel a frota de oitocentas velas , levando a seu bordo dezoito mil homens , volta as proas á barra e parte no meio de lagrimas , de preces de uns , de maldições do maior numero dos que ficavam . Quem ia doido de alegria era o rei . A batalha Tinha vencido todas as difficuldades . A sua epilepsia tinha-o armado contra todas as más vontades , contra todos os bons conselhos , contra todas as boas razões dos velhos generaes , dos experientes . Vencera todos , só lhe faltava vencer Muley-Moluk e isso era questão de poucos dias ; a Africa avisinhava-se e elle estava , lá , a espera-lo . O rei ia doido de alegria e deixava outro não menos alegre a expial- o , a seguil- o e a rir-se -- Filippe II . A frota chegou a Lagos onde embarcou as tropas do Algarve e a Cadiz onde esperou os corpos auxiliares hespanhoes . A6 de julho chegava a Tanger onde o xerife Muley-Hamed se juntou ao rei com o seu fraco contingente . De Tanger embarcaram para Arzilla . Como o ambito da praça não comportava tanta gente , acamparam fôra dos muros e no areial erguiam-se , batidas pelo sol , duas mil tendas . D. Sebastião com a preoccupação de que houvesse qualquer combate sem que elle estivesse presente veio collocar a sua tenda real no meio do acampamento , fóra dos muros . Com a mania da valentia , prohibiu que se cercasse o arraial com estacadas , que se abrissem fossos . Os cortezãos , aprovavam-lhe as inconsciencias todas -- manha de cortezãos -- garantindo-lhe que os arabes não ousariam approximar-se , sequer , das tendas onde fluctuasse a bandeira do rei -- Portugal ! Esperaram-se doze dias pelas bagagens , e a espera fez-se no meio de folias , de jogos , de rixas . N ' um reconhecimento dos soldados de Muley-Moluk , D. Sebastião correu sobre elles , e , como elles fugissem , imaginou ter ganho uma grande victoria , e mandou dizer para Lisboa , ao conselho , que os arabes tinham apanhado a primeira lição . A si proprio se illudia , querendo illudir os outros ? Não ; o capitão -- Deus estava convencido de que era o terror dos mouros . Homens e cousas a postos , o rei reuniu o conselho de guerra . Era apenas uma cerimonia . D. Sebastião não tinha a menor tenção de se sujeitar ás suas resoluções ; mas era costume , fê-lo . E , logo appareceram tres opiniões : Uns diziam : embarque-se imediatamente e vamos por mar sitiar e tomar Larache . Diziam outros : vamos por terra ; mas sempre ao longo da costa , para não se perder o amparo da esquadra . A terceira opinião , a conforme com a vontade do rei , era a de entrar pela terra dentro , pelo caminho mais curto e encontrar o inimigo o mais depressa possivel . Era a peior , mas como era a que elle proprio sugerira , aprovou-a logo . Então o conde de Vimioso protestou . -- Era o mais insensato dos planos , disse . -- É preciso pensar nos perigos de uma longa marcha incerta , cheia de perigos por desconhecimento completo dos caminhos . -- Vá-se por mar ; d' aqui a Larache são 6 horas . Ataca-la hemos por terra e por mar ; num momento será nossa . Conquistada teremos um hospital para doentes e feridos , um logar seguro para as bagagens , um quartel general para centro de operação . A bahia é excelente para recebermos qualquer reforço . Ora o rei não concordava . Elle não ia á Africa para conquistar Larache . Elle ia para se bater ; para espantar pela audacia a barbaria e a Europa . D. Sebastião não era um general , um rei politico batendo-se pela gloria e augmento do seu paiz , era um cavalleiro andante , cuja dama era a fama universal que ambicionava do maior dos guerreiros , do mais valente dos homens . Elle queria perigos , não queria conquistas faceis ; elle queria fazer tremer a Africa com as patas do seu cavallo , como um Attila . Oppoz- se claramente ao Vimioso , e seguiram-no , appoiando-o , os cortezãos amigos , os lisongeiros , os que não queriam perder a sua graça e a sua amizade , os timidos e os servis . E , como todos percebessem que o rei queria ir por terra e que era inutil contradizel- o , a discussão affrouxou e a marcha por terra -- direita a Alcacer-Kibir -- ficou assente Ora , n ' essa noite chegaram ao arraial um frade , Fr. Roque de o Espirito Santo , e Diogo da Palma , que vinham do interior de Marrocos e pediram para fallar ao rei . Este mandou-os ir á sua tenda onde estava com varios fidalgos . -- o que quereis ? perguntou o rei . -- Senhor , dar conta a Vossa Magestade -- foi D. Sebastião o primeiro rei que teve este tratamento -- das forças de Muley-Moluk . -- São grandes ? -- Enormes , senhor . -- Melhor . O seu acampamento é melhor do que o meu ? -- Bem melhor , replicou o frade . -- Irei tomar-lh ' o . Que mais quereis ? -- Dizer-vos que será loucura oppor o vosso exercito , pequeno como é , ao exercito do sultão que será quatro vezes maior . -- Vindes aqui para dizer sandices , exclamou o rei , cheio de cholera , porque os fidalgos estavam ouvindo a informação . Não vos tolero conselhos ... E mandou-os prender . Foi então que o barão d' Alvito , sahindo da tenda com o confessor do rei , lhe disse : -- Porque não prendemos este homem que está doido e que nos perde ? -- É tarde ! disse o frade . -- Ah ! é ? Então , padre nosso pelo rei , pelos vassallos , e pelo reino . O rei chamou D. Diogo de Souza em segredo e disse-lhe : leve a frota para o porto -- Larache e espere-nos ahi . Parta depois de nós . O almirante partiu , como o rei lhe ordenava . O arraial desfez-se como por encanto , e o rei , na vanguarda da brilhante cavalgada dos seus fidalgos cheios de sedas e oiro , de armas luzentes e signas ao vento , seguido pelos terços allemães , pelos hespanhoes , pelos italianos , entrou pelo deserto . Era a manhã de 29 de julho quando o exercito se poz em marcha , artilheria á frente , aos lados a cavallaria em esquadrões , um a cuja frente ia o rei , e outro o duque de Aveiro . O calôr do sol e o calôr reflectido pelas areias em breve começa a quebrar os corpos dos homens e dos animaes . Levaram-se viveres e agua para cinco dias , mas o calôr era asphyxiante , a transpiração excessiva fazia apparecer a sede , e ao fim do primeiro dia de marcha , tinha se bebido quasi toda a agua . A marcha era lenta , difficil , para a infanteria . Os soldados começavam a deixar-se ficar para traz , uns asphyxiados pelo calôr , outros extenuados pela marcha sobre a areia quente e movediça . De vez em quando a cavallaria fazia alto , para deixar approximar os atrazados , e , um pouco mais agrupados , lá começavam de novo a arrastar-se mais do que andar pelas areias . A primeira noite de descanço , o ar menos quente , a comida , reanimou um pouco as gentes ; mas , no outro dia , recomeçou a caminhada debaixo do mesmo sol , sobre a mesma terra , despida de relva , areiosa , d' onde os pés , arrastando-se , levantavam