O Tio João Gil CHRONICA D ' aldeia POR BARROS LOBO ( Francisco ) LISBOA LIVRARIA EDITORA Viuva TAVARES CARDOSO 5 , Largo de Camões , 6 1906 Coisas da fortuna Não sei por que artes , como nem como não , tanto a tia||_Ricardina_Mendes Ricardina|_Ricardina_Mendes Mendes|_Ricardina_Mendes teceu , tanto fez , tanto batalhou , que , em summa , conseguiu desvirar o marido , -- obteve que elle lhe satisfizesse o particular gostinho de pôr o filho mais novo a estudos para padre . O tio||_Anselmo_Gil Anselmo|_Anselmo_Gil Gil|_Anselmo_Gil , a principio , dava por paus e por pedras quando a mulher lhe falava em similhante coisa ; ia ás do cabo . Era o bom e o bonito ouvil- o ! A sua voz corria toda a gamma de tons A sua argumentação era preciosa . -- E's maluca , mulher , diabo ! -- berrava elle -- Deixa-me , n ' o me tentes ... Ora mas o que se t ' a ti havia de metter em cabeça ! ... Que raio de mania , que scisma a tua ! ... N ' o quero , já te disse . E n ' o quero e n ' o posso , ' stá ' cabado , acabou se . -- Ora , ora , ora ... ponham lá o João a padre ! ... Parece-lhes ... Ponham lá o João a padre ! ... Com mil raios ! e o Manuel ? ... Tens , p ' ra lhe deixar , tanto como havia de sêr mister gastar c'o João ? ... Vá , responde ; tens ? ... -- Safa , qu' é forte mania a tua ! ! -- E atão padre ! ... logo padre ! ... Olha que grande vida ! ... Foi tempo , minha rica amiga ; foi chão que deu vinha ; hoje ser-se padre ... eu sei lá ! ... -- Mas acabou-se , ' stá ' cabado , nem padre , nem coisissima nenhuma ; n ' o posso , nem quero , acabou-se . E , sempre , que não podia e que não queria , que não queria e que não podia , -- e que ' stava acabado . Era com o que elle lhe dava . Mas afinal venceu a tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina . Aquillo , salvo seja , não era mulher , era um caustico . Tinha-lhe dado para ali ; não pensava , não sonhava n ' outra coisa : occasião que se lhe ageitasse , lá estava ella logo a advogar a sua idéa . A sua suprema ventura consistia em ouvir o seu João cantar missa : depois , em ouvindo o seu João cantar missa , podia vir a morte e leval-a , que ella já pouco se lhe dava do mundo . Foi , pois , o moço para a Guarda , para o seminário diocesano . O irmão andava no amanho das terras do casal ; a mãe trabalhava que nem uma moira no governo da sua casa ; o pae , como sempre , lá ia indo com Deus tambem na faina da lavoura , topando a tudo . Que bem se sabe como é laboriosa e complicada a vida do aldeão agricultor . Serviço não falta . Ora de carro , ora d' arado , aqui fiscalisando , além trabucando -- porque lá diz o adagio que quem não trabuca não manduca , e que ninguém caça do coração como o dono furão -- nunca essa entidade social pára , nunca cessa de labutar . Passado o primeiro anno voltou o estudante á terra , a ferias , e então houve no lar domestico mais alegrias que se do céo chovesse azeite . A sobrepeliz e a batina ficavam-lhe a matar : quando aos domingos , elle ia todo paramentado com as roupas escolasticas da profissão ajudar á missa , a mãe enlevava-se a phantasiar na creança o futuro prior da freguezia . Acontecia lhe errar mais Padre-Nossos ! ... deixar tantos em meio ! ... passar tanta vez á Ave-Maria ou á Salvè-Rainha ! ... Loucuras de mãe , a adoravel , a sublime doida da creação ! Tornou o joven ordinando para a cidade , a qual segundo o velho rifão é feia , fria e farta , e outra vez voltou a férias . Estava um tamanhão : tinha medrado um palmo e tanto . A mãe já lhe perguntava se elle ia entendendo da missa , se começava a entrar com ella ; o pae revia-se n ' elle com grande vaidade , e perguntava-lhe em meia confidencia se o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David , que vinha a ser áquelle tempo o prior da freguezia , era com effeito homem de tanto saber como se cuidava ; o irmão tinha lhe um boccadinho de inveja : natural e perdoavel inveja , que nada depõe contra o rapaz . Ao terceiro anno estava João um homem feito ; o pae descobriu então que elle não tinha grande pinta para padre , que olhava de mais para as cachópas ; a mãe estranhou-lhe não trazer elle ainda corôa aberta ; o irmão ufanava-se de o acompanhar , e ouvia-lhe assombrado as suas confidencias lamentosas ácerca do futuro a que os pães queriam votal- o . Afinal o rapaz estava desgostoso da carreira a que o destinavam . -- É que tu -- redarguia elle ao irmão -- não sabes o que é ser padre , renunciar á vida , ser um morto vivo ! Manuel , dizendo o ponto da verdade , não comprehendia bem o alcance d' estas palavras . Parecia-lhe excellente o estado ecclesiastico : não via por onde elle desmerecesse . No emtanto calava-se . Soava-lhe na voz do irmão um tom de tristeza , que sem elle saber como , nem pelo quê , lhe impunha respeitoso silencio : tirava-lhe toda a vontade d' argumentar . No anno immediato nada occorreu que valha a pena referir-se . Tudo como d' antes . No outro , no seguinte , é que rebentou a bomba : o rapaz não queria ser padre nem por mais uma : não sentia vocação nenhuma , absolutamente nenhuma , para tal modo de vida : preferia andar á rabiça do arado , a cavar terra , a roçar matto , que ser clerigo . Não estava pelas contas da mãe : não queria tomar ordens , amortalhar-se em vida . Nem á mão de Deus Padre ! As consequencias d' este desmando á vontade paterna deram que falar . O tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo era muito bom homem , sim , não ha duvida , mas tambem muito sério , nada para graças pezadas ; e quando ouviu o filho dizer-lhe abertamente que se não sentia com disposições nenhumas para sentar praça nos exercitos da milicia do Senhor , agarrou de uma soga e foi-lhe ao pello . Poz-lhe a mão e a boa vontade ! -- Ah ! n ' o queres ser padre ? ! ... -- exclamava elle . E zás ! zás ! bate que bate . -- N ' o queres ser padre , grande maroto ? ! ... E traz ! traz ! mais e mais correada , em termos que João houve de ser sangrado . A tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina chorava lagrimas de sangue por causa da rebellião do filho , e das furias do marido . Vêr cahidos por terra , derrocados , os castellos seus ideaes , com effeito , era muito : mas vêr prostrado o filho , o seu João , ella que tanto o estremecia , que tanto o idolatrava ... Seja pelo divino amor de Deus ! Mãe , e basta . -- N ' o são modos de bater ! -- dizia ella para o marido debulhada em lagrimas -- N ' o são modos de bater ... Foi uma brutalidade . O tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo afinava com tal censura . -- Isso ! ... -- bramia elle -- Isso , mulher ! é o que deve de ser ! Pois atão qual é o sê geito ? ! Queixa-te , vá : agora queixa-se de mim : pois atão ! ? ... E logo em impetos apaixonados assacava-lhe todas as responsabilidades do occorrido . -- Mas foste tu que me metteste n ' estes travalhos ! P ' r ' amor de ti é que tudo isto foi ! Tens alma de dizer que não ? ... Anda , responde ! ... E's capaz de dizer que não ? ... Ah , senhores , a minha paciencia ! ... Estas scenas passavam . se no sanctuario conjugal , discretamente . Respondiam-lhe ais e suspiros . A pobre mãe asphyxiava de dôr . Então o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo abrandava , voltava ás boas . No fim de tudo elle era amicissimo da mulher e do filho . Já lhe pezava o que tinha feito : dava aos diabos a sua cegueira . Não queria lagrimas . -- Vá lá , vá lá , n ' o chores -- dizia elle então em termos conciliadores para a mulher . -- Deixa , qu'as ventosas hão-de obrar . Umas correadas n ' o quebram osso , n ' o matam ninguem . Mais valentes tozas levei eu , e a tranca eram ellas , de mê padrasto , que Deus pordôe á su ' alma , e eu inda