BIBLIOTHECA UNIVERSAL Dedicada ao visconde de Castilho N.°9 D.ANNA MARIA RIBEIRO DE SÁ MATHILDE ROMANCE ORIGINAL COM UM PROLOGO DE+O ILL.MO E EX.MO SR. M. Pinheiro Chagas LISBOA LUCAS & FILHO -- EDITORES Rua dos Calafates, 93 1874 A empresa reserva-se o direito de reproducção e traducção Quem não conhece , ao menos por tradição , a Varzea de Collares ? E delicioso aquelle sitio cheio de sombras e do frescura , como um idylio namorado . A agua corre alli , torcendo-se em graciosos meandros no seu leito todo bordado do flôres . As arvores dobrando-se do um para outro lado da corrente enlaçam os troncos amigos e a hera vem logo estreitar esta alliança , lançando-lhes por cima os seus abundantes festões . A luxuosa magnificencia da vegetação desenvolve-se á beira do limpido crystal com todo o esplendor , e as velhas arvores carregadas de hera veem já crescerem-lhe aos pés as tenras hastes das que hao de mais tarde substituil- as . As silvas , o alegra campo e mil outros arbustos gentis unem-se em fraternal abraço , e juntos lutam a ver qual ha de chegar mais longe com o seu verde manto . De quando em quando a agua , entrando mais pela terra , alarga um pouco e seu leito e um tronco d' arvore , já dobrado pelos annos , ou uma pedra musgosa vem embaraçar-lhe o caminho . Ao pé da repreza ha um espaço sombreado pelos ramos de formosos platanos e onde se reunem todas as pessoas que vem de Cintra e de Collares passar algum tempo no logar mais ameno de quantos ha pelos arredores d' esta villa . Ahi estavam ha bem poucos annos , sentadas nos bancos de pedra collocados á sombra das arvores , algumas pessoas e entre ellas duas , cuja historia talvez tenha algum interesse para quem deseja estudar o coração humano nas suas innumeraveis contradições . Tinham dado duas horas e era chegado o momento em que as elegantes de Cintra vem passeiar até á Varzea . N ' aquelle dia , fosse porque fosse , era pequena a concorrencia e apenas trez ou quatro familias tinham vindo para o favorito ponto de reunião . Só nos demoraremos a descrever as duas figuras mais importantes do grupo . Uma d' ellas era um homem de sessenta annos , alto e robusto , com uma d' essas physionomias em que se lê como n ' um livro aberto . São tão raras as caras assim ! Tinha as feições bem accentuadas , e , apezar das rugas que lhe cortavam a fronte larga , e dos cabellos brancos , que abundantes lhe emmolduravam nos anneis de prata as fontes pensadoras , conheciam-se-lhe ainda vestigios de uma belleza varonil , que os pczares e o tempo não tinham podido apagar de todo . A cabeça tinha-a elle um pouco inclinada para traz com um gesto cheio de naturalidade , nos olhos pretos e brilhantes luzia a intelligencia e a franqueza ; não usava barba alguma e a bocca desenhava-se-lhe graciosa , deixando perceber uma certa tendencia para a ironia fina , que , bem combinada , nem sempre prejudica a bondade ; o nariz era aquilino . Havia no olhar e no sorriso do homem que descrevemos uma expressão ao mesmo tempo suave e austera ; via-se bem que n ' aquella alma , atravez da polida condescendencia do homem bem educado , permanecia sempre inflexivel a firmeza do um caracter , onde o dever e a honra tinham o primeiro logar . Todos reconheciam a bondade deste homem , mas ao mesmo tempo todos temiam a muda reprovação dos seus olhos e dos seus labios levemente franzidos . Aquelle olhar e aquelle sorriso teriam força bastante para suster a mão do crime , se até o pensamento de o commetter podesse existir debaixo da sua influencia mysteriosa ! Os olhos assim vêem por força dentro d' alma , quando se fitam implacaveis n ' uma physionomia qualquer ; é por isto que diante d' elles parece que até ha medo de pensar . O homem de quem acabamos de esboçar o retrato , chamava-se Pedro da Silveira ; passeiava encostado á sua bengala , e só interrompia o passeio para vir de vez em quando parar um instante diante de uma menina , que sentada desfolhava uma rosa sobre o liso espelho das aguas , onde se perdia o seu olhar distraído . Esta menina era sobrinha de Pedro da Silveira e chamava-se Luiza . Teria pouco mais de dezoito annos e era bella ; não da belleza sensual e robusta d' essas formosas estatuas em que só a custo se divisa o espirito , mas do outra mais elevada em que as feições são apenas um diaphano véo , atravez do qual scintilla a formosura d' alma . Era formosa , formosissima até , mas Rubens não a saberia retratar ; só Raphael acharia nas suas paletas divinas o segredo de transportar para a tela toda a etherea expressão d' aquelle rosto angelico . Luiza era alta e esbelta ; o seu corpo , talvez excessivamente magro , tinha a nobre flexibilidade da verdadeira elegancia ; as suas mãos mostravam na alvura assetinada e nos dedos finos e bem torneados a fidalga delicadeza , que raras vezes engana ; o seu collo , meio inclinado para diante , trahia o habito da meditação e na sua tez pallida quasi nunca vinha a vivida côr da rosa despontar em meio da immaculada brancura das faces . As feições de Luiza pareciam abertas no marmore pelo apuradissimo cinzel d' algum seraphico esculptor ; a sua fronte , larga e admiravelmente bem modelada , tinha essa rara pureza que faz sonhar com a candura dos anjos , e as suas finas sobrancelhas descreviam a curva pensadora , que deixa adivinhar , logo á primeira vista , uma intelligencia superior . O nariz tinha-o levemente aquilino , e a bocca abria-se-lhe breve o rosada , como flor humedecida pelo orvalho da manhã . Os seus olhos oram negras , deste negro profundo como noite do cerração e ao mesmo tempo brilhante como o scintillar de uma purissima chamma . Eram olhos pretos com olhar azul , que são os mais raros e os mais bonitos de todos . N ' estes olhos ha crepitações , lagrimas , ternuras , mundos d' affecto , que nos outros é impossível descobrir . Só elles possuem o segredo da suprema fascinação , porque só elles teem esse avelludado adoravel , mixto , indescriptivel de timidez e de seducção , de suavidade e de orgulho , que dominam um momento , se n ' um volver empregam todo o magnetismo da sua irresistível belleza . Quando Luiza cerrava as palpebras e deixava cair sobre as faces pallidas a comprida franja das suas negras pestanas , não haveria rosto na Italia , que mais do que o seu fosse digno de inspirar o artista desejoso de traçar uma d' essas imagens da madona , em que todos á porfia tentam representar o verdadeiro typo da belleza feminina . Luiza tinha abundantes cabellos pretos o as largas tranças assetinadas enfeitavam-lhe com austera simplicidade a pequenina e airosa cabeça . Agora basta de retrato , que já vae longo . Imaginem os animos piedosos a belleza de um anjo e sonhem os profanos a de uma houri ; conseguirão d' esse modo formar idealmente uma imagem candida , vaporosa , seductora e languida como o ethereo vulto da innocencia , ou como a encantada personificação do amor . Tudo isso dará mais idéa da formosura de Luiza do que o poderão fazer todas as descripções traçadas pela minha prosaica penna . Luiza estava vestida do branco e sentada ao pé do parapeito fronteiro ao espaço occupado pelos formosos platanos . As vezes seu tio dizia-lhe uma ou duas phrases affectuosas , e ella respondia-lhe no tom meigo e submisso , que fica tão bom ás mulheres . Estavam alli algumas outras senhoras , mas Luiza sentara-se um pouco longe de todas o permanecia portanto quasi inteiramente estranha ás conversações , em que as suas visinhas iam gastando todo o sal attico e não attico dos seus espiritos , mais ou menos polidos . De vez em quando uma ou outra pergunta chegava aos ouvidos da donzella , mas esta , distraida , nem sempre respondia a tempo . O murmurio das vozes ia já caindo para um certo decrescendo , que é signal de estarem quasi exhaustos os assumptos e de começarem os bocejos a sua luta com o disfarce , quo a delicadeza exige a todos quantos se aborrecem em companhia . É esta uma das posições insupportaveis que a sociedade inventou , sob pretexto do divertimento . Aborrecer-se cada um na sua casa , só no seu quarto , é mau ; mas aborrocer-se n ' uma sala , n ' um passeio , ou n ' um logar qualquer em que muitas pessoas se reúnem com pretenções a passar agradavelmente um pouco d' esse tempo , que tão depressa foge sem que andem a correr atraz d' elle , -- é mais que mau , é pessimo . Estavam portanto as cousas n ' este lamentoso estado quando na estrada se viu appareceram ao longe , no meio de nuvens do pó , dois cavalleiros . Todas as cabecinhas femininas so ergueram e até os homens , que , na ociosidade pelo menos , são tão curiosos como as mulheres , até elles se voltaram para ver quem assim vinha caminho da Varzea . Iam-se os cavalleiros approximando e já se lhes divisava as feições , porque tinham chegado perto dos platanos . -- O de branco é o visconde de Lorval , disse alguem , abaixando instinctivamente o tom da voz , como que temendo que os recemchegados notassem o interesse com que estavam sendo observados . -- O de preto não conheço . Não me lembro de o ter visto por aqui . Parece estrangeiro . -- É verdade , parece estrangeiro , repetiu uma ingenua , dada a poeticas meditações ; tem cabello louro . Pedro da Silveira e Luiza assistiam silenciosos a toda esta scena . Os dois recemchegados apearam-se e vieram até á entrada da Varzea . Estavam alli havia instantes quando o visconde de Lorval deu com os olhos em Pedro da Silveira ; correu immediatamente para elle , e , comprimentando Luiza com um gesto um tanto pretencioso , agarrou nas duas mãos do velho . -- Oh ! v. ex.ª por aqui ; e eu que não tenho tido ha tanto tempo o gosto de o ver ! -- Ora , meu caro visconde , os rapazes da sua edade e do seu genio não padecem muito com a ausencia dos velhos , disse , sorrindo , Pedro da Silveira . -- Ahi está a injustiça com que nos tratam , a nós pobres rapazes , que não temos outro crime senão o de aproveitarmos o melhor possível estes dias de primavera , que Deus nos dá para folgar . -- Veja que se engana , attribuindo assim a Deus intentos , que Elle nunca teve -- Então o que ha de fazer a mocidade , que sente o fogo queimar-lhe as veias ? Le feu sacré de la jeunesse ! -- O que ha de fazer ? Ora essa ! Ha de empregar esse fogo no serviço de uma idéa , nobre , grande , generosa , em vez de o ir apagar todo no seio de mil desvarios , que não deixam após si mais do que os gelos de uma experiencia prematura e por isso mesmo fatal . E as pupillas do velho brilhavam com fulgor extraordinario emquanto assim falava . -- Ah ! v. ex.ª quer que sejamos todos gigantes , e não vê quanto nos custa já a sermos pygmeus ! Idéas nobres , grandes , generosas ! Que é delas ? Para que serviriam n ' este seculo do Dio del ' oro ? e o visconde de Lorval acabou a phrase cantarolando uns compassos da famosa aria do Fausto . -- Assim ó que a mocidade se perde . Ensinam-lhe a escarnecer de tudo , poem- lhe diante dos olhos o que os seculos têem venerado , e com meia duzia do sarcasmos mostram-lhe que devem deitar por terra essas estatuas , que tantos acharam sublimes e que elles agora tratam como idolos com pés de barro . -- Meu caro sr. , le monde marche , e é preciso ir com elle , se não queremos perder o fio d' este labyrintho , que se chama vida . Nunca poude comprehender os santos e os martyres . Para mim são esphinges peiores que a da fabula . São sublimidades que não sei como poderam caber alguma vez em carne humana . -- N ' essas respostas são todos mestres . Não lhes convinha a fé , inventaram a duvida . Feliz troca , pois não ! -- A proposito , tenho alli um amigo que pertence á cathegoria dos rapazes velhos . apresentaram-n* ' o ha dias n um baile . Parece-me um estouvado , que se fez misantropo , como certas mulheres se fazem beatas quando já não podem ser outra cousa . -- Mas o seu amigo parece-me muito novo , e portanto não póde estar ainda n ' esses casos extremos , em que qualquer pessoa se deixa cair seja onde for , por não poder ficar onde está bem . -- Eu , a falar a verdade , declaro que não entendo nada quando é preciso procurar os motivos de certas aberrações moraes . V. ex.