nuvens de pó , qne se infiltrava pelo nariz , pela garganta , que inflammava os olhos . Começaram as queixas , os murmurios de protesto ; a agua tornava-se já escassa . Aonde ir procural-a ? A planicie não tinha fim , o sol dardejava inclemente , o chão queimava . Os murmurios tornavam-se em apostrofes , em pragas , em vozes de rebelião . Os commandantes começaram a perceber que tinham de dar remedio aos protestos . D ' ahi a horas , viria a indisciplina , a revolta . Aquillo não era marchar . No segundo dia tinha-se andado , apenas , tres leguas , o máximo , e havia agua : estava quasi a acabar ; quando faltasse de todo , o que seria ? Foram ter com o rei . -- É preciso voltar , meu senhor , é preciso voltar para traz , vamos para Arzilla e de lá , por mar para Larache . O rei consentiu , o que espantou alguns . Teria D. Sebastião um momenuo de bom senso ? A situação era claramente dificil ... mas o rei consentir , ser de opinião de retroceder ... Mandou-se Affonso Correia com quatrocentos cavalos voltar logo para Arzilia a prevenir , emquanto o exercito descançava um pouco , sob as tendas . Pela noite apareceu outra vez Affonso Correia com os cavaleiros . -- O que ha ? perguntaram . -- O que ha ? é que a esquadra já lá não está . -- Não está ? -- Logo depois de partirmos , partiu ella tambem . -- Para onde ? -- Para Larache . D. Sebastião teria a coragem de fazer hipocritamente um signal de desgosto ? Talvez . Não havia pois remedio , agora . Era andar para deante , custasse o que custasse , á procura da agua e de Muley-Moluk . Mal dispostos , aborrecidos ou indignados , os soldados lá se foram levantando e marchando . No outro dia , 2 de agosto , appareceu um rio -- o Makzem . Foi uma alegria . Começaram a marchar-lhe ao longo quando de subito , enire nuvens de pó começam a apparecer aqui e alli cavalleiros arabes . Eram os espias ; ao longe , muito ao longe , viam-se manchas negras pelo areal ; era o exercito de Muley-Moluk . E , de então , os corredores arabes começaram a sua tarefa de cahir sobre os mais atrazados , de atacar , em corrida doida , a rectaguarda do exercito . A marcha complicava-se com mais esta difficuldade . -- Vamos sempre pelo lado do rio , até Larache , propunham uns . -- Vamos a direito ter com elle , diziam os que sabiam que assim agradavam ao rei . -- É esse o caminho , confirmou D. Sebastião para a frente ! Muley-Moluk , que , ao ver o exercito do rei seguir a margem do rio , imaginou que se dirigia a Larache para a tomar , diz-se que exclamou : Larache está perdida ; ninguem lhe poderá valer . Mas quando viu que o exercito deixava a margem do rio e se dirigia para elle , teve um momento de alegria pensando para si : agora são elles que estarão perdidos . Habil general , Muley-Moluk começou a marchar em sentido contrario ao de D. Sebastião e aproveitou uma pequena iminencia que havia ao meio da planicie para esconder a artilheria . Colocou o seu exercito de quarenta mil homens , na maior parte cavaleiros , na fórma vulgar arabe de combater , em meia lua ou crescente , disfarçou completamente a artilheria com ramagem e hervas , encarregou um dos seus officiaes de cavalaria de voltear o exercito portuguez logo ao começar da batalha , e de atacar a rectaguarda , e um outro de escaramuçar continuamente com as columnas portuguezas pelos lados . Tudo ordenado , esperou . E , esperou com a morte no coração , disfarçando sofrimentos horriveis , porque estava envenenado , falando ás tropas com belas palavras de incitamento e de confiança . Andava n ' uma berlinda , palido , com uma serenidade absoluta , de grande rei -- de grande capitão . O exercito aclamava o , ouvindo-o . D. Sebastião ao vêr aproximarem-se os inimigos enchia-se do ardor e de coragem . A coragem que augmentava no rei diminuia nos que o cercavam . A tropa estava cançada , abatida pela marcha . Sentia-se a má vontade em todos , a convicção clara do perigo immenso ante o formidavel exercito fronteiro . Um fidalgo exclamava : -- Que infinita moirama se descobre ! D. Sebastião replicou , de golpe : -- Não é tanta como vos faz ver o mêdo . Antes de se começar a formar o exercito em ordem de batalha , alguns fidalgos foram ter com D. Sebastião . -- Vimos pardir a v. magestade que não assigne a morte da nossa terra . -- Como ? -- Combatendo , agora . -- Porquê ! Somos um punhado de homens , n ' este deserto , envolvidos d' aqui a pouco por essas duas foices de milhares de cavaleiros que se abrem deante de nós . -- E ousaes dizer-me isso , vós ? n ' este momento ? Ide aos vossos lugares , mandou o rei , n ' um movimento de colera insustida e agora justa . Eram os que o tinham aconselhado á marcha . Entretanto D. Duarte de Menezes formava o exercito para a peleja . Na vanguarda , os fidalgos , á esquerda os italianos , á direita os arcabuzeiros de Tanger , o terço alemão e o hespanhol . Ao centro os terços de Lisboa e do Alemtejo ; á rectaguarda os terços de Santarem e do Algarve . Os carros e carroças flanqueavam as columnas ; ao centro iam as bagagens . Uma companhia de arcabuzeiros cobria a rectaguarda e nas duas alas marchava a cavalaria . Na frente da columna marchava a artilheria . Formado o exercito , D. Sebastião percorria as fileiras com o rosto alegre , enthusiasmado , dando ordem terminante para que ninguem atacasse senão á sua voz . Começaram a mover-se , lentamente , um para o outro os dois exercitos , o portuguez cerrado e unido quanto podia ; o arabe abrindo n ' um movimento lento as suas enormes tenazes . Ao ter a vanguarda portugueza ao alcance do tiro , a artilheria , escondida , e só então reconhecida pelos nossos , rompeu o fogo . Fez-se o pannico , pelo ataque imprevisto , mas que serenou em breve , não de todo , mas em grande parte . A imobilidade do exercito dava alvo aos tiros . Que fazia D. Sebastião ? Imovel como um espectro , n ' um d' esses momentos dos epilepticos , n ' um alheiamente de tudo o que o cercava , olhava e não via , escutava e não ouvia . E a artilheria continuava a dizimar a vanguarda . -- Então , senhor , quereis que morramos aqui , todos , parados ? Grilou-lhe do seu logar , á frente dos fidalgos -- aventureiros como lhes chamavam , -- Bernardino Pachêco ? O rei não o ouviu . Sereno e imovel , ficou , Jorge de Albuquerque Coelho , que estava perto de D. Sebastião , corre junto d' elle e brada lhe : -- Senhor , não vedes nem ouvides ? não vêdes os estragos que faz a artilheria ? Porque esperaes ? D. Sebastião acordou . Levantou a cabeça , correu com a vista o sitio da peleja , depois o exercito inteiro , e mandou a um trombeta que d' esse o signal de Ave-Maria . O jesuita Alexandre de Mattos , de cima do seu cavallo , levantou ao alto um crucifixo , os homens de pé ajoelharam na areia , curvaram-se nas selas os