aqui ' stou . E era facto . O padrasto tinha-lhe dado pancada de crear bicho . O desalmado , por umas cascas de alho , muitas vezes sob pretextos fabulosos , punha-lhe uma tranca aos lombos . Estava-o sempre a zurzir . -- Vá , vá , n ' o chores -- insistia o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo conciliador . -- N ' o chores , que te n ' o quero vÊr chorar ! Deixa ... Ora tu verás qu' as ventosas foram um grande remedio ! E , coitado ! elle tinha fé na sóva . Perdoava-se mesmo o excesso commettido , por lhe parecer que haviam de ser salutares os effeitos d' ella ! Mas não . Aqui se enganou o nosso homem ; o castigo não operou o milagre que elle esperava . João não mudava de parecer : ia a mãe por um lado , iam as pessoas amigas por outro , iam parentes , iam adherentes , instavam-n* ' o a que tomasse ordens , que não desgostasse o pae , que não desse gostos aos inimigos , e a resposta era sempre a mesma , positiva , terminante : -- Nunca ! Nunca ! Em vista d' isto , d' esta resistencia , mudou o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo de tactica . -- Ora vamos lá a vêr ! -- disse elle um dia para os seus botões -- Vamos a experimentar ... E pensado e resolvido ; poz o filho a ferrador ; foi-o levar ao mestre ferrador . A apresentação foi extraordinaria . -- Faç ' -- o trabalhar , mestre Domingos ! Nada de contemplações . Elle n ' o é nenhum fidalgo , bem sabe . E se lhe faltar ' o respeito ... , se se lhe fizer fino ... , atice-lhe ! Vae por minha conta . Ha de por ahi ter um arroxo , um látego , uma tranca ... , atice-lhe ! feio e forte . Tem carta branca ... E se , vamos , que é uma comp ' ração , vossemecê n ' o estiver para ter esse incommodo , atão fale commigo , que eu lhe cá venho dar uma demão . O rapaz ouviu humildemente este discurso , e ficou-se resignado a atarracar cravos e a soffrer as basofiadas do mestre Domingos , que era sujeito que tinha orgulho do seu saber e do seu officio . A ' bocca cheia declarava elle que ainda estava por nascer quem lhe levasse a barra . Dando-lhe credito , para ajustar uns canellos ás unhas de um boi , e ageitar uma ferradura aos cascos de um solipede , não havia outro : ou se tratasse da cura de uma loba , ou de um aguamento , pedia messas ; e além d' isso ... tinha-se por um capador distincto ! João ouvia-lhe com infinita paciencia todas as gabarolas , e trabalhava . Entretanto ia o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo fazendo seus entes de razão quanto á influencia e poderio das circumstancias . O rapaz não dava mostras de arrependimento , de querer virar de rumo : a observação d' este facto obrigava o pobre pae a parafusar na sua vida . Coitado de quem é pae ! -- Nada ! -- pensava elle agora . -- O martello é uma brincadeira , estou vendo , e p ' ra vergonhaça ... temos falado ! O rapaz tem arnezes -- Uma enxada ! ... Um alvião ! ... N ' o ha com ' é uma enxada ou um alvião p ' r ' amansar . Feito este raciocinio tirou o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo o filho á tutella do mestre Domingos , passou lhe ás mãos uma enxada de dez arrateis , e polo a cavar . Mas , é bom saber-se , a razão principal d' este acto , a que mais contribuiu para que o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo assim retirasse ás carreiras o filho do officio de ferrador , foi outra , que não a que elle dizia . Elle no fim de contas era pae : debaixo d' aquelle peito cabelludo , requeimado das ardencias dos sóes , pulsava um coração amantissimo . O caso era que a estupida arrieirada déra em alcunhar-lhe o filho de " senhor abbade " , coisa com que elle se ria , e de que fingia gostar , mas Deus sabe com que alma ! Porque é desenganar ; ninguem gosta que lhe offendam os seus . A phrase voz de sangue não é puramente rhetorica . A's vezes riem-se-nos os olhos , e o coração chora . E estava n ' este caso o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo . O seu contentamento , a sua ostentosa satisfação , eram um esforçado artificio , por elle adoptado para não perder prestigio perante o filho , nem respeito perante o mundo . Lá por dentro chorava . Se lhe adivinhassem as amarguras que lhe iam n ' alma , peor seria . -- Uma enxada ! ... Uma enxada ! ... Cavar ! -- dizia elle pois em publico , de sorte a fazer crer que o seu unico intento era castigar o filho . -- N ' o ha p ' r ' amansar o burro do corpo como é uma boa enxada . O martello é uma brincadeira . Nada ! E para a mulher , ás escondidas , dizia : -- Deix ' -- o tu começar a fazer callos nas mãos , a cançar-se , e verás s ' elle quer ou n ' o quer ser padre . Verás ! ... Porque nem para outra coisa o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo machinava . Agora , era elle até a pessoa mais empenhada em que João tomasse ordens . Os ditinhos , as assuadas , os commentarios que elle ouvia , e os que lhe referiam , e ainda os que adivinhava , estimulavam-no profundamente . Ao passo que a tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina desanimava , e toda se consumia , por saber que estavam batendo palmas de contentes , vangloriados , muitos invejosos que não puderam levar á paciencia que ella e o seu homem , pelo facto de terem quatro geiras de terra , se permittissem educar um filho , o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo redobrava de actividade , enchia-se de energia , protestava triumphar . Não tardou , porém , que todas as esperanças do nosso homem tivessem um desmentido formal . Contra toda a sua espectativa , João moldava-se ao rude serviço dos campos , perseverava . Passaram-se dias , semanas , mezes , e nem signal de affrouxamento elle deu : pelo contrario . Via-se que não fora irreflectida a sua resolução : ventos , chuvas , ardores caniculares em campo descoberto , madrugadas , serões , trabalhos pezados de toda a casta , tudo elle supportava heroicamente , sem fraquejar . E ' que , não ha duvida , quando algum proposito nosso é firme , filho da reflexão , pensado , meditado , não ha nada que nos-lo abale : quanto maiores contrariedades o ameaçam , mais elle se robustece . João tinha-se consultado : faltava-lhe abnegação para o sacerdocio : o seu coração era muito humano para se desprender das coisas terrenas ; se fizesse os votos ecclesiasticos havia de ser um grande desgraçado . Tornou-se então o tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo para a mulher mesmo que ella antes tinha sido para si , para o fazer annuir aos seus desejos . Era de noite , de dia , a toda a hora , constantemente : não deixava de lastimar-se e de a affligir , accusando a de culpada dos tristes desgostos por que estava passando , e da perda inutil de uns seiscentos mil réis , pouco menos , de contado . Fazia dó ouvir o pobre do homem . Andava succumbido , apaixonadissimo . -- Tu ! ... foste tu que m ' arranjaste este bico d' obra . S ' eu te n ' o desse ouvidos ! ... s ' eu p ' ra ahi deixasse andar o rapaz , escusava agora muito bem que se rissem de mim . Mas querias um filho padre ! ... Morrias , se n ' o tinhas um filho padre ! ... ahi ' stá ! -- Ai , a minha vida , a minha vida , a minha desgraça ! ... Parece que algum peccado tinha eu a pagar ! A tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina não tinha voz que respondesse . De certo modo , e até certo ponto , estas lamentações , estes queixumes do marido , eram a traducção falada dos seus pensamentos , a expressão da sua alma . Tambem ella se carpia , tambem ella se accusava : as suas noites eram um interminavel martyrio ; levava-as a chorar . Muitas vezes clareou a manhã sem ella ainda ter posto olho . Comtudo , não era menos dolorosa a cruz de João . A este o trabalho não lhe custava . Emfim , a sua sorte era aquella : tinha de ser , resignava-se . Mas torturava-o , arrazava-o o ver-se instrumento fatal de tantas amarguras . E torturavam-n* ' o sobretudo os chascos , os escarneos da ralé vilã . Havia quem tivesse a estupenda coragem de ensinar as pobres creancinhas a sairem-lhe ao encontro , pelos caminhos , e de barrete sobraçado e mãos postas , pedirem-lhe a benção , tratando-o de sr. abbade ! ! Quem perdia a cabeça com estas e que taes infamias era Manuel . Algumas vezes parou elle desorientado , tremulo de colera , deante da canalha desenfreada . Custavam-lhe os olhos da cara os insultos ao irmão . Chegava a chorar de raiva . Mas e a mãe ? ... Se a mãe , que elle tanto amava , lhe estava sempre a pedir pela sua bôa sorte , por tudo ! que fosse prudente ! ? ... Era a voz da mãe que lhe segurava o braço , que elle era valente e bravo . Queria poupar á triste maior somma de desgostos . Entretanto a paciencia tem limites . Ha horas aziagas . Podia muito bem n ' um dado momento armar-se um conflicto de sérias consequencias . E tudo o fazia prevêr ! Felizmente que soube d' esta desordem o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David , o parocho da aldeia , e que elle accudiu presuroso a pôr-lhe cobro . As provocações continuavam , repetiam-se a miudo . O sr.||_Padre_David Padre|_Padre_David David|_Padre_David Era este um homem ainda bastante novo , mas , sem embargo , muito considerado , muito venerado por todos quantos o conheciam . Devia ter , então , mais pouco , menos pouco , os seus quarenta e cinco annos de edade , e nove , nem tanto , de profissão ecclesiastica . Por ahi uns oito e pico . Todavia , quem o visse , fazia-o mais velho : dava-lhe lá para cincoenta e tal , perto de sessenta . Porque elle estava muito avelhantado : raros cabellos pretos se lhe viam na cabeça : eram quasi todos brancos , brancos de neve . E tudo isto pelo quê ? Como se operara este phenomeno ? Dil- o a sua biographia , que é simples e triste . Formou-se em medicina , e veiu casar ali á obscura aldeia que parocheava agora . Era filho d' uma familia pobre d' um logar vizinho . Foi , durante perto de vinte mezes , um homem feliz , felicissimo : vivia na terra como se póde viver no céo ; nada o affligia , nada lhe faltava : a mulher adorava-o , e elle adorava-a a ella . Um dia , porém , entrou-lhe a morte de surpreza no lar , e arrebatou-lhe a doce companheira da sua vida . Então a dor allucinou-o , quiz morrer tambem : para si já o mundo não tinha encantos , nem a liberdade seducções que lhe falassem ao coração . Tudo era ermo , frio , atrévado ; nem luz , nem calor penetravam no abysmo da sua soledade . Adoeceu , esteve á beira do tumulo . D ' ahi a ser cadaver pouco ia . Mas em summa , não estavam ainda contados os seus dias ; lentamente , gradualmente , começou de melhorar : ao mesmo tempo ia-lhe despontando n ' alma a resignação . O espirito da fé velava por elle . Emfim , recobrou forças , e então ordenou-se padre , revestiu se para sempre da lutuosa vestidura sacerdotal . Renunciando , porém , o estado civil , de nenhum modo engeitou o novo ecclesiastico todas as faculdades propriamente seculares : se o chamavam como medico , elle ia prestar os seus serviços como medico . Só com uma differença : não reclamava paga ; não guardava vintem da clinica . Repartia pela pobreza tudo quanto os seus clientes abastados muito bem lhe queriam dar . As maiores canceiras do sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David eram os pobres , e as flores que elle por sua mão ia plantando á volta da sepultura da mulher . Nas horas livres do dia , a sua estancia era ali , no cemiterio : lá rezava as suas orações diurnas , e descançava de todas as fadigas : via medrar os cedros , via florir os goivos , via abotoar as rozeiras , e às vezes , conta-se , viam-n* ' o a elle ajoelhar sobre a terra , e ouviam-n* ' o dizer baixinho , debruçado á campa : -- Ouves-me , Izabel ? ... sou padre . Tu eras o meu unico amor na terra : morreste tu , e eu morri tambem para o mundo . Tornaremos a vêr-nos lá no ceu . Eu fio em Deus que nos havemos de tornar a vêr no ceu ! Não sei : affirmava-se isto ; aureolava-o um prestigio superior . Pois este homem , este justo , que outra coisa não era o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David , sabendo da montaria que faziam ao filho da tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina , e dos perigos que d' aqui pendiam , immediatamente começou uma campanha decidida em favor da victima : pegou do seu pausinho , uma especie de bordão de peregrino com o qual elle se ajudava por cabeços e veredas nas digressões que fazia aos casaes , a prestar os soccorros da Egreja e os da medicina , e sahiu em romaria votiva . Foi logo . Ia a coisa de fio a pavio . Chegava a um soalheiro : espreitava , escutava : vinham de lá , da assembléa , umas gargalhadas e vozes suspeitas como a cara das congressistas . Em que falavam ? De que riam tanto ? Desconfiava ... Havia de ser a proposito do filho da tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina . Approximava-se sua reverendissima . Usava uma linguagem familiar a todos , para que todos o entendessem . Não queria que ninguem ficasse deslumbrado com a selecção das palavras , e não visse as idéas . Até na egreja , nos seus sermões , assim fazia . Nada tinha de artificial : todo elle era lizura . A menos que não estivesse tratando com pessoa instruida , o seu vocabulario era pobre , a sua phrase singelissima . -- Ora vivam lá ! ... -- cumprimentava elle . Respondiam-lhe com muitas mesuras as pessoas saudadas : -- Deus venha em sua companhia , meu senhor . Viva ! -- Venha com Deus , sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David . -- Muito boas tardes , sr. prior . -- Salve-o Deus , senhor . Ninguem lhe chamava doutor , que elle não gostava . Foi tempo ! Aqui , feitos os cumprimentos , tornava sua reverendissima a tomar a palavra . -- Então de que se fala , de que se trata , que vocês tanto riem ? Começavam as respostas vez á vez . Entrava em scena com sua voz apiedada , e bem composto gesto , a mais manhosa das creaturas presentes . -- De qu' ha-de ser , mê senhor ? ... Dos nossos peccados , que são muntos . Estavamos falando da desgracia da tia||_Ricardina_do_Gil Ricardina|_Ricardina_do_Gil do|_Ricardina_do_Gil Gil|_Ricardina_do_Gil . Já viu uma coisa assim , mê senhôr ? Tanto dinheiro gasto , tanto ... Elle sempr ' o démo as arma ! ... Ora vá vossinhuria vendo como o cachopo le deu pontapé ! Elle uma pessôa ! ... O sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David ouvia . Falava outra creatura . -- Mas que doidice tamem , meu senhôr ! A tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina sempre l ' avia de dar p ' ra bôa ! ... querer um filho padre ! ... querer sêr mais qu'ás mais ! ... Não , que Deus castiga sem pau nem pedra . Bedelhava outra . -- Aquillo ! ... aquillo ! ... Quem havia de a aturar , s ' apanhasse o João prior ! ... Estou vendo ! E atão elle , que tem pinta . Bonda olhar-lhe p ' ra figura . Havia de ser um padre ! ... Sume- te , diabo ! E assim por deante . O mau era uma lingua começar : todas mettiam a sua colherada . Então , escutados os discursos , sobrevinha a replica . -- Pois está bom , está bom ! -- começava o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David . -- Têem a lingua desembaraçada , têem , sim , senhoras ! Ora Deus vos dê juizo , que bem o precisaes vós , mulheres . Então parece-vos que a tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina peccou em desejar que o filho se fizesse homem ? ... Quereis-lhe mal por isso ? ... Estaes vangloriadas da sua infelicidade ? ... Com