OS CANIBAIS Álvaro do Carvalhal PROJECTO ADAMASTOR Disse a crítica pela boca de Boileau : Rien n ' est beau que le vrai , e não tardou que as fábulas , arabescos exóticos e exageros , oriundos principalmente dos tempos heróicos , perdessem toda a soberania dantes exercida na ampla esfera das boas letras . Os Prometeus , os Hércules , os Teseus e as Esfinges , se não desapareceram em pó , lançados aos quatro ventos , é porque era necessário que se conservassem os padrões que deviam guiar o filósofo através dos labirintos do passado . Por isso lá estão firmes ainda em seus pedestais de pedrarias , mas ofuscados pela luz brilhante que só vem da verdade . Todavia não deixarei eu de confessar o amor , que sempre tive por contos de fadas , para que se não estranhem algumas murmurações , acaso fugitivas , no acto de me sacrificar Ãs exigências desta geração pretensiosa . Sacrifico-me . Mas , como não sou dado a transcendências , pois abomino tanto a incógnita dos matemáticos , como a Dulcineia dos Quixotes , abro sobre os joelhos uma crónica , que casualmente me veio à mão , e , aproveitando os cabedais da minha escolha , deixarei deste modo de ser constrangido a inventar , no que iria grande perigo de volver costas à verdade . O meu conto é amador do sangue azul ; adora a aristocracia . E o leitor há-de peregrinar comigo pela alta sociedade ; hei-de levá-lo a um ou dois bailes , e despertar-lhe o interesse com mistérios , amores e ciúmes dos que se armazenam por esses romances de armar ao efeito . Ora ouça , que eu principio moldando-me pela velha costumeira : A abóbada azul do céu alumiava com milhões de estrelas os coruchéus , obeliscos e arcadas da decrépita arquitectura da cidade . Estava sereníssima a noite . Porém a atmosfera fazia lembrar os gelos da Sibéria . Para contraste brotava na sala do baile uma primavera aberta e resplendente . A vertigem das valsas despargia alentos que se iam transformando em insânias de febre . Quem não sabe o que é um baile ? E todavia sinto-me tentado a descrevê-lo , sem desconhecer que nisso irá falta de modéstia , e trabalho verdadeiramente ocioso . Mil poetas , no exagero de aprimorados versos , têm sabido pintá-lo , sem omissão de algum dos matizes , que o abrilhantam . Melhor será , portanto , que o leitor veja a descrição do meu baile em qualquer poema artisticamente fantasioso , porque nisto de descrições não há sair do mesmo terreno . Senão , aqui lhe dou os traços de um aligeirado esboço ! Flores das mais odorantes em gigantescos jarrões de esmaltada porcelana ; a arte a revelar-se por toda a parte , na moldura dos espelhos , nos painéis , nos tectos dourados ; emanações balsâmicas a exalarem-se por esses recintos encantados ; ao longe uma música voluptuosa , não sei de que maestro inspirado ; e , sobressaindo a tudo , pares animados de muita vida e muito amor , abandonando-se à efervescência das danças , correndo agora numa iriada mistura de cores , para ligeiros se separarem logo debaixo dos olhos curiosos dos que se contentam em ver , esteados com certo ar estudado ao mármore das colunatas , ou recostados nas voluptuosas otomanas . O sol majestoso dum formoso dia de Verão não se projecta mais radiante sobre as asas e sobre as pétalas , ricamente variegadas de mil borboletas e de mil flores , do que aqueles centenares de sóis artificiais , dardejados dos cristais reluzentes , sobre as vestes sumptuosas , que as damas arrastavam pelos aveludados tapetes . Como nas libações em honra do esperto Baco , em que sacerdotes e sacerdotisas entram mornos , ou mesmo arrefecidos , para depois , ao empunharem a vigésima taça do licor fervente , deixarem rebrilhar os olhos e desgrenhar os cabelos no " evohé ! " do entusiasmo , assim no baile tinha a ebriedade dos prazeres despertado adormecidos sentimentos . Avultava contudo ali uma vista desassossegada e inquieta , que , sobretudo , feria alguns observadores , que nem curavam de ocultar o frenesi , que os assoberbava . Histórias do coração por certo . Margarida é uma das mulheres fatais , que atraem irresistivelmente . Solteira , homem , que por desgraça a fitou , quer ser um Romeu ; casada , não faltariam Werthers , que rebentassem o crânio para lhe merecer uma saudade . No cortejo brilhante não faltava desde o primeiro titular , ao brasileiro sem títulos , coisa rara em sublunares regiões . Ela era o ídolo acatado de todos os crentes . Mas para que estará no baile tão triste e distraída ? Pousa melancolicamente a cabeça no ombro do par , e nem lhe percebe as palavras amorosas , naquela rêverie feminil , que é para o homem , que ama , um inferno de torturas . Soam onze horas . Ela treme , e relanceia pela última vez os olhos para a porta da entrada . Depois , desfalecida , desprende um suspiro , e deixa-se arrastar como insensível no revolutear das mazurcas . Por este tempo , numa sala apartada , fumavam dois cavalheiros . Um apoiava-se com esquisito dandismo no friso de um fogão , rematado em florões caprichosos ; o outro , prostrado numa cadeira , e com as pernas comodamente cruzadas em frente das brasas vivas . Alimentavam diálogo medido e monótono . Tenho esperanças , dizia com certo orgulho o que se conservava de pé , puxando das nascentes guias do bigode . -- Vaidade , D. João ! retorquia o outro . Sou veterano nessas campanhas . Glorio-me de ter rasgado com esta mão véus do mais sagrado pudor ; e contudo Margarida ... -- Margarida é mulher . -- Pois sim , mas quem te assegura a vitória ? -- Tudo , responde o denominado D. João , um tanto ofendido pela dúvida do interlocutor . Pequenos favores concedidos , um volver de olhos ... -- Ilusões do amor-próprio . Olha , podes dar-me crédito , a taça da ambrósia , que apaga sedes de amor , não há-de ela levar-ta aos lábios . Margarida é das poucas mulheres , que têm só um coração , para ser dado uma vez só . -- Donde te vem tanta sabedoria acerca da mulher ? -- Quando me não sobrasse experiência própria , tinha aí Balzac . -- Ah ! e sorriu desdenhoso . Ainda assim , continuou : posso eu obter ... -- O que é doutro , decerto que não . -- Então Margarida ? ... -- Ama . -- A ti , barão ? -- Não , por minha miséria . -- Pois a quem ? -- Ao visconde de ... Interrompeu-o uma voz , que anunciava : -- O senhor visconde de Aveleda ! Os dois amigos estremeceram e precipitaram-se para a porta . A dança interrompera-se . Os cavalheiros agrupavam-se à entrada do salão . As damas ficaram turbadas e indecisas . Margarida virou o rosto jubiloso para um espelho , e , contente de si , abandonou-se sobre as almofadas duma otomana , escondendo por detrás do leque o rosto purpureado . Que será ? Corrido um reposteiro , viu-se despontar no limiar da porta um homem estranho . Era desses homens que se não descrevem e que devem de ser o desespero dos Van Dick e dos Ticianos . Tanto poderíamos dar-lhe trinta , como quarenta anos de idade . Subia na estatura acima do regular ; e no rosto pálido , mais simpático pela barba negra , curta e fina , que o moldurava , deixava adivinhar uma longa peregrinação de amarguras . Era a perfeita realização dum tipo ideal e misterioso , como os concebia Byron . E misteriosa era a história da sua vida . Dos mil extravagantes boatos , que corriam como para lhe aumentar o prestígio , só se sabia ao certo que viera da América , e que era benquisto dos doutos e dos sensatos . Avançou pausado e grave pelo meio da multidão fascinada . Mas naquele movimento notava-se um esforço dissimulado ; parecia um movimento mecânico , automático . E seus passos soavam no pavimento , a despeito dos finos tapetes , com extraordinário ruído . O impetuoso D. João , o moço apaixonado , que o leitor acaba de conhecer , fixava-o de olhar ardente . Tinha diante de si o homem que soubera arrancar-lhe a mais querida das suas esperanças . Passou-lhe na mente um lampejo de raiva : aventurou-se a roçar por ele , indiscreto e temerário . Mas naqueles membros pareceu-lhe encontrar , pelo tacto , a inércia do granito . Fixou-o mais , e recuou repassado de um irresistível pânico . Julgara ver a estátua irónica do comendador . Uma história qualquer , que se extraiu duma crónica , deve ter necessariamente em vista , ou a propagação de acontecimentos memoráveis perdidos na variedade de muitos factos , ou a manifestação característica dos costumes dum povo numa época marcada . Colocar o facto no local , que lhe é próprio , é sem dúvida a primeira obrigação , que em ambos os casos compete ao narrador . Não o desconheço . Porém de melhor grado me sujeitara eu ao rabujar da crítica , do que a fixar a acção do meu conto neste ou naquele país , visto ignorar a qual pertença , por uma omissão desgraçada no importante manuscrito que tenho ao lado . Amo a fidelidade . E nessas simples palavras deixo a explicação da minha abstinência no emprego de cores locais . Contudo , tornava-se preciso que a cena se passasse em alguma parte . Reflecti , com a madureza , que o caso pedia , e por fim , vencido da necessidade , quase me resolvi a levar os meus heróis para o Japão , onde qualquer sombra do extraordinário seria menos notada por sobrenatural ; pois , quanto mais ao longe se vêem as coisas , tanto mais elas avultam , medidas pela imaginação , pródiga ordinariamente em ouropéis e garridices de todos os feitios . Demais , o abuso que por esse lado fizesse de boa-fé do leitor não conseguiria empalidecer o merecimento à obra , porque sem ser patente nela o cunho dos estudos trabalhados , que abrem as portas das academias , lá lhe ficava a parte moral digna de se germanar a esses contos , luxo da infância , justamente denominados -- tesouro de meninos . Oscilava neste plano quando me veio desviar do intento a lembrança desastrada de que vivemos em tempos civilizados , tempos em que António José cedeu lugar à alta comédia , no período áureo da circunspecta casaca e do chapéu alto . Mal me serviria portanto o Japão . Filho da época , irei com ela . Fora mesmo atentado buscar modelo nos grotescos desasados do