SERÕES MANUELINOS-Y I A SENHORA||_DUQUEZA DUQUEZA|_DUQUEZA POR LUCIANO CORDEIRO LISBOA LIVRARIA FERIN 70 , Rua Nova do Almada, 71 A SUAS ALTEZAS REAES O Principe D. Carlos E A PRIMA D. AMELIA Duques DE BRAGANÇA E por ser historia de gosto e sabor Ordena o author de a representar , Porque vejaes Que cousas passaram na serra onde estaes . Feitas em comedia mui chan e moral E os mesmos da historia polo natural E quanto falláram , nem menos , nem mais . Gil Vicente . Não faço um romance . Procuro instruir um processo sobre o qual pesa , ha tres seculos , uma lenda incongruente e truncada . Das folhas d' esse processo perderam-se umas na destruição dos Archivos , obliteraram-se outras no attrito da Imaginação , não poucas nas preoccupações da Mentira cortesã . A unica que resistiu ao Tempo e á Lenda , ficou quasi inteiramente esquecida e inedita , em parte por ignorancia , em parte por acintosa reserva . E , comtudo , essa folha amarellecida , cheia de gavinhas tortuosas e de frias solemnidades tabellioas , era um drama fortemente naturalista , vibrando ainda os terrores da catastrophe . Como um phonographo de hoje , guardava-nos no grito extremo de Leonor de Mendonça , não só uma preciosa nota da vida real e intima do século XVI , mas uma lição , tambem , de como a Natureza despedaça implacavelmente n ' um minuto os calculos e os interesses de annos que não quizeram contar com ella . Porque não interrogar a Sphinge ? Porque fugir á reconstrucção da verdade positiva e necessaria ? Porque é inutil ? Porque é impossivel ? Porque é indiscreto ? Inutil é só a Ignorancia e o Erro . O impossivel , quando não seja o que lhe chamou rudemente Napoleão , ou alguém por elle : -- la logique des anes , -- ha de ser o melhor estimulo , o mais fino contraste da Intelligencia e da Vontade que vão levando adiante de si , fazendo recuar incessantemente , através do Tempo , como através do Espaço , a tyrannia do Desconhecido . Indiscrição ? mais do que indiscreto , e sobre injusto , impertinente e ridiculo , fora o retrahimento e o receio . Que ha de affrontoso para a mais gloriosa e legitima prosapia , -- que póde haver de extraordinario e deprimente para a mais illustre geneologia , em se lhe ter emmaranhado um dia na historica ramagem , um d' esses dramas sombrios , um desses episodios sangrentos vindos nas evoluções da moral , dos costumes , da politica dos tempos ? Qual a arvore , por mais viçosa e sã , que não deixou cahir no chão ou na Historia um fructo abortado nas multiplas perturbações da Natureza , ou ferido de morte pelas correntes atmosphericas que ora a acariciam e alentam , ora a sacodem , ferozes , ou lhe trazem perfidamente o microbio funesto ? E quantas rehabilitações , tambem , não temos todos os dias de arrancar á Lenda que se fechou como o zinco d' um esquife mortuario , soldado pela paixão ou pela indifferença das gerações sobre um facto mal julgado , sobre uma existencia mal comprehendida ? Seria realmente monstruoso que ao cabo do seculo XIX , o historiador , o critico , o estudioso , encontrando no caminho um problema ou um assumpto , um berço ou uma sepultura , um coração ou um craneo do século XVI , impozesse á curiosidade propria ou ao interesse da verdade historica a abstenção e o silencio d' um respeito de convenção ou d' uma sentimentalidade de preconceito . Além de que essa abstenção e de que esse silencio poderiam resolver-se n ' uma cumplicidade com a Injustiça e n ' uma cobardia perante o Erro . E porque a comedia vai já declarada E tão raso o estylo , -- não serve de nada O mais argumento : e cerro a ementa . . PARTE I BRAGANÇA E SIDONIA Casos succedem no mundo que parece se descuida Deus do governo d' elle ... A. Vieira . -- Or. fun.nas exeq . de D. Maria de Athayde O caso , -- como nol- o transmittiu a Historia , -- meio perdido por anecdota banal nos ruidos espantosos de uma época em que germinava um mundo ; -- como o tem querido devassar e reconstruir a Arte nos estos insaciaveis da sua inspiração creadora , -- o caso foi este : -- simples e nitido . Ás duas horas , -- " ante-manhã , " -- de 2 de novembro