effeito ! Pois eu vos digo e juro , que vós é que peccaes de morte gastando o tempo n ' essas murmurações ! E partindo d' aqui , d' este exordio , ahi se punha sua reverendissima a prégar um grande sermão . Primeiro falava em geral ; depois individualmente . Como elle lhes sabia dos pôdres ; como , mais ou menos , todas tinham suas culpas em cartorio , era um tal açoitar ! ... Mas sempre por bonitas maneiras . Sabia dizer as coisas por modo que os castigados ainda lhe ficavam em agradecimento . D ' ali se dirigia o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David a outro logar . Se alguma sujeita se lhe saía com ápartes , com jogralidades velhacas , armava-se de severidade e corrigia essas demazias : porque , dizia elle : " Não ha remedio . Doze proporcionada ao mal . " Applicada a reprehensão , passava o bom do homem a restituir a todos a confiança amiga que lhe tinham . A's vezes terminava a palestra contando a sua historieta . Ordinariamente dava uns cigarros , umas pitadas . Emfim , retirava-se deixando todos contentes a darem lhe mil razões pela sua doutrina de paz e amor . Que o povo é assim a modo que uma creança caprichosa , malcreada , cheia de exquisitices , mas afinal meiga . Quem a souber tratar , consegue d' ella , a bem , tudo quanto quer . Tudo ! -- Agora vou prégar a outra freguezia -- dizia entre si o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David . -- Quem se obriga a amar , obriga-se a padecer . E lá se ia elle no seu meritorio proposito , salta aqui , atalha além , brioso como um militar , decidido como um evangelista . Faz bem , não contes a quem , era a sua divisa . Em termos que não tardou que findassem as murmurações , que se dissipassem os ameaços , que havia , d' um conflicto grave . O respeito , sob as formas consideração e medo , impunha-se . Não , que o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David curava das almas e dos corpos ! E isto era muito sério . Havia umas maleitas , uma queda , um desastre , qualquer doença ? ... Venha o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David ! ... Havia extrema penuria n ' um lar , uma rixa entre vizinhos , uma desavença conjugal ? ... A casa do sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David ! Era preciso um conselho , um empenho para um negocio , uma recommendação qualquer ? ... Sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David te valha ! O sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David era o homem para todas as afflicções , a providencia , o anjo tutellar da freguezia : todo o mundo lhe sabia a porta , e todo o mundo lhe batia a ella com plena confiança : que só se de todo em todo elle não podesse servir quem o procurava , é que o não servia . Aquillo era um passaculpas , um bom serás , um mãos-rotas como poucos se topam : não tinha nada de seu : não sabia recusar nada . Era d' uma bondade sem limites . Mas ainda havia outra razão para o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David ser querido . O pobre a tudo olha . Não fazia gastar dinheiro em boticas : o receituario que mandava aviar , geralmente ia em seu nome , constituia divida sua . Por via de regra adoptava os simplices , e com elles fazia ou ensinava a fazer os remedios . Todos os annos na estação propria colhia quantas hervas de uso medicinal acaso lhe podiam vir a ser precisas . O sulphato de quinino , o alcool camphorado , a linhaça , a mostarda , o adhezivo , e algumas mais poucas drogas e preparados de vulgar applicação , nunca se lhe acabavam em casa . Tinha sempre fornecimento : dava a quem pedia . Ora , já se vê . deante d' um tal potentado tudo cedia , tudo cedeu . Logo as coisas mudaram de figura : em breves audiencias as murmurações , os achincalhamentos , acabaram . A familia Gil não mais teve que sentir por parte da vizinhança . O proprio tio||_Anselmo Anselmo|_Anselmo , apesar de todas as suas paixões , deixou-se de affligir a mulher , deitou o coração ao largo . Taes e tantas coisas o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David lhe disse , que o homem principiou a espairecer , a conformar-se com a fortuna . Findaram , pois , as troças ao filho mais novo da tia||_Ricardina Ricardina|_Ricardina , e até começou a haver por elle certas deferencias , porque o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David naturalmente se lhe affeiçoou , lhe creou amisade . Não era raro velo acompanhando o rapaz , falando com elle muito á mão . Apreciava sua reverendissima sobremaneira os seus sentimentos , a sua intelligencia . Levava horas inteiras a ouvil- o discorrer . Entretanto , por maior precaução , quiz o bom do padre assegurar de modo efficaz os resultados da sua obra . Metteu hombros á empreza . Casualmente se lhe azou o ensejo . Foi n ' uma tarde de festa , precisamente quando sua reverendissima andava mais acceso na cathequese do seu povo . A egreja estava coalhada de fieis , e o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David tinha que prégar o panegyrico do santo em honra do qual os seus freguezes guardavam o dia . Pois lançou mão da opportunidade : discursou largamente sobre o peccado da murmuração , apresentando idéas de grande effeito . Depois abicou assumpto de maior folego . -- Isto -- dizia elle para os seus botões -- é preciso . Estes estupidos são como os mosquitos : o cheiro do enxofre mata-os , derrota-os . Desatou a fallar sobre as bellezas do ceu , e os horrores do inferno . D ' ali a nada era o grito das almas na egreja : o santo , aquelle glorioso santo em honra do qual a sua voz estava vibrando , tinha conquistado o ceu á custa de virtudes : só o veriam na bemaventurança aquelles que lhe seguissem o exemplo ; os outros , os impenitentes , esperava-os o inferno : e esse inferno , tal como elle o havia pintado , era de metter medo aos mais valentes . -- Sim , o inferno -- concluiu elle . -- Espera-vos o inferno com todos os seus horrores se não praticardes o sublime preceito em que se resume toda a religião , todo o dever , o bem ; amar Deus sobre todas as coisas , e o proximo como a nós mesmo ; não murmurar , ouvi bem ; não exultar com as desventuras alheias , não rir dos que choram , não escarnecer dos que padecem , não fugir dos que pedem : dar , ter caridade , ter compaixão dos infelizes , respeitar e bem-querer a todos . Ora produziu optimos resultados este sermão ! Noticias historicas Havia na aldeia uma fabrica de saragoças pertencente a varios individuos da localidade e dos arredores , e por esta circumstancia -- denominada Engenho da Sociedade . Ao redor de Gouveia , dentro e fóra do concelho , á margem dos ribeiros que correm ali , derivados da famosa serra da Estrella , ha muitos d' estes estabelecimentos mechanicos , cujo motor é a agua . Ha os em toda a parte , e em toda a parte , por lá , elles são mais ou menos o ganha-pão , a vinha do povo . Logar povoado onde corre uma levada boa , capaz de pôr em movimento uma d' aquellas enormes rodas hydraulicas de que todos são providos , raro é o que não tem , pelo menos , um d' esses estabelecimentos . Gouveia é um grande centro industrial com larga irradiação . Na villa , que occupa uma vasta área de terreno , e contém numerosos habitantes , quasi que se podem contar estes por operarios , e as casas por officinas . Para onde quer que se voltem os olhos , para a direita , para a esquerda , para cima , para baixo , em todos os sentidos , não se vêem senão fabricas , teares , pizões , ramolas , prensas , thesouras e tintes . A eterna , a unica preoccupação de toda aquella laboriosa gente , incluindo as mulheres e as creanças , são as lãs . Ninguem pensa n ' outra coisa ; ninguem se occupa d' outro modo de vida . O