ª gosta d' esses estudos , e se dá licença vou apresentar-lhe o meu amigo . -- Quando quizer . Parece-me estrangeiro , disse Pedro da Silveira . -- É francez . Chegou ha oito dias de Paris , respondeu o visconde de Lorval , e partiu com todo o donaire da sua elegancia requintada . -- Francez ... repetiu como um echo Pedro da Silveira . Daí a instantes voltava o mancebo , trazendo pelo braço o companheiro do passeio . -- Apresento-lhe o sr.||_Henrique_d'Églemont Henrique|_Henrique_d'Églemont d'Églemont|_Henrique_d'Églemont , representante de um dos mais bellos nomes da aristocracia franceza . Meu caro Henrique , está vendo um dos homens mais respeitaveis de Portugal , o sr.||_Pedro_da_Silveira Pedro|_Pedro_da_Silveira da|_Pedro_da_Silveira Silveira|_Pedro_da_Silveira . -- Sr. d'Égle ... mont , disse lentamente o velho . Os nomes estrangeiros não foram feitos para eu os pronunciar . Os francezes principalmente passam tormentos commigo . Nunca poude falar francez . -- Ora ahi temos uma difficuldade que o meu caro Henrique resolve num instante . C ' est une trouvaille . Imagino que o meu amigo é um francez que fala perfeitamento portuguez . -- Fala perfeitamente portuguez , repetiu sempre com o mesmo vagar Pedro da Silveira , que , desde que o visconde lhe falara no amigo estrangeiro , tinha ficado como que perdido n ' uma recordação , sem duvida dolorosa , porque nas suas faces desmaiadas morrera de todo o sorriso e nos seus olhos fitos em Luiza amortecera o brilho habitual . -- O meu amigo exaggera . Falo o portuguez como o pódo falar um parisiense , que vem agora pela primeira vez a Portugal . Henrique d'Églemont disso estas palavras com o tom despretencioso de quem aprendeu a falar uma lingua no trato familiar . Pronunciou-as com um leve accento estrangeiro , que , sem lhes alterar a pureza , lhes dava um certo cunho gracioso . -- Oh ! vejo que o visconde não exaggera . Se não recciasse ser indiscreto perguntava-lhe como aprendeu o portuguez . Desculpe a curiosidade de velho . Aprendi-o , respondeu Henrique um pouco commovido , na minha infancia ... Tive um bom mestre , que falava muito bem esta lingua e a quem devo a minha primeira educação . -- Era então portuguez ? -- Era . -- Como se chamava ? -- Nunca soube o seu nome portuguez . Usava um francez . -- É extraordinario ! observou Pedro da Silveira , e , voltando-se para d' Églemont , accrescentou : -- Ha de gostar de ir dar um passeio pela Varzea . Vamos o conversaremos ao mesmo tempo , se querem . Vem com+nós , Luiza . Tu que és tão admiradora das bellezas d' este sitio , deves acompanhar-nos quando tencionamos conquistar-lhes mais um voto do louvor . Luiza levantou-se e em breves palavras ficaram concluidas as cerimonias da apresentação . O visconde do Lorval foi o primeiro quo saltou para o bote e offereceu a mão a Luiza que sobre ella pousou levemente a sua . A donzella foi sentar-se ao leme , seu logar favorito ; o tio e Henrique sentaram-se-lhe ao lado e o visconde empunhou os dois remos , sem querer ceder um d' elles ao amigo . O visconde de Lorval era um elegante do primeira ordem , e parece-me que muito pouco mais . Não tinha feia figura e o seu rosto poderia até chamar-se formoso , se não fosse a nullidade intellectual , que a natureza , ajudada pela educação , tinha gravado nas suas feições , bellas , mas frias , porque raras vezes as aquecia a chamma do pensamento . O visconde julgava-se muito intelligente e muito instruido . Era um d' estes papagaios da civilisação , que aprendem nas modernas encyclopedias tanto quanto é preciso para estar pouco mais ou menos á altura de todas as conversações , que se podem travar na sociedade . Aprendem do cór meia duzia de nomes proprios , uma certa quantidade de bons pensamentos , e algumas definições scientificas , que sabem empregar menos mal . Ordinariamente os sabios d' esta tempera são bastante habeis para se retirarem a tempo quando o terreno começa a ser escabroso , e quando das generalidades se passa a questões mais positivas , em que só a verdadeira sciencia não faz naufragio . O peior é que o apparato falso com que se apresentam engana muito , e estes eruditos improvisados passam ás vozes por homens muito instruidos . O visconde de Lorval tinha tambem a pretenção de falar muito bem francez . Despresava profundamente a lingua materna , e para elle uma pessoa que não falasse francez e que não tivesse maneiras do parisiense , era pouco mais de um aborto . Só Pedro de a Silveira escapava ao anathema geral . O visconde tinha por este homem , amigo antigo da sua familia , uma respeitosa deferencia , que destoava da sua indole leviana . Poucos caracteras ha que não tenham assim uma feição mysteriosa , que resiste a todo o estudo do observador . São cousas que se vêem , mas qne se não explicam . Henrique d'Églemont , apezar do parisiense , não tinha o dandysmo affectado do seu amigo . Nas suas maneiras adivinhava-se o homem de extremada educação , mas a delicadeza não excluia n ' elle um certo aspecto viril , notavel principalmente na expressào do seu rosto , onde o sello da divindade se tinha profundamente gravado . Henrique era alto , tinha cabello louro , olhos azues e feições bem accentuadas . Os cabellos , naturalmente annelados , caiam-lhe&lhes+o para traz , descobrindo-lhe a fronte vasta , onde , apezar da extrema mocidade , a meditação tinha já deixado signaes indeleveis . As sobrancelhas , finas e bem traçadas , quasi que se uniam , formando uma só linha . Os olhos eram de uns que têem tão escuro azul , que muitas vezes igualam na firmeza os negros . O brilho destes olhos tinham um não sei quê do intimo , que resumia toda a força de um caracter ardente mas reservado , desde que uma a uma vira as suas expansões escarnecidas no meio da frieza convencional das relações mundanas , que , em resposta aos seus enthusiasmos de rapaz , lhe tinham lançado ao rosto os fructos de uma experiencia desanimadora . D ' estas pungentes lições conservava Henrique signaes no franzir dolorosamente ironico dos labios sombreados por um gracioso e assetinado bigode . O seu rosto , habitual mente melancholico e excessivamente pallido , era sempre interessante ; mas quando falava , a animação fulgurava lhe nos olhos , illuminavam-se-lhe as feições com um reflexo extraordinario , e era preciso ter gosto muito difficil para não achar formosissima aquella cabeça de poeta , nobremente erguida por um irresistivel impulso de verdadeira superioridade . Luiza era uma menina a quem amigas e conhecidas chamavam incomprehensivel . Davam-lhe este nome gracejando , mas não conseguiam nem do leve mudar-lhe o genio . Criada sem mãe , Luiza ignorava a doçura dessas primeiras caricias , que ternamente suavisam os nossos primeiros passos na vida o cuja recordação é em toda ella um balsamo para o espirito enfraquecido pela dôr . Poucos dias depois do nascimento do Luiza , morrera sua mãe . Seu pae , tinha morrido tres mezes antes , victima do um prejuizo fatal . A orphã ficou pois entregue a uma avó , pobre senhora , que bem depressa acabou a carreira amargurada , deixando a Pedro da Silveira todo o encargo da educação da sobrinha . Luiza , saindo assim de um berço tão envolvido em lutos , devia conservar toda a vida o cunho de tristeza , cuja impressão foi a primeira que recebeu , logo ao abrir os olhos á luz do dia . Criança ainda , passava horas inteiras meditando , e muitas vezes a foram achar sósinha , ajoelhada ante uma imagem da Virgem e banhando de lagrimas as mãos convulsamente cruzadas debaixo do rosto angustiado . Pedro da Silveira ralhava-lhe então , mas a sobrinha tinha taes meiguices na voz e nos gestos que o tio esquecia bem depressa a reprehensão , e ia com ella passeiar ao campo , colher flôres ao jardim , ou sentar-se no meio de um pomar , onde a laranjeira , espalhando o perfume das suas floridas hastes , lhes formava docel , com os troncos carregados de flores de neve , abertos em leito do esmeraldas . Foi no meio d' essas sombras perfumadas , e debaixo de viçosos caramanchões que Luiza começou a escutar attenta , debruçada sobre os joelhos de seu tio , primeiro os contos phantasticos da infancia , e depois as palavras cheias de eloquencia com que Pedro da Silveira lhe ensinava a decifrar em cada uma das bellezas que os rodeavam o nome d' Aquelle , ao pé de quem tudo é átomo , porque só elle é immenso . Foi tambem alli que a orphã aprendeu depois a perceber nos versos , que a ávida memoria decorava , o encanto mysterioso da harmonia e a feição sublime que a poesia empresta a todas as cousas , sobre que por algum tempo estende o reflexo dourado das suas diaphanas azas . Luiza tinha dezoito annos e vivera ora no campo , ora em Lisboa , sempre cercada do luxo elegante , que só o bom gosto unido á riqueza sabe crear e manter . O espirito da orphã , desenvolvendo-se n ' essa atmosphera suave e no meio das relações mundanas , tinha conservado o cunho um pouco triste da sua individualidade . Não se julgue entretanto que Luiza tinha o sentimentalismo affectado das romanticas exaggeradas , que estudam ao espelho um caracter , quando pensam que lhes está bem . A tristeza da sobrinha de Pedro da Silveira não tinha essa origem ridicula . Trouxera-a do berço com a elevação do caracter , com o coração feito para comprehender todos os nobres sentimentos , todas as sublimes virtudes , que o mundo tão a miude chama loucuras . Almas e corações d' estes teem de confranger-se muitas vezes debaixo do tormentos horriveis . Luiza tinha apenas visto dos bastidores o palco fatal , em que a sociedade vae representando todos os dias a sua eterna comedia . Mas essa experiencia tão curta , que para outras seria indifterente , tornara-se para a orphã um thema inexhaurivel de reflexões dolorosas . Acostumara-se a pensar nas longas horas da solidão , e o seu espirito , exaltado pela applicação demasiada , não lhe deixara um só instante de tréguas . Como todas as imaginações poeticas , Luiza tinha formado para si um mundo d' archanjos onde ella habitava nos momentos do extasi em que sentia a torra como que fugir-lhe debaixo dos pés . Esse mundo era em tudo differente do outro cm que a realidade a prendia . Luiza , quando se via cair das suas tão queridas alturas , sentia um frio mortal percorrer-lhe as veias . A pureza immaculada do seu caracter repugnava a maior parte dos meios que o mundo inventou para manter a tão desejada harmonia social . Custava-lhe encarar as mascaras permanentes , debaixo das quaes cila quasi adivinhava as contorsões horrendas do rosto verdadeiro . Entretanto Luiza , quando apparecia n ' um baile ou n ' outra festa qualquer , não se apresentava com o aspecto melancholico , que se poderia receiar , se , a par de um prematuro desalento , ella não tivesse no espirito a delicadeza de sensitiva , que faz com que as almas elevadas fechem no seio o segredo das suas mais pungentes reflexões , temendo velas servir de alimento á voracidade insaciavel dos profanadores de tudo quanto é santo , e elles chamam ridiculo . Quem visse Luiza no meio da animação das relações mundanas , nao adivinharia o abysmo que a sua imaginação tinha eavado entre ella e a alegria ficticia dos entes que lhe tumultuavam em torno . E em verdade a donzella tão entregue parecia aos encantos da sociedade , que de muita desculpa era digno quem lhe não percebesse no rosto signaes de desagrado . Esta animação era algumas vezes sincera , porque não ha tristezas nem reflexões que envelheçam deveras a extrema mocidade ; outras vozes era exigencia do seu caracter ativo . Luiza depois das festas , em que o riso lhe tinha volteado quasi incessantemente nos labios , passava muitas vezes horas immersa na profunda melancolia , que já na infancia era um dos distinctivos do seu caracter . A donzella , até nos momentos de mais sincero contentamento , sentia no fundo d' alma a amargura d' ignotas lagrimas . Parecia-lhe que o seu ser estava dividido em duas partes bem distinctas ; emquanto uma d' ellas provava o calix perfumado dos prazeres mundanos , a outra carpia-so sósinha no seu sacrario intimo . Tal era Luiza no dia em que a vimos saltar ligeira para o bote e guial- o com mão experiente pelos meandros descriptos pela agua em meio do floridos campos . Henrique d'Eglemont tinha vinte e dois annos , muita poesia no coração e muita descrença na cabeça . Pertencia ao numero dos que se fiam na experiencia dos homens , que escreveram os