velho Portugal , quanto mais retroceder a ponto de me valer das roupagens cómicas dos japoneses . Enfim , quebro o fio Ãs divagações para me devotar à história , que o merece . Escolha o leitor a capricho o local da acção , que daí lavo eu minhas mãos , contanto que se não ausente do país em que sejam lidos Dumas e Kock , e onde abundem seminários , escândalos e sotainas . Suponha o baile -- se lhe apraz , mesmo por comodidade ou propriedade -- suponha-o em Lisboa , na faustosa habitação duma Ninon de Lenclos contemporânea . Lá deixámos o vulto simpático do visconde de Aveleda , perturbando a harmonia da festa com a surpresa da sua aparição . Agora vamos encontrá-lo no meio do luxuoso bulício , oprimido de profunda melancolia ; melancolia essa que parecia reflectir-se em todos os semblantes , como se o dele fosse um espelho animado . Tal era a vaga expressão das nobres feições do visconde , que deixava perceber o quer que fosse de semelhante Ãs forças atractivas e repulsivas do magnetismo . As damas sentiam-se fascinadas , os elegantes receosos e agastados , desse agastamento -- antes mau humor -- que provém da humilhação ; porque os humilhava a simples presença daquele homem , que no dizer deles mais era um mito que outra coisa . Pouco se lhe dava ao visconde do efeito que produzia . Não se erguera ainda da cadeira em que se havia deixado cair , e , afora algumas palavras delicadas , ou gestos a que o obrigava a cortesia , di-lo-iam insensível estátua . -- Falaste-lhe ? perguntava Margarida com vivo interesse , designando-o a uma sua amiga , a quem saíra ao encontro . -- Agora mesmo . -- Então ? -- Ai , menina ! Não sei dizer-te o que sinto . Nunca encontrei homem assim . Se soubesses como a expressão corria suave daqueles lábios , como o seu sorriso era triste ... Não me enganaste : seio de mulher não pode sem estremecer ... Cortou-lhe a palavra um beijo afectuoso . Margarida não pudera ouvir mais . Estava pálida , tremiam-lhe os lábios , e no seio ofegante sentia que lhe rebentavam paixões desconhecidas . Deve de estar assim a mulher que , sem hesitar , desfolha as flores rescendentes da virgindade aos pés do eleito do seu coração . Caíra em langoroso desfalecimento , pregando os olhos negros , apaixonados , com que a natureza faz perigosas as mulheres do meio-dia , num ponto incerto , que ela não divisava , porque andava longe , na morada das formosas quimeras . A orquestra começava uma valsa . Margarida , a ardente amadora das valsas , recusava desta vez a cintura delicada ao contacto libidinoso de mão masculina . E como não ? Junto ao visconde de Aveleda vira um lugar sem dono . O seu único pensamento fora apossar-se dele , esquecendo -- ela tão cautelosa ! -- que franqueava passagem à eterna maledicência . Do pensamento à realização não decorreu um momento . Foram breves as palavras , que trocou com o visconde ; porém , tais coisas disseram , que ficaram momentos -- ele enlevado , ela comovida . -- Sabe , visconde , diz ela afinal para quebrar o silêncio , que se tornava embaraçoso , sabe que nos magoa a todos a sua tristeza ? Porque está tão triste ? -- Não é minha a culpa , minha senhora . Dera muito a quem me ensinasse a fingir alegrias que não tenho . -- Respeito os seus pesares . Mas creia que me sinto magoada se os considero . -- E poderei saber porquê ? -- Porque , vendo-o cercado de quanto é capaz de felicidade ... -- Um pouco de luxo aparente serve às vezes para ocultar a miséria . Admira-se de que haja risos , que escondam lágrimas ? Pois há . -- Punge-me essa desgraça que pressinto . -- Não me lastimo , Sr.ª||_D._Margarida D.|_D._Margarida Margarida|_D._Margarida . -- Nem eu o lastimo . Mas sofre , não é verdade ? Eu não sou indiferente a sofrimentos alheios . Duvida ? -- Decerto . Pois para que me dá veneno nessa mão formosa e branca como a inocência ? -- Eu ? ! -- V. Ex.ª. Vejo-lhe o mel nos lábios e o travor do absinto , consinta-me que o diga , na voz angélica , no gesto , na formusura . -- Haverá lisonjas nas suas palavras , haverá , mas não sem muita ironia . Será tal a minha infelicidade , que até com a própria presença lhe agrave essa tristeza , essas dores ? -- Faz mais que agravar . -- Mais ainda ? ... -- Se faz ! Imagine V. Ex.ª um viajante sufocado pelo calor , morrendo enfraquecido à sede junto à margem duma torrente , que ele não pode tocar , e diga-me , se avalia a aflição do desgraçado , como hei-de eu fitá-la , ouvir-lhe a linguagem celeste , sem que se me desfaça o coração em lágrimas , sem que compare o que sou com o que fui e com o que podia ser ? -- Não o compreendi talvez . Mas , meu amigo , o viajante do seu enigma não seria tão desgraçado que perdesse todas as esperanças no lance difícil em que o coloca . E quando há esperança , ainda não é completa a ... -- Esperança ! Eu supunha-o perdido num deserto . -- Ainda assim podia valer-lhe a fé . A torrente poderia deixar o antigo leito para lhe dar fartura de água . -- Como ? -- Por um milagre da Providência . -- V. Ex.ª crê na Providência ? Por mim cansei tanto a vista a procurá-la , que uma vez acordei cego . Como hei-de vê-la ? ... -- Cego ! diz Margarida , aproveitando-se graciosamente do equívoco , cego com os seus olhos ! ... -- Antes os não tivesse : porque sem a ver , Margarida , não veria como o céu é longe da terra , o impossível entre nós ambos . Compreende-me agora ? Margarida , vermelha de surpreendida , não venceu a perturbação . Estava pálida e ansiada . Depois que recuperou alento , murmurou com aquele acento melodioso e trémulo , expressão de verdade e inocência , só sabido da mulher apaixonada : -- Pois ainda não adivinhou ? É preciso que os lábios digam tudo o que se sente ? Um sorriso amargo , doloroso , pungente , encrespou os lábios descorados do visconde . Margarida arquejava . -- De que servem , continua ela , de que servem certos enigmas , que inventa quando me fala , como se quisesse martirizar-me ? Depende de mim a sua felicidade ? Venha recebê-la , que é toda sua . Não imagine então distâncias , nem dificuldades , que eu tenho coragem para me mostrar ao clarão dessas luzes , em frente de quantos aí têm lábios para o sarcasmo , ainda que o rubor haja de me queimar as faces , para dizer -- aqui me tem , pertenço-lhe . -- Impossível . -- Impossível ! -- O cego adivinha as maravilhas da natureza e adora-as , mas sem poder contemplá-las . Eu sou como o cego , Margarida ; adoro-a , sem poder mais nada . -- Quer matar-me ? -- Quero-lhe muito para a deixar numa vida de quimeras . -- Então que quimeras são ? ... Fale . Não vê que estou aflita ? -- Resume-se tudo numa palavra , que teria a gravidade da situação , se não fosse consagrada pelo abuso ao desenlace de colisões romanescas . Essa palavra é ... -- Diga-a . -- Mistério . Eu bem sei que um diálogo puramente dramático , semeado de interjeições e palavras grandes , mal se pode coadunar com a realidade da comédia humana . Não foi sem grande dor de alma que coloquei o sibilino visconde em frente de Margarida , exposto ao rir palerma dos que não sabem nada do coração e da sua linguagem , linguagem fantasiosa , que muitas vezes desdenha o presente para ir colorir-se nas eras aventurosas em que a castelã aparecia , visão aérea , por entre os tufos floridos , que lhe enfeitavam o balcão , para ouvir à luz das estrelas as canções plangentes do trovador enamorado ; eras , as mais sublimemente poéticas , que têm vindo . Senão , que o digam as mil novelas que por aí tresvariam a mocidade . Não sei realmente a pena em que incorreram os protagonistas desta verídica história , como cada um chama Ãs suas imaginações , por irem , entre os prazeres celestiais dum baile , alargar asas a conversações das que só se alimentam declamando . Não sei . Pode ser que fiquem para sempre afogados na alvar gargalhada pública , tão inconsciente de ordinário como injuriosa . Se isto suceder é sobre um facto sucedido que deve cair o anátema . Por mim sou simples narrador . Tal calor e vivacidade desenvolvera o diálogo em Margarida e no visconde , que , esquecidos de quantos os cercavam , perderam de vista o mundo dos mortais . Já em excesso aguçavam a curiosidade geral . Não foi sem perturbação que Margarida o reconheceu . Mas , em lances destes , que inocente mulher não sabe um subterfúgio ? Foi com simulada alegria que ela estendeu a mão delicada a uma bela senhora , que se lhe avizinhara casualmente . Era a dona da casa . -- Suplico-lhe , minha senhora , exclama Margarida , vermelha como uma romã , suplico-lhe que me ajude a convencer este cavalheiro . Há muito que estou a teimar com ele para que nos recite alguma daquelas adoráveis poesias , que nós lhe conhecemos . Aos rogos de V. Ex.