cavaleiros e um silencio grave reinou , por instantes , no exercito abatido . Ergueram-se os infantes , firmaram-se nas selas os cavaleiros , florearam as bandeiras , soaram os clarins e os tambores e esperou-se o signal do ataque . Não se ouviu ; mas viu-se D , Sebastião abalar , de chofre , á frente dos seus cavaleiros , de encontro aos mouros e sumir-se na peleja . Brava e rija carga destroçou a cavalaria arabe que mais perto estava , rompendo-lhe a cohesão , a ordem . O exercito porém ... via . El-rei prohibira atacar sem sua ordem ; os capitães esperavam . D. Duarte de Menezes , menos paciente , seguiu atraz do rei a sustentar-lhe a furia ; mas o resto do exercito não se moveu , disciplinado e não calmo . A immobilidade era a derrota . Olhavam-se uns e outros na irresolução da desobediencia , quando o terço dos aventureiros resolveu desobedecer . A ordem não vinha ; que faziam ali ? Abalaram de impeto e atraz d' elles os arcabuzeiros de Tanger . A carga foi heroica . Deante da columna rasgou-se uma avenida enorme e os bravos cavalleiros toparam com a liteira onde Muley Moluk , moribundo , assistia ao desastre . De tal indole era o arabe , que pediu o cavallo , julgando a batalha em perigo ; mas ao montar , faltaram-lhe as forças , vergaram-lhe as pernas e cahiu nos braços dos officiaes , pondo o dedo nos labios para indicar que guardassem silencio sobre a sua morte . E morreu ! Estaria perdida talvez para os arabes a batalha , se o exercito portuguez atacasse , n ' esse momento , inteiro , ousado , na perspectiva da victoria que sorria ; mas uma palavra , um aviso intempestivo , aniquilou a situação ganha . Um dos capitães , ao vêr paralisado o exercito e avançados , de mais , os terços destacados , receando por elles , sem auxilio , gritou : ter , ter . A esta voz o impeto dos que se batiam afrouxou , indagando a causa , entre espanto e receio . Voz egual repetiu a primeira aos esquadrões do rei e de D. Duarte de Menezes . Instinctivamente , houve um movimento de paragem , seguido de um outro de recuo . Foi a perda da batalha . Os arabes , ao verem hesitar e recuar os esquadrões , imaginam que qualquer cousa extraordinaria se passa , ou que é o mêdo que faz recuar os portuguezes , unem-se , excitam-se com gritos , animam-se , carregam com furia brava . A vanguarda desordena-se e vem lançar a confusão e a baralha nos terços formados em columna . Ao mesmo tempo a cavalaria de Abdel-Melek ataca n ' uma carga impetuosa a rectaguarda , os cornos do crescente apertam as alas e a chacina começa , na confusão horrivel dos corpos , entre gritos , entre pragas ! Então o campo de batalha torna-se um circo de combates irregulares , de proezas homericas , onde cada um vae vender a vida , cara , quanto lh'o permitirem a força e o instincto . No meio do grupo dos seus cavalleiros , grupo já disinado , mas ainda corajoso e feroz , D. Sebastião , ao vêr perdida a batalha , a caça brava dos cavaleiros arabes aos peões fugitivos , aos cavaleiros apeados , tem um d' estes momentos de colera summa , de dôr , de raiva ; e , notando a artilharia em risco de ser tomada , precipita-se como um louco brandindo a espada , rasgando corpos , disimando , matando ! Segue-o o grupo dos seus cavaleiros , a flôr da nobreza , dedicada e audaz , resgatando pela bravura a imprudencia dos poucos annos . É esta a celebre carga onde o duque d' Aveiro , o duque de Bragança , D. Jayme , D. João de Mendonça e tantos outros , encontraram a morte . O rei esse não morrera ainda . Batia-se , batia-se sempre , emquanto a seu lado os defensores iam a pouco e pouco cahindo , exanimes , golpeados de feridas . Era como um leão do deserto , ferido , a defender a vida . Cahira- lhe o capacete , escorria-lhe o sangue pela testa ; a armadura amolgada mostrava a grandeza dos choques sofridos ; mas na clareira que a sua espada abria , hirto na sela , o olhar injectado , os arabes olhavam-no com mêdo , e cahiam pelo chão quando elle arrancava n ' um impeto , semeando o terror e a morte . O prior do Crato coberto de sangue , roto , tirada a armadura , corria ao rei , dizendo-lhe : -- Tendes aquella aberta , salvai-vos ... e mostrava-lh ' a com o dedo . -- Fugir ? -- Que remedio senhor ? Que outro tendes ? -- O do céo , disse sinistro o rei , se os nossos males o merecerem . -- Se não fugis , morrereis ! disse o prior , como a obriga-lo a aceitar-lhe o conselho . Olhou-o D. Sebastião , fitamente . Um riso estranho , feito de agonias e de raivas lhe passou pelos labios , e , com voz serena , d' uma frieza de morte , disse : -- Morrer ! sim ; mas devagar ! Devagar ! nunca em batalha alguma do mundo se disse cousa egual . Nunca , ouvido humano escutou , em circumstancia tal , tão grande , tão eloquente , tão extraordinaria e reveladora phrase ! É uma alma que se fez som ; a alma d' um heroe , a alma d' um ser que sintetisa uma raça de bravos , um povo de valentes até á loucura ! Morrer mas ... devagar ! Devagar ! É um poema de orgulho , de grandeza humana . Sente-se que está fóra da humanidade normal , que só a podia dizer . . um doido ! -- D. Sebastião . E , lá partiu uma e outra vez , cada vez mais desacompanhado , ceifando corpos , abrindo clareiras . Um a um os cavalleiros , o Vimioso , o filho , o conde da Vidigueira , D. Rodrigo de Mello , o bispo de Coimbra , e tantos outros , até Christovam de Tavora , o intimo , o amigo até á morte , cahiram para não mais se erguerem . Ao vê-lo só , a chusma rodeou o . Rodeava-o , mas não avançava . Era terrivel de vêr . O rosto afogueado , sujo de pó e suor , a espada a escorrer sangue , empunhada n ' um aperto brutal como se ella e a mão fossem ambas de ferro . Ninguem se chegava . O olhar selvagem do rei espreitava o menor movimento e o fita-lo fazia recuar . Farto da espectativa ia lançar-se n ' um novo arranco para matar , quando se ouviu um tiro de arcabuz . O rei vacilou na sela ; viu-se-lhe na testa uma mancha negra d' onde o sangue jorrou ; a mão esquerda largou as redeas , a direita a espada ; o corpo inclinou para o lado , vacilou , desiquilibrou-se , cahiu , redondo , morto ! Rugiu a turba ! Como cães esfaimados lançaram-se a elle e arrancaram-lhe as armas , as esporas , o fato . D ' ahi a minutos o rei estava nú . O imperio -- Marrocos eram sete palmos de areia quente e ensanguentada ; o manto era a nudez ; a corôa de oiro transformára- se na pasta de sangue que lhe aglutinava os cabellos e os repiques festivos da corôação mandou-os talvez dar Filipe II quando lhe soube do fim ! A flôr da cavallaria portugueza morrera , em impetos de bravura e de dedicação ao seu rei . Em volta do tresloucado monarcha a lança e a espada arabes tinham feito cahir , um a um , o esquadrão dos bravos a quem só a morte paralisara as espadas . Raros viviam da