livros predilectos da moderna geração . Esta confiança perigosa tinha-lhe feito tomar , como verdades , sophismas , que podem entreter o espirito gasto de um autor celebre , mas que não podem senão confundir cerebros formados para receber em cheio a luz da verdadeira inspiração , e nunca os pesadelos cançados de intelligencias envoltos nos nevoeiros de um desalento de convenção . Henrique tinha portanto aprendido o nada de todos os sentimentos , antes de ter tempo para os abrigar no peito . A gargalhada do scepticismo , saindo a miudo dos seus livros queridos , tinha chegado a ser para Henrique um som natural . A força do a ouvir , já não percebia como ella desafina horrivelmente no meio do cantico harmonioso , que incessantemente se eleva do seio da natureza . Taes livros calumniam a humanidade , porque seus autores nunca a estudaram senão atravez das suas paixões sem limites . Deixem á mocidade as suas crenças , os seus enthusiasmos , e até as suas santas loucuras . Para lhe pouparem desenganos , offerecem-lhe o scepticismo ; é como se para lhe evitar pequenas quedas a precipitassem n ' um abysmo insondavel . Apoz as desillusões que a humanidade deixa no coração de quem longo tempo a contemplou , ainda póde haver logar para a indulgencia , e para a aspiração sublime , que , fazendo sair o homem da sua acanhada esphera , o eleva pelo sentimento até Deus ; mas apoz longos annos de secpticismo , deliberado e voluntario , não póde haver senão gelos , indifferença e morte na alma , que , renunciando á fé , cortou para sempre o laço que a prendia á sua immaculada origem . Felizmente Henrique era poeta , e , para o scepticismo lançar fundas raizes no seu coração , era preciso que d' alli expulsasse primeiro a fada dos eternos enthusiasmos , que n ' elle se tinha vindo teimosamente aninhar . Descrer por experiencia alheia , é mais difficil do que se pensa . Vae tudo bem emquanto se não passa da theoria , mas quando se chega á pratica mudam immediatamonte os horizontes . Onde o coração não está morto , ha sempre logar para uma aurora redemptora . A conversação ia animada no bote . Depois dos primeiros momentos de silencio , todos começaram a falar , quasi como amigos que se tivessem visto na vespera . -- Demora-se algum tempo em Cintra ? perguntou Pedro da Silveira a d' Églemont . -- Tenciono demorar-me , tanto quanto puder . -- Meu bom amigo , disse o visconde de Lorval , saiba que o sr. d' Églemont veiu a Lisboa unicamente com o intento de seguir logo viagem para a ilha da Madeira . Agora viu Cintra , e já não ha quem o faça partir . -- Ha de tambem gostar da Madeira , que é toda um viçoso jardim . -- Depois dos medicos lhe terem dito que só o clima da nossa ilha poderia restabelecer-lhe a saude , não sei como ainda póde demorar-se antes de ir procurar aquella panacêa bemdita , disse o visconde . -- Está doente , e foge do remedio ! observou Luiza . -- Não fujo , minha senhora . Aproveito o que se me apresentou primeiro . Custa-me ir mais longe quando me sinto tão bem aqui . -- Ora , isto são projectos de touriste que mudam de um instante para o outro . Este então que , segundo me dizem , é dos mais infatigaveis . Creio que tem passado pelos principaes paizes da Europa , como borboleta por meio de flôres . Só em Cintra lhe aprouve suspender a peregrinação . Á tout seigneur tout honeur , observou o elegante Lorval . -- Esperava que me desse noticia de eu já ter feito uma viagem á roda do globo . Tenho viajado um pouco , mas não tanto como lhe apraz dizer . -- Nada de modestia . É cousa que fica pessimamente a um parisiense , atalhou rindo o visconde . -- O nosso caro Lorval é sempre assim . Não quer ouvir a verdade , sob pretexto de que fica mal . -- Vamos , sr. d' Églemont , vejo que elle tem razão quando o obriga a confessar as suas predilecções . Quem é tão reservado , merece que lhe revelem os segredos , disse Pedro da Silveira com o seu sorriso de ineffavel bondade . -- Olhe que tambem é avareza , privar os outros de ouvir o que lhes póde dar satisfação , disse Luiza . -- Falando das minhas viagens arrisco-me a ser muito massador , e o que eu posso dizer é tão pouco interessante que prefiro parecer avarento , porque essa accusação ouço-a com a consciencia tranquilla . Todos nós gostamos do papel de victimas ... quando não passa de representação , já se sabe . -- Minha senhora , não faça caso d' aquellas desculpas . É introducção obrigada . D ' aqui a pouco começam a chover descripções . -- Não fale assim ; olhe que póde estragar tudo , disse a meia voz Pedro da Silveira , interrompendo o visconde . -- É verdade , não sei como v. ex.ª se não tem resolvido a ir dar um passeio pela Europa com sua sobrinha . Os homens mais sabios da antiguidade tinham em grande apreço as viagens . Os gregos e os romanos julgavam-se muito pouco emquanto não saiam da sua terra , disse o sabio Lorval . -- Um passeio pela Europa para me engrandecer a meus proprios olhos , parece-mo inutil , porque não só não conseguiria tal resultado , mas até me parece puerilidade desejal- o , respondeu Pedro da Silveira . -- Pois sim ; ainda que o dispense como instrucção , devia aprovoital- o como divertimento . Na sua situação não ir ao menos ver Paris , é realmente indesculpavel , disse o visconde , inclinando a cabeça para traz o pondo os olhos em alvo , emquanto falava do seu querido idolo , que só conhecia de nome . -- Esse indesculpavel não está mau , mas apezar d' isso tenciono morrer sem ir a Paris . Tem muitas saudades da sua terra , sr. d' Églemont ? -- Não sou dos que mais soffrem de nostalgia ; quando se vêem fóra de Paris . -- Não se parece com os antigos egypcios , pelo que vejo , disse o visconde . -- Vê bem , meu caro . Entretanto não costumo ir buscar tão longe os meus originaes . -- Esteve em Londres ? -- Estive algum tempo e percorri depois quasi todos os tres reinos unidos . -- Então viu os lagos e as montanhas da Escocia , disse Luiza , que , sem o parecer , seguia attenta a conversação . -- Vi os lagos e as montanhas tão queridas de Walter Scott . O tempo em que alli estive , passou como um sonho para mim . Vivi-o cercado das formosas creações do poeta . Parecia-me às vezes que escutava em cada gota d' agua e que via em cada pedra o segredo das suas inspirações . -- São muito melancolicas aquellas paisagens , não é assim ? perguntou ainda Luiza . -- Têem uma agreste tristeza que nos domina . Contrastam perfeitamente com as risonhas campinas da Inglaterra . Offerecem- nos estas vistas de idyllio encantadoras na sua simplicidade caseira . -- Oh ! os idyllios ! Foram os deuses da mocidade do meu tempo . Agora riem-se todos das ingenuidades pastoris . O que tem graça é a familia Benoiton e companhia , disse Pedro da Silveira com a sua parcialidade de velho . -- A familia Benoiton não tem em Lisboa à propos nenhum . Em Paris é que foi verdadeiramente uma peça palpitante de actualidade , observou Lorval . -- Palpitante de actualidade é irmos nós parar ás silvas , se não toma sentido nos remos , disso Luiza em tom de gracejo . -- Peço mil vezes perdão a v. ex.ª , mas uma distracção tem desculpa , respondeu o visconde , corando um pouco e entoando para disfarce os primeiros compassos da formosissima barcarola das Vesperas Sicilianas . -- Oh ! a Italia ; murmurou d' Églemont , estremecendo involuntariamente ao ouvir aquelles sons , que lhe recordavam a terra escolhida das artes . -- A Italia é que eu talvez ainda vá um dia . Desejara que Luiza visse Roma , Napoles e Veneza . -- Tem razão . Para a alma , não ha nada como a Italia . Todos os paizes têem bellezas , mas assim reunidas nenhum as possue . E magnifica a serie de quados , que se offerecem alli á nossa imaginação . Roma com os seus monumentos de epocas tão distinctas , com o Vaticano e o Colyseu , com S. Pedro e o Capitolio ; Milão com as suas festas o luxo ; Veneza com as suas recordações seductoras ; Florença com as suas galerias e as memorias das suas guerras ; Napoles com os seus vulcões e o seu povo tão indolente como artista ; tudo isto aquecido pelo sol brilhante daquele paiz de maravilhas e " debaixo do seu esplendido céo são cousas que , uma vez vistas , nunca mais esquecem a quem lhes soube sentir a irresistivel belleza . -- Estudou muito a Italia , não é verdade ? Enthusiasmou-se por ella ? disse Luiza . -- Sim , minha senhora ; estudei-a com toda a devoção da minha alma . Quero-lhe como á minha mais intima crença , como á minha mais cara affeição . -- Bem se vê que é um poeta que está falando , e de mais a mais um poeta moço , disse Pedro da Silveira . -- Poeta ! Quem não é poeta quando pensa na Italia depois de a ter visto e de a ter amado ? ! -- Gosto d' isso . Não imagina o prazer que sinto ao ouvir-lhe esses enthusiasmos tão de rapaz . São raros agora , acudiu ainda o tio de Luiza . -- Eu tambem gosto de o ouvir falar assim , meu caro d' Églemont . E a primeira vez que tal me acontece , desde que tenho a honra e a satisfação de o conhecer . Dou-lhe os parabens . Vejo que o seu spleen não é incuravel , disse o visconde deixando cair dos olhos a luneta , e esfregando os como quem desconfia da propria vista . -- É intermittente , meu caro Lorval . Depois as recaidas é que são de temer , respondeu Henrique , em cuja physionomia começou outra vez a desenhar-se a expressão de tristeza um pouco ironica , que lhe era habitual . -- Ora esqueça-se das recaídas e verá como ellas desapparecem . As rugas que os annos não fizeram , nunca sao tão fundas que não as possa apagar um sorriso do que julgamos ventura . Os gelos postiços derretem-se n ' um nistante , quando menos se espera , e na sua edade não ha outros . Desculpe a franqueza , que é uma das regalias dos annos e da experiencia , concluiu Pedro da Silveira , fitando em Henrique os olhos brilhantes , cuja expressão tao bem se casava com o sorrir dos seus labios finos e intelligentes . N ' isto tocaram em terra e desembarcaram todos , ao som das queixas do visconde , que se lastimava ao ver o estado em que os remos lhe tinham deixado as mãos . Depois partiram pela estrada . Os dois mancebos foram até ao logar em que a estrada da Varzea se liga á que vae para Cintra . Alli despediram-se do Pedro da Silveira e de Luiza com uma certa cordialidade , que só no campo existe . Todos sabem como no campo as relações são fáceis , e como uma hora de conversação ao ar livre , debaixo de copadas sombras , predispõe melhor o animo para a mutua sympathia do que mezes e até annos de trato assiduo no meio das quatro paredes de uma sala . Henrique d'Églemont foi até Cintra conversando e rindo ; o visconde maravilhado não sabia a que attribuir a mudança do taciturno companheiro , transformado repentinamente n ' um ouvinte amavel e attencioso . É que o visconde , apezar de saber muitas cousas , ignorava quasi completamente essa sciencia das sciencias , que se funda no estudo do coração humano . Para elle o homem era uma creatura que vive , copiando e repetindo ; e não um ente , que pensa e sente . O visconde não percebia que Henrique o escutava com tanta attenção , porque elle falava de uma mulher formosa como poucas , e cujo aspecto , todo cheio de gracioso magnetismo , ia arrancar sympathia ao coração de quantos lhe sentiam o suave influxo . Julio de Lorval conhecia Luiza quasi desde a infancia , e , cedendo ao prazer de ser escutado , nem sequer suspeitou a diplomacia do amigo , que nunca deixava passar a conversação do assumpto que o interessava , fazendo para o sustentar algumas perguntas nos momentos em que via perigo de transição . O viscondo deixava-se levar por este innocente artificio , e chegaram a Cintra , falando sempre da sobrinha de Pedro da Silveira . Alli o visconde encontrou alguns amigos com quem -- Églemont o deixou , depois de lhe ter apertado a mão com uma effusão , que foi para Lorval mais um incidente inesperado d' aquelle dia de surprezas . O coração de Luiza até aos dezoito annos não tinha sentido senão uma affeição profunda e uma saudade não menos intensa . Pertencia a primeira a seu tio e a segunda ia prender as raizes no tumulo de seus paes . Não queremos dizer com isto que a donzella não pensava no amor : todas as mulheres pensam n ' elle , mesmo as mais ingenuas , e estas talvez ainda mais que as outras . Só affirmamos que Luiza até então ainda não tinha baixado os olhos ante um olhar ardente o apaixonado , que lhe estivesse revelando amor ; ainda não conhecia a commoção que a voz adorada do homem a quem se ama leva até ao intimo d' alma . Como donzella eminentemente interessante pela formosura , pelo espirito e até pela riqueza ( essa grande conquistadora de corações ) , Luiza tinha ouvido no intervallo de uma quadrilha , ou no meio de uma walsa , algumas dessas declarações , que são já como que o acompanhamento obrigado da musica , da luz e das flôres , que , unidas , formam a atmosphera enebriante do baile . Essas declarações , ligeiras como o fumo e mais inconsequentes do que elle , porque nem sequer provam a existencia de uma faisca , teem levado a vigilia ás palpebras formosas de muitas meninas romanticas ; para Luiza eram apenas palavras , a que nenhum sentido se ligava . Os homens que lhe falavam de amor , estendendo-lhe a mao para a fazerem passeiar qualquer figura de uma contradança , pareciam-lhe automatos aperfeiçoados , a quem obrigavam a pronunciar umas formulas que o uso tornou sacramentaes em certas circumstancias e por isso mesmo completamente insignificantes . A sua mão nunca tremera sobre as luvas apertadas dos seus elegantes pares , e o seu rosto tranquillo nunca desmentira as phrases indifferentes com que punha remate a todas essas a afeições de instantes , que , mais infelizes ainda do que a rosa do poeta , nascem e morrem no espaço de uma dança . Mas ha para todos um momento em que o coração acordando deita por terra as frias reflexões do espirito . N ' esse momento ergue-se alguma coisa dentro do peito , que previne a razão do que o seu dominio está , se não findo , pelo menos suspenso . As conveniencias , o impossivel , ou o orgulho podem ainda então esconder o amor aos olhos indifferentes dos profanos ; mas assim mesmo apertado no coração , quando ninguem o veja , vê-o quem o sente ; escondido às vezes para todos , só para si mesmo não póde nunca ser mysterioso . No dia seguinte ao da apparição dos dois mancebos começava Luiza com a consciencia um debate inteiramente novo para ambas . Logo de manhã foi a donzella , como era seu costume , passeiar ao jardim , mas na sua attitue pausada e meditativa havia uma alteração , apenas sensivel á vista despreoccupada . Por momentos as feições animadas pareciam trair uma sensação intermediaria entre o prazer e a melancolia , mas pouco depois um leve signal do impaciencia dissipava os sonhos fugitivos , e lá vinha outra vez a nuvem negra pousar na fronte da donzella . Estas transições repetiram-se muitas vezes , até que Luiza , deixando cair algumas flôres que apertava nas mãos , disse : -- Que loucura , meu Deus , que loucura ! Luiza dizia isto com toda a sinceridade do seu coração , porque deveras não sabia dar outro nome ao quo desde a vespera a perturbava tão extraordinariamente . Dantes nos seus sonhos apparecia um vulto de homem , mas era indefinido , mysterioso , fracamente esboçado . Agora esse vulto apresentava-se com os gestos , o porto e as feições de Henrique d'Églemont . Luiza , a indifferente Luiza , que esquecia tão depressa todas as homenagens das salas , lembrava-se agora até da mais leve inflexão de voz com que o estrangeiro lhe tinha falado , e das suas palavras nem uma só deixava de vir echoar-lhe na memoria . A donzella julgava loucura o desvio da sua imaginação , que desde a vespera lhe não recordava senão um homem , a quem tinha visto uma só vez e a quem ella pensava ser de todo indifferente , porque , nas suas recapitulações do que se tinha passado , não descobria no procedimento escrupulosamente delicado de Henrique d'Églemont cousa alguma que podesso trair uma d' essas sympathias subitas , que interessam pela rara espontaneidade a pessoa que as inspira . Tem grande influencia na vida das donzellas o momento em que ellas julgam encontrar o seu ideal no homem que melhor soube impressional-as . Ás vezes o ideal phantastico não se parece nada com o ideal positivo , mas a imaginação , de accordo com o sentimento , combina tudo , o não ha milagres de que não sejam capazes estes bemaventurados thaumaturgos . Não acontecia outro tanto com Luiza . A scismadora menina admirava-se do ver como Henrique era similhante ao idolo dos seus mais intimos devaneios , e a sua alma enchia-se de espanto ao ver como esta similhança a preoccupava , ao ponto de lhe parecer que algum indissoluvel laço a prendia áquelle francez , que ella ainda ha dois dias não tinha visto , mas cuja imagem lhe dormia ha annos na phantasia . Pedro da Silveira veio buscar a sobrinha ao jardim , e , sem lhe notar a alteração de espirito , foi-lhe falando de um passeio que deviam dar n ' esse dia . -- Mas talvez gostes mais de ir á Varzea , disse elle , percebendo a frieza com que Luiza lhe escutava os planos . -- Oh meu tio , iremos onde quizer . E que hoje não me sinto com disposição para sair . -- Estas doente , filha ? disse elle com desassocegado aspecto . -- Creio que não , socegue , mas deixe-me hoje ficar em casa . -- Não ; deves sair sempre um pouco . Iremos só até á Varzea , onde encontrarás as tuas amigas . É perto , e bem sabes como precisas de distracção . -- Pois sim , meu tio , disse Luiza com leve sobresalto de alegria , que a si propria quizera esconder , tão desarrazoado o julgava . -- A proposito da Varzea , tenho-me lembrado de quem hontem lá vimos de novo . Se vir hoje outra vez o visconde , hei de perguntar-lhe porque estando por aqui , nos não vem visitar . Aquelle rapaz tem cada vez mais desenvolvida a bossa do estrangeirismo . Agora de mais a mais não dispensa a companhia de um amigo francez , sem calembourg , já se sabe . -- Meu tio não perdoa nada aos francezes , respondeu Luiza , fazendo um esforço para sorrir . -- Perdoar , filha ! Na minha edade perdoa-se tudo ... Este tambem não tem culpa ... E sympathico até ... Emquanto lhe falava , parece-me que cheguei a esquecer-me da prevenção com que vejo todos os seus compatriotas . -- Assim me pareceu tambem , e admirei-me de ver como lhe falava , disse Luiza . -- Não lhe fiz senão justiça . Como os annos gastam tudo , meu Deus ! murmurou Pedro da Silveira , como que perdido nas mesmas dolorosas recordações , a que o vimos já uma vez entregue . Eram frequentes estas allusões ao passado , e Luiza , sem as estranhar , foi levando pouco a pouco a conversação para assumpto que menos as despertasse . Naquelle dia já o visconde de Lorval o Henrique d Églemont estavam na Varzea , quando Pedro da Silveira alli chegou com a sobrinha . Os dois mancebos vieram comprimental-os e de então em diante nem um só dia se passou sem que elles se reunissem ao circulo escolhido de que D. Luiza de Menezes e seu tio eram o centro . Na Varzea , nas formosas quintas de Collares e nos pitorescos arrabaldes d' esta viçosa villa , era certo ver o visconde e o amigo tomarem parte nos passeios dirigidos pelo sempre amavel Pedro da Silveira . Assim Henrique d'Églemont e Luiza viam-se todos os dias . Era portanto difficil para a donzella fugir ás preoccupações com que a vimos debater-se sem lhes poder vencer a influencia dominadora . Entretanto Henrique não lhe falava d' amor e nem sequer parecia querer dar-lhe a perceber esse sentimento . Se falando com ella deixava às vezes adivinhar a sua bella alma de poeta , via se que logo depois uma amarga reflexão vinha outra vez trazer-lhe ás faces e aos labios o tom e o sorriso da ironica frieza . Luiza quasi que tremia quando às vezes elle recitava alguns versos dos poetas com quem mais tinha aprendido o seu scepticismo sem experiencia . Henrique dizia esses versos com uma convicção tanto mais digna de lastima , quanto mais sincera elle a julgava . Mas pouco a pouco a estes versos seguiram-se outros muito differentes ; de vez em quando ouviam-n* ' o repetir algumas estrophes de Victor Hugo , em que a idéa de Deus apparece no incio dos sublimes accordes da lyra grandiosa do poeta gigante ; depois até os meigos hymnos de Lamartine vieram a ser repetidos pelo pallido d' Églemont , e uma tarde emquanto Luiza trabalhava , o moço francez leu-lhe algumas das queixas maviosissimas que o poeta de Milly exhala , no soluçar d' alma que incessante resoa nos seus carmes inspirados . Todas estas cousas com o correr do tempo não escaparam a Lorval . O que o visconde não podia perceber era a ingenuidade com que Henrique ia assim mudando as inclinações do seu espirito . D ' Églemont conhecia perfeitamente que amava Luiza com um d' estes amores , que , mesmo mortos pelo tempo e pela desgraça , deixam para sempre no coração de quem os sentiu o sello indelevel de um sentimento , que de todo os dominou . Henrique era um dos poucos entes que se consubstanciam , para assim dizer , num affecto unico quando uma vez chegam a amar . Estes corações , quando se dão assim , querem antes ficar ignorados do que succumbir ante o desengano ou o esquecimento . Foi por isto que , vendo Luiza todos os dias , passou dois mezes sem lhe revelar , nem por uma palavra , nem por um olhar o ardente amor que ella lhe inspirara . Escondia-se a miudo para a ver melhor , para a poder contemplar na atmosphera luminosa de que o extasi da sua alma a cercava . Luiza , por um instincto privativo das mulheres , percebia tudo atravez da extrema reserva do mancebo . Havia momentos em que tinha toda a certeza de ser amada e então sentia-se feliz como só em sonhos o fôra , e parecia-lhe que umas azas niveas , descendo dos cêos , lhe pousavam nos hombros e a elevavam toda resplandecente de luz para a etherea vastidão do espaço , onde lhe parecia divisar o vulto de Henrique , arrebatado como ella para longe da terra . São bellos estes instantes , que separam o amor que ainda se esconde do amor que já se confessa . Luiza gozava-os com todo o enthusiasmo , com todo o fervor das suas dezoito primaveras . Como dissemos , Julio de Lorval observava o amigo e não perdia nenhum symptoma , que lhe podesse servir a curiosidade . Entretanto a reserva de Henrique , quando a conversação poderia ir tocar em ponto tão melindroso , tinha-o até então obrigado a guardar silencio sobre tal assumpto . Um dia de manha em Cintra houve um incidente que retardou a chegada dos cavallos em que os dois amigos costumavam montar , e Henrique , a quem a impaciencia devorava interiormente , propôz que se partisse a pé . O visconde condescendeu , sorrindo de um modo bastante duvidoso . Quando passaram pela fonte dos Pis ~ ees , Lorval levou a mão á luneta , gesto seu predilecto quando tinha alguma cousa importante a dizer , e , batendo com a bengala na parede , coberta de insxripções commemorativas , disse para d' Eglemont com uma accentuação falsamente prazenteira . -- Sempre sou muito descuidado ! Ainda não lhe tinha mostrado isto . Estes souvenirs devem entretel- o agora muito ; similia similibus , é a legenda homoeopathica . Não quero dizer com isto que trate de se curar . Uma vez que lhe agrada a doença , conserve-a . -- Meu caro , sempre tive a desgraça de não entender enygmas . Falta ao meu espirito finura para tanto , respondeu d' Églemont com indifferença . -- Já me não acontece outro tanto a mim . Adivinho até os enygmas que mais indecifraveis se consideram . -- Dou-lhe os parabens , disse Henrique , sem quasi descerrar os labios . -- E eu acceito-os com todo o gosto . Olhe , meu amigo , deixe-se de historias o seja franco . -- Franco em quê ? -- Em quê ? ! Ainda m ' o pergunta , quando lhe digo que adivinhei ? ! -- Mas não mo disse o que adivinhou . -- Ai ! quer o caso claro como agua ? Então ahi vae . Adivinhei que o meu sizudo e melancholico amigo é mais uma victima das settas que despedem os formosos olhos da sr.ª||_D._Luiza_de_Menezes D.|_D._Luiza_de_Menezes Luiza|_D._Luiza_de_Menezes de|_D._Luiza_de_Menezes Menezes|_D._Luiza_de_Menezes . -- Victima ou não , dipenso lastimas e peço-lhe até que nunca mais cite assim o nome d' essa senhora . -- Não se zangue por Deus . Não quero provocar confidencias e muito menos lastimal- o . Sinto apenas que não tenha mais confiança em mim . Creia que não desejo ser seu rival . Esse tempo passou . -- Que tempo ? perguntou Henrique , com as faces ligeiramente afogueadas . -- O tempo em que eu fazia a côrte á sr.