de 1512 , -- dia de Finados , -- entravam açodadamente nas casas que o Duque de Bragança fizera construir no reguengo de Villa Viçosa , e onde habitava com a esposa , os filhos e a famulagem domestica , -- o bacharel||_Gaspar_Lopes Gaspar|_Gaspar_Lopes Lopes|_Gaspar_Lopes , ouvidor de Sua Senhoria , João Alvares Mouro , juiz ordinario da Villa , e Álvaro Pacheco , tabellião , acordados , no melhor do seu somno , por um recado terminante do Duque , para que fossem ali . Seguia-os de perto o escrivão Diogo de Negreiros . Aquellas casas foram o inicio do grandioso Paço actual , e uma parte d' ellas conserva-se com a sua feição , até com a sua traça primitiva , facilmente destrinçavel , no meio das largas e sobrepostas construcções posteriores . Procurando maiores commodidades e larguezas á sua prosapia solarenga , fugindo talvez , tambem , ás sombrias recordações da infância , o Duque abandonara o velho -- " Castello da Menagem , " -- estreito e arruinado , onde mal poderia expandir-se a rejuvenescida grandeza da sua Casa ao sopro estimulante da Renascença . Sem , naturalmente , dar tempo ás salemas da etiqueta , D. Jayme disse ás estremunhadas justiças que matara sua mulher , a Duqueza D. Leonor , e Antonio Alcoforado , seu pagem , -- " por os achar ambos e entender que dormiam juntos e lhe commettiam adulterio . " Que entrassem elles na camara onde -- " a dita senhora Duqueza soia a dormir , " -- e fizessem sua obrigação , que por então consistiu n ' um auto . N ' essa camara estavam estendidos no chão os dois cadaveres -- " um junto do outro . " Não fôra assim que o Duque -- " achara ambos , " -- mas essa circumstancia não pareceu necessario averiguar por então . A Duqueza tinha um grande golpe no pescoço , que quasi- lhe separava a cabeça , e n ' esta , quatro largas feridas , por uma das quaes , na parte posterior , irrompia a massa encephalica -- " os miolos , " -- diz singelamente o Pacheco , tabellião . Vestia o trajo caseiro habitual : -- uma cota de velludo negro barrado de setim preto com perfiles , -- como quem dissera hoje : avivado , -- de tafetá amarello ; um sainho de velludo negro ; uma cinta de setim raso aleonado . Fôra assim que a surprehendera o terçado assassino : -- n ' uma simplicidade magestosa e elegante . Não é difficil , e pôde não ser indifferente , verter esta velha terminologia de toilette , como diriamos hoje , ou de guarnimento de mulher , como diria Fernão Lopes , na geringonça phantastica do figurino moderno . A cota , por exemplo , não era , como poderá suppôr- se , o corpo cingido , ou o corpete , mas uma especie de gibão de mangas compridas , cahindo sobre o vestido redondo . Este , era o sainho . No século XIV , uma Gusmão , como D. Leonor , -- D. Beatriz de Gusmão , mulher de Affonso III , -- introduzira em Portugal as cotas posteriormente alongadas , -- caudatas , -- e d' ahi parece que lhe viera a alcunha e a lenda picaresca de Rainha rabuda , que fez matutar laboriosamente muita cabeça douta . O cadáver de António Alcoforado tinha o pescoço cortado cerce . Adivinhava-se um braço que continuara apenas um instrumento : -- passivo , escravo . Fôra mais expedito e caridoso o processo . O pobre moço trajava gibão de fustão prateado com meias mangas , collar e pontas de velludo roxo ; calças vermelhas , -- calças , no significado antigo , entende-se , -- saio preto , cinto de couro preto cem guarnições de prata , borzeguins pretos e sapatos . Garrido e cortezão viera desposar a Morte ! ... Sobre a cama da Duqueza , -- fria e ordenada , tal qual a deixara a moça da camara , o que não registra a penna discreta do Pacheco , e se deve deprehender das revelações posteriores , -- estava um barrete de volta , preto , -- " que diziam esses que hi estavam que era " -- do Alcoforado . E devia ser ; mas pelo que disseram depois não fora provavelmente o moço que o pozera lá , o que , de resto , o grave ouvidor não esteve para averiguar na occasião . Seriamente embaraçado deveria elle sahir d' ali , e certo que no resto da madrugada não poderam as justiças de Villa Viçosa conciliar o somno tão