falange heroica e esses prisioneiros de guerra . No resto do exercito , a desordem depois da imobilidade , causara o mais espantoso desastre . Livres dos ataques bravos dos cavalleiros do rei e do duque d' Aveiro , os arabes , que , cheios de animo , crentes na victoria que se via proxima , começaram a fechar os extremos da meia lua como tenaz de ferro e a envolver o pequeno exercito , cançado , sobre o qual cobria o ardor asphixiante do sol africano . A carga simultanea , por todos os lados , baralhou , em breve , italianos , allemães , hespanhoes e portuguezes , que sem ordem , sem methodo se defendiam inutilmente . Os que , corajosos ainda , valentes , não arredavam pé e combatiam como desesperados , pela salvação menos do que pelo brio , lá ficaram todos , mortos ou presos . Os que fugiam , eram caçados pela cavallaria ligeira que volteava á roda da batalha e raros puderam escapar-se . Dos que se salvaram do cêrco , da peleja e dos corredores arabes , ao atravessarem o Makzem muitos morreram afogados , porque a maré sahira pelo rio e engrossara a corrente . Ainda muitos que conseguiram atravessar o rio , depois , no caminho de Arzilla , foram assaltados e mortos , pelas estradas , n ' uma caçada com que os bandidos , descendo dos montes , completaram alista , enorme dos morticinios d' esse dia funesto . Duzentos fidalgos , das primeiras casas de Portugal , morreram na batalha , e mais de nove mil soldados lá ficaram , estendidos , sobre as areias quentes do sol e humidas de sangue . Morrera no começo da batalha Muley Moluk ; minutos depois , crivado de golpes , exanime . D. Sebastião expirava ; meia hora mais tarde , Muley-Hamed , perdida a esperança da victoria , receiando a prisão mais do que a morte , consegue sahir da peleja com alguns cavalleiros e dirige-se ao Makzem para o atravessar e recolher-se a Arzilla . Vae com o desespero da alma reflectido no rosto , o desventurado xerife . Seguem-no , galopando , silenciosos , Sidi-Mura e Abdel-Kerin . Chega-se á margem do rio . A corrente vae turva e grossa . Quando Muley-Hamed vae a metter o cavallo á agua , Mura observa-lhe : -- É perigoso passar o rio , aqui , agora , senhor . Muley-Hamed olha-o com um terrivel olhar de censura . Mura cala-se e o xerife mete o cavallo á corrente . Este , cançado , não pôde resistir ao estoque da agua , lucta momentos cointra ella , erguendo a cabeça , resfolgando alto . A agua porém domina-o cada vez mais ; afunda-o o peso do cavalleiro . A margem está perto , um esforço ultimo e lerá pé . Faltou-lhe a força ; a agua enovelou-lhe os membros : tombou de lado ; volteou rapido ... Cavallo e cavalleiro desaparecem para sempre ante os olhares aflictos dos espectadores consternados e mudos . Era o terceiro rei que morria . A batalha ficou conhecida pela batalha dos tres reis ... tres reis mortos n ' esse dia ! Alcantara O que foi a chegada a Lisboa da esquadra de Diogo de Souza , com os restos d' esse exercito brilhante , uns centos de homens , palidos como cadaveres , rôtos , esfaimados , calcule-se . O que houve de gritos , de lagrimas , de tédéus , de imprecações , de pragas , de raivas , imagine-se lembiando os protestos , anteriores , á partida de tantos á que a reprovaram e a série de lutos e amarguras em todo o paiz , onde quasi não houve uma casa em que não houvesse um morto a chorar . As mulheres andavam pelas ruas , aos magotes , a gritar pelos filhos , pelos maridos , pelos pães . Desgrenhavam-se , arrancavam os cabellos , contorciam-se pelo chão , como possessas . Pediam o resgate dos prisioneiros . Que remedio ? arranjou-se dinheiro , e o reino , já miseravel pelas ultimas tres administrações , ficou sem pelle . Á tragedia de Africa ia succeder a tragedia nacional . Ao desastre de D. Sebastião , seguiu-se , logo , outro : a aclamação do Cardeal D. Henrique . Jesuita , mediocre , invejoso e ambicioso , tocava , em fim , a meta dos seus desejos , o sonho da sua vida -- era rei ! Estava velho , tropego ; derrancado da cabeça e do estomago , a ter de sustentar-se do leite das suas amas como se fosse uma creança de mama . Invadiam as egrejas a rezar , assaltavam o paço para , exigirem do Cardeal que desse dinheiro para libertar os presos . Reinou durante mezes e quando foi a corôar á egreja do hospital de Todos os Santos , magro , enfezado , curvo , envolto nas amplas purpuras cardinalicias , montado n ' um cavallo , rodeado pela nobreza velha -- que a ' nova ficara em Alcacer -- representava bem a imagem d' um paiz agonisante n ' um ultimo arremêdo de vida , que tinha um ar ao mesmo tempo carnavalesco e tragico . O povo viu passar aquella procissão espectral , a alma confrangida , grave e soturna , na sua desconfiança , nos seus mêdos , na sua miseria . Mal o Cardeal foi feito rei , começaram as intrigas dos pretendentes , a uma corôa que ia vagar em breve , que uma cabeça de velho decrepito mal podia suster e que Filippe II começava a alcançar , comprando com ouro e com promessas a fidalguia inteira . Não ha dôr que não acabe e os fidalgos empobrecidos acharam melhor venderem-se a Castella , e as damas de tanto chorar os maridos , pelas egre- jas , de tanto rezar e andar com padres , começaram a fazer d' aquellas salões , dos officios saraus , onde se divertiam , palestravam e namoravam á farta . A galanteria tinha-se aninhado sob as naves do templo e tão escandalosamente que um escriptor do tempo dizia : " creio que se os maridos soubessem de como as mulheres se portam prefiririam ficar lá presos do que vir para cá , para as não verem . " Como um mal nunca vem só , com o cardeal veiu a peste . Á peste , ás intrigas dos pretendentes que lhe davam cabo da cabeça fugiu para Almeirim . Reuniu côrtes , para determinarem a sucessão e como não houvesse accôrdo , rebentou-lhe debaixo da calva , uma ideia luminosa -- cazar-se ! Quasi 70 annos , decreépito , ainda a mamar e cazar ! Precisava ter um filho coitado , e todos os pretendentes sérios como Filippe II , a duqueza de Bragança , D. Antonio Prior do Crato e os divertidos , como o Papa , Catharina de Medicis rainha -- França , e Izabel de Inglaterra e o duque de Saboia , ficariam logrados . Quando lhe souberam da ideia riram-se . Mas o cardeal é que estava aferrado a ella e mandou pedir licença ao papa para o fazer . Foi preciso que Filippe II trabalhasse em Roma , seriamente , para demorar a licença . E tinha razão o Filippe : os homens que casam aos setenta annos , têem sempre filhos . E , aqui está como a unica virtude d' este cardeal -- a castidade -- até essa foi prejudicial ao paiz . Não fôsse elle um casto , tivesse como toda a gente , então , os seus bastardos , perfilhal- os-hia , e , um , seria rei . O quadro rapido d' este tempo é este . Um reino despovoado , pobrissimo e cheio de fome . Os nomes mais gloriosos do Portugal , a começar pelos heroes da India , vendidos ; umas côrtes subservientes , retoricas , balofas , a pedir á realeza aquillo que deviam decretar e de inúteis a descambarem em prejudiciaes por abdicarem dos seus direitos , por , em vez de exigirem , suppl içarem . Os pretendentes intrigando-se mutuamente , sacrificando tudo ás suas pretenções e ao topo d' este calvario , um velho , a chorar , a rezar e a mamar . Realmente , a figura d' este rei chega a meter dó . Metido no meio de tres pretendentes ferrenhos , a ter de conferenciar e de desenvencilhar da diplomacia de Christovam de Moura , sem saber o que ha de fazer ; hoje por D. Filippe , amanhã pela duqueza de Bragança , depois por D. Antonio ; atrapalhado nas côrtes , medroso da peste , contrariado nas nupcias , sente-se , vê-se , a consolação d' esse estafado homem , quando , depois de uma larga conferencia politica , extenuante , a Maria da Motta apparecesse a porta da camará e afastado o reposteiro , com uma toalha á cinta , deitando as mamas de fóra , exclamasse , solicita e carinhosa : -- Meu senhor , está o jantar na meza ! Que alivio ! Nem o leite das amas , nem a esperança de casar , poderam sustentar a vida ao velho enfermo . Dezesete mezes depois de coroado , morreu ; tão amado , tão querido , que o povo , á roda do paço de Almeirim , emquanto elle agonisava , lhe cantava debaixo das janellas : Viva El-Rei D. Henrique No inferno , muitos annos ; Pois deixou , em testamento , Portugal aos castelhanos . Não se póde exigir mais amabilidade nem mais reconhecimento de um povo agradecido e justo . É certo que elle deixara o paiz a Filippe II ; mas um resto de povo , onde vivia ainda a alma de uma raça cheia de orgulho e de valor , protestou e collocou-se ao lado do prior do Crato , figura nobre e ousada , quanto infeliz . Agrupou-se ao seu ladoíe fel- o rei . Quando o hespanhol , obtidas pela traição as praças fortes da fronteira , se dirigia a Lisboa , D. Antonio veiu de Santarem , com o conde de Vimioso , o Bispo da Guarda , D : Manuel de Portugal , D. Duarte de Castro e Diogo Botelho , e entrou na capital a preparar-lhe a defeza . Os nobres e os ricos tinham abandonado a cidade . Só os miseraveis , os ladrões , os escravos a habitavam . Foi d' esses o exercito do D. Antonio ; uns por vontade , outros á força . Todavia , era n ' esta canalha que estava a alma da patria ; era n ' esses oito mil ( ? ) homens , ignorantes da tactica de guerra , novos nos combates , pobremente vestidos , mal pagos , que residia a ultima esperança dos ultimos portuguezes . Fraca esperança , perante a marcha victoriosa do duque d' Alba , grande general e grande carrasco , que tomada Setubal e Cascaes , se chegava a Lisboa , com vinte mil homens dos melhores soldados . Habil general e homem de verdadeira coragem , D. Antonio não trepidou , e fortificou-se na margem esquerda de Alcantara . Ao outro lado chegou o duque d' Alba . Fez o duque a inspecção das posições de D. Antonio e após ella o sou plano de batalha . Ao romper do dia 25 d' agosto de 1560 mandou o duque a artilharia de D. Francês de Alava romper o ataque , e pedindo uma cadeira sentou-se commodamente n ' um outeiro para vêr a batalha . Os italianos de Prospero Colona que formavam o centro do exercito hespanhol investiram com os portuguezes que defendiam a ponte e levaram-nos de vencida . Um frade Fstevão Pinheiro , mais guerreiro do que frade , grita aos que recuam , reune-os , carrega sobre os italianos e falos fugir em tropel . Os fogos da artilharia cruzam-se . No emtanto D. Sancho d'Avila passa o rio , acima da ponte , um sitio não defendido , e vem atacar pela rectaguarda as fortificações . Deram por elle quando lhes estava ao pé . Prospero Colona reune os seus homens e com os arcabuzeiros . de Antonio Benevides retoma a ponte D. Fernando de Toledo , seguindo o leito do rio , vem atacar a ala direita portugueza . Aos ataques simultaneos , as milicias de D. Antonio perdem toda a coragem ; invade-as o terror e debandam para todos os lados , n ' um terrivel panico , invencivel . Cheio de colera , bravo , o prior cahe sobre a ponte com un punhado de companheiros , derrotados primeiros e varre como um turbilhão as tropas italianas . Inutil bravura . Os seus , fogem e vão lá chamal os , gritar-lhes , pôr-lhes as lanças aos peitos . Desvairados fogem para a planura onde a artilharia os abate e a cavallaria os esmaga . N ' uma hora tudo estava perdido . -- Vamos , senhor , gritou o conde de Vimioso a D. Antonio , vendo-o ferido no rosto , nada temos que fazer aqui , vamos para Lisboa . E como visse D. Antonio prompto a investir , novamente , contra o inimigo , observou com intimativa : -- Quereis que fiquemos prisioneiros , para seguirmos o cortejo do duque d' Alba ? D. Antonio viu razão do conde e seguido por este , por D Manuel de Portugal , por Diogo Botelho , por D. Duarte de Castro , metteu pela estrada de Lisboa , atravessou a cidade e foi para Santarem . É preciso dizer que a esquadra portugueza , 36 naus e nove galeões que no Tejo apoiava e protegia o exercito de terra , rendeu-se ao ataque dos marinheiros do marquez de Santa Cruz , em navios de remos . Vendera-se , miseravelmente ! Esta foi a batalha d' Alcantara , se batalha se lhe podo chamar o não escaramuça , nome que melhor lhe quadra . Tal como foi , representou para o coração dos ultimos portuguezes , uma decepção cruel , a descrença , o desespero . Portugal estava , irremediavelmente , perdido . A mão do demonio do meio dia ia carregar sobre elle , brutal , esmagadoramente . Portugal morrera ; era uma provincia da Hespanha e não havia coração que se não doesse f Os corações dignos , é claro ; porque os havia ; sobre tudo no povo , nos rudes , nos sinceros , n ' aquelles em quem , nem a inveja , nem a vaidade , nem a avareza , nem o interesse , nem o orgulho , podem apagar , nunca , os sentimentos intimos , nobres , que protegem e validam atravez dos seculos as raça que se elevam sobre as outras -- e que são a sua alma collectiva . Uma tristeza cruel , um luto enorme desceu sobre o paiz ! Retrahiram-se nas suas dores as almas justas ; emquanto os vilões do clero e da nobreza saudavam no duque de Alba o redemptor e escovavam as casacas para receberem a visita de D. Filippe -- o prudente ! D. Antonio foge para o norte e atraz d' elle vae Sancho d'Avila . Perseguem-no como a um lobo e pelas casas das serras , pelas choupanas de colmo , acolhem-no* p velam-lhe&lhes+o o somno os partidários , os rusticos , o povo singello das aldeias . Põem-lhe a cabeça a premio . Ninguem o trae . Por milagre , consegue embarcar para Dieppe , de lá para Londres A sua vida no exilio é um poema de trabalho , de lucta , de sacrificios , de miseria , de honradez , de pobreza . N ' ella morreu em Paris , sem pão nem para elle nem para os filhos , o 18.