ª sei eu que não há-de resistir . -- Oh minha senhora ! ... acode o visconde , surpreendido da lembrança providente de Margarida . Quis valer-se de modesta esquivança , mas neste tempo eram várias as vozes que o instigavam a recitar . Curvou a cabeça vencido . Formou-se repentino silêncio . As damas e os elegantes tinham-se confundido em mostras de profundo interesse . Todavia por detrás dum reposteiro , podia um observador atento divisar um rosto de mancebo , cujos olhos esgazeados pareciam a espaços fuzilar relâmpagos . Era D. João . Se isto , que para aqui escrevo , fosse um romance , havia de ele ( D. João ) apertar com a dextra febril o cabo de ouro dum luzente punhal . Porém não enodoemos a história . Mandemos o punhal para o velho teatro ou para a floresta erma . Era vistoso o quadro . O jorrar luminoso dos candelabros , reflectido nos espelhos ; nos painéis heráldicos ; nas cabeças toucadas de rosas já emurchecidas ; na carnadura rosada dos seios desvelados , ofegantes de cansaço ; o rosto nobre do visconde inundado de luz ; os grupos ; as posições ; tudo isto apresentava um aspecto muito ao paladar do desejo . E a voz do visconde ergueu-se do meio daquele silêncio , como voz de inspirado . Tinha nos olhos o sacro fulgor da sibila , e suas palavras eram devotamente escutadas como se fossem um oráculo . Eco ! Era o título da poesia . Partilhava do vigor da ode , do lirismo terno do idílio , e da funda tristeza da elegia ; porém , com tal arte , tal harmonia , que não passava uma nota , que não fosse certeira ao coração . Todo o pensamento da poesia era tirado da metamorfose da desventurada ninfa . Ela a ver e a sentir que as formas delicadas lhe vão ganhando pouco a pouco as curvas broncas dum rochedo informe ; e a sentir ainda o coração inflamado a pular-lhe lá dentro no seio de granito , com todas as paixões e ardores do seu viver de anelos , fervente de luxúria ; e o rochedo a engrossar , a engrossar ... Eis o pensamento . Ouro mais fino , mais de lei , nunca o extraiu poeta dos veios explorados . Quando acabou a penúltima estrofe , que parecia arrastar-lhe de envolta parte da própria alma , não havia faces que não estivessem molhadas de lágrimas . Aquela voz impregnada de melancolia terna , aqueles formosos versos -- que o eram -- coavam , em cada peito , comoções indefinidas , suavíssimos venenos . Dir-se-ia-que o visconde pranteava as próprias desgraças . Os versos traziam como que o selo da tremenda experiência . Margarida estava pálida como as camélias , que lhe desmaiavam ao contacto do seio virginal . Escutou até ao fim sem respirar . Depois desapareceu por entre os grupos assombrados , e , apenas longe do bulício , desatou em soluços , escondendo o rosto nas mãos . A minha miopia burguesa não lhe vê razão para tais extremos ; mas , enfim , a verdade é lei duma só interpretação . Tenho aqui a crónica que é de reconhecida autenticidade . Quando a donzela ( como lhe chamaria qualquer cavalheiroso romancista ) voltou ao salão , já lá não estava o visconde . Consternada , não hesitou em interrogar uma sua amiga acerca de tão inesperada ausência . Se porém foi breve a pergunta , não lhe deveu nada a resposta , traduzida num riso cheio de malícia , e num gesto , que designava a saída para os jardins . Vinha próximo o alvor da madrugada . Estavam já abertas as janelas . Margarida vagueava no jardim de canteiro em canteiro , de gruta em gruta . Poderiam vê-la passar por entre o arvoredo e desaparecer na sombra como um lindo fantasma , mas o que ninguém decerto conseguiria era ouvir-lhe o suspirar comprimido . Estava na hora funesta , em que a mulher mais pura inveja o tálamo das Messalinas . Bem via o precipício através das flores , que o encobriam , mas adorava-o . Na sombra , que uma das muitas árvores formava com os esgalhos espessos e descarnados , onde esvoaçavam algumas aves saudosas da alvorada , foi deparar com o pensativo visconde . E , sentada sem receio ao lado dele no ermo daquele lugar , jurou consigo , crente no subido preço de suas seduções , que havia de ler na alma daquele homem os segredos , que ele com tanto rebuço ocultava . -- Eu também amo , diz ela , este crepúsculo vago , que precede a manhã . A imaginação arrouba-se mais viva , e vê em cada objecto uma forma agigantada e indefinida . E este indefinido não sei que alvoroços me desperta , com que suave aspiração me enleva o espírito ... Diga : não sente isto mesmo ? -- Bem conheço esse enlevo de que me fala , minha senhora . -- Nem podia deixar de ser . Alguma voz íntima me diz baixinho que toda a alma tem uma irmã , uma irmã gémea no sentir , no pensar ... Será certo ? -- Que sei eu ? Estou longe da abjecção do céptico , e , contudo , duvido . -- Na desgraça ... crê . -- Essa vejo-a , apalpo-a em cada membro do meu corpo . -- Também duvida de mim ? ... -- V. Ex.ª ! Pobre menina ! Tem viçosas todas as ilusões . Encontra atractivos neste mundo , porque só o viu por uma face , pela única prazenteira face . Julga V. Ex.ª que se corteja aí a virtude , a grandeza da alma , a elevação do espírito ? Engana-se . O embuste , a simples aparência é tudo ; e a suprema desgraça da minha vida está nessas palavras . Tenho um coração ardente para o amor , e uma cabeça para o compreender ; mas nem uma mulher , nem uma só , poderá encontrar em meus braços carinhos de esposo , porque são de barro quebradiço ou tão doce , que facilmente se enquadra em todos os moldes . -- Quando acabará essa linguagem de enigmas ? Disse que tinha coração para o amor . É então certo que ama ? -- Do fundo da alma . -- E haverá mulher tão forte , ou tão abatida , que possa resistir-lhe ? Deixe-me duvidar . -- É porque V. Ex.ª não prevê que esta fidalguia , que me encontra talvez no aspecto , pode abrigar um flibusteiro indigno . Quero mesmo deixar-me cegar pela vaidade para crer que sou amado . Não podia abrigar-se debaixo deste trajo o corpo corroído dum leproso ? Não poderiam lavrar aí cancros , gangrena e peste ? Suponha ; e veja que noite a do noivado para uma menina , verdadeira sensitiva em flor ... Terminou com uma gargalhada alvar . Margarida teve medo . Donde concluo , aqui entre parêntesis , que o sistema nervoso das senhoras é mais melindroso do que o do leitor , que , certamente , não vê motivos de susto . Possa a descoberta ser de proveito à ciência . -- Não julgue pela aparência , minha senhora , continuou o visconde com afabilidade . -- Oh ! Pressinto , não duvide , pressinto que não sou uma mulher vulgar , diz Margarida com orgulho . -- Adivinhei-o . E como me consola ouvir-lhe&lhes+o ! Pois bem , consinta-me uma pergunta estranha , e mesmo original : se eu fosse um cadáver frio e inerte , animado por qualquer engenhoso mecanismo , embora me pulsasse no corpo morto um coração com vida , poderia V. Ex.ª abraçar-me sem repugnância ? Quereria descansar a fronte no seio de um cadáver ? -- Que extravagância ! Pois olhe , Aveleda , à estranheza da pergunta vou eu dar uma resposta , que vale pelo menos outro tanto ; e Deus sabe que não minto . Margarida animava-se prosseguindo : seja o leito nupcial no cemitério , que lá mesmo o aceito , lá mesmo o apeteço . Repare que não corei . Se me treme a voz é ao peso da verdade . Eu não exagero . Quem sabe o que é amor sabe que não exagero . O rosto do visconde iluminou-se de irradiante alegria . Balbuciando , pôde exclamar apenas : -- Margarida , minha Margarida ! E pousou os lábios reluzentes no seio seminu da donzela , que , sôfrega , pagou a ousadia com outro beijo , em que se lhe foi esmorecida parte da existência . Depois , o feliz visconde embrenhou-se por entre as árvores com aquele caminhar medido do esqueleto das lendas populares . Margarida ficou como que desfalecida ; com o toucado desfeito , tranças desatadas e a cabeça pendente para as espáduas humedecidas pelo orvalho da manhã . Di-la-iam sonho feiticeiro de imaginação oriental . D. João ergue-se então em frente dela como obedecendo à evocação satânica dum mago ! Eu lhe digo , leitor : Acostado tragicamente ao resguardo dum tanque , que estava ali perto de Margarida , tinha surgido de repente um vulto de mancebo , como obedecendo à evocação satânica dum mago . Digo " tinha " porque o caso passara-se no pino do Inverno , e , agora , já as amendoeiras começavam a toucar-se das flores da Primavera . Pelo trajo do mancebo , e pela postura pretensiosa e frívola , era fácil reconhecer D. João . -- Perdão , minha senhora , havia ele exclamado numa intonação fatal , perdão por ousar importuná-la . Não pude resistir à tentação de vir eu mesmo lavrar o diploma da minha infâmia , declarando-lhe que assisti , escondido , a tudo o que aqui se passou ; e só para me deliciar agora na sua vergonha . O seu amante , senhora||_D._Margarida D.|_D._Margarida Margarida|_D._Margarida ... -- Sr.||_D._João D.|_D._João João|_D._João ! ... -- Descanse . Sou muito generoso para sacudir injúrias sobre um rival ausente . Para eu ser discreto bastava-me a esperança de que ao menos V. Ex.ª transmitirá ao visconde de Aveleda esse mau pensamento em que ando . Diga-lhe , minha senhora , que me consomem desejos de experimentar se uma bala sabe abrir passagem através dum crânio . Um terceiro em cena teria rido talvez da teatral farfalhada . Margarida emudeceu aterrada . Os primeiros raios de sol , frouxamente purpureados , caíram neste momento na face do mancebo , voltada ao oriente . Aos olhos dela , toldados por tantas comoções juntas , pareceram laivos de sangue . Fugiu espavorida . Como é pois que D. João vai encontrar acolhimento no festim do nosso visconde ? E , de mais a mais , no esplêndido festim do noivado ? Aí está o que admira ao leitor sisudo , e a mim conjuntamente . O carácter do visconde explica o facto . Conhecia a mocidade , que nasceu no fausto embalada por altas tradições de família para , ao despontar da adolescência , começar de correr aventuras por botequins e lupanares até cair adormecida de cansaço sobre páginas de perigosas novelas , e supunha-a para tão pouco que , indiferente à ameaça , recebeu D. João como dantes , com as maneiras simpáticas em que era pródigo . Quem sabe se fez mal ! O certo é que o festim corria esplendoroso . Margarida , como não estaria ela ! Tinha em roda de si isso que se diz -- a gema da melhor sociedade ; as suas melhores amigas ; seu velho e venturoso pai ; e seus dois irmãos : um , que se havia lançado nos escabrosos caminhos da magistratura ; outro , nas várzeas paludosas do peraltismo ; e sobretudo tinha junto de si o esposo querido da sua alma . Que mais longe podem ir as ambições mundanas ? Parece todavia mais desmaiada e pensativa . Doce cismar deve ser o dela . Cismar interpretado só -- cuido eu -- em véspera de bodas pelas felizes meninas a quem a sorte deparou um noivo de formas vigorosamente arredondadas , boca vermelha , dentes brancos e olhos sensuais . Nós , os homens , somos ímpios em excesso para nos ser dado requentar a imaginativa ao fogo sacrossanto , nutrido por aquelas castíssimas vestais . Ora o que se notava ali era como que um perfume do oriente , rescendendo de todo aquele luxo , o menos europeu possível . Avultava também não sei que desalinho , que fazia recordar confusamente a efeminada Roma , a escrava luxuriosa dos imperadores . Petrónio nunca imaginara camilhas ou