constante , o maior desejo de cada individuo " é botar a sua maranha " . N ' aquillo se criam , n ' aquillo nascem , e n ' aquillo morrem . Da agricultura ha pouquissimo quem cuide a valer , apesar de serem feracissimos os campos , e excellente a promessa de lucros a quem os amanhe bem . Mas vem de longe , não é moderno , este estado de coisas : data de tempos remotos . Quem sabe ? ... Talvez dos dias do pae||_Noé Noé|_Noé . Talvez : porque foi Noema , sexta neta de Adão por seu filho Caim , quem , como se sabe , inventou o lanificio ; foi Titéa , mulher de Noé , a Vesta dos antigos , quem , depois do diluvio , ensinou as mulheres a fiar e tecer ; e Gouveia , está averiguado , é uma das mais antigas povoações portuguezas : quando Nosso Senhor||_Jesus_Christo Jesus|_Jesus_Christo Christo|_Jesus_Christo veiu ao mundo , já ella era velhota . Pois , voltando ao fio da historia , o Engenho da Sociedade estava então em imminente risco de fechar as suas portas . Tinha-se declarado uma espantosa crise industrial ; não se vendia nem um covado de fazenda portugueza . A impertinente concorrencia dos estrangeiros ao nosso mercado déra grande rebate em todo o paiz , e esse rebate fôra fatalmente repercutir-se ao vivo ali , aonde a rotina faz lei . As saragoças , unico producto industrial d' aquelles sitios , estavam pela hora da morte , desacreditadissimas ; ninguem lhes pegava . Durante um bello periodo de prosperidade local , creou-se uma chusma de fabricantes que deram mais de prompto com o negocio em pantana . Os abusos praticados por essa legião de especuladores foram de tal ordem que produziram estranho fracasso . Todos queriam ganhar mundos e fundos ; poucos olhavam a credito : fazia vento , molhavam-se as velas . Era um pasmar ver o afan e a imprevidencia que reinavam ! Hoje ainda , e já lá vae decorrido um bom par de annos , fala-se muito a miudo de certos episodios comicos dados n ' esse tempo feliz , de saudosa memoria . Houve muito quem dando ao sarilho nas ramolas , para fazer chegar os pannos " á marca " , fosse malhar com o costado em fragas distantes . A fazenda , de tão esticada que ella era , rasgava a meio , despedaçava-se ; e a que resistia a estes tratos ' e ia aos mercados , depois da molhadura minguava palmo e meio por metro . Em termos que quem comprava uma roupa inteira achava-se com umas calças ... e uns restos para fundilhos ! Ora esta desordem , hoje restabelecida , tinha de dar brado , e deu-o , e monumental . Tudo tem seus limites ; o povo é ignorante , mas não é parvo . Parvo é quem o quer fazer . estavam-n* ' o a explorar , e ainda por cima a escarnecel- o ! O escandalo era espantoso , inaudito ; aquelles que lhe vendiam o fato , iam-n* ' o comprar para si aos estrangeiros , que , em conclusão , estavam oíferecendo pannos de bellissimo acabamento , e optima la , por preços muito inferiores aos dos da ruim e mal encarados que a industria nacional offerecia . Por conseguinte caiu por terra a industria das saragoças . Covilhã , Arrentella , e outros centros fabris que tinham sahido da rotina , e achavam-se de algum modo habilitados a affrontar a concorrencia que lhe estavam fazendo , luctavam com difficuldades graves ; Gouveia , que tinha retrogradado , luctava com ellas maiores . Os clamores da miseria começavam a estrugir nos ares ; as tantas mil familias que viviam das lãs , viam-se a braços com a fome ; os proprietarios das fabricas , os grandes industriaes , uns esperançados em melhores dias , reduziam a um quinto o seu pessoal , palliavam ; outros , desorientados , atemorisados , fechavam ; e os salarios para os escolhidos da fortuna desciam , a uma taxa impossivel . Era medonha a crise . Em consequencia de tudo isto foram chamados a capitulo os accionistas do Engenho da Sociedade . -- Fechamos , ou o que fazemos ? -- era o problema . -- Fechemos ! -- opinavam uns . -- Fechemos ! É um disparate ter a fabrica aberta . Não ha trabalho ; não merece a pena fazer sacrificios , estar em cuidados . Fechemos . -- Mas as machinas paradas estragam-se ! -- objectavam outros criteriosamente . -- E alguma freguezia que temos muda , perde-se ! -- accrescentavam outros . -- Mas então que fazer ? Como resolver a questão ? Este é que era o buzilis ; se fechavam o estabelecimento , lá ficavam as machinas a ser comidas da ferrugem , e lá se ia a freguezia ; se continuavam a fazer lãs por conta própria , perdiam um dinheirão . E assim voltavam sempre ao ponto de partida : nem atavam , nem desatavam : achavam-se n ' um tremendo circulo vicioso . A solução do problema que a fatalidade lhes impunha , cada vez se embrulhava mais ; uns diziam , outros contradiziam : alvitres bons , capazes , nem um se offerecia . Tudo eram choradeiras e questiunculas . Nem todos , porém , concordavam em que era insanavel a ruina da industria das saragoças . Contra a opinião geral estava em flagrantissima discordancia uma porção de individuos , ao numero dos quaes pertencia um ali achado na sua qualidade de accionista do Engenho , e que , emfim , cançou-se de ouvir falar e falou tambem por sua vez . Era o tal um homem popularissimo , de nenhuns estudos , mas de reconhecido talento . Ali na aldeia , d' onde elle era , e bem assim no concelho , como em todo o districto , e ainda por longes terras , consideravam n ' o , respeitavam-n* ' o . -- Isto n ' o tem geito nenhum , meus senhores -- disse elle . -- Estamos aqui ha mais de tres horas a patinhar no mesmo terreno . Estamos como as bestas das noras , p ' ra traz e p ' ra diante , pr ' a traz e p ' ra diante , e sempre no mesmo sitio ! Já me vão alembrando os deputados nas cambras ; munta conversa , e nada d' obras . Ora , por amor de Deus ! vamos a despachar ; vamos a tomar uma resolução . Querem-me ouvir ? ... -- Fale ! ... Fale o sr.||_Zé_Joaquim Zé|_Zé_Joaquim Joaquim|_Zé_Joaquim ! -- conclamaram trinta vozes em perfeito unisono . Todos o queriam ouvir ; confiavam muito n ' elle , anciavam saber a sua opinião . Elle , até agora , tinha escutado . Zé Joaquim não se fez rogar muito . Assim que se restabeleceu o silencio , começou a falar . -- Tenho estado p ' r ' aqui a ouvir ... Todos dizem que a industria das saragoças está morta ; todos estão desanimados . Pois eu cá digo que ella n ' o está tal morta ! E não , e não , e não ! -- aporfiou elle desenganadamente . Esta vehemencia do orador na affirmativa das suas convicções , fez brilhar relampagos de alegria nos olhos dos ouvintes mais descrentes . Não ha ninguem que não goste de que o contradigam a sério sobre apprehensões tristes . Sente-se um allivio salutar quando nos denegam razão ácerca de quaesquer infelicidades que presumimos que nos vão acontecer . A phantasia tem artes para illudir a consciencia . -- A industria das saragoças n ' o póde morrer sem nós o querermos , senhores ! -- continuou Zé Joaquim -- Dizer-se que os estrangeiros a mataram , é uma falsidade : quem a arruinou fomos nós , e nós é que lhe podemos tornar a dar força . Nós , que não mais ninguem ! -- Se o remedio estivesse na nossa mão ! -- disse do lado um dos ouvintes . -- Pois ' stá , ' stá -- retrucou lhe convicto o fogoso orador . -- O remédio ' stá na nossa mão , meus senhores -- repetiu elle , dirigindo-se a todos . -- O remedio temolo nós ; é n ' o desanimarmos ; é n ' o deixarmos pôr pé em ramo verde a esses diabos que s ' arvoram em fabricantes e que vão ao mercado com meia amostra , feita por esmola , desacreditar os nossos pannos e arrastar-lhes o preço : é obrar fazenda boa . Os estrangeiros vieram aproveitar-se do nosso descredito , e estão-nos fazendo mal , mas n ' o nol- o podem continuar a fazer , n ' o podem competir com+nós , se nós o quizermos , se nós nos pozermos