º rei -- Portugal , D. Antonio I o prior do Crato , o filho da Pelicana , o mais calumniado , o mais infeliz dos reis da nossa terra . E , nem rei lhe chamam os historiadores ! A subserviencia vil leva a contar , apenas , como misero pretendente , um rei popular , tanto como D. João I e mil vezes mais nobre do que este ; um dos mais dignos homens , um dos mais valentes , dos mais nobres caracteres de Portugal . O Sebastianismo A um povo envilecido pela fome , dizimado pela morte , na Africa , na India , no mar ; opprimido pelo frade , roubado pelo nobre , bestialisado pelo jesuita , emparvecido na sua ignorancia absoluta , não ise podem pedir acções heroicas , rasgos de audacia , energias masculas . O povo portuguez que , desde D. João II , começara a perder as suas nobres qualidades de cara- cter > pela perda das regalias , ao chegar a D. Sebastião já não era um povo , era uma malta estupida e inconsciente , um rebanho timido de escravos . Miseravelmente supersticioso e credulo , mergulha n ' aquella apagada e vil tristeza " , modorra moral , symthoma de aborrecimento , de indifferença pelas cousas da terra , de descrença na melhoria da doença , que reputa mortal . A sua cabeça medita , exhaurida ; no seu cerebro doente apparecem os sonhos , as illusões , cousas sobrenaturaes e loucas . Era o delirio da fome , da servidão , da miseria ! Estava-se na terra da escravidão ; quem levaria á terra prometida , áquelle maravilhoso Portugal do passado , cheio de riquezas , de respeito , do gloria ? Porque não se havia de voltar ? Havia de morrer-se assim ? Então appaieceram os profetas , e , logicamente , adivinhou-se a -- Messias . O Messias , era D. Sebastião -- o Sebastianismo nasceu . A desventura que ferira o rei , levando com a sua pessoa a independencia de Portugal , era uma punição , um castigo ide peccados perante Deus . Que cidade de vicios não era Lisboa ! Era uma crise passageira ; depois d' ella viria novamente a liberdade do poder . Portugal resurgiria maior ainda , e , o seu rei , tendo assentado a paz universal , no mundo christão , tornar-se-hia o maior rei da terra , formando e regendo o quinto imperio . Assim o começaram a dizer os profetas populares , Simão Gomes o sapateiro santo , e Gonçalo Anneb Bandarra , outro sapateiro , não menos santo , naturalmente . Estes , exprimem-se em versos vulgares , á altura do vulgo Não faltaram porém os profetas cotados , santos , doutores da egreja e até santas , faltando para as pessoas entendidas . Santo Isidro , São Cyrillo , S.||_Theophilo Theophilo|_Theophilo , e outros ; Santa Thereza , soror||_Martha Martha|_Martha , soror||_Leonor_Rodrigues Leonor|_Leonor_Rodrigues Rodrigues|_Leonor_Rodrigues , até Nostrodamus o astrologo e a sibila Erithrea , consultados , todos tinham faltado claramente , de D. Sebastião , de Alcacer-Kibir , do dominio hespanhol . Tanta gente a dizer estas cousas e ninguem tinha dado por isso . A cada quadra nova do Bandarra ; a cada revelação descoberta n ' um S.||_Cirillo Cirillo|_Cirillo ou em Santa Thereza os sebastianistas exultavam , e lá iam para as margens do Tejo , nas manhãs nevoentas a vêr entrar a galé doirada que devia trazer no sei ! seio o príncipe loiro , o salvador , o desejado Emquanto houve a possibilidade de existir D. Sebastião , ^ o governo hespanhol sempre se incommodava com o grupo de sebastianistas que se tomava , pouco a pouco , em legião . Mas no dia em que era mathematicamente impossivel admittir a existencia do rei , deixou-os em paz , sem vigilância e sem receio . Então ficou uma seita de malucos mais ou menos ferrenhos a admittir o encantamento do rei n ' uma ilha mysteriosa , á espera do momento azado para desembarcar no Tejo . Teve a mesma sorte , D. Sebastião , na imaginação popular , que o rei inglez Artus , tambem encantado , pela lenda , n ' uma ilha mysteriosa , para salvar , no momento proprio , os celtas vencidos . Como D. Sebastião , até hoje , não appareceu mais . A regra para os Messias , annunciada pelos profetas , como salvadores , é esta : o não apparecerem . Quando apparecem , ou os fazem apparecer , acontece-lhes como ao Messias , salvador do povo judaico -- nem a si proprios se salvam ! Os judeus não voltaram mais , ricos e poderosos ás margens do seu Jordão ; Jerasalem não foi redimida e o Messias foi crucificado como um desordeiro , perigoso para o prestigio de Roma e para o socego de Pilatos . Cousa curiosa é esta em Portugal . É inegavel , pelo testemunho geral , de todos os escriptores que pintaram o estado do povo portuguez , depois do Alcacer-Kibir , que o mais profundo desalento o invadira , que a descrença na independencia avassalava todos os Animos , de tal modo que tomou admissivel e justo para altos espiritos , como Bartholomeu dos Martyres e o bispo Jeronymo Osorio , o dominio hespanhol . Não fallarei já dos fidalgos portuguezes , auctores das mais brilhantes e heroicas acções militares na Africa e na India , que aceitaram , sem repugnancia da consciencia -- porque não é licito suppôr que só a ganancia de ouro corrompesse caracteres de tão alta monta como os d' esses velhos encanecidos no serviço de Portugal , -- que aceitaram , repito , o rei hespanhol , o dominio estrangeiro . O povo portuguez estava , pois , completamente morto , para a reacção , para o protesto . Porque não morreu ? Porque , sessenta annos depois , se revoltou e se emancipou de novo ? Que vida reanimou o cadaver ? Porque não apodreceu , de todo , e se não fundiu na monarchia hespanhola , lentamente , até desapparecer como nação e viver , como tantas outras , provincia do imperio , de Filippe II ? A resposta , vae fazer sorrir muita gente . Foi o sebastianismo que o salvou ; foram os sebastianistas , os troçados e tantas vezes ridiculos , que obstaram a que morresse . Nenhum historiador , até hoje precisou este facto . Antes tem considerado a seita , como uma legião de pobres diabos , de cabeças mais ou menos desorganisadas e nenhum d' elles lhe ligou importancia social . Visionarios , inofensivos dementes . Pois foram elles , no paiz , quem synthetisou e fez viver com as suas esperanças e crenças ferrenhas , com as suas convicções absolutas , rastejando pela loucura , esse fundo celtico -- se é celtico -- da raça portugueza : a tennacidade e a poesia . Tenacidade de marinheiros ; poesia do aventureiros . Portugal era , no começo do seculo XVI uma raça historica . Não ha que duvidal- o . O pequeno paiz que , pela vontade dos seus primeiros reis e pela espada dos seus heroes , consegue constituir-se e formar um reino independente , é o mesmo que consegue , no seculo XVI , o maior emporio commercial que já vira o mundo , em Lisboa . Esse povo que