poltronas que mais provocassem paixões da carne ; nem Voltaire serviu no Eldorado tão deliciosos acepipes . Baixela daquele preço , digo-o desafrontado , não circulou ainda em mesa de rei , nem mesmo talvez orgia de pontífice . O gosto e a opulência de Lúculo perderam-se naquela imensidade de mitológicas ostentações . Em duas grandes urnas de metal precioso ardiam gomas aromáticas trazidas da Arábia , que tornavam embriagante a morna atmosfera . Cada civilização viera depor o seu tributo . Pelas inúmeras portas , abertas de par em par , que davam para os jardins , viam os alegres convivas alguma coisa de surpreendente . Monstros colossais de bronze , colocados em pedestais de mármore , lançavam das largas fauces golfadas de água pura numa vasta represa , toldada de muitas aves aquáticas . E , por cima da coma viçosa das laranjeiras e das acácias florentes , divisava-se ao longe , no ocidente , mar imenso de labaredas , que , reflectidas , tingiam ao de leve a superfície límpida das águas com a tíbia cor do sol poente . Chegara o festim ao ponto em que o amor do tom familiar , para o qual tendemos tanto nós , os portugueses , atropelando o código das etiquetas mais frívolas , tinha agrupado , e , por assim dizer , germanado as diferentes jerarquias que estavam ali representadas por homens e mulheres , entaladas em espartilhos , veludos , caxemiras , sedas e gazes . -- Porque será , perguntava uma senhora à sua vizinha , porque será que o visconde de Aveleda está hoje , num dia como o de hoje , mais taciturno ainda do que nos outros dias ? Queria que me dissessem . -- Já reparei , respondia a interrogada . O que eu desejava saber , sobretudo , é que originalidade é aquela de vir sentar-se à mesa com as mãos escondidas nas luvas . -- Diz-se que nunca fora visto sem luvas . -- É um homem bem extravagante . -- E bem simpático , não é ? -- Sem dúvida . Ainda assim , havia de ter-lhe medo se acreditasse em nigromantes . Não sei que ar de encantamento se respira em sua casa ! ... São distraídas por elegantes brindes aos noivos . Também D. João se levantou com o copo de ouro na mão . Calou-se tudo . Ninguém desconhecia o génio estouvado do mancebo , nem o amor a Margarida e o ódio ao visconde , sentimentos que ele alardeava por toda a parte . Daí veio a surpresa geral , seguida do temor de alguma imprudência , acaso provocada pelos anos e pelo vinho . O barão , aquele barão que o leitor conheceu no baile , embalde se fatigou para o constranger a ficar quedo no seu lugar . Era tarde . D. João exclama com voz ligeiramente trémula : -- Chegou-me a vez de queimar também um grão de incenso no turíbulo santo da amizade . Considero-me feliz . E muito mais porque , esgotando o meu copo , esqueço a costumeira de fazer votos pela perpétua felicidade do ditoso par , que aqui festejamos , para ir mais longe ; para lhe profetizar uma longa série de júbilos e alegrias , iguais Ãs minhas alegrias de hoje . Saúdo-os com a resignação com que nos circos da ensanguentada Roma saudava César o cristão votado Ãs feras . Sentou-se , acolhido de frio silêncio . Só os desposados se inclinaram agradecendo , sem que a ironia lhes passasse desapercebida . -- Aí estão palavras que me parecem de mau agouro , murmuravam algumas vozes , ao tempo que D. João , pousando sobre a mesa o copo vazio , dizia ao ouvido do barão : -- Encontrei-lhe o travor do absinto . -- Não se desvaneceu ainda esse fumo ? ... pergunta o barão . -- Adoro-a como nunca . -- Desgraçado . -- Há-de falar-se de mim amanhã . O meu amor é como o dos tigres , que , às vezes , se têm fome , devoram ... O barão não conteve uma gargalhada com que interrompeu o amigo . -- Oh , Baco ! entoa ele na força da hilaridade . Meia hora mais tarde abriam-se as portas do salão . Ia começar o baile . D. João , viram-no sair para o jardim , mas ninguém o viu voltar . Algum projecto meditava . Não queiramos porém devassar o que se passa no íntimo dos outros . Nada temos com isso , em que pese , conforme diria um bem-falante , aos Torquemadas modernos , que ainda os há em multiplicadas e furiosas catervas . O baile não se descreve . Em tempos menos cultos seria tido na conta de milagre ; e o visconde nem com água benta alcançaria esconjurar a sabida canonização . À meia-noite estava o salão deserto . E Margarida , derramando lágrimas de pudica ... de inefável doçura , abraçou seu velho pai e seus irmãos , que logo se retiraram aos aposentos , que lhes estavam destinados . Ao transpor o limiar do seu encantado aposento , Margarida estremeceu , dando com os olhos tímidos nos brancos cortinados de fina seda com grandes bordaduras de ouro puríssimo , que velavam o misterioso tálamo . Através das janelas abertas viu a Lua no céu , infalível em tais casos , e viu também a folhagem compacta do laranjal , rescendente ao sopro ligeiro da embalsamada viração . Coração de virgem , na primeira noite de amor , enlanguesce por força , preso de encantadoras vertigens , em presença destas seduções , aumentadas pela vaga harmonia das esferas , que até essa se percebe então , seja dito em prosa . Mas onde está o esposo idolatrado , que não vem cair-lhe aos pés ? Caso estranho ! O visconde , no fundo da câmara , inclinado no recosto duma poltrona , permanece imóvel a curta distância dum enorme fogão de estrutura particular , firmado num plano um pouco inferior ao pavimento . O fogão contém um brasido imenso , que lhe esparge no rosto sinistro um clarão avermelhado . Quem o visse a essa hora e em tal posição julgaria ver ressuscitado algum dos alquimistas da Idade Média , para continuar sonhando na transmutação dos metais , ou no elixir da vida . Margarida adianta-se com timidez . -- Henrique ? murmura ela . O visconde fica imóvel . -- Henrique , meu Henrique ? continua . Porque me não respondes ? -- Estava a pensar , Margarida . -- Pode saber-se em quê , sr. pensador ? torna ela um tanto ferida no seu orgulho de mulher formosa . -- Conheces a história de Hero e Leandro ? -- Li-a em pequena . Bem me lembro . Mas , que pergunta ! ... -- É que eu estava a encontrar paridade entre aquela história infeliz e a nossa história , Margarida . -- Seriamente ? Onde está então a tempestade que nos há-de destruir num instante todas as nossas venturas ? ... Oh , Henrique ! ... -- A diferença está em termos entre nós uma sepultura aberta em vez dum simples estreito . Feliz eu , se tivesse só a lutar com as tempestades do Helesponto ! Pobre inocente , que as não vês mais coléricas a estalarem-nos sobre a cabeça . -- Jesus ! Assustas-me . Que coisa no mundo pode opor-se ao nosso amor , pode vir separar-nos ? -- Olha , diz o visconde designando sobre um bufete uma garrafa de cristal , cheia de ácido prússico , uma só colher daquele veneno mata em menos de três minutos . Os vinhos extraídos das uvas sazonadas nos luxuriosos vinhedos de Quios e das margens pitorescas do Reno , a par dos deliciosos vinhos do Porto , Xerez e Madeira , deslizando nos copos ; as pedrarias serpejando nos seios alabastrinos das mulheres ; as nuvens olorosas derramadas pelos recortados tectos ; as sedes de amor inflamadas por olhos humedecidos ao volitar pecaminosos e túrbidos desejos ; a alegria da formosa donzela , que , trémula de ansiedade , espera o momento em que possa revolver-se delirante nos braços do homem que soube vencê-la ; toda essa harmónica variedade , que poderia realizar as celestiais aspirações dum bom maometano , ateou no espírito conturbado de D. João quanto de extravagante pode conter um pesadelo em noites de febre . Correndo de taça em taça em borbotões de espuma , feria-lhe o vinho espumante a vista incerta , como se fora espadanar de sangue . E bebia , bebia sôfrego , incansável . Mas quanto mais bebia , mais crescia a sede . Margarida ! era o nome que de contínuo lhe perpassava na mente enferma , era o nome que lhe contraía os lábios e que a garganta enrouquecida não ousava desprender . Negros e repetidos pensamentos nasciam , atropelavam-se , lutavam no interior daquele crânio , por debaixo dos compridos cabelos loiros , que , frouxos , lhe pendiam sobre os ombros como abundantes flocos de seda . Foi nesse tempestuoso delírio que ele deixou a mesa do banquete para , cambaleante , ir mitigar a febre nas flácidas moitas dos jardins . Ia receoso da multidão . Cuidava que todos os olhos lhe soletravam nos dele os lúgubres pensamentos de sua alma . Queria ver-se só , que lhe não envenenassem víboras mundanas as lágrimas represadas . Era um excelente rapaz este D. João . Generoso e amante não o havia mais . Tisnara-lhe porém o hálito quente da sociedade as mais belas flores de sua leal natureza . E não se tome isto como fastidioso monólogo de maçudo moralizador . A sociedade , sim , senhores , foi a sociedade que estiolou com suas evaporações cálidas a delicada eflorescência daquela bela alma . Viu-o rico , galhardo , franco e perdulário , e abriu-lhe os seios fétidos , e prostitui-se Ãs paixões do moço milionário . O dinheiro escorregava-lhe por entre os dedos sobre as mesas alcoolizadas dos cafés , sobre o leito enxovalhado das perdidas , sobre o empoeirado labirinto do distúrbio ; e os folhetinistas galantes , os fúteis da moda , alguns homens de estudo mesmo , aplaudiam cúpidos , lisonjeando-lhe os vícios . O prostíbulo , voragem que a lei sanciona , foi a arena borrifada com o vinho de suas primeiras proezas . Cansado enfim de se estorcer na crápula , no húmido chão do lupanar , volveu os despertados apetites para a recatada burguesia . Se lhe resistia a inocência , a palavra dinheiro , pronunciada com voz anelante por lábios torpes , abandonava o pudor aos soltos caprichos do mancebo . E muitas foram as envergonhadas pequenas , que lhe venderam a virgindade em beijos frios , em dilúvios de sentidas lágrimas . No entanto D. João aumentava em audácia . Os falados triunfos sopravam-lhe o demónio da vaidade . Era à elegância de seu porte , segundo ele , era à doçura de suas falas , e não ao ouro derramado , que devia as