álerta . E se não vejam : elles têem lá lãs alguma coisa mais baratas ? Nós temos cá a alfandega a contrabalançar os preços . As fazendas d' elles são mais bonitas ? Em compensação as nossas são mais duradoiras , sendo boas . Todo o mundo o sabe ; n ' o ha nada p ' ra bater , como é um boccado de boa saragoça . Os pobres olham á dura , e não á lindeza . Esta asserção teve os seus commentarios , findos os quaes o orador recomeçou . -- Emfim , meus senhores ! ... nós temos mil vantagens sobre os estrangeiros n ' este negocio de que tratamos : lá fora os salarios são altos ; aqui um homem ganha doze vintens por dia : lá fóra os engenhos são movidos á força de vapor , que se n ' o faz sem munto dinheiro , sem munto carvão ; aqui , louvado seja o Senhor , os engenhos trabalham todos á força d' agua , de graça ! -- Mas sendo assim -- observou ironicamente um dos socios da fabrica -- sendo assim , como é que elles , os estrangeiros , vendem mais barato que nós ? ! ... Esta objecção teve muitos applausos . Já todos começavam a descrer da experteza de Zé Joaquim : viam-n* ' o enterrar-se , apresentar argumentos contrarios ás suas presumidas idéas . Elle , porém , não se confundiu : ao passo que a assembléa lhe dava um voto de censura , ria-se elle lá por dentro , exultava . -- Pois ahi ! ... ahi é que eu quero chegar ! ... -- bradou elle triumphantemente -- É ahi mesmo que eu quero chegar . Ainda bem ! Calou-se tudo . Este enthusiasmo do orador emmudeceu a assembléa . -- Sabem pelo que é ? Querem que eu lh'o diga ? -- perguntou elle -- É porque teem machinas incomparavelmente mais perfeitas e mais productoras do que nós ! É porque emquanto uma cardadeira , ou uma fiadeira nossa , produz o trabalho , e mau , de vinte operarios , suppomos , as d' elles produzem o trabalho , e perfeito , de sessenta ou oitenta operarios ! É por isto que elles vendem , ganhando , melhor e mais barato . Ninguem teve animo , que replicasse : a resposta era á lettra , e era incombativel . Houve applausos ao orador , que se deu pressa em aproveitar esta aragem de sorte . -- E agora -- tornou elle -- querem que eu seja franco ? Querem a minha opinião ? ... Ahi vae ella : Proponho que a direcção do Engenho estude as conveniencias de se fazer immediata acquisição de machinas perfeitas , que produzam mais e melhor trabalho do que as que temos , que de mais a mais estão gastas ; nem garantem lucro , nem perfeição ; trabalham pouco e mal . Este alvitre foi proposto no meio d' um berreiro d' ensurdecer . Todos protestavam . Não queriam comprometter mais capital . A industria estava morta , diziam . Entretanto Zé Joaquim não se deu por vencido : insistiu sempre na sua proposta ; berrou tambem , gritou . Uns bons pulmões valem muitas vezes um grande orador . -- Não importa ! -- bradava elle . -- Não importa comprometter mais algum capital . Havemos de o desforrar , e cêdo . Aproveitemo-nos , antes que outros se aproveitem ! Temos ahi algumas machinas que já n ' o valem um pataco : substituam-se , comprem-se outras , chamemos freguezia . Habilitemo-nos antes que alguem se habilite . A nossa fiadeira está estragada ; o fio que ella dá é todo encaroçado , desigual , impossivel : ninguem aproveita os serviços d' ella , senão quando de todo em todo n ' o pode deixar de ser . Outra ! Venha outra , e venham uma ou duas lustradeiras , uma cardadeira , dois ou três pizões de ferro ... o que fôr preciso ! Quanto necessitamos ? ... dez contos ? quinze , vinte contos ? ... Abra-se subscrição , escreva-se p ' r ' a Belgica , peçam-se as machinas p ' ra lá ! E como de facto ; escreveu-se para a Belgica encommendando as machinas . Afinal o homem lá venceu a batalha : os seus consocios renderam-se á razão da logica . Perto de quatro mezes depois estavam essas machinas na aldeia , e d' ahi a dias chegava um tal sr.||_Garrik Garrik|_Garrik , representante e enviado da casa que fazia o fornecimento , e que vinha , segundo fôra condição de compra , dirigir e velar a montagem d' ellas . Meia anedocta O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik apparecia pela primeira vez em Portugal . Nem mesmo a Hespanha ainda tinha ido . Havia cerca de um anno estivera para vir ali ao pé , a pouco mais d' uma legua de distancia , a Gouveia , a fim de regular certos negopcios da casa de que era empregado , mas , afinal , a casa teve de o occupar em uma outra commissão de serviço mais importante , e nomeou-lhe substituto . Agora enviava-o principalmente porque pensava em alargar as suas operações commerciaes n ' este recanto da peninsula , e depositava absoluta confiança n ' elle , na sua intelligencia , na sua actividade , no seu comprovado cavalheirismo . Veiu , pois , o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik , mas ás cegas . Não percebia nem patavina de portuguez . O que ainda lhe valia um pouco , era um pequeno diccionario que elle trazia debaixo do braço , e ao qual estava sempre a recorrer . Uma volta , duas , abria esse livro , que podia muito bem ser tomado por um breviario , e fazel- o passar a si por padre , graças ao seu typo , á queda dos cabellos da cabeça , e á roupa do seu uzo , preta e gravemente cortada , tal como convem a um honesto ecclesiastico . Emfim , chegou á aldeia e foi accommodar-se na estalagem que lá havia , mercê do costume em que muitos almocreves estavam de jornadear pela estrada velha , e ali pernoitarem alguns . Explicou-se por signaes e vozes . Falava uma trapalhada de linguas ao mesmo tempo , e exhibia largos gestos mimicos para se fazer comprehender da hospedeira , mulher assás tacanha , que o ouvia e o observava embasbacada , com muita vontade de se rir . Não o entendia ; deixou-o falar : por fim lá se dignou fazer-lhe uma pergunta . -- Vomecê dorme cá ? O belga , depois de matutar um boccado , a ver se adivinhava o que a dona da casa lhe tinha dito , respondeu confessando a sua insufficiencia . Abanou a cabeça negativamente , e fez uns gestos complementares com os olhos e as mãos . -- Ah ! n ' o m ' intende ? ! ... Prégunto- lhe se vomecê cá dorme ? ... O homem tornou a picundar . De vez em quando fitava os olhos na patroa , que era creatura muito tentadora do peccado , e que sabendo que o era , por isso , como para se proteger , chamou a si um rapagão , filhito , que andava por ali brincando em fralda de camiza , muito sujinho , e que foi agarrar-se-lhe ás saias , a olhar desconfiado para o estrangeiro . O almocreve que tinha trazido aquella celebridade á terra , foi de grande valimento n ' este apuro . Vinha de arreçoar o macho , chegando-se a receber ordens e a fazer jus á ceia . -- Este mussiu -- explicou elle dando-se ares -- é a modo q ' um senhor que vem cá á terra n ' o sei p ' ra quê ; parece que p ' ra vender mánicas . N ' o é isso ? -- perguntou elle ao belga . -- O musssiu n ' o vem cá á terra p ' ra vender mánicas ? Esta ultima palavra já era familiar aos ouvidos do sr.