ª||_D._Luiza_de_Menezes D.|_D._Luiza_de_Menezes Luiza|_D._Luiza_de_Menezes de|_D._Luiza_de_Menezes Menezes|_D._Luiza_de_Menezes . -- O sr. visconde ? -- Eu mesmo ; mas não se inquiete , ella não m ' a acceitou . Podia dizer-lhe o contrario ; quero antes provar-lhe que não mereço a qualificação de fatuo que lhe estou lendo nos olhos . Digo-lhe mais ; sabe que eu ainda sou primo d' essa senhora , conheço-a desde criança e não ha nada mais natural do que ter havido entre as nossas familias um projecto de alliança . -- Se o que diz é uma advertencia , sr. visconde , peço-lhe que a defina em termos mais claros , disse com inexcedivel altivez Henrique d'Églemont . -- Não é advertencia , nem eu tinha direito para a fazer . Isto são apenas confidencias que eu estou fazendo a uma pessoa , que não me julga digno de ouvir os seus segredos . Esses projectos do outro tempo passaram , como eu lhe disse , e para sempre , Até deixei de ir a casa de Pedro da Silveira , e já havia bastante tempo que não falava á sobrinha quando os encontramos ambos na Varzea . -- Eu ignorava completamente isso tudo , disse Henrique , mostrando na voz que o animo lhe ia serenando um pouco . -- Oh ! não foi nada ; eu não lhe tinha verdadeiramente amor . Era uma criancice e desappareceu como tal ; mesmo porque a idéa era mais do meus paes do que minha . Eu acceitei-a como obrigação e quasi que nunca me dediquei a ella como devoto . -- Mas porque Foi que D. Luiza ... ? -- Porque foi ? Ora quem sabe nunca porque as mulheres querem , ou não querem uma cousa ? Nem ellas mesmas o sabem . A verdade é que não me concedeu nunca um instante d' attenção . De- me outra vez a sua mão e fiquemos amigos , que é o que me importa agora . -- Fiquemos , e até para o sermos melhor é preferivel que eu me resolva a ir para a semana dar o meu passeio até á Madeira , respondeu Henrique , apresentando-lhe a mão . -- Até á Madeira ! Deixe-se d' isso . Já está bom , e o que lhe eu disse não é nada . Quer então que minha prima se metta freira , só porque eu lhe fiz uma corte , que ella não acceitou ? -- O motivo é outro , e é impossivel que a sua delicadeza o não comprehenda . -- Não se lembro de tal . Prohibo- lhe que se retire . Isso não tem sens commun , disse o visconde , que não era mau rapaz , apezar do sou amor pelos gallicismos . Lorval não queria estorvar a affeição de Henrique ; o que elle não podia era ver que alguem tinha a ousadia de lhe occultar qualquer cousa , vivendo na sua intimidade . O visconde detestava o segredo e a respeito de amores era feroz a sua perseguição , emquanto não sabia todo o fio da intriga em que elles se firmavam . Henrique falou pouco em todo o resto do caminho e parecia embebido n ' uma meditação de que havia de sair uma resolução qualquer . Estava mais do que nunca triste , e Luiza , notando-o interiormente , affligiu-se . Havia algum tempo que a donzella já não tentava matar pela razão e sentimento a que ainda às vezes chamava loucura ; deixava-o crescer , sem pensar no que seriam os resultados ; comprehendia que mais tarde ou mais cedo havia para tudo um desenlace ; esperava-o receiosa mas firme no seu puro affecto . Na existencia da donzella havia recordações que lhe enchiam de magoa o coração , quando via o predominio que sobre elle tinha tomado o moço estrangeiro . Era uma historia de familia que Pedro da Silveira recordava às vezes . Luiza não se podia lembrar d' ella agora , sem sentir o sangue gelar-se-lhe nas veias . Este era o grande espinho que a dilacerava nos momentos em que ella se abandonava ao inebriante prazer do se sentir cercada das castas rosas do primeiro amor . No dia em que o visconde do Lorval tinha feito as suas confidencias a d' Églemont , ficaram ambos para jantar em casa de Pedro da Silveira , e á noite , quando voltavam para Cintra , demoraram-se ainda a conversar com o velho na formosa estrada que liga esta villa á de Collares . Luiza ia conversando com uma sua amiga e Henrique , que em todo aquelle dia tinha estado muito silencioso , deixou os seus companheiros e , voltando para traz , veio para o lado de Luiza . Pouco depois , por um d' estes acasos que parecem estar sempre ao serviço dos namorados presentes , passados e futuros , a amiga com quem Luiza conversava foi falar a umas senhoras que vinham um pouco atraz , e os dois caminharam alguns instantes sós , um ao pé do outro . A noite estava lindissima . O azul do céo era um véo diaphano , todo esmaltado de pallidas estrellas , cujo brilho parecia esmorecido pelo brilhante luar . Na atmosphera tudo era silencio . Os troncos annosos das arvores , com as suas formas elegantes e caprichosas , desenhavam-se no ar sem que um sopro esse agitar-lhes as folhas . Gigantes e immoveis tinham deixado por algum tempo de ser a voz que geme no meio da solidão ; eram apenas braços que se erguiam para o céo . Era portanto uma noite luminosa , cheia de visões ethereas , de perfumes embriagantes , do cânticos celestes , uma d' estas noites em que se não vê um ponto negro no horizonte , em que a alma se dá toda a um sentimento , porque não ha receio que a assuste , nem desconfiança que a detenha . Está então tudo tão tranquillo , tão sereno , fala tudo tanto de Deus , e Deus é tão bom , tão clemente , tão piedoso para os que amam ! Luiza e Henrique caminhavam um ao pé do outro , como dissemos , e podiam falar sem que os ouvissem , porque já estavam distantes das pessoas que os seguiam e ainda longe de Pedro da Silveira e dos outros seus amigos que iam adiante . Passavam ambos por um formoso logar da estrada , em que as arvores , pendidas de um para outro lado , entrelaçavam os troncos mais altos e formavam uma aboboda verdejante , atravez da qual transparecia o azul do céo e a luz scintillante dos astros que o illuminavam . Luiza sentia uma commoção extraordinaria vibrar-lhe dentro do peito . Parecia-lhe que estava pisando uma relva luminosa , e via uma como que atmosphera de constellações a cercal- a de todos os lados . Henrique sentia fogo no coração , e de vez em quando comprimia a fronte , onde a luta de mil idéas differentes vinha depôr ora sombras de tristeza , ora reflexos de prazer . Iam os dois já saindo da parte da estrada mais ensombrada pelas arvores ; os raios da lua caiam sobre a bella fronte de Luiza . Henrique nunca vira a donzella tão formosa como n ' aquelle instante e a allucinação , que desde o começo do passeio se lhe tinha apoderado do espirito , chegou a tal ponto que , sem poder já dissimular mais tempo , murmurou com voz fraca mas repassada de ternura : -- Luiza ... diga-me , não sabe ... não adivinhou nada ainda ? ... -- Eu ? ciciou a donzella , meia assustada , meia attraida pela expressão de profundo affecto , que se divisava na physionomia de Henrique . -- Queria dizer-lhe&lhes+o ha tantos dias , mas ... tinha medo de quebrar o encanto ... tinha medo de ver fugir a minha felicidade , e eu não sou feliz senão quando a vejo , senão quando a sinto , quando sei que não está longe de mim o meu anjo adorado . Amo-a Luiza , e é este o meu primeiro amor ; dou-lhe todo o meu coração : não o recuse , porque seria matar-me . -- Matal- o ? interrompeu Luiza . -- Sim ; não julgue quo isto sejam protestos de poeta , são palavras de um homem que sentiu o céo dentro d' alma quando a viu , Luiza , quando todo se lhe entregou para sempre . Luiza , o meu nome é um nome honrado , quer acceital- o com a minha mão ? Permitte-me que peça a sua a seu tio ? -- A meu tio ... disse a donzella , que tinha escutado d' Églemont como se um sonho a estivesse enlevando . Finalmente pareceu acordar e fitando em Henrique os olhos cheios do luz continuou : -- Falar a meu tio agora é ... impossivel . -- Impossivel , Luiza ? ! Odeia-me então ? está certa de não poder vir um dia a ter-me algum amor ? -- Então pensa que só o meu odio poderia estorvar a nossa união ? Nunca percebeu a prevenção que meu tio tem contra ... os francezes ? e a donzella pronunciava a custo estas palavras , como se com ellas se lhe estivesse despedaçando o coração . -- É só isso , Luiza ? Tenho reparado no que me diz , mas não sei se foi o meu amor que me fez notar que falando commigo o sr.||_Pedro_da_Silveira Pedro|_Pedro_da_Silveira da|_Pedro_da_Silveira Silveira|_Pedro_da_Silveira parecia esquecer-se inteiramente das suas prevenções . -- É verdade que o não tenho visto tratar nenhum outro francez com tanto affecto ; mas não é bastante . As prevenções de meu tio têem uma origem muito triste , e não julgo que seja facil vencel-as . -- Então , Luiza , partirei ámanhã para Lisboa e daí sairei para sempre do Portugal , disso o mancebo , querendo disfarçar debaixo de uma expressão de frieza o sombrio desespero que o torturava . -- Partir porquê ? disse Luiza , animando-se subitamente e envolvendo outra vez Henrique na formosa chamma dos seus olhos negros . -- Luiza , não me quero illudir . Vejo que estive sonhando ; deixe-me acordar . Diz que não póde ser minha esposa ; que faço eu então aqui ? -- Mas quem lhe diz quo o futuro não será melhor ? Meu tio póde mudar e conhecer que a experiencia de uma vez não deve servir para sempre . -- Mas o que foi essa experiencia ? o que é esse mysterio ? -- Ha de sabel- o talvez um dia . E uma historia de familia , e perdoe-me dizer-lhe que ainda é cedo para lh'a contar . -- Tambem eu teria alguma cousa a revelar-lhe , se promettesse vir a ser minha esposa . Oh ! não é nada para sustos , continuou d' Églemont , percebendo em Luiza um movimento de surpreza . É apenas uma recommendaçâo de minha mãe , que ella me fez sem prever o quo acontece , e do que sei que desistirá logo que o saiba . Póde crer-me . -- E creio agora . -- Pois devia crer sempre , Luiza , disse Henrique com um sorriso a adejar-lhe nos labios , como alvorada de ventura . E o mancebo era feliz . Luiza , se não lhe respondia ás palavras d' amor , escutava-as , e ser escutado é grande cousa em tudo , mas em amor é grandissimo adiantamento . De mais a mais a donzella , na innocencia do seu affecto , deixara romper atravez da reserva uma expansão , que lhe traía os sentimentos intimos quando aconselhou a Henrique que ficasse . Iam chegando ao grupo em que estava Pedro da Silveira e já se ouvia o visconde , que chamava pelo amigo , empregando quantas interjeições a lingua franceza contém . -- Então , Luiza , devo partir amanhã ? -- Não , disse a donzella tão baixinho que só ouvidos de namorado a poderiam ouvir . -- Promette-me que ... -- Hoje ainda não . Foi uma mudança tão repentina ! -- Tem razão , Luiza . Fico . Hei de obedecer-lhe em tudo . E um anjo , e aos anjos não é preciso pedir que sejam bons . Luiza ficou silenciosa e os dois chegaram pouco depois ao pé das pessoas que os estavam esperando . O visconde de Lorval deu o braço a Henrique e despedindo-se do todos disse : -- Isto só á viva força , meus caros senhores . Estão em Cintra á nossa espera e não ha quem leve d' aqui este homem , se não fôr assim . E peior do que senhoras a despedir-se . Sr.ª||_D._Luiza D.|_D._Luiza Luiza|_D._Luiza , v. ex.ª não trouxe capuchon , e vae constipar-se . Meu caro sr.