brilhantes conquistas . Assim parecia às vezes , com efeito , porque , entre a fina holanda e preciosa tela de brandos e custosos leitos , de frequência o esperavam também beijos aristocráticos , corpos em que a provocadora nudez ostentava à luz da esmaltada lâmpada , azuladas veias entumecidas de generoso sangue de gótica raça . Não era por certo , ele o dizia , não era o dinheiro , que lhe abria os portões dos opulentos palácios . Tudo devia à graça de seus requebros , à louçania de seus donaires . Enganava-se . Mentia-lhe o amor-próprio . Nas classes superiores , como em todas as classes , é um e o mesmo o alvo a que se faz calculada pontaria ; é uma ideia culminante . O homem , que se refastela em encarquilhados títulos de fidalgo e capitalista , também não tem dúvida em dizer à consorte , nas expressões da sua conveniência , como o homem do povo na aberta linguagem das privações , não tem dúvida em dizer-lhe , deitando olhar oblíquo sobre a descuidada filha : D. João é moço de subido merecimento . A par de colossal riqueza , tem um dos mais fidalgos brasões . Bom casamento , na verdade , bom casamento para uma menina honesta ! ... E em seguida apresenta o moço Ãs senhoras . A menina cora . D. João deseja . O pai indigita-lhe , matreiro , o casamento da filha , e sai em cata do primo marquês com o cheiro numa saborosa partida de xadrez . Mal acostumado , como estava , supunha o mancebo utopia a pudica resistência numa mulher ; supunha-a flexível a seus carinhos como a junça ondulante ao sopro morno dos ventos . Margarida , porém , incumbiu-se de vingar o afrontado sexo . Com o desdém assanhara a vaidade do mancebo , e infiltrara-lhe no peito , vazio de crenças , o mais perigoso dos sentimentos -- o amor capricho , que , à maneira da ebulição , põe em alvoroço as fezes adormecidas no fundo esterquilínio das humanas paixões . A inveja , o ódio , o desespero , a insânia , a vanglória , precipitam-se em redemoinho como satélites daquele nefando e frívolo amor . Daí à loucura é escorregadia a estrada . D. João , depois de absorvidas torrentes de vinho , recordava como um sonho baralhado , para ele , lacerante tripúdio no fabuloso banquete . Repousara a cabeça num feixe de trepadeiras que se atiravam em festões vigorosos aos enfeitados ramos duma olaia , e deixara pender o corpo sobre a areia fina tapizada de esfolhadas pétalas . Os olhos entreabertos demorava-os , absorto , no clarão irradiado dos salões iluminados . E as sombras volteantes , que se desenhavam ao longe , em ondas de gaze , no cristal dos espelhos , dali percebidos no fim das salas , julgava-as etéreas e silfídicas visões . As ondas sonorosas das afastadas músicas reboavam-lhe no tímpano como lamentáveis e prolongados suspiros . Por outro lado embalavam-no os trinos do rouxinol , flutuantes no cerrado laranjal . Mas tudo isto não fazia senão avivar a dor daquela pobre alma em penas . Ter vinte anos sem conhecer apetite irrealizável ; ser orgulhoso e volúvel , e ver-se condenado ao suplício de Tântalo ; sentir a alma manchada no viver de alvoroçados desvarios , exaltada de repente num sentimento puro ; amar então , e ser repelido ; e amar com mais força ainda , de raiva , de vergonha , por capricho ; e querer afogar esse amor , agora impossível , querer afogá-lo em vinho , é compreender a angústia por que passava D. João . Margarida era venturosa , quanto o pode ser uma formosa filha de Eva . Bem o sentira ele , que a contemplara com a voluptuosidade da pantera , que espreita a apetitosa rês ; ele que lhe medira os movimentos , a intensa morbidez dos olhos , a intumescência dos seios brancos , o descorar dos lábios . Quisera , mas não podia duvidar : o visconde de Aveleda era amado com todo o faminto impulso dum peito virgem , enquanto ele , o herdeiro infamado dum celebrado nome , ali tão perto , contava na efervescência da imaginação , na febre de seu delírio , o pressuroso arfar dos corações amantes sem poder quebrar os laços , que os uniam para sempre ! E que os quebrasse ? Não lhe coubera , em partilha , o desprezo ? D. João chorava , chorava de humilhado . Na falta de cómodas barbas , arrepelava os cabelos como um tirano de dramalhão , medindo a superioridade que lhe levava o visconde . Faltava-lhe a tristeza do rosto , a dignidade do gesto , a suave melancolia da palavra , e , sobretudo , aquela misteriosa sombra , em que se envolvia o visconde , que é para o sexo curioso uma tentação irresistível . Que era ele , D. João ? Um moço afeminado , doido , leviano , de lábios frescos e olhos bonitos , amante de vinhos e de mulheres , aventureiro , sonhador ; era o que são muitos rapazes , o que todos podem ser . Que rumo era o seu ? qual o seu destino ? Abismou os olhos pelas trevas do futuro e julgou ver , como num espelho nigromântico , as horas , os dias , anos , lustros , caindo plácidos uns sobre os outros , monótonos , sempre os mesmos . Encontrou-se no fim , quando menos o cuidava , no despertar de imundas sensualidades , encanecido , velho . Fitava triste o passado e admirava-se de ter vivido . Era um triste sonhar aquele . Não via uma pegada na areia móvel do caminho , que marcasse sua passagem . E perguntava , supondo-se com efeito desperto na decrepitude , perguntava -- para que vivi ? Pensava no suicídio . -- Se a minha vida futura há-de assemelhar-se à que levo passada , suspirava o moço , vivi de mais . Experimentei o gozo , compulsei as amarguras . Estou saciado . Aspirações de glória , aspirações generosas , em que ouço falar tanto , não me prendem ao mundo , nada me prende , morrerei . Mas um sopro da esperança vinha então , ao de leve , refrescar-lhe o espírito , e aspirações nunca sentidas douravam-lhe por instantes a requentada imaginativa . É que o iludiam passageiras crenças , que , se fossem duradouras , operariam um milagre de reabilitação . O que pode a mulher ! Assaltava-o esse borbulhar de ideias , enquanto se contorcia , numa agonia mortal , no frio leito , que o acolhera . Era tarde e bem tarde quando se ergueu vacilante . Tinha sede . Gemiam em torno multiplicadas fontes . A represa parecia uma grande lâmina de estanho caída no regaço de pampanosas verduras . Descia a lua perpendicular sobre as águas . Aquela formosíssima solidão tinha contudo não sei que pálida frieza de cemitério ; coava nas veias alguma coisa de pavoroso . Sentia-o D. João quando , curvando-se , bebia . Mas porque estremece como tomado de súbito terror ? O desgraçado era vítima de algum pesadelo infernal . Do fundo do líquido cristal notou que se destacavam imagens monstruosas e horrendas , que não despregavam dele os olhos imóveis , inertes , brilhantes como de reluzente metal , e quase ao mesmo tempo vibrou-lhe aos ouvidos argentina gargalhada . Quis fugir , mas prendia-o como que um poderoso magnete . Breve , porém , reconheceu envergonhado a fraqueza supersticiosa , que o dominara . As imagens não eram mais que estátuas do jardim , que se retratavam na face límpida das águas . Quando em nosso espírito acalentamos porventura um negro pensamento , negros e feios vemos os objectos , que nos circundam . Um espírito cândido em tudo descobre rosas e perfumes ; fantasmas e perseguições o que se rojou nos cuidados do crime . A verdade dessas palavras sopeoua D. João . Mas a gargalhada , aquela gargalhada que lhe soara aos ouvidos como solta do ciciar das brisas , ou dos lábios de cetim de alguma fada invisível , donde viria ela ? Talvez das salas do baile . Para lá voltou o moço a escandecida fronte . Quebrara-se o encanto . Como um tempo em que , depois da festa e das harmonias místicas do órgão e dos súplices cânticos , se estende pelas naves imensas melancólico e funéreo silêncio , assim nos dourados salões , há pouco banhados de luz , agora , fechadas as escuras janelas , descera sepulcral silêncio . D. João despediu um guincho de espanto como o do cerdo ao sentir-se nas garras do lobo , e pulou desnorteado , pelo teor e forma por que Dinis , no Hissope , faz pular , em certo picaresco transe , o deão de Elvas , clamando -- vingança ! É que tinha seriamente meditado uma história de sangue . Medira o esforço de sua alma e sentira que lhe quedava bem o nome de assassino . Qual será a vítima escolhida para o cruento holocausto . Chegara o terrível momento . Coroada de brancas flores , semelhando adormecidas pombas , erguia os valentes ramos para uma janela do palácio uma odorosa magnólia . A seu tronco estava arrimado um homem com olhos chamejantes , mergulhados , através dessa janela ainda aberta , na escuridão interior . Era D. João . Estava ali como um fragmento de granito , firme , sem respirar , mas febril e ardente . Soara a hora fatal em que , não longe dele , iam unir-se , consubstanciar-se num corpo só , dois seres , que o infeliz quisera ver separados pela incomensurável distância dum túmulo ; dois venturosos , que entre suspiros , carícias , contorções e beijos , iam , nus de trajos e de mágoas , celebrar celestiais mistérios do noivado ... Pobre D. João ! Que assanhada lepra te lavrava o peito ! De repente jorraram lá dentro raios de luz brilhante , e sussurraram passos indistintos . O mancebo apertou a desvairada cabeça nas mãos trémulas . Pulava-lhe o coração na ânsia febril . Recalcada um tanto a desesperação endireitou-se ameaçador . Lampejara-lhe na mente uma ideia atroz . As janelas , que agora resplandeciam abertas , podiam ser trancadas em pouco tempo , e então a esperada vingança teria de se represar ainda uma noite nas lavas do seu crânio . Mas não . Era impossível . Numa noite perfumada como aquela , em que a natureza se desprende em harmonias , em que as auras sussurram , beijando as folhas dos arvoredos , em que as fontes suspiram e as aves cantam ; numa noite de amores , noite como aquela , é estreito o recinto duma câmara para duas almas , que , fundidas , vão erguer sensuais oblatas aos pés da amorosa deusa . Não , as janelas permaneceriam abertas . Assim pensava o mancebo , quando a leve sombra duma mulher