n ' uma persistencia tenaz de seculos , torneia a Africa , descobre a India , se assenhoreia do commercio do Oriente , povoa o Brazil , subjuga a Asia , é porque possue uma série de qualidades e de faculdades communs , comunidade do pensamentos e de sentimentos , um ponto de vista , um fim superior e consciente , uma physiologia e uma psycologia proprias , o que constitue , scientificamente , a alma d' uma raça . Levou : quatro seculos a formar , o que é pouco , vista a lentidão com que se reconhece formarem-se ias raças historicas ; mas o que ss percebe , pela semelhança dos elementos que formaram o povo portuguez . Ora , se a formação de uma raça historica leva seculos para se dar , leva geralmente seculos para desapparecer . Os allemães , os hungaros , os slavos que vivem sob o dominio da Austria , são allemães , hungaros e slavos e não austriacos . Em Hespanha os catallães são catallães ; na Inglaterra os irlandezes são irlandezes , dominados por seculos . Facto claro e persistente que leva um escriptor francez a dizer : que a raça deve ser considerada como um ser permanente liberto da acção do tempo : exaggero que se desculpa , pela intenção . Quem foi em Portugal o depositario das qualidades da ' alma portugueza ? o cofre onde se guardou o thesouro das qualidades moraes ? -- ia a dizer religiosas porque a moral ó uma religião -- , quem foi ? A nobreza ? essa vendera-se . O clero ? conformara-se . Foi o sebastianismo , que passou a ser a religião dos não conformados , dos protestantes , dos intransigentes . Viveu na alma do povo , o que quer dizer na profundidade originaria de todos os sentimentos nobres e poeticos de uma nacionalidade . Para esta religião vieram , em breve , os fidalgos e os padres ; e , n ' ella encontraram incentivo e base para conspirarem ; d' ella se serviram para galvanizarem o cadaver da patria , para o terem meio desperto , no dia em que foi preciso pô-lo de pé , electrizal- o com um tiro de pistola e dizer-lhe : anda ! E , porque era , n ' esse momento , a vontade , o sentimento de um povo , a maior aspiração , o mais nobre , e o mais alto fim , a ordem não falhou . O sebastianismo tinha , ou teve ao nascer , uma base . El-Rei D. Sebastião morreu , indiscutivelmente , na batalha . Viram-no e reconheceram-lhe o corpo mutilado varios fidalgos prisioneiros de Hamed-ibn-Mohamed , o sobrinho de Moluk , aclamado , depois da batalha , pelas tropas . Disseram-no em Alcacer-Kibir ; confirmaram-no em Lisboa , sem reticencias . Morreu , pois , na batalha ; mas isso era o natural , o mais logico que podia acontecer . O povo não quer cousas claras , simples : quer o maravilhoso sempre , até nos mais vulgares phenomenos da vida . O rei ter morrido ? que admiração ; mas isso não era para um rei como D. Sebastião , aquelle rapaz terrivel , de quem a moirama tremia só de ouvir-lhe o nome . Já lá estivera , já a fizera fugir . Não haviam de fugir deante da sua valentia indomavel , da sua audacia , da sua espada invencivel ? Que melhor cavalleiro havia na Europa , mais ousado e mais robusto ? Ora , dois cavalleiros um Luiz de Brito e outro Luiz de Lima affirmaram terem visto o rei caminhar ao longe , foro da batalha , em direcção ao rio , só , sem ninguem o perseguir . Na noite da batalha , noite alta , quando se suppoz que nenhum fugitivo mais poderia apparecer , tinham-se fechado as portas . Já se haviam fechado ha muito , quando um grupo de quatro cavalleiros , extenuados homens e cavallos , se chegou debaixo dos muros e gritou que lhe abrissem uma porta . Recusou-se a principio a sentinella ; mas um do grupo adeantando-se , fallou para cima . -- Porque não abris a porta ? -- A ordem é não se abrirem as portas a ninguem , antes do romper do dia . -- Porquê ? -- Para evitar qualquer surpreza dos moiros : -- Essa ordem não pôde entender-se com+nós , observou o cavalleiro . -- Comvosco e com todos , replicou o soldado . -- Escutae , e , approximando-se mais do ( ilegível ) o cavalleiro disse em voz abafada : abri e depressa , que e el-rei||_D._Sebastião D.|_D._Sebastião Sebastião|_D._Sebastião que alli está . -- A sentinella desceu á pressa do muro e a porta foi aberta immediatamente . Os quatro cavalleiros entraram . O da frente tapava-se com uma ampla capa . Os soldados cortejaram silenciosos , deixando passar . No outro dia , como é natural , não se fallava noutra cousa em Arzilla . Fallava-se como a medo , porque o rei não apparecera a ninguem e julgavam-no iinmerso na sua dôr e na sua vergonha de vencido . A noticia chegou á esquadra e o corregedor Diogo da Fonseca logo que o soube correu a Arzila . Dirigiu-se á casa onde poisava o rei e entrando deu de cara com Diogo de Mello e mais tres companheiros que o receberam acanhados . -- Onde está el-rei ? perguntou o corregedor . -- Não sabemos , respondeu Diogo de Mello . -- Não sabeis ? pois não está aqui D. Sebastião ? não entrou comvosco , a noite passada , em Arzilla ? Então , Diogo de Mello explicou : não sabemos de el rei . Eu e estes é que cançados e receiosos da perseguição , pedimos para nos abrissem as portas e como se negassem , lembrei-me de dizer que vinha el-rei . O corregedor embuchou , attonito . Na persuasão de que não era facil evitar a colera popular se se desmascarasse o trama , Diogo de Mello pediu ao corregedor para o levar secretamente , de noite , para a esquadra . -- Não é de homem sério o que fizestes , Diogo de Mello , disse-lhe o corregedor . É uma imprudencia de que merecieis severo castigo . -- Confesso que andei levianamente , Diogo da Fonseca ; mas não ha remedio para o que está feito e nada ganhareis em me expor ao odio da soldadesca , quando se souber ludibriada e me tiver ao alcance . -- Que ganhareis em me perder ? O corregedor disse ainda mais algumas phrases severas , mas resolveu-se a proteger Diogo de Mello , tanto mais que elle por fim lhe jurou que o que dissera á sentinella fóra : " venho d' alli , apontando o deserto , de ao pé de El- rei . " Diogo da Fonseca deixou-se convencer e de noite levou-o para o galeão S.