||_Silveira Silveira|_Silveira , leve-a depressa para casa , emquanto eu conduzo o meu prizioneiro . Tenho a honra de os comprimentar . E o falador visconde depois de uma saudação profunda , montou a cavallo e partiu a galope . Henrique seguiu-o e bem depressa desapparcceram na volta da estrada . N ' aquella noite Pedro da Silveira falou pouco . Havia dias que serias reflexões lhe preoccupavam o espirito . Sentado n ' uma ampla cadeira de braços mal escutava a sobrinha , que lhe estava lendo os jornaes chegados pelo correio . As palavras que ouvimos proferir ao visconde de Lorval tinham esclarecido um ponto que na mente do velho ainda até alli estava duvidoso . Via-se que Henrique só estava bem em Collares . O visconde tambem alli vinha todos os dias , mas este não se esquecia dw tudo o mais , como Henrique ; lembrava-se sempre dos jantares , das partidas , que o esperavam em Cintra , e voltava para lá , ainda que o amigo o não acompanhasse . Percebia-se que Henrique , entrando na sociedade de Pedro da Silveira , não fazia nem a sombra do um sacrificio , porque fóra dela não havia cousa alguma que o prendesse , emquanto que o visconde nem sempre podia encobrir um sentimento de condescendencia , às vezes bem contrafeita . A isto chamaria o elegante Julio de Lorval uma nuance , mas os cambiantes são sufficientes para conhecer a diferença que distingue o homem namorado , d' aquelle que o não está . Pedro da Silveira tinha estudado com o seu zelo de homem cheio de experiencia o caracter de Henrique , e chegara a convencer-se de que elle era deveras estimavel . Para vir a esta conclusão tinha-lhe sido preciso calcar prejuizos arraigadissimos , mas o tio de Luiza era um dos poucos homens para quem não havia impossiveis quando se tratava de fazer justiça . Longe e muito longe das paixões da mocidade , lembrava-se entretanto da sua perigosa influencia . Adivinhava o affecto de Henrique , e temia que Luiza lhe&lhes+o correspondesse . Confiava plenamento no juizo da sobrinha , e tinha certeza de que ella nunca lhe desobedeceria , mas isto não era bastante , porque a não queria ver infeliz , e , sabendo que sem elle o permittir ninguem obteria a mão da donzella , conhecia muito bem no mesmo tempo que á sua autoridade podia fugir o coração , pois que não está na nossa mão dal- o ou quital- o , como diz D. Magdalena no admiravel drama de Garrett . Pedro da Silveira pensava em tudo isto e a sua sollicitude não desprezava os menores symptomas . Não tinha nenhum facto positivo que o levasse a desapprovar inteiramente a inclinação , que via augmentar todos os dias , mas quando repetia isto nas suas reflexões vinham mil duvidas assaltar-lhe o espirito . Henrique falava muito pouco da sua familia e até da sua patria . Só uma ou duas vezes o ouviram falar da mãe , e perguntando-lhe&lhes+o alguem um dia só ainda tinha pae , respondeu que elle morrera , e havia na sua resposta um tom de tão amarga tristeza que ninguem mais lhe falou em tal . O visconde de Lorval , apezar de sua leviandade , tinha um fundo de sensatez em que se podia confiar , e mais de uma vez o elegante fidalgo tinha assegurado a Pedro da Silveira que o seu amigo lhe tinha sido apresentado , com todas as recommendações possiveis , por um diplomata francez digno de todo o credito e estima pelo seu caracter e pela sua posição social . Entretanto o tio do Luiza não estava tranquillo . E era uma puerilidade o que mais o atormentava , mas uma puerilidade que para elle tinha importancia . Quando no correr da conversação uma palavra vinha ferir a susceptibilidade do moço francez , ou quando a ironia da represalia lhe tremia nos labios desdenhosos , Henrique tinha na expressão do olhar o que quer que fosse de fria altivez . Pedro da Silveira surprehendeu um dia esta expressão glacial e rigida como o marmore , e pareceu-lhe que já tinha visto aquelle mesmo olhar e aquelle mesmo sorriso n ' um outro rosto ; affigurou-se-lhe que via diante de si o retrato vivo de um homem , que representara na sua familia um papel funesto . Esta similhança , sensivel nos fugitivos momentos de exaltação , desapparecia quasi inteiramente quando d' Églemont se entregava outra vez ao caracter essencialmente sonhador da sua indole de poeta . Pedro da Silveira não esquecia entretanto o relampago , que lhe viera avivar recordações pungentes , e em vão lutava comsigo mesmo para se livrar d' essa idéa que o perseguia cada vez com mais vigor . Entretanto o velho não dizia nada á sobrinha ; lembrava-se de que não é bom acordar o leão que dorme , e conhecia que , mesmo nos melhores animos , uma prematura opposição póde fazer de germens ainda ignorados paixões indomaveis . Este constrangimento influiu finalmente no caracter tão affectuoso do velho e as praticas familiares , que são o encanto da vida domestica , eram cada dia mais curtas e menos expansivas , porque tanto Luiza como seu tio , entregues a teimosas preoccupações , não viam já senão segredo e desconfiança . Na noite em que Henrique falou pela primeira vez a Luiza no seu amor , esta ao fazer , como dissemos , a leitura habitual , esquecia-se a miudo do que estava lendo , e já no fim não sabia a que santos rogar que a livrassem de distracções tão inconvenientes em similhante momento . Pedro da Silveira acabou-lhe o supplicio , dizendo com um tom de austeridade inteiramento novo para ella : -- Escusa a menina de se incommodar mais . Póde deixar os jornaes e entreter-se com outra cousa , que menos a enfade . -- Que lhe fiz eu , meu tio ? ... perdoe-me , disse a donzella , caindo de joelhos ao pé do tio , e escondendo as lagrimas que lhe saltavam dos olhos . Para Luiza , amimada desde a infancia , as palavras de Pedro da Silveira foram um golpe inesperado , que não podia deixar de ferir-lhe o coração . -- Não foi nada , filha , respondeu o velho levantando-a nos braços . Não chores , Luiza . São impaciencias da minha edade ; não te afflijas . E Luiza , sem perceber o que assim transtornava o caracter de seu tio , fazia-lhe mil perguntas , a que elle respondia tranquillisando-a . Finalmente serenou a tormenta e ambos ficaram ainda conversando por algum tempo , mas ao despedirem-se cada um d' elles estava descontente comsigo ; o tio porque não aproveitara a occasião para falar a Luiza nas duvidas e nos receios que o perseguiam , a sobrinha porque deixara tambem fugir um ensejo de confessar a influencia exercida no seu coração pelo apparecimento de Henrique d'Églemont . Ambos preferiram calar-se . A continuação mostrará se este silencio lhes foi ou não favoravel . Nos dias seguintes d' Églomont continuou a vir passeiar até Collares , umas vezes com o visconde e outras vezes só . Entre o amor que se sente , mas que ainda se esconde , e o amor confessado , ha uma grande differença . Separa-os a distancia que separa a desconfiança da certeza , a supposição da verdade . O amor correspondido vem a ser depois da confissão um bello dia depois de uma formosa aurora . Quando esta transição se realisa , trocam-se muitas vezes os papeis dos namorados . Foi assim que Luiza , dantes risonha e quasi sempre expansiva em presença de Henrique , sentiu de repente uma invencivel timidez cheia de suave melancolia apoderar-se do seu espirito quando via d' Églemont . Este pelo contrario ia deixando pouco a pouco os recatos exaggerados , e já não havia sombra de tristeza que lhe cortasse a palavra enthusiasta quando , na presença da mulher , que amava , se deixava levar pela inspiração . Não faltou quem notasse estas mudanças . Eram ellas sensiveis em demasia para escaparem aos olhos de lynce , que em toda a parte espreitam qualquer inclinação . Só nos desertos do Novo Mundo poderá haver amor que não desperte a intriga , ou pelo menos a curiosidade , e ambas são mais ou menos invejosas . E isto é verdade em todas as classes , porque o coração humano póde ser tão pequeno nas mais altas , como nas infimas regiões sociaes . A educação póde pulil- o , mas difficilmente o engrandece , se a intelligencia o não illumina , se a luz que vem de cima lhe não descobre os escaninhos tenebrosos . Pedro da Silveira via e ouvia tudo , mas este homem tão forte contra as provações da existencia quando a cruz lhe pertencia toda , hesitava agora , porque não era o seu coração que devia ferir ; era o da sobrinha , que elle já sentia prezo , quem sabe se para sempre , pelo estrangeiro desconhecido . Uma noite estavam muitas pessoas reunidas em casa de Pedro da Silveira . Luiza acabava de cantar com a sua voz cheia de melancolico affecto uma aria do mavioso Bellini . O maestro amante tinha sido magnificamente interpretado pela donzella , então entregue ao delicioso arrulhar do pombas , que nas almas candidas acompanha a primeira alvorada do amor . Applausos prolongados seguiram a ultima nota da aria , e a donzella , para se furtar a tanto enthusiasmo , foi , sob pretexto de tomar ar , encostar-se a uma janella . Felizmente uma das senhoras presentes começou a tocar piano , e todos , voltando a attenção para a pianista , deixaram a donzella só . A noite estava formosissima e a lua , dando em cheio no rosto de Luiza , augmentava-lhe a grave formosura , realçada pela distincção do seu gesto cheio do nobreza . Henrique d'Églemont , chamado por Pedro da Silveira para acalmara tempestade levantada por dois ou tres parceiros a proposito de whist , pôde emfim ver-se livre da tarefa espinhosa ; e deixando outra vez todos meio tranquillos á roda da mesa de jogo , voltou para a sala onde tinha ouvido cantar a donzella ; já não a viu e , sem procurar um logar entre os que de pé rodeavam o piano , achou-se ao pé da janella , que dava entrada para a varanda em que vimos Luiza . Henrique adiantando-se um pouco com o seguro presentimento dos namorados , viu-a inclinada sobre o parapeito e toda banhada de luz , como uma figura celeste . Esqueceu-se de que o poderiam ver e foi pé ante pé collocar-se ao lado de Luiza . Era a segunda vez que um acaso os isolava assim . A donzella vendo-o recuou surprehendida e ia talvez retirar-se , mas Henrique olhou para ella com tão ineffavel ternura e supplica tão irresistivel que Luiza ficou . Ambos permaneceram silenciosos e n ' estes casos para ganhar terreno não ha nada que eguale um silencio . Quasi todas as confissões de amor são precedidas por um silencio mais ou menos extenso . O silencio é a verdadeira eloquencia dos namorados . O amor que fala muito não é amor , é pretexto para discursos . Henrique pegou na mão do Luiza , ella ia retiral-a , mas o mesmo olhar que a tinha demorado alli veiu quebrar-lhe de novo o animo com o seu immenso magnetismo . D ' Églemont nunca se tinha sentido tão feliz , nunca pensara que na terra se podia estar tão perto do céo . Luiza , essa nem ha palavras que exprimam o extase da sua alma e a commoção indefinivel que de toda ella se apoderou . -- Minha querida , disse emfim o mancebo , minha querida Luiza ! Já não me foges , não ? -- Não , Henrique , respondeu ella toda tremula . -- Porque me não chamas teu Henrique , como eu te chamo minha Luiza ? Porque tu és minha ; agora já não pódes recusar-me a tua mão ; foste tu mesma que m ' a deste , e d' Églemont beijava os niveos dedos , que em vão procuravam fugir-lhe . -- Henrique , meu Henrique , eu ainda não disse sim , respondia a donzella em tom do meiga ameaça . -- Que me importa que o não dissesses , se eu o ouvi sem tu o dizeres . Anjo dos meus amores ! Se tornas a sorrir com esse modo de incredula , castigo-te , repetindo mil vezes que te amo , para te obrigar a dizer que acreditas . -- Não duvido , não , meu Henrique . Sé tenho medo de uma cousa , e é de que Deus me castigue por eu ter fé tão cega no que me dizes . -- Medo , minha Luiza , de seres boa ! Tens então medo de me ter amor , e é por isso que m ' o não dizes ? -- Não é medo , não sei o que é , nem eu mesma me entendo ; mas deixemos isto . Queres que eu diga que te amo ? Não o sabes já ? -- Dize sempre . Custa tanto a crer na extrema felicidade ! Amas-me ? -- Amo-te . Olha , parece-me que todo o meu ser é amor e que todo elle só vive para ti . -- É assim que te amo tambem . Longe de ti não ha no mundo nada que valha para mim a pena da existencia . O meu sonho , o meu pensamento , a minha vida toda és tu , meu amor , minha esperança , e Henrique tornou outra vez a apertar nas suas a mão da donzella . Os dois ainda ficaram trocando em voz baixa protestos e confidencias . De tudo se lembravam , tudo explicavam desde que a doce união de suas almas tinha começado para ambos . Havia instantes que o piano já se não ouvia , e logo depois o ruido das conversações animadas e passos que se avisinhavam da janella vieram chamar Henrique e Luiza ás exigencias da inevitavel realidade . D ' Églemont voltou para a sala e a sobrinha do Pedro da Silveira entrou para um pequeno gabinete , então solitario e cuja porta envidraçada abria tambem para a varanda , em que se passou o que se acaba de ler . Trez ou quatro dias depois recebeu Pedro da Silveira convite para um baile que se dava em Cintra , e onde devia reunir-se a élite da sociedade , como dizia o bom Lorval . Luiza foi áquelle baile , mas quando entrou na sala pareceu-lhe que uma nuvem negra , levantando-se ante os seus olhos , embaciava os espelhos , escurecia o brilho dos lustres , e murchava o viço das flôres . Pouco a pouco voltou a si , e as amigas riram do que ellas chamaram um ataque de nervos disfarçado . Ia já o baile em meio , e Luiza walsava com d' Églemont . Ambos repousavam um instante , quando de uma das salas proximas saiu um mancebo de extremada elegancia , e que pouco antes voltara de Paris , onde se tinha demorado alguns annos . Chegando perto de d' Églemont , o elegante recuou cheio de surpreza , e dirigindo-se a Henrique , disse : -- Por aqui , sr. conde de Berville ? ! Ao ouvir este nome , Luiza largou o braço do seu par e caiu sem sentidos aos pés do homem que o tinha pronunciado . Pedro da Silveira tinha ouvido tambem , e , pallido como um defunto , levantou a sobrinha nos braços , repelliu com um gesto de suprema autoridade d Églemont , que fóra do si corria tambem a amparal-a , e levou-a para um gabinete distante . Um quarto d' hora depois , Luiza , branca e pendida como o lyrio batido pela tempestade , entrava na carruagem , em que poucas horas antes tinha vindo , cheia do felicidade e de esperança . Pedro da Silveira consternado não disse uma palavra á sobrinha . Quando a carruagem partiu , Luiza , apertando as mãos de seu tio , encostou-lhe ao peito a fronte ardente e deixou proromper a sua dôr em torrentes de lagrimas e em palavras incoherentes , cortadas pelos soluços . Porque ora isto tudo e porque um nome e um titulo mudavam assim em lagrimas de amargura os sorrisos da festa ? É que esse nome e esse titulo resumiam uma historia fatal . Para a contarmos temos de voltar uns poucos d' annos atraz . D. Pedro IV acabava do entrar em Lisboa . Entre os militares que lhe tinham ajudado a recuperar o throno da filha , havia alguns estrangeiros . Um d' elles era o conde||_Luciano_de_Berville Luciano|_Luciano_de_Berville de|_Luciano_de_Berville Berville|_Luciano_de_Berville , fidalgo francez de muito boa linhagem , mas de poucos haveres , graças á bossa da estravagancia , hereditaria na sua familia , como a nobreza , e desenvolvida até ao maior grau na pessoa de Luciano . O conde de Berville tinha trinta e cinco annos . Era um homem alto e de porte elegantemente marcial . Ninguem sabia levar com mais natural eleganxia a mão aos cópos da espada , e ninguem ao mesmo tempo sabia acariciar o farto bigode com gesto mais singularmente gracioso . Os seus olhos de um verde muito escuro tinham os furores e as ternuras felinas do tigre . As mãos d' aquelle homem quando se estendessem para acariciar deviam ferir como garras . Luciano tinha as feições fortemente accentuadas ; tudo no sou rosto era varonil , desde a fronte espaçosa , onde brilhava a intelligencia , até á bocca bem modelada , onde se via sempre a expressão de mais que altivo , quasi cynico desdem . Tinha o conde fartos cabellos castanhos , tez pallida o rosto comprido . Era um homem incontestavelmente bello e sabia-o talvez demais . Não quer isto dizer entretanto que o conde tivesse comsigo as attenções exaggeradas da maior parte dos dandys . Luciano desprezava a affectação e em todo o seu porte não havia senão muita elegancia e nobreza natural . Entretanto é lastima , mas devemos confessal- o : aquelle bello involucro continha um ente pessimo . O conde de Berville tinha todos os vicios , e seria difficil , senão de todo impossivel , perceber-lhe alguma virtude . Era um homem sem crenças , sem principios , sem freio algum moral . Para elle a vida era um banquete em que cada um devia gozar o mais que podesse , sem se importar nem com os meios , nem com as victimas . A taça do prazer , queria elle esgotal-a até ao fim . Para a não largar das mãos deixaría- se-até salpicar de sangue e de lodo . O conde de Berville era um romano do tempo das saturnaes , ou um atheniense das epocas em que a febre dos deleites sensuaes offuscou a gloria do povo de Pericles . A julgar pelas apparencias , a orgia era o elemento do conde de Berville . Entretanto aquelle homem satanico a tudo se amoldava , quando só com o disfarce podia obter a satisfação de algum dos seus imperiosos caprichos . Não devemos perder isto do vista em todo o curso da seguinte historia . Já tinham dado havia muito Ave-Marias , e o conde passeiava pelas ruas de Lisboa . Ia sem destino certo . No seu rosto lia-se o enfado ; passava distraído , sem que nenhuma cousa lhe attraisse o olhar . Caminhando assim , chegou quasi á noite ao pé de uma das mais vastas egrejas da capital . Alguns vultos de mulher , envoltos em trajes escuros , despertaram a attenção de Berville . Elle tinha ainda tido poucas occasiães de ver as senhoras portuguezas , e não quiz desperdiçar a que alli se lhe offerecia . Entrou apoz os vultos que se dirigiam para o templo , onde os chamava uma solemnidade , religiosa . O conde foi encostar-se a um dos altares lateraes , e , acerando cada vez mais o seu desdenhoso sorriso , começou a mirar friamente todos os rostos do mulher alli reunidos . Os seus olhos cançados iam já dando o caso por perdido , quando Luciano divisou muito perto de si duas donzellas ajoelhadas e formosas como o esplendido arrebol da aurora . O conde encarou-as com mais demora e o seu olhar glacial fulgurou subitamente com a ardencia de uma chama vivaz . As duas donzellas não se pareciam . Nem sequer havia entre ellas esse ar de familia , que logo deixa advinhar irmãs nas que menos similhanças tem umas com as outras . Uma d' ellas era branca e loura como as filhas do norte , a outra , a mais nova , tinha a pallidez morena e as madeixas negras das andaluzas . A mais velha era bella como uma visão etherea e os seus olhos azues fitps na cruz tinham um luzir de estrella , que parecia pertencer ao céo . A sua belleza era das que seduzem poetas ; não tinha portanto materialismo bastante para seduzir o conde . Tambem não foi esta que lhe prendeu mais o olhar ousado ; era a outra que elle contemplava , formando já comsigo os planos de seducção . A gentil morena tinha o rosto bem feito e as feiçães delicadas : os seus labios , um pouco grossos , tinham extrema graça e louçania ; antevia-se n ' elles um sorriso divino , realçado ainda pela frescura scintiliante de duas fieiras de perolas ; os olhos negros da donzella traíam no inquieto fulgor abysmos de luz e de paixão ; as sobrancelhas eram duas curvas finissimas , e os seus bastos cabellos pretos verdadeiramento bellos ; debaixo da mantilha da donzella adivinhava-se a belleza esculptural das fórmas : era pois a sua formosura completa tanto quanto possivel . Tinha o original d' este retrato pouco menos de dezoito annos . A sua companheira , de compleição mais debil , tinha um genero de belleza mais grave e contava já vinte o dois annos . A morena chamava-se Mathilde de Menezes , a loura era Martha da Silveira . Ambas estavam com uma senhora de perto de cincoenta annos e muito parecida com Mathilde ; era sua mãe , a mulher de D. Lopo de Menezes , fidalgo realista . O condo do Berville ignorava ainda tudo isto ; os seus olhos pareciam devorar a esplendida belleza da nobre donzella . Esta deixava correr distraída as contas do seu rozario de marfim . Mathilde estava alli do joelhos , mas o seu espirito divagava fóra do recinto sagrado ; lembrava-se da figura esbelta de um homem que ella , escondida por detraz das cortinas da sua janella , tinha visto passar , montado em soberbo ginete . Aquelle homem , vendo mover o cortinado , tinha-a encarado por duas ou tres vezes , e tanto foi bastante para que Mathilde nunca mais podesse esquecer a expressão singularmente dominadora da sua physionomia . A donzella nunca até esse momento tinha visto rosto , que assim tão profundamento se lhe gravasse na memoria . A belleza do desconhecido não era vulgar ; era a potente belleza da estatuaria unida a toda a expressão que unia alma d' artista sabe communicar ao marmore . Mathilde estava debaixo do pezo dos pensamentos que a preoccupavam sem cessar quando a mão baten- lhe no hombro deu o signal para se retirarem . O conde de Berville percebeu-o e foi collocar-se á saída ao pé do outro altar . Quando Mathilde passou ao pé d' elle a luz de uma alampada suspensa alli perto illuminou a formosa cabeça do militar , e a donzella vendo-a sentiu o sangue refluir-lhe ao coração : era aquelle o homem que ella tinha visto já uma vez , era aquelle o que havia dias , lhe não saía da imaginação . Este encontro em tal logar e hora , e a expressão apaixonada com que Luciano a fitava acabaram de enlouquecer Mathilde . O conde , experimentado n ' estas cousas como poucos , tinha percebido tudo , e mal sabia ainda a pobre donzella a rêde de perigos que desde esse momento começava a envolvel-a . Mathilde era uma d' estas almas de fogo para quem todos os sacrifícios são faceis , quando as domina a paixão . D ' estas mulheres faz às vezes a religião de Christo martyres e santas , porque foi ella quem inventou o arrependimento e as Magdalenas . Na existencia de Mathilde esta ultima phase ainda estava longe , porque a donzella começava apenas a sentir as primeiras commoções do amor . O conde do Berville seguiu a alguma distancia as tres senhoras , até velas entrar n ' uma casa de boa apparencia ; atravez de duas ou tres janellas d' esta casa via-se uma sala illuminada e o conde fitava-as com uma impaciencia quasi febril . Daria muito para estar n ' aquella casa e torturava a imaginação para ver como o conseguiria . A lua estendia já pela cidade os seus raios prateados , eram nove horas e o conde ia retirar-se quando viu dobrar a esquina um vulto , que apressado se dirigia para a casa attentamente examinada pelo francez . A noite estava muito clara e o conde , reconhecendo o homem que alli acabava de apparecer , tolheu-lhe o passo por um habil manejo , e começou a falar-lhe do seguinte modo : -- Sr.||_Gonçalo_Pereira Gonçalo|_Gonçalo_Pereira Pereira|_Gonçalo_Pereira , mal sabe o gosto que me dá com a sua presença , e o conde segurava familiarmente o braço do recem-chegado . -- Eu ... v. ex.ª. . . em que lhe posso ser util ... Valha-me Deus ... e o pobre homem tentava sorrateiramente ver-se livre da mão que o prendia . -- Não se assuste . Diga-me antes aonde ia com tanta pressa . -- Eu , sr. conde ... ia ... ia ... e a voz sumia-se-lhe n ' um tremor invencivel . -- Deixemo-nos de historias ; nada de reticencias . Aonde ia , sr.||_Gonçalo_Pereira Gonçalo|_Gonçalo_Pereira Pereira|_Gonçalo_Pereira ? -- Mas v. ex.ª sabe ... eu sou um pobre homem , que não faço mal a ninguem ; não me perca pelo amor de Deus . -- Nem pelo amor do ... e o conde interrompeu a imprecação , sacudindo com força o pobre medroso . Vamos , continuou o militar , não me apure demais a paciencia . O senhor ia entrar n ' esta casa fronteira , não é verdade ? -- Ia ... mas ... -- Nada de mas ... Quem móra alli ? Não me minta , porque ámanhã saberei tudo o depois grite por Santo Antonio a ver se elle lhe acode . -- Eu ia alli para alguns negocios ... urgentes ... umas occupações , não era para fins politicos , creia v. ex.ª. A minha lealdado á causa triumphante é notoria . -- Dispensamos agora protestos . Responda ao que lhe pergunto . Quem móra n ' aquella casa ? e nos olhos do conde havia a mais imperiosa expressão . -- Aquella casa é a casa ... do sr.||_D._Lopo_de_Menezes D.|_D._Lopo_de_Menezes Lopo|_D._Lopo_de_Menezes de|_D._Lopo_de_Menezes Menezes|_D._Lopo_de_Menezes . -- Ah ! um velho fidalgo do partido miguelista . -- Dizem isso , mas v. ex.ª bem sabe que eu ... -- Está bem , bem sei quem é o sr.||_Gonçalo_Pereira Gonçalo|_Gonçalo_Pereira Pereira|_Gonçalo_Pereira , não se canse a explicar-m ' o . Esse sr.||_D._Lopo D.|_D._Lopo Lopo|_D._Lopo tem duas filhas ? -- Duas filhas , não ; tem uma só . -- Então quem é a outra ? -- Qual outra ? -- Pois não moram alli duas meninas , uma trigueira e uma loura ? -- Queira v. ex.ª perdoar . Alli móra só a trigueira , a sr.ª||_D._Mathilde D.|_D._Mathilde Mathilde|_D._Mathilde ; a loura em que fala ha de ser uma amiga , que a acompanha às vezes ... ha de ser a noiva do sr.||_D._Luiz D.|_D._Luiz Luiz|_D._Luiz , o filho mais velho do sr.||_D._Lopo D.|_D._Lopo Lopo|_D._Lopo . -- Agora são esclarecimentos de mais . Não me importo com a loura para nada , disse o conde sempre impaciente . -- Com que então importa-se mais com a moreninha , hum ! disse como que para comsigo Gonçalo Pereira , mais animado desde que ia percebendo o fio da intriga . -- Nada de graças . O sr.||_Gonçalo_Pereira Gonçalo|_Gonçalo_Pereira Pereira|_Gonçalo_Pereira é recebido n ' aquella casa , fala á sr.