se esboçou transparente no mármore de um muro fronteiro . Era certamente a ingrata , que afanosa corria aos ferventes beijos do cobiçado esposo . -- E eu , desgraçado , murmurou D. João , só , sem luz , sem esperanças , só , cercado de trevas e de abismos ... Deslizou-lhe a aflição num riso . Recalcou novamente a dor , e , com mão segura , apegou-se ao tronco da magnólia , atrepando por ela com movimento arrastado e ligeiro , como de serpente . Apertou contra o peito o cano de suas pistolas , sacudiu os orvalhados cabelos , e sumiu-se na folhagem . Então mil aves , acordadas na verde guarida , esvoaçaram assustadas , e fugiram soltando pios , até se perder no desmaiado luar . Agora , que a minha autoridade de verdadeiro contra-regra de teatrinho aldeão chamou convenientemente a postos os esquisitos personagens , que hão-de figurar no presente capítulo , voltemos ao ponto em que deixei os suspirosos noivos na crítica posição de todos os noivos . Avalia-se , não se descreve , o alvoroço de Margarida em face de baralhadas suspeitas , mais e mais condensadas pelas fatais palavras do visconde . Que horrível linguagem era aquela , com que a acolhia o esposo , no momento em que toda se absorvia na morbidez de um requintado afecto ? Se acordasse dum sonhado paraíso , entre as ensanguentadas mãos de enraivecido carrasco , que a arrastasse sem dó pelos ignominiosos degraus de um patíbulo , por certo não sentira a donzela mais pavorosa surpresa . Para quê negros pensamentos , pensamentos de morte , quando ela , esquecida , como nunca , da fragilidade da matéria , se arroubava ditosa no antegosto de incógnitos prazeres ? Voavam-lhe nos alquebrados membros repetidos calafrios de susto . Como magnetizada prendera atónitos os olhos no visconde , e , então , naquela frieza de estátua , embalde procurava o atractivo , que a tinha cativado . Não sei o que lhe viu nas mudadas feições . É certo porém que , apavorada , longe de se avizinhar , como ainda há pouco , se afastou oprimida de supersticiosos terrores . -- Foges-me , Margarida ! diz ele com dolorido acento . Amarguras-te de me ver a teu lado ! Devia ser assim . Como eu te quero , não o sabes tu . Não sabes como o moribundo ama o último dia da existência que lhe foge . -- Ama-me ! Não me dizem o contrário tuas palavras , teu hálito gelado , a gelada atmosfera que te circunda ? Eu mesma sinto-me repassada de frio , e de ... -- E de medo . -- E de medo , sim ; e de medo , que não sei explicar . -- Quebrou-se bem depressa o encantado prisma , que me mostrava a teus olhos sem os traços carregados , que a desgraça sulca na fronte de seus escolhidos . E todavia ainda não se rasgou o espesso véu , que me salva do escárnio , do teu escárnio . -- Henrique , Henrique ! Sinto que se dá entre nós alguma coisa de muito extraordinário . Perde-se-me a cabeça em mil estranhas conjecturas . Encontro-te na imobilidade do cadáver . Diz-me quem és , quem tu és , Henrique , que eu não sei conhecer-te ... -- Nem queiras . Basta saber que sou uma pobre alma , em busca dum corpo , que me abrigue ; um coração ardente num peito gelado como a pedra duma vala funérea . Vi-te , débil criatura , através das lágrimas que me empanavam a vista ; e , tal qual sou , cuidei que minhas cruciantes penas poderiam encontrar refrigério nas tuas consolações . Aparecias-me com a auréola divinal da mulher superior em volta da tua bela cabeça . Não era muito que te supusesse capaz de lavar , sem repugnância , com os bálsamos do amor , minhas leprosas e sangrentas chagas . É que aos grandes desgraçados nunca deixou de sorrir , na insónia de suas noites , uma imagem de mulher . Ahasverus lá encontra a redenção de seu triste fadário na cândida Raquel . Eu entrevia-a em ti . Julgaste-me tu pelo que parecia , e não decerto pelo que eu era . Venceu-te a aparência , que mais duma vez nivela o vício com a virtude . Amaste-me . Ai que longa série de gozos me veio do teu amor , Margarida ! Quis declarar-te tudo . Não pude . Tive medo que se desvanecesse num sopro a minha angélica visão . E só agora reconheço que te sacrifiquei , que te arrastei talvez na minha queda , infeliz ! -- Na tua queda ! ! -- Mas não . Conservo a última esperança . Se a perder , já te mostrei o veneno que escolhi . te-viúva e virgem , e rica , muito rica . Das multidões , que , famintas , se hão-de atropelar à entrada do teu palácio , podes eleger um esposo que te mereça , que te dê na terra venturas do céu . Não chores , anjo ... -- E eu tão inocente , tão descuidada ! ... Só sabia das minhas queridas ilusões . Como poderia suspeitar que o homem , que me escravizava ! ... E que fosses , no teu passado , um grande criminoso , Henrique ? ! As lágrimas , que te regam as faces , não significariam arrependimento e absolvição ? Bem sinto que te comoves ... A boca do visconde escancarou-se , como a desmenti-la , numa satânica gargalhada . Margarida tremeu até à mais recôndita fibra . Neste tempo ouviu-se lá fora um estalido , que tanto poderia provir dum ramo seco quebrado violentamente , como duma pistola armada por oculta mão . A assustada menina correu à janela . A Lua permanecia serena , prateada , no recurvado firmamento . As aves esmoreciam em trinados nas franças das olorosas selvas . Só se havia erguido certa desinquieta aragem , que balouçava os arvoredos de tal sorte , que a coma lustrosa da magnólia quase roçava na janela . -- Diria que ouvi ... murmurou ela . E interrompeu-a nova contracção de terror . Uma lufada de vento acabava de entrar na câmara , e a lâmpada de alabastro , suspensa de rico velador , crepitando , quase a apagar-se , difundiu fantástico clarão pelo rosto do visconde , que se destacava inerte num fundo avermelhado pela chama sacudida do gigantesco fogão . -- Criminoso , disseste tu , Margarida , exclama o visconde de Aveleda , pesando a palavra que ela proferira . Enganaste-te . Fui sempre honesto e virtuoso . Não , não estou manchado de crimes . Antes estivesse , que traria , quando muito , o meu castigo no fundo impenetrável da consciência . Mas viveria , pois , através do ouro ; crimes não os vê a sociedade , e , se os vê , respeita-os . -- Que labirinto ! -- Horroroso ! Prosseguiu em tom de expansiva ternura . Vou ser franco , é tempo . Vem , Margarida , minha esposa , vem para ao pé de mim . Reveste-te de toda a tua coragem e escuta . -- Fala , fala ! -- Lembras-te duma promessa , que me fizeste , transbordando afectos , como agora tremendo de receio , promessa que eu aceitei ? -- Se fiz tantas promessas ! ... -- Muitas , por certo . Filhas de leviana exaltação . Pois bem , entre essas todas , prometeste seguir-me ao cemitério , se lá fosse minha morada ... -- Virgem||_Santa Santa|_Santa ! -- Esqueces ? continua com voz cavernosa . Mentiste ? ... Lábios de anjo não mentem . É teu esposo que te estende os braços ... -- Mas quem és , quem serás tu ? -- Vem perguntá-lo ao contacto do meu corpo inanimado e frio , como o de um defunto . Receias ? -- Oh Henrique ! -- Vem . -- Desfaleço . Não posso mais . Tenho medo . Se ao menos fosse isto um sonho ! -- Adivinhaste . Isto é um sonho . Podes voltar para casa de teu pai . Eu não sou um homem . -- Pois que és , desgraçado ? -- Uma estátua . Por absurda , que parecesse a resposta , acompanhara-a tão firme acentuação de verdade , que só de si fora bastante a enrodilhar três sábios e um compêndio de lógica , e sobretudo o mais incrédulo e chegado parente de S. Tomé . Não é pois de estranhar a credulidade de Margarida , que , logo em continente , sem acordar da mal-ajeitada surpresa , viu que as luvas do visconde , pela primeira vez arrancadas , lhe deixavam as mãos a descoberto . O mesmo foi que vergar-lhe sobre os joelhos o corpo alquebrado , e sufocar um grito na garganta . As mãos descarnadas , que a estreitavam , eram feitas de marfim . -- Desmaias ? exclama ele na força do desespero . Que é da coragem que me prometias ? São todas assim as mulheres . Amante , seguias-me ao cemitério ; esposa , horrorizas-te de meus afagos , porque me não encontras calor nos membros , porque sou uma estátua . E a cabeça , que harmonizou estrofes que te embriagaram , é esta mesma , que agora repeles . E os lábios , que avivaram nos teus ânsias de beijos com segredos , que tu decoravas , para os repetir sonhando , para acordar repetindo-os , são os meus . Eu sou ainda o mesmo , que era , se me derem a perdida esperança do teu amor . Que te falta , mulher ? Aqui me tens . Fez um movimento . Ressoaram estalos como de molas . Horror ! Sobre a poltrona caiu um corpo mutilado , disforme , monstruoso . Pernas , braços , os próprios dentes do visconde , brancos como formosos fios de pérolas , tombaram sobre os felpudos tapetes da Turquia , e perderam-se nas dobras de seu robe de chambre , que naturalmente se lhe desprendeu dos ombros . O infeliz era um fenómeno , um aborto estupendo , que em nossos dias valeria muito dinheiro a quem quisesse especular . Era ele poeta de mais para isso . A tudo porém dera remédio a civilização de seu tempo . Afortunados tempos ! Margarida sentiu-se como petrificada . Mas , de repente , fulgurou-lhe a loucura nos olhos . Comprimiu com violência o coração , e , veloz como o pensamento , desapareceu por uma janela , desprendendo um grito agudo , dolorido , que se perdeu à distância , ao tempo que , por outra janela , se precipitava no aposento um homem com uma pistola em cada mão . Era D. João . Por seu lado o visconde sopesara a queda de suas sonhadas aspirações . Borbulharam-lhe duas lágrimas dos olhos embaciados , que , desvairado , dirigira para o bufete em que tinha depositado o veneno , última esperança . Impotente porém para o aproximar dos lábios , não hesitou . Numa contorção de agonia extrema atirou-se ao pavimento e rolou sobre as brasas vivas do fogão . Cingiu-o bem depressa uma azulada , ténue , mas crescente labareda , e nem um gemido soltou . É bem certo que as dores da alma nem deixam perceber as da matéria . Tanto as excedem . Ouço-o dizer