extraordinariamente interrompido . Não era para menos o caso . A nova andaria já acordando , apavorado , o pequeno soalheiro , que por largo tempo apertado no recinto castellão se estendera , acompanhando o so lar ducal , nos longos arruamentos da Corredoura , dos Cavalleiros , dos Gentis , este continuação da rua da Freira , por dizer assim prolongando-a até ao desapparecido Charqueirão . Ao fundo d' essa estreita rua da Freira , -- que , como quasi todas as de Villa Viçosa , conserva ainda hoje o nome que tinha n ' aquelle tempo , e que mal esconde , até , na implacavel caiadura alemtejana , a sua senilidade quinhentista , -- uma pobre mãe , a familia d' um velho servidor e amigo dos Duques , contorcia-se nos desesperos lancinantes da fulminante desgraça que lhe arrebatára o filho , menino e donzel , horas antes tão descuidado e alegre á ceia domestica . O pae não estava , muito provavelmente , no burgo . Mas á nota sinistra e inopinada do acontecimento sobrepunha-se naturalmente , na commoção geral , atrapalhando angustiosamente os pobres magistrados da terra , o singular relevo social dos dois personagens : -- a Duqueza morta e o Duque homicida . A lei era clara , e o caso além de não parecer extremamente obscuro , não havia de produzir os mesmos calafrios e assombros que a sua desluzida narrativa nos causa hoje , na sentimentidade do tempo frequentemente estremecida por estas scenas de sangue . Se era clara a lei ! Ruy Boto , o -- " Chançaller moor destes Regnos " -- que acabára no anno anterior a famosa Ordenação Geral , previra prudentemente a especie , com uma grande minudencia de preceituação pratica , como quem excellentemente sabia que nada havia de mais fraco do que a carne , -- sem exclusão da mais finamente depurada no chrysol das gerações heraldicas , -- nem mais variavel e caprichoso do que os temperamentos maritaes , -- um tanto primitivos , -- do seu seculo . Ruy Boto não deixara ficar no tinteiro a hypothese : -- " E nõ soomente poderá o marido matar sua molher : e o adultero q achar cõ ella é o dito adulterio : mas ainda os poderá licitamete matar se entender provar q lhe cometá adulterio : e prouãdo depois p proua licita e abastãte segudo o direito quer ; e nõ per soo fama : deue seer auido por sem culpa e liure sem pena algua . " O caso embaraçoso e grave era precisamente este ; esta era a causa porque o bacharel||_Gaspar_Lopes Gaspar|_Gaspar_Lopes Lopes|_Gaspar_Lopes e o juiz João Mouro , cem os seus notários e escrivães haviam de voltar , já -- " dia claro , " -- ao theatro da tragedia . Com uma fria e reflectida ostentação de rasão e de direito , n ' uma expontanea subordinação ao juizo do Mundo e do Rei , -- o que contraria a idéa ensaiada mais tarde de uma allucinação , de uma alienação nevrotica , -- o Duque chamava a Justiça a devassar do seu procedimento , propondo-se a justifical- o pela fórma ordinaria porque teria de fazel- o o ultimo dos seus villões , -- acto continuo á catastrophe , manchado ainda , talvez , pelo sangue quente da esposa , sem hesitação no seu orgulho de marido e de senhor , -- elle que podera dizer simplesmente : -- " Matei-os porque os encontrei adulteros , " -- sem que voz alguma ousasse contraria l- o ! ... Esta resolução cobria uma hypocrisia ou ia traduzir-se n ' um embuste ? Independentemente , porém , da deliberação immediata e peremptoria do Duque , e apesar de que a situação singular d' elle parecesse collocal- o fóra dos termos ordinarios do Direito , -- pois que até das restricções postas na Ordenação nova ás jurisdicções das Rainhas e dos Infantes , fora privilegiadamente isempto o senhorio bragantino , -- os pobres magistrados , embora , a bem dizer , o fossem do egrégio homicida , -- sabiam perfeitamente que a Auctoridade Real , identificada , na tradicção e na doutrina , com o proprio principio da Justiça e da Lei , era extremamente susceptivel e ciosa d' esta investidura superna . Não tinham elles visto , annos antes , cahir , uma madrugada , na praça de Evora , a cabeça de um Duque de Bragança , o pae d' este mesmo , o irmão da velha Rainha , ao pregão solemne e