||_Martinho Martinho|_Martinho . Reuniu o conselho dos officiaes e explicou tudo . Os officiaes ficaram scientes ; mas a marinhagem e o povo de Arzilla , por mais que lh'o negassem , nunca mais deixou de acreditar que o rei fôra na esquadra . Os testemunhos de J . uiz de Brito e de Luiz de Lima e este caso de Arzilla reflectiram-so logo na crença poptdar , radicando-a . Isso tinha ella morrido ! Aonde estava não se sabia ainda ; mas lá que era vivo não havia duvida nenhuma . Vivo e são . Não tardaria , porém . E , começaram a esperal- o todos os dias , a vêl- o apparecer de repente , poderoso , magnifico , salvador ! O rei -- Penamacôr O filho do oleiro Pelos fins do seculo XVI a olaria de Alcobaça , se nunca alcançou a fama europeia de que a sua irmã de Extremoz gosou , mercê dos seus processos celebres , fornecia a Extremadura com os seus productos pittorescos e economicos , a julgar pelos que pejam em grupos desengraçados : as feiras actuaes . Um dos artifices do bairro tinha um filho , garoto , ao que parece de muita actividade , ladino , intelligente . Um amigo do oleiro , que fazia rosarios , como o negocio em Alcobaça não rendesse bastante , porque os frades , ainda que aos centos , resavam de cór , resolveu vir estabelecer-se em Lisboa e pediu , para aprendiz , o filho , ao oleiro . O pae foi aconselhar-se com o frade compadre ( todos os frades eram compadres dos maridos de Alcobaça ) , e este disse-lhe : -- Deixa-o ir , deixa . O rapaz não tem grande quéda para o officio ... aquillo em Lisboa sempre é outra cousa ... vê-se mundo , aprende-se . -- Mas como vossa reverencia ... como tinhamos pensado em fazer d' elle um frade ... ? -- A todo o tempo é tempo . Se tiver vocação elle voltará ... está ainda muito novo ... é melhor deixal- o ir . O homem dos rosarios veiu para Lisboa e o rapaz veiu com elle . Isto passava-se dez annos antes da jornada de Africa em 1568 . O rapaz , já talvez por ser d' Alcobaça , já pelo officio do patrão , que o punha em contacto com padralhada , já porque intelligente como era comprehendia que era melhor ser frade do que passar o dia a enfiar por cordões de seda , ou cadeias de metal fino , toda a sorte de Ave-Marias , em bolas de todas as materias , do marfim ao corno , conservou sempre um secreto amor pelos habitos e pelos conventos . Em 1578 entra a peste em Lisboa , e o patrão , homem pratico , abandona a cidade e deixa o rapaz , a tomar conta da loja . Foi o que elle quiz . Um bello dia fechou a porta , metteu na algibeira os parcos dinheiros das ultimas vendas , e foi bater á portaria do convento do Carmo , onde tinha conhecimentos . Pediu para entrar como noviço . Conheciam-no activo , esperto , intelligente , admittiram-no* . Demorou-se pouco . Tinha os vinte annos azoagados de mais . O que fez não se sabe ; sabe-se que o mandaram voltar putra vez para o mundo , para a loja do patrão , para onde quizesse . A loja estava fechada , o officio do pae sujava muito as mãos ... Ser frade é que elle queria ... agradava-lhe a vida . Iria ter com o padrinho a Alcobaça ... Era homem pratico e intelligente ... elle o aconselharia . Foi . Recebeu-o o santo varão com alegria e quando elle lhe disse que queria entrar para o convento não pôz duvida . Revendo-se no bello rapaz que via agora e que havia tantos annos partira , creança ainda , naturalmente indagou-lhe da vida que levára . contou-lh ' a o rapaz e quando chegou á expulsão do convento de Carmo o frade contristou-se . -- Isso é que é o diabo , disse n ' aquella linguagem castigada dos Bernardos . -- O diabo , porquê ? inquiriu o rapaz com a mesma elegancia do phraze . -- Porque o Dom||_Abade Abade|_Abade não te recebe som indagar do teu passado e como ha de sabêl- o é escusado pedir-lh ' o . -- Ora , disso o rapaz com ar de desprezo , não se perca a seriedade do convento se me admittirem . -- Não sei não sei , replicou o frade ... As cousas são como são ; depois da cabeça rapada é uma cousa , antes é outra . Depois , parando um boccado em frente do afilhado e a verem-se-lhe luzir os olhos de satisfação a contemplal- o , perguntou , com a face risonha : -- Mas o que fizeste tu por lá , grande velhaco , para to porem ao fresco ? Sim , o que fizeste ? -- Ora , disse encolhendo os hombros o ex-noviço , o que fiz ? ... mulheres . -- Eu logo vi , eu logo vi , exclamou satisfeito pela propria perspicacia o alegre Bernardo ... N ' aquelle convento , homem ... ahi tens o resultado . -- Oram adeus , padrinho , aquelle convento ... aquelle convento ... é como todos . -- Mais baixo , falia mais baixo , recommendou o frade , que to podem ouvir . Ficaram callados por uns instantes . O frade pensava como resolver o problema , encostado á janella da cella que deitava para a principesca cêrca , copada de arvoredos , cortada pelo Alcôa . De repente voltou-se : -- Olha lá , disse , tu tens verdadeira vocação para a vida ? -- Se tenho ! -- É que podias penitenciar-te um pouco do que fizeste ... talvez podesses entrar depois , facilmente ... -- Como ? diga o que hei-de fazer ? -- Lembrava-me que te fizesses eremita , uns tempos . Olha que não é má ideia ... -- Eremita ? é bem lembrado ... e rende . -- Se rende ! confirmou o frade . E em liberdade ... Então para ti , que pelo que vejo , gostas ... do que eu gosto ... melhor te servirá do que esta prisão ... Outros ares , novas caras ... isto por aqui está tudo visto ... é uma miseria . Como o rapaz ficasse pensativo o frade perguntou-lhe : o que dizes , então ? -- Acceito a ideia , acho a de primeira ordem ; e , com um riso de velhaco accrescentou : e então como penitencia não pôde ser mais bem achada . Vou ser eremita . Mas ... -- Mas o quê ? observou o padre . -- É que quero ser eremita a valer ; quero poder usar do habito , relicario ao pescoço ; peregrino que chega de Jerusalem e que procura um eremiterio onde se acoite ... -- Tudo isso se arranja ; grande maroto ... como tu ma sahiste . Ora vão lá dizer que és filho d' aquello bronco do teu pae ... bom homem , isso sim ... mas lá de esperteza ... uma pedra . Depois chegando-se a elle , pondo-lhe a mão no hombro , familiar , paternalmente : -- Olha que o officio é bom mas é preciso ter juizo ... lá com mulheres ... eu não digo ... já se vê ... mas tento com ellas que são da raça do tinhoso . Riam-se um para outro ; o frade relembrando , in mente , peripecias de tempos idos ; o afilhado n ' aquelle adivinhar de aventuras , que todos sentimos aos vintes annos , como inevitaveis . Como a conversa se prolongasse , o frade abri o um armario encravado na parede , tirou de dentro uma enorme broa que collocou sobre a meza e de debaixo da cama um garrafão com vinho . -- O jantar já lá vae e fallar muito seca as guellas , observou o lambareiro . Não tens sede ? -- Alguma , respondeu o futuro eremita , puxando um banco e sentando-se . O frade tirou mais do armario , duas canecas , um prato com queijos e um molho de rabanos . Armado de faca e garfo , sentou-se do lado opposto de afilhado , levantando o habito para as coxas e mettendo a meza , que era pequena , entre as pernas robustas , só cobertas com as ceroulas , porque era verão . Ao partir a broa , ao meio , com uma facada de magarefe , espalhou-se no quarto um cheiro , acre , aperitivo do chouriço que ella agazalhava no ventre , enroscado , luzidio , suando gordura , que alastrava , escurecendo-a , a massa granulosa da farinha loira do milho . Abriram-se de goso as narinas do padrinho e do afilhado . -- Que tal , hein ? Perguntou aquelle ;