ª||_D._Mathilde D.|_D._Mathilde Mathilde|_D._Mathilde ? -- Tenho essa honra quasi todos os dias , disse o interrogado , empertigando-se . -- Ah ! agora já é honra . Olhe que ainda está falando com um partidario do sr.||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro IV . -- Eu não dizia isso assim ; mas é que ... tratando-se de uma senhora . -- Pois sim , sim . Vá fazer a sua visita . Amanhã hei de procural- o em casa . Preciso falar-lhe em cousas d' importancia , e não é na rua que lh'as posso dizer . -- Quando v. ex.ª quizer . Estou sempre á sua disposição , sr. conde , e Gonçalo Pereira , cumprimentando quasi até ao chão , entrou em casa de D. Lopo de Menezes , contente por escapar , ainda que por pouco tempo , á presença inquisitorial do conde do Berville . A consciencia de Gonçalo Pereira não era das mais limpidas , como se terá adivinhado ao velo tremer como varas verdes ante a perspectiva de um interrogatorio serio . Este homem pertencia ao typo vulgarissimo dos que pescam nas aguas revoltas de todas as commoções politicas ; são sempre do partido do vencedor e nunca ninguém os vê ao lado dos vencidos senão na vespera da luta . No dia seguinte são triumphantes , por mais estranha que lhes seja a parcialidade que obteve a victoria . A elasticidade das opiniões de Gonçalo Pereira não se reduzia só á politica ; abraçava todos os mais principios que regem a vida humana . Gonçalo dava sempre razão ao mais forte , sem sacrificar as proprias convicções , porque as não tinha . Parasita social , ninguem poderia dizer ao certo de que elle vivia . Era recebido em casa de illustres fidalgos , e nenhum d' elles poderia explicar muito bem porque lhe mandava abrir a porta pelos seus lacaios . Gonçalo Pereira com a sua consciencia de molas tinha varios prestimos que não eram de todo para desprezar . Intrigante eximio , ninguem como elle manejava as instrumentos occultos com que se produz primeiro a calumnia e depois o escandalo ; medianeiro sagaz , estava ao facto de quantos negocios amorosos alvoroçavam os corações na sociedade que elle frequentava ; humilde até á baixeza , para elle todos os meios eram bons , comtanto que escapasse a salvo das intrincadas meadas em que a sua perigosa industria o envolvia às vezes . Tal era moralmente Gonçalo Pereira ; o physico tinha n ' elle pouca vantagem sobre o moral . Gonçalo era alto e esguio , os seus braços pareciam estar sempre prezos á cintura polos cotovellos ; as pernas eram magrissimas e mostravam alguma tendencia para arcos de rebeca ; as mãos tinha-as grandes , largas e as pontas dos dedos recurvavamse-lhe por uma contracção cubiçosa . Estas mãos são terriveis ; são capazes de todas as vilanias . O rosto de Gonçalo era , como o seu corpo , alto , esguio e guarnecido por dois pedaços de cabello grisalho que lhe descia até a baixo das orelhas , collando-se-lhe ás fontes ; tinha uma bocca d' estas que ameaçam não acabar nunca , dentes raros e amarellos , o que dava ao seu pseudo-sorriso um tom do velhacaria felina ; as faces tinha-as elle encovadas e como que repuxadas pelas immensas orelhas ; a fronte era baixa e vulgarissima , os olhos sem côr e quasi sem olhar . Gonçalo Pereira não usava barba , vestia sempre de preto com um esmero , que não lograva encobrir o pouco que elle devia á madrasta natureza . O conde de Berville conhecia-o desde que chegara a Lisboa ; tinha-o visto nos gabinetes dos que a fortuna acabava de fazer poderosos ; tinha-lhe presenceado as mesuras repetidas nos corredores de todas as secretarias e sabia confidencialmente que elle vinha alli farejar se pelos ares haveria alguma pingue recompensa para os espiões officiosos . Eis porque Gonçalo Pereira tremia diante do altivo francez . Em pontos do litteratura Gonçalo adorava a mythologia e as scenas pastoris ; até dizem que na mocidade cantara duas Marcias e tres Marilias . Quando o nosso heroe entrou em casa do D. Lopo , já este o estava esperando , porque lhe faltava um parceiro ao jogo e Gonçalo era sempre quem preenchia taes lacunas . O jogo é , depois da morte , o mais efficaz dos niveladores sociaes . O homem mais cheio de preconceitos aperta cordealmente a mão do que mais intimamente despreza , considerando-o desde o momento em que vê só nelle um parceiro . As mesas de jogo são linhas de união , que reunem por algum tempo os principios , as idéas e as educações mais contrarias . -- Vem hoje tão tarde ! foi a saudação do D. Lopo . -- Que quer v. ex.ª , n ' estes tempos tudo é extraordinario . -- Aconteceu-lhe alguma cousa ? perguntou Mathilde . -- Não foi cousa de perigo , formosa Diana . Os Endymiões são ousados , e Gonçalo Pereira cumprimentou a donzella ennovellando quanto pôde a desgraciosa figura . -- Não percebo o que diz , sr.||_Gonçalo_Pereira Gonçalo|_Gonçalo_Pereira Pereira|_Gonçalo_Pereira . -- Tambem a falar a verdade não sei a que vem tanta mythologia para responder a minha filha , disse Lopo com o modo secco de quem está descontente por ter esperado . -- Deixe v. ex.ª ; isto são idéas minhas . -- Ah ! são ! Por isso é que eu não percebi , disse Mathilde com um sorriso de travessura quasi infantil . -- Mathilde , não permitto que fales assim . -- Meu pae , o sr.||_Gonçalo_Pereira Gonçalo|_Gonçalo_Pereira Pereira|_Gonçalo_Pereira sabe muito bem que não é por mal . -- Ora se sei ! A nossa nympha não é capaz de offender ninguem . Agora reparo , onde está a nossa deusa ? Ah ! alli vem mais bella do que nunca e com a cabeça sempre coroada de aureos fios . Martha da Silveira saiu tambem da janella e respondeu com um leve aceno de cabeça á laboriosa comparação do velho Gonçalo . -- O sr.||_Pereira Pereira|_Pereira dizem que está nas boas graças do novo governo , observou D. Lopo . -- Eu ! v. ex.ª está enganado . -- Ora ! Até me disseram que se dá muito com toda essa gente , principalmente com os militares . Gonçalo Pereira lembrou-se do encontro que tivera e imaginando erradamente que alguem de casa de D. Lopo o tinha visto falar com o francez , disse : -- Só falei hoje a um , o conde de Berville ; vi-o ainda agora . Por signal é guapo moço , alto , bem feito e com uns olhos verdes tão brilhantes que parece que entram pelo peito dentro . Ouvindo isto , Mathilde sentiu o coração bater-lhe com tal força que se arreceiou de que as pessoas presentes lhe contassem as pulsações . -- Ah ! o conde de Berville é seu conhecido ? perguntou um moço de vinte e tantos annos , de porte austero e physionomia grave . -- É ... quer dizer ... falo-lhe às vezes ... quando acontece . -- O homem , não se afflija . Continuo com socego a fazer-nos a descripção do seu Adonis , atalhou D. Lopo . -- E bem Adonis que elle é . Nem falta quem lh'o prove . Feliz aquella que elle escolher , e Gonçalo olhava de soslaio para a filha de D. Lopo . A donzella sentia a respiração cada vez mais offegante e pedia a Deus que lhe não fosse preciso falar para que o tremor da voz a não traisse . -- Esse conde de Berville é homem de extremado valor pelo que dizem , tornou Pedro da Silveira , que assim se chamava o mancebo a quem já ouvimos pronunciar o nome do francez . -- Dizem que é valente como um leão . Não admira que seja assim numa batalha , porque mesmo em tempo de paz bem se vê quanto lhe custa deixar a espada na bainha . -- É espadachim de mais a mais , disso D. Lopo . Nunca o conheci tão bravo , sr.||_Gonçalo_Pereira Gonçalo|_Gonçalo_Pereira Pereira|_Gonçalo_Pereira . Ter relações com um espadachim , já é ! -- Pelo que ouvi dizer o conde de Berville tem tido tantos duellos , que nem já lhes sabe a conta . -- Ora isso são historias da caroxinha . Vamos ao nosso jogo . Estas cousas não são para as ouvirem senhoras . Olho como a Mathilde está pallida , e D. Lopo encaminhou Gonçalo para ao pé da mesa favorita . -- Martha , teu irmão conhece o conde do Berville ? disso baixinho a filha de D. Lopo de Menezes . -- Não sei . Que te importa isso ? -- Conheço-o apenas de nome , minha senhora , disse Pedro , que a tinha ouvido . -- Responder sem ser perguntado , é quasi ser indiscreto , disse Mathilde , gracejando para disfarçar o rubor que lhe vinha ás faces . -- V. ex.ª sabe muito bem que eu não sei usar de rodeios . Ouvi que desejava saber uma cousa e achei muito simples dizer-lh ' a sem mais diplomacias . -- Sempre severo , como dizia no outro dia meu pae quando lhe chamou não sei já o quê . -- Chamou-me Catão e eu não me offendi com isso . O genio dá-o Deus ; serio ou folgazão , ninguem póde mudar o que tem . Se podesse ! -- Se podesse , o quê ? Mudava o seu , que me mette tanto medo às vezes ? -- Mudava , mesmo para lhe não metter medo , disse Pedro , juntando uma indefinivel doçura ao tom habitualmento grave da sua voz . -- Diz isso de um modo ! Parece que fala serio . -- Sr.ª||_D._Mathilde D.|_D._Mathilde Mathilde|_D._Mathilde , quando foi que lhe eu falei do outro modo ? -- Bom , lá o temos outra vez com a testa franzida . Bem digo eu ; é incorrigivel . -- Mathilde , atalhou Martha como que reprehendendo a amiga , não o atormentes . -- Deixa-a , minha irmã . Eu é que tenho a culpa , porque não sei fingir o que não sou . -- E faz bem . Eu gosto da franqueza , até da franqueza desagradavel , continuou a caprichosa Mathilde . -- Será esse o unico merecimento , que de ora em diante procurarei conservar a seus olhos . -- Agora não vá abusar á custa da franqueza . -- Sr.ª||_D._Mathilde D.|_D._Mathilde Mathilde|_D._Mathilde , que desgraça para mim não podermos nunca concordar em cousa alguma ! Parece que todos os dias augmenta a distancia que separa todas as nossas idéas . -- É verdade , mas tambem somos dois teimosos , como não ha outros . Ao menos n ' isto parecemo-nos . -- Triste similhança , meu Deus ! e o mancebo , deixando as duas meninas , foi encostar-so a uma mesa , onde estavam alguns jornaes . Começou a percorrel- os sem lhes entender o sentido o como que alheio a tudo o que podia distraíl- o do seu continuo meditar . Ao pé d' esta mesa estava tambem outro mancebo , que de quando em quando amarrotava com gesto febril os jornaes e as cartas que lhe vinham á mão . Este tinha talvez trinta annos e chamava-se D. Luiz de Menezes . Nunca feições e porte foram melhor talhados para representar a nobreza . Apezar da sua pouca edade , D. Luiz era um d' estes homens a quem respeitamos instinctivamente desde o momento em que os vemos . As suas maneiras extremamente cortezes estavam tão longe do orgulho , como da familiaridade . A expressão do seu rosto era grave , sem melancholia nem affectação ; na fronte adivinhava-se-lhe sempre o elevado pensamento , nunca o vago sonhar ; nos olhos resplandecia serena toda a pureza de uma alma superior , e seria difficil egualar a suavidade que irradiava da sua physionomia , quando ao olhar profundo se unia o sorriso approvador da sua bocca fina e intelligente . D. Luiz de Menezes não era um homem formoso ; era talvez mais do que isso , porque era um homem verdadeiramente sympathico . D. Luiz falava pouco ; explicava a sua opinião tranquillamento e raras vezes combatia as convicções alheias . Não signicava isto frieza ou indolencia , era antes prova de uma alta philosophia , que não reconhecendo nem erros , nem acertos absolutos , acatava a sciencia humana sem lhe desconhecer as fraquezas . D. Luiz do Menezes , filho mais velho de uma casa nobilissima e ao mesmo tempo discipulo da escola philosophica inaugurada em França no seculo dezoito , estava em 1834 n ' uma posição difficil . Se por um lado via todas as tradições brilhantes de que seu pae lhe falava , prégando- lhe fidelidade aos antigos principios ; do outro appareciam-lhe no meio de exaltados pensamentos as sublimes revelações , que , derramadas pelo genio sobre o povo , foram em França a pilha electrica que o acordou do seu lethargo de seculos . E não era um cadaver galvanisado o que assim se erguia ; era um corpo cheio de vida , uma vontade cheia de vigor , uma aspiração capaz de vencer todos os obstaculos . D. Luiz de Menezes era muito moço para não sentir toda a verdade das idéas , que , partindo da França , tinham espalhado por toda a parte o elemento revolucionario . Porém acima d' esta certeza havia para elle , homem leal por excellencia , um dever mais que todos sagrado .