largo : -- " Justiça que manda fazer Nosso " Senhor||_El-Rei El-Rei|_El-Rei " -- ? ... -- Os Reis são a Justiça , " -- dissera um dia , fazendo rolar no patibulo a cabeça de um irmão , outro grande Rei portuguez , -- e mais os tempos eram bem menos desimpedidos e seguros para a Auctoridade Soberana . Não era decerto sob o sceptro diamantino de D. Manuel que o secular principio , tantas vezes reimpresso e avivado a sangue na consciencia e na memoria das gerações , havia de andar mais esquecido e desacatado . Conta Damião de Goes , parece até que insidiosamente , uma anedocta succedida então , -- suppomos até que no mesmo anno , -- em que a phrase de Affonso IV como que freme , viva e nitida , nos labios do Rei Venturoso . D. Alvaro de Castro , fidalgo altamente collocado e aparentado , -- governador da " Casa do Civil , -- " muito cortesam , grande motejador , & mui eloquéte no fallar , " -- casado com uma dama illustre , D. Leonor de Noronha , relacionada com as proprias senhoras da Familia Real , soube que um creado da sua Casa andava de amores com uma -- " escrava branca " -- que havia n ' esta , e expulsou-o . Constou-lhe , porém , que esses amores continuavam , e que o rapaz não só lhe rondava a porta , mas achava meio de se approximar da amante . Fel- o vigiar , e surprehendendo-o , uma noite , mandou-o açoutar cruelmente pelos -- " mouros da estrebaria " . O corpo em sangue , o moço cobriu-se com uma capa , foi esperar o Rei , quando este se dirigia á Capella Real a ouvir a missa quotidiana , e descobrindo-se deante d' elle pediu-lhe justiça contra o seu alto magistrado , por assim dizer o seu logar tenente na Casa do Civil , o illustre senhor||_D._Alvaro D.|_D._Alvaro Alvaro|_D._Alvaro . D. Manuel carregou o sobr'olho , despediu o moço , dizendo-lhe que -- " justiça lhe seria feita , " -- ouviu tranquilamente a missa , e reentrando no Paço mandou suspender o governador , prendel- o em casa e intimar-lhe que desaggravasse e indemnisasse o rapaz . Debalde os cortesãos mais graúdos , a numerosa parentella do Castro , a mulher , as influencias mais poderosas , se agitaram , importunando insistentemente a magnanimidade do Rei , reagindo , até um pouco atrevidamente , contra o que as prosapias fidalgas julgavam ser uma affronta propria , um exemplo deprimente , uma justiça exaggerada e cruel -- " ... aho que lhe respondeo -- diz o Goes , -- " que ainda que dom||_Aluaro Aluaro|_Aluaro fora Rei , que lhe nam convinha fazer justiça em sua casa se não per via ordinaria . " A situação prolongou-se , até que um dia a afflicta esposa , por um conluio affectuoso com a Rainha||_Viuva Viuva|_Viuva , podendo em casa d' esta , -- então junto da egreja de S.||_Bartholomeu Bartholomeu|_Bartholomeu , -- lançar-se aos pés de D. Manuel , conseguiu , á força de lagrimas , amaciar a inflexibilidade real . D. Alvaro foi chamado ao Paço , e diz o grande chronista que de seu próprio irmão , Fructos de Goes , que assistira á scena , soube que o Rei dissera ao atrapalhado governador : -- " aho qual has palauras pontuaes que El-Rei dixe foram q Deos pusera hos Reis na terra pera faserem justiça , per forma ordinaria , & na volutaria , & que per isso punha officiaes a que comettião hos taes negoçios com ha mesma obrigaçam pelo q elle caira em grande erro , por mãdar faser justiça daquele home em sua casa . " Maus tempos e bons reis , aquelles ! ... Os officiaes de Villa Viçosa conheciam excelentemente a distancia que separava um governador do Civil , por mais fidalgamente relacionado e estimado , d' um duque de Bragança , e muito especialmente d' este Duque , que fizera e mandára " fazer justiça em sua casa " . Além de que a fizera " por entender " que lhe commettiam adulterio . A lei era terminante . Mas , também , que enorme distancia na gravidade dos casos ! Se o matador era o primeiro Senhor||_do|_Reino do||_do|_Reino Reino|_do|_Reino , erguido pela mão generosissima do monarcha ás ultimas culminações de poderio e de prestigio , -- ella , a Morta , era uma das primeiras damas de Portugal e Castella , -- filha d' uma das mais poderosas e opulentas