aos piegas , que namoram , folgam , comem e engordam . Nas complicadas cenas , à laia desta , habituaram-se os romancistas ao emprego das sacramentais palavras : tudo foi obra dum segundo . Eu digo desta vez como eles , mas sem mentir ; o que é para ser notado , porque quando D. João , furioso , buscava alguém , que lhe absorvesse as iras , divisou entre ondas de fumo uma informe massa em medonhas contracções . Parou ali . Mas recuou logo repassado de horror . Volvera-se para ele um rosto coroado de labaredas . E cravaram-se nos seus uns olhos que , rebentados pela viveza ardente das chamas , se revolviam ainda nas ensanguentadas órbitas . " Pois essas divertidas e caprichosas cenas , tão exóticas como pueris , que , enrodilhadas e com feia catadura , têm devorado páginas e páginas em frases de todos os tamanhos , terão alguma coisa de comum com a suave e desafectada narração dum prometido conto não só verdadeiro , mas até elegante ! ? Um conto ! Chama-se a isto um conto ! Dos que se dizem nos serões de Inverno com pasmo das imaginações rudes ou infantis , poderá ser . Mas conto para gente fina e séria , para gente que sabe de cor Edgar Poe e Hoffman ! Oh , oh ! Sobretudo imperdoável é o desaire com que o demónio do escrevinhador deixa transluzir das combinações do seu espantoso imbróglio o presunçoso intento de fazer um romance , que lhe dê azo a fingir-se modesto , chamando conto ao que , no juízo dele , vale bem um romance . Ora , meu senhor , se queria rabiscar coisa como romance , sofreasse um tanto os ímpetos com que os seus esfalfados heróis se precipitam no epílogo ; demorasse as situações com peripécias , episódios e tudo o que lhe lembrasse , capaz de aumentar o interesse e aperfeiçoar o lavor artístico da obra . Não basta encadear dois dissaboridos diálogos e alguns ditinhos simplórios e afectados . Diálogos ! Nada mais fácil . Duas pessoas que falam , uma depois da outra , com intermédio de pausas e reticências ... Se queria fazer-se notado saísse a campo com seis , oito , vinte palradores , prendesse-os a uma geral conversação em que falassem todos , alternados e simultaneamente , em grita e com moderação . Então , sim . Aí encontraria oportunidade de desvendar a sua mestria nas dificuldades da arte . Mestria essa que ninguém ousaria contestar uma vez que alcançasse meios de se esquivar a mostrar-nos , pela extravagância da algaravia , de que fabuloso modo se digerem bojudas vasilhas de álcool . Nesse caso não nos opúnhamos a que levantasse uma estátua de barro em paga da sua Estátua viva . Apenas se atreveu , porém , com a parte mais plebeia e chilra deste género de literatura -- o diálogo , coisa que hoje nem os dois mais triviais interlocutores quereriam alimentar ; embora iluda um tanto a paradoxal aparência da proposição . Quanto ao visconde de Aveleda é ele , diga-se a verdade , a mais simpática criação , que pode deduzir-se de inexperto cinzel . Porém , que destino ! A astúcia depravada do autor faz com que o vejamos na parte luminosa do quadro ; que nos ganhe , não direi simpatia , mas um pouco de benevolência ... Depois acende um fogão monstro e de particular estrutura que estava preparado de encomenda para receber um homem inteiro , e lança-o , com bastante pena nossa , ao meio das chamas , e assa-o , não sei bem se com a tenção de o comer . Palpita-me que o vai comer . Isto não se faz em país civilizado e liberal ! Enfim , seja como for , já gastámos mais cera do que é de lei com ruins defuntos . Oxalá que , aproveitando-lhe a lição , venha a convencer-se de que não sobra quem se empenhe nos progressos práticos da agricultura , e deixe de andar tresmalhado nestes difíceis caminhos , que nunca pés mazorros lograram percorrer sem sangue . " São assim , pouco mais ou menos , as sibilantes expressões da maledicência , que eu desprezo , sem que , todavia , deixe de vir a indignação das grandes almas ofendidas inflamar-me as nacaradas bochechas . Crítica cordata e justa escutei-a sempre respeitoso . Insolências , à laia das supraditas , não são lanças que façam saltar da sela cavaleiros do meu jaez , nem hão-de ser em tempo algum admoestações , que corrijam defeitos . A minha generosa indignação não me deixa responder , como pedia o caso , se bem me está borbulhando a ideia de confundir os linguareiros por meio duma digressão ideológica , em que podia patentear os tesouros , que tenho amontoados no meu celeiro . Não quero fazer escândalo . É o que lhes vale . Em desforra , apenas prometo esmerar-me a fim de ser mais natural e correcto no seguimento do conto , que prossegue do seguinte modo : Quando o Sr.||_Urbano_Solar Urbano|_Urbano_Solar Solar|_Urbano_Solar , beatífico pai de Margarida , descerrava as preguiçosas pálpebras ainda saudosas dos afagos do confortativo sono , marcava o ponteiro dum relógio , que pendia graciosamente da parede , dez horas e alguns minutos . O santo varão não acordaria tão cedo , se o estômago com irregulares rugidos não acusasse certo vazio que o horrorizava . O Sr.||_Solar Solar|_Solar tinha horror ao vácuo ; e tanto que , na deliciosa perspectiva de um substancial almoço , que lhe deslizava na mente fecunda e liberal , endireitou azafamado o colarinho , enlaçou a gravata , deu a última demão aos ingratos cabelos , e foi incorporar-se a seus filhos , que , já preparados , conversavam , aproveitando os raios vivificantes do sol matutino . O dia estava duma formosura a derramar alegrias nos espíritos mais atribulados . Parecia concertada a natureza para acompanhar os doces enleios , que deviam ser então a alma animadora da ampla majestade daquela habitação . O próprio Sr.||_Urbano Urbano|_Urbano sentia-se enfeitiçado . -- O visconde ? pergunta ele , admirado de que o não acompanhassem em continente para a anelada mesa do almoço . Ainda não vistes a nossa Margarida ? ... A resposta resolveu-se em dois sorrisos frouxos , maliciosos , equívocos . Solar compreendeu-os , quis revestir-se de gravidade , mas , em conclusão , não teve remédio senão imitá-los . Para os inocentes , como eu , esses sorrisos não seriam mesmo obscuros . Tenho fé , porém , que não faltariam honrados pais de família que , no dia seguinte ao do noivado de suas filhas , perspicazes como Urbano Solar , soubessem dar explicações . Deus me defenda de sabê-las dar alguma vez por minha parte . Travaram os três insignificante conversa , que ameaçava prolongar-se com sério detrimento do aparelho digestivo do Sr.||_Solar Solar|_Solar . Mas como nem o visconde de Aveleda , nem Margarida pareciam ainda dispostos , segundo suspeitas dum criado interrogado , a vir livrá-lo desse suplício , tirou-se de seus cuidados , e , resolvido a não esperar por ninguém , saiu na tenção de farejar por si mesmo certos conhecidos escaninhos de gordurenta memória . Ao roçar na porta da câmara nupcial não pôde vencer a curiosidade , e apurou o ouvido . Nem o mais leve sussurro . De dentro vinha uma réstia da luz pura do sol , que mosqueava o pavimento , denunciando assim que eram já abertas as janelas do interior , e que , portanto , os felizes habitantes daquele estreito paraíso não continuavam esquecidos em amorosos delíquios , e além disso , que estava mal cerrada a porta , que , por esse motivo , dava passagem à réstia do sol . Aventurou-se a empurrá-la suavemente ; e sem resistência nem rumor rodou ela sobre os flexíveis gonzos , e pôs a descoberto a parte interna da câmara , inteiramente solitária . Entrou o bom homem despejando da garganta exclamações de pasmo , lançou a vista em roda e dilatou as cartilagens do nariz , tocado dum especial odor daquela atmosfera , que era um desespero para o ambicioso e esfaimado estômago de S. Ex.ª. Afiava-lhe o apetite aquele odor . É fácil de ver portanto que não podia satisfazê-lo o simples conhecimento do efeito . Ao seu estado convinha , mais que tudo , palpar a causa . Breve a descobriu ele no fogão , onde entre algumas amortecidas brasas , cercada de cinza e de carvões , avultava uma massa compacta de carne , a este tempo quase carbonizada . Revolveu-a de todos os lados , naturalmente admirado da estranheza , e no fim da investigação concluiu que não era fácil determinar a casta de animal , a que pertencia aquele torresmo , mas que , feitas as contas , tinha na parte superior um provocante pedaço de loirejada polpa . Solar era um homem de muito siso para não saber explicar a esquisitice do facto com a esquisitice do génio do visconde de Aveleda . Foi de semblante prazenteiro que seus filhos o viram voltar , convidando-os a acompanhá-lo . -- O visconde , diz ele com afectado mistério , parecia que de propósito se recusava a aparecer para nos obrigar a esperá-lo para o almoço . Mas eu que sou velho e matreiro achei meios de me vingar . Fui procurá-lo ao próprio quarto . -- E assanhou-lhe o masculino pudor , diz sorrindo o peralta . Está visto . -- Pelo contrário . Não encontrei lá sombras disso . -- Como assim . Pois ... -- O quarto estava deserto , mas saturado dum cheiro ... -- A ambrósia , provavelmente ? -- Não . A carne assada . Meu genro , cada vez mais estou convencido , é um homem de inqualificáveis caprichos , duma rara excentricidade . Saiu , ninguém sabe quando , nem para onde ; ao menos não há criado que o diga ; saiu com a noiva e deixou nas brasas do fogão um imenso pedaço de carne , quase reduzido a cinzas , com excepção da parte superior , que repele o mais sorumbático fastio . -- E então ? ... -- Então aquilo deve ser alguma preciosidade da inventiva culinária do visconde . E para seu castigo lembrei-me de lhe pregar uma pirraça , que , por cima , há-de fazê-lo rir . Vinde almoçar comigo . -- Mas não será indiscrição ? ... observa o magistrado . -- Sou eu o responsável . Depressa ! que não venha ele no entretanto . Pouco depois entrava o velho folgazão com os dois filhos na câmara dos desposados , munido ele próprio dos apetrechos indispensáveis para o notável festim . O sabor da carne não correspondia à aparência . Era excessivamente insulsa , viscosa e adocicada . Urbano Solar , desiludido , afirmava que só a sua experiência saberia esburgar os ossos convenientemente , assim como só o apetite saberia tolerar o dissaborido manjar . O magistrado acabava de cair num reflexivo abatimento , encarando com olhos desvairados já na configuração da insulsa iguaria , já no lugar em que fora encontrada . Supunha ter tocado com a faca alguma coisa , como uma caveira humana transformada pela acção do fogo . -- Meu pai ! exclama ele de repente com voz espavorida , aqui há um terrível segredo , um segredo muito espantoso . Este leito não dá sinais de que alguém se recostasse nele . Os criados afiançam que não saiu ninguém desta casa , e ... Todos estremeceram . Ressoara a detonação dum tiro e , em seguida , sussurros e gritos no interior do palácio . Esopo , Fedro , La Fontaine e mil outros ilustres colegas , que me precederam , costumavam consagrar os últimos trechos das suas pingues histórias à dedução da moralidade nelas contida . Por mim , inimigo figadal de relhas tradições , fiz protesto de os não imitar , embora receoso de cair em alguma das originalidades sandias que vão por esse mundo , factos enfezados desta época inqualificável , em que cada sujeito tem uma luneta e certo sorriso , e sofre do nervoso , e tem fantasias lúgubres , julga sorver a imortalidade pelo facto simples dessas fendas e desses achaques . Apesar do bem fundado receio não quero ser imitador . À parte o ódio ao ramerrão clássico , e a louvável ambição de conquistar direitos a original , e não sei que mais , sinto meu fraco por fechar um conto num lance desastrado , assombroso , nunca visto , tal que só de si possa tirar o sono por três noites Ãs sensíveis meninas , e chupar as excrescências adiposas e os mesmos volumosos redenhos aos graves papás interessados na leitura . Faço de conta que os há interessados na leitura . Posto isto , facilmente se reconhece que por forma alguma convinha ao meu intento reservar para o remate a fria moralidade , segundo usança dos meus defuntos confrades , acima citados . Mas , para que me não censurem por leigo na missão que escolhi , aí dou ( a moralidade ) em duas palavras suculentas , conceituosas e profundas como se me empertigasse sobre a sagrada trípode da sibila . É ao formoso sexo que me dirijo , pois que não sei corrigir o vaidoso impulso de fundar toda a minha aspiração em ser-lhe de préstimo , como director espiritual . Aprendam pois desta fúnebre história as donzelas inexperientes a temperar os amorados ímpetos com o sal da desconfiança para que não vão encontrar às vezes , como no exemplo exposto , algum rude madeiro , que se transforme em cruz de suplício , em lugar de um galhardo marido , aparentemente cheio de vigor , de energia e seiva fluente de mocidade . A experiência anterior , a análise microscópica antecipada , é a meu ver a verdadeira tábua de salvação . Pobre visconde de Aveleda ! Quem sonhara , ao ver-te esplêndido , imponente e adorado , que cruel fim te reservava o avesso destino , sujeitando teu requeimado tronco aos apetites vorazes de famintos canibais , que , ainda na véspera , te abraçavam no desaforo duma amizade pura ! Altos juízos de Deus ! E sirva-me essa vulgar exclamação , tão avezada a cortar pela raiz atadas questões de metafísica e teologia , a deixar nesta altura minhas fastidiosas divagações . É de justiça que não esqueçamos o nosso simpático Urbano Solar . Pede-o a própria caridade . Além de excessivamente encanecido e débil , oprime-o neste momento a mais incurável das aflições para lhe não levarmos já nossos benéficos socorros . Podem os egoístas clamar que lá tem ele os filhos , que o aturem . Esses mesmos , declaro eu , em despeito da robustez da idade , mal podem com a própria consternação para que atentem no acabrunhado pai . E se não haja vista ao que sucedeu no curto espaço do meu tardio discurso . Nada mais espantoso . Ouviu-se , como fica dito , a detonação dum tiro . Estremeceram as vidraças , reboaram os ecos , e no interior do palácio recresceram os gritos . Os nossos gulosos interromperam assustados o ensosso banquete , em que o primeiro e único prato se compunha de carne de visconde , que deve ser mais estimada do que a de outro qualquer animal menos fidalgo , e presos , todos ao mesmo tempo , não sei de que terrível pressentimento , como por intervenção dalguma invisível corrente eléctrica , trocaram entre si ligeiras e apavoradas vistas , e voaram velozes para o lado em que recrudescia o ruído . Salvaram quatro a quatro os degraus das elegantes escadarias , que descem para os jardins , e só pararam no meio duma multidão de domésticos , que lacrimosos e dando pungentíssimos gritos se acercaram deles como pretendendo impedi-los de passarem adiante . -- Que é isto ? Que aconteceu ? perguntavam confundidos e impacientados . -- Desgraça ! -- Senhores , senhores ! -- Por Deus não queiram saber ! -- Vão-se , vão-se . Não é aqui o seu lugar . Tais são as baralhadas vozes , que regougam dos diferentes pontos do círculo humano , que os apertava . Urbano Solar compulsava já a realização de seus medonhos presságios , mas estava longe de suspeitar toda a enorme fealdade do acontecimento . -- Digam-me tudo , bradava ele . Quero saber tudo . Que foi ? Digam . Falem . Anselmo , continua voltando-se para um velho criado , tu , que nunca mentiste , tu , que nunca me desobedeceste , porque não respondes quando eu estou a perguntar ? ... -- Senhor ... E a vozearia continuava . -- Fala , Anselmo . -- A senhora||_D._Margarida D.|_D._Margarida Margarida|_D._Margarida ... -- Morreu ? -- Está morta ! -- Morta ! Adivinham-se os lábios que pronunciaram esta pungitiva palavra , e a acentuação dolorosa , de que vinha impregnada . Os dois mancebos , que por sua parte não tinham cessado de sondar a causa de tão grande alvoroço , mal a conheceram , abriram caminho , impelindo desvairados a multidão , tanto que lhes passou o atordoamento momentâneo do violento choque . Urbano seguiu-os precipitado com as faculdades em manifesta desordem . Era ao pé da magnólia que os esperava o funéreo quadro . D. João com os cabelos empastados , rotas e amarrotadas as vestes , repousava a face lívida e desfigurada nos joelhos do velho capelão do visconde de Aveleda , que se azafamava em estancar o sangue , que em borbotões lhe espirrava do peito . Ao lado jazia Margarida , submersa no sono da bem-aventurança , com a fronte despedaçada , pálida , mas sempre bela . Sobre ela caiu em desprendidos soluços o estonteado pai . -- D. João ! Também D. João ! ? exclama o mais novo dos irmãos , que em menos solene lugar denominámos peralta . -- Vive , responde o padre . Talvez seja ainda tempo de o salvarmos . Mandei a toda a pressa chamar um médico . -- Quem matou minha irmã ? pergunta então pela terceira vez cego de furor , o magistrado . -- Suicidou-se , diz ainda o capelão . -- Suicidou-se ! Porque seria ? -- Está aqui , designando o moribundo , quem pode explicá-lo . -- E esse ? Também se suicidou ? Suicida-se toda a gente ! ? ... Nesse instante descerraram-se as amortecidas pálpebras de D. João . Tremeram-lhe os lábios como num esforço para falar , até que fez ouvir algumas palavras soltas , precedidas de guturais e inarticulados sons . -- Veio ? murmurou enfim . -- O médico ? pergunta compadecido o padre . Há-de vir . Agora descanse que vamos levá-lo daqui . Ânimo ! -- Morre-se bem em qualquer parte , torna a débil voz do mancebo , enquanto à flor dos lábios lhe esvoaçava um sorriso cortante e irónico , como em resposta Ãs palavras intencionalmente animadoras do capelão . De que me pode servir o médico ? ... E ele não veio ? -- Ele ! Mas quem ? -- Quem ! ... o pai da infeliz . Tragam-mo , vão chamá-lo , tenho que pedir-lhe . Seguia o velho um lamentoso queixume , estreitando ao peito o cadáver da filha . Foi com muito custo que alcançaram separá-lo dela , e trazê-lo à presença do moribundo suplicante . Apenas D. João o encara , deixa transparecer uma indecifrável alegria . Assoma-lhe passageiro colorido Ãs faces , ilumina-se-lhe a fisionomia , e num esforço impossível consegue erguer a meio o corpo . Mas bem depressa , extenuado , volve à primeira posição com os extremos da boca levemente tingidos de avermelhada espuma . Todos se aglomeraram em roda , calados e comovidos , e sobretudo curiosos do que ia passar-se . -- Senhor||_Solar Solar|_Solar , consegue dizer por fim , o momento da minha tremenda viagem seria de incalculáveis agonias , se na despedida me não fosse dado implorar o perdão , não do mal que fiz , mas do mal que esta minha fraca e leviana cabeça empreendeu fazer-lhe . Confio que não há-de recusar-me a absolvição . Bem sabe quanto é pouco azada para enganosos ardis a hora do passamento . Eu confesso singelamente o meu crime . Adorei sua filha . Adorei-a com o desenfreado ímpeto de rapaz ocioso . Não teria recuado diante da violência , se me fosse necessária para a possuir . E já que a minha consciência o exige , vou dizer-lhe , a que ponto me levou um desvario do coração . Quando eu supunha a senhora||_D._Margarida D.|_D._Margarida Margarida|_D._Margarida , cedendo a posse de todas as suas graças , de toda a juvenil formusura aos caprichos suaves do visconde , perdido , febricitante , lacerado de mil diabólicos pensamentos , atrepei da magnólia ao peitoril daquela janela . Soou ao mesmo tempo um grito de agonia e de terror , que me fez vacilar , e senti como que o baque de um corpo no fundo dum abismo . Lá dentro o visconde ... Ai ! o visconde ... Fugi , rolando de ramo em ramo do cimo da magnólia , mais louco , mais perdido do que tinha entrado . Mal aventurei dois passos , tropecei num cadáver . Era Margarida . Ao clarão da lua vi que tinha despedaçado o crânio de encontro à aresta desse banco . Depois ... Sei só que me queimava o cérebro este sol escandecente , quando dei acordo de mim e me encontrei ao lado dela . Então , receoso de que se me conglobasse o sangue no coração , quis excitá-lo com uma bala ...