||_Garrik Garrik|_Garrik . Se ella era bem , se mal pronunciada , não o sabia elle ; mas , em summa , entendia-a , sabia-lhe a correspondente em francez . N ' estes termos , ainda que sem boa consciencia do que dizia , respondeu o homem que sim á pergunta do almocreve . Entretanto , a grande idea do belga era fazer perceber que vinha ali expressamente para montar as machinas que deviam ter chegado á fabrica ; e tanto elle fez n ' este sentido , tanto disse , que , emfim , á custa de momices , e da leitura , feita pelo almocreve , do sobrescripto d' uma carta credencial que elle trazia para o nosso conhecido Zé Joaquim , conseguiu o sujeito o que queria . A estalajadeira veiu ao conhecimento dos factos . -- Ah ! -- exclamou ella com viva satisfação da descoberta . -- Vomecê é qu'é o senhor que vem armar as manicas ó ingenho ? ! ... Agóra , agóra ! ... Pois diga-m ' isso . Agóra , agóra ! ... O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik reconheceu que tinha sido percebido , e começou de dar parabens á fortuna , muito contente . A hospedeira riu-se das alegrias d' elle , e ficou entendendo , sobretudo , que tinha ali uma mina , e uma fabrica de gargalhadas . Não podia ouvir nem encarar na creatura a sério ! Feito este reconhecimento subiu a mulhersinha a preparar quarto e ceia ao seu hospede . Este , seguido do arrieiro , subiu tambem o balcão , e lá em cima , no patamar , sentou-se a gozar a paizagem , e as impressões covas dos costumes da terra . Ria que nem um perdido ouvindo uma visinha a chamar ao poleiro as suas gallinhas : imitava-a com grande gaudio do almocreve . -- Pi ! ... pi ! ... pi ! ... pi ! ... C ' est bon , c'est bon , vá ! -- bradava elle . -- Pi ! ... pi ! ... pi ! ... pi ! ... Ah ! ah ! ah ! ah ! Achava graça ao modo portuguez . D ' ahi a boa meia hora veiu a estalajadeira chamal- o . O almocreve , por sua conta e risco , mandara abreviar a ceia por ordem do patrão , Foram . Esperava-os n ' uma saleta de paredes interiores simplesmenta tabicadas , e telha vã , um pratalhaz de bacalhau cozido com as competentes batatas e cebollas á volta , vinho , pão , azeitonas e queijo . O almocreve , depois das devidas continencias , tomou logar ao fundo da meza , e poz-se a comer . Era cada tracalhaz de rasgar a guella ! O belga cheirou o peixe , e ficou satisfeito só com o cheiro . Não quiz . -- Não tem mais nada ? ... Não ha senão isto ? ... -- perguntou elle de diversas maneiras á patrôa em legitimo francez . -- Intende o ? -- perguntou a hospedeira ao almocreve . -- Sabe o que elle quer dizer na sua ? O almocreve , para se não interromper no grave trabalho da mastigação , respondeu negativamente por um monosy labo . -- Pois eu ! ... -- murmurou ella encolhendo os hombros . Tambem não entendia . O belga calou-se , e começou a olhar para tudo minuciosamente . Examinou as paredes , depois o tecto , depois o mobiliario , e ficou-se a meditar . -- Aonde eu vim cair ! -- dizia elle lá comsigo . -- Estou arranjadinho ! ninguem me entende ! ... Isto é que é uma desgraça ! Mas tinha uma esperança : o representante da fabrica devia saber francez . -- Oh , sem duvida ! -- exclamava elle . Nem pela idéa lhe passava que não . Por outra : não queria crêr em tal . Deitou-se . Estava fatigadissimo . Ainda bem não eram passados dez minutos , estava a estalajadeira a bater-lhe á porta . -- Apague a luz , tiosinho ! Olhe n ' o deite fogo á casa ! ... O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik , amuado , zangado , e já certo de que pretender informar-se do que a hospedeira lhe dizia era tempo perdido , assoprou de rebemdita á candeia , e voltou-se para o outro lado . -- Isso ! ... isso ! ... -- disse a estalajadeira quando viu extinguir-se a luz . -- Tenho muito mêdo do fogo ! Credo ! S.||_Braz Braz|_Braz ! ... Pela manhã cêdo ergueu-se o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik , e foi-se em cata do seu homem , de Zé Joaquim . Não estava : devia vir lá por tarde , disseram-lhe . Tinha sahido na vespera com destino a Celorico . No engenho responderam-lhe o mesmo . Mas que ralações , que difficuldades para se fazer comprehender das pessoas a quem se dirigia ! Em consequencia de taes informações voltou o nosso homem para a estalagem , e pediu o almoço . Apontava para a bocca , e depois para a barriga . Era claro ; tinha fome , queria comer . -- Ah ! quer almoçar ? tem fome ? ... -- disse a estalajadeira . O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik fez-lhe um gesto , convidando-o a esperar , e abriu o diccionario . -- Oui : almozar ! ... fóma ! -- confirmou elle depois da consulta ao diccionario . -- Fó ... me -- ensinou a hospedeira . -- C ' est çà : fóma . -- Fó-m ... e ... me ... Fóme ... -- corrigiu pedagogicamente a mulher . Em seguida retirou-se á cosinha , e d' ahi a pedaço foi chamar o hospede . Estava servido o almoço : bacalhau cozido com batatas e cebôla , vinho , queijo e pão , mas o pão , d' esta vez , do de centeio . O belga fez grande espanto . Outra vez bacalhau ! Bacalhau tambem ao almoço ! ... -- Que é ? ... n ' o gosta ? ... -- Nó , nó , nó gosta ... -- Então que quer vomecê ? ... carne ? ... Mas só se lhe der prezunto , que d' outra n ' o n ' a tenho cá : o carneiro acabou-se . Inda s ' o mê homem n ' o estivesse doente , que podesse maçar hoje uma badana qu'ahi temos ... Respondeu-lhe o belga com uma careta de metter medo . Que diacho lhe estava ella a dizer ? ! ... -- Olhe lá , e sarda , quer ? ... Quer cavalla ? O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik fez-lhe signal de que não percebia , e a mulher foi lesta buscar a tal sarda , ou cavalla , que fazia repugnancia de tão amarellida que estava . -- E d' isto , gosta ? Imaginem , se podem , a desillusão , o desespero do homem n ' esta conjunctura ! Ergueu-se agitadissimo . Parecia uma féra ; deitava lume pelos olhos . A hospedeira retirou-se á boa paz . Viu-o fazer taes trejeitos , que lhe tomou medo . -- Mas aonde eu vim cair ! ... Aonde eu vim cair , santo Deus ! ... -- brandava o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik em altas vozes . Meia hora depois afoitou-se a mulhersinha a vir espreitar o seu hospede , e apanhou o comendo queijo abrutadamente , sem pão . Entrou ... Ella , afinal , tinha seu dó do homem . Dirigiu-lhe a palavra nos termos mais adocicados que poude , e com certo ar de lastima . -- Atão vomecê come sem pão ! ? ... N ' o gosta ? ... Uma coisa assim ! ... Já viram ? ... Nem lhe serve o bacalhau , nem a sarda , nem o prezunto , nem o pão ... Ai , os mês travalhos ! ... Está um bom biqueiro , o sr. francez ! ... O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik deixava a fallar , e ia rabusnando a meia voz . Dizia mal á sua sorte . Condemnado a almoçar queijo ! Pôrem- lhe pão negro , avinagrado ! De repente voltou-se para a mulher , e fez-lhe signal de que lhe desejava explicar alguma cousa . Abriu o diccionario e apontou-lhe uma palavra . A hospedeira declarou-lhe sem mais demora que não sabia lêr . Tambem ella já se dispensava de falar : expressava-se mimicamente . Então teve o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik nova idéa : convidou a mulher a acompanhal- o á janella , e apontando-lhe lá para longe , para um ponto vago , e começando a esfarellar pão na rua , rompeu n ' estas vozes : -- Poule ! ... poulel ... Pi ! ... pi ! ... pi ! ... Poule ! poule ! Comment s ' appele ? ... O pobre do homem , entende se , falava lhe em gallinhas . Queria que ella lhe servisse gallinha . Tudo isto eram reminiscencias da scena que na vespera presenceára . -- Eu morra , se eu o intendo ! . . -- dizia a hospedeira . O belga insistia : -- Pi ! ... pi ! ... pil ... pi ! ... Poule ! poule ! Comment s ' appele ? Mas tudo em vão : a mulher não atinava que o belga lhe estava falando em gallinhas . Tinha mais vontade de se rir , que de coisa nenhuma . Ultimamente , como os manejos do sr.||_Garrik Garrik|_Garrik lhe fizessem enormes cócegas , retirou-se com toda a prudencia da boa educação . -- Or ' a os mês travalhos ! -- foi ella dizer para o marido , que estava de cama com umas quartans . -- Fala uma lingua mais damnada , o démo do francez , que n ' o sou capaz de o entender . Olha ... põe-se-me assim : " Pi ! . , pi ! . , pi ! . , pi ! ... Pule ! pule ! . . " E falla-m ' em pellar , pellar , e n ' o sei que mais ... " Pelle ! pelle ! . . " diz elle . Já viste ? ... Puz-lhe bacalhau , troceu-lh ' o nariz . Já hontem foi o mesmo passo . Préguntei lhe se queria prezunto com ovos ... moita , carrasco ! fez-lhe caretas . Préguntei lhe se queria sarda , e até lh'a mostrei ... ai , o demo do homem ! . . que trombas qu'elle lhe fez ! ... Parece-te ? ... Pão , nem lhe mexeu . Isso é que talvez elle n ' o goste : puz-lhe do de centeio , que n ' o tenho cá d' outro . Queijo ... isso , sim ! come-o que nem um damnado : é cada naco ! ... Faz idéa : comeu já um queijo de mais de tres arrateis ! N ' este ponto foi a hospedeira chamada em altos berros pelo belga . O homem gritava que nem um possesso , como se lhe houvesse apparecido a fortuna ali . Era o caso que tinha bispado umas gallinhas na rua , e fora e caçara uma . Vinha radiante , com ella agarrada pelas azas . A hospedeira accudiu ás carreiras a saber o que havia , e parou espantada em frente do sr.||_Garrik Garrik|_Garrik . N ' um instante caiu em si , entendeu-o . A recente scena do esfarellamento do pão , e d' aquelle pi-pi que ella não comprehendeu , estava explicada , sabida . O homem queria gailinha . Foi , pois , e matou-lhe uma gallinha . Cozinhada ella , o sr.||_Garrick Garrick|_Garrick devorou-a . -- O preço faz tudo ! -- disse lá para comsigo a hospedeira . E já ella contava com grandes lucros d' este hospede ! ... Enganou-se , porém ; pela tarde regressou á aldeia Zé Joaquim , e foi lh'o tirar . Levou-o bizarramente para sua casa , onde o entendiam como Deus era servido , mas o tratavam á maravilha . Zé Joaquim nao sabia nada de francez : em compensação era muito intelligente ; fazia-se entender do sr.||_Garrik Garrik|_Garrik , e entendia o tambem a elle . O diccionario prestava um servição a ambos . Além d' isto elles tinham um interprete . Era o sr.||_Padre_David Padre|_Padre_David David|_Padre_David , que , se não sabia muito , sabia o bastante para lhes adoçar a situação , para os ajudar nas suas relações . Scenas da vida D ' ahi a dois dias estava o belga todo entregue á montagem das machinas que deviam fazer do obscuro Engenho da Sociedade um dos principaes estabelecimentos do seu genero entre os do paiz . Era domingo : as portas da fabrica estavam abertas : João entrou . Ia muita gente , levada da curiosidade , ver as " manicas " e o " sr. francez " . O belga era na terra uma especie de animal raro , digno de vêr-se . A dona da estalagem dissera d' elle o bastante para o tornar celebre . João foi na corrente . Passavam-se ahi scenas curiosissimas , indescriptiveis . Por grande infelicidade , Zé Joaquim tivera que ausentar-se da aldeia n ' aquelle dia , por causa de negocios urgentes da administração da sua casa , e o sr.||_padre|_David padre||_padre|_David David|_padre|_David estava de véla á cabeceira d' um enfermo , cujo estado , por grave , reclamava os seus duplos cuidados de medico e de sacerdote . O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik suava a bagadas para se fazer comprehenderdos operarios que o ajudavam na sua tarefa . Primeiro que o entendessem , eram trabalhos : se pedia uma chave de parafusos pequena , um torno de mão , uma lima , um esquadro , qualquer peça de ferramenta , qualquer objecto , traziam-lhe tudo quanto lhes accudia á idéa , menos o que elle desejava que lhe servissem . Dava vontade de rir ouvil- o carpir-se ! Cançava- se a chamar-lhes estupidos , bestiagas ( gros bête ) . Quando João entrou , pedia o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik um pouco d' azeite n ' um caco , para bezuntar não sei que molas , e destemperal as ao fogo , porque ellas tinham força seperior á conveniente para bem funccionarem ; e nada de novo ! Abria o diccionario , apontava a palavra portugueza que não sabia pronunciar , ou que pronunciava tão mal que ninguem a entendia , e era equivalente ao vocabulo francez , e ainda a mesma coisa . Aquelles desgraçados não sabiam ler ! Corria a roda , apresentava o livro a um por um , e todos viam , e todos encolhiam os hombros . Não sabiam lêr ! Isto parecerá inverosimil , e devia-o ser , por honra nossa ; mas , infelismente , é verdadeiro Ha trinta annos havia na Beira povoações importantes , onde , se muito , existiam duas pessoas que sabiam ler ; o padre e o sachristão . E pouco se tem progredido ! Em vista d' isto , o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik perdia a cabeça , dizia coisas do arco da velha . Ao pé de si , em consulta , estava um bando de homens , cada qual com sua coisa na mão , sem atinarem o que elle queria . Caras mais assarapantadas , nem pintando-as ! Naturalmente , muito naturalmente até , João Gil perguntou o que havia . -- Que é ? ... -- Huile ! ... huile ! ... c'est ce que je desire ! mon Diéu ! -- bradou n ' um repente desesperado o belga respondendo assim ao acaso á pergunta do rapaz . -- Azeite ! azeite ! Diz que quer azeite . Pede azeite -- disse João para aquelles pobres diabos , que já iam estando fartos do belga até ás orelhas . Descrentes , mas por experiencia , foram os operarios por uma almotelia de azeite , e trouxeram-a . O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik não tinha dado pela intervenção de João . Quando viu a almotelia rompeu em áléluias . -- Sucia de bestas ! até que emfim ! ... -- bradava elle -- Até que emfim , entenderam me , os alarves ! ... Depois ia a pedir um caco , uma tijella qualquer pedaço de barro aonde deitasse o azeite , e teve como que um deslumbramento . Fugiu-lhe a fala . Atraz de si , um tanto acanhado , mas falando correntemente o francez , estava João Gil a offerecer-se-lhe para lhe servir de interprete . O sr.||_Garrik Garrik|_Garrik julgou-se victima de um desvario dos sentidos . Não queria crer que lhe estivessem falando em francez : olhava para o rapaz , para o seu arranjo de trabalhador , para as suas mãos callejadas , e suppunha-se sonhando . Mas depois ... , ah , senhores ! ... que alegrias , que delirio , que loucura festival ! ... Ter quem o entendesse ! ... ter um interprete ! ... ter com quem communicar ! ... Que grande , que inextimavel felicidade ! Foi direito ao rapaz levantou-o ao collo , abraçou-o , ia-o beijando ! Por pouco o não beijou . Aquelles latagões presentes estavam embasbacados , a observar a scena . -- O João a falar francez ? ! Mas então elle para se ser padre estudava-se francez ? ... -- pensavam elles . Distrahiu-os o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik das suas preoccupações mentaes com um berro , uma especie de voz militar d' attenção , em seguida á qual falou com João Gil , e esperou que elle falasse da sua parte á turba ignara que o ajudava . -- Diz o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik que agora fala commigo para eu explicar o que elle quer , e que é a mim que vossemecês devem dizer o que lhe querem a elle . Isto disse o rapaz simplesmente ; mas o que o sr.||_Garrik Garrik|_Garrik lhe disse em muito bom francez , foi : -- Por favor ! Diga a estes alarves que o senhor quer ter a bondade de me servir de interprete , e que eu os intimo a cumprirem as suas ordens sem pestanejar . Assim mesmo ! São umas bestas que me têem feito de fel e vinagre . João foi delicadissimo , como se vê . O belga , quando elle acabou de dar o recado , tornou-o a abraçar , e olhou para os trabalhadores como quem diz : -- Nós cá sômos gente . Vós sois umas bestas , não sois homens ! Depois voltou ao seu trabalho . De quando em quando papagueava com João , tratando-o como a amigo velho , e ia-se informando com muito interesse da historia da sua vida . Era pae , e muito bom homem : ahi está . Pequenos pormenores lhe prendiam seriamente a attenção . Queria saber tudo : o seu interprete inspirava-lhe profunda sympathia . N ' um d' estes cavacos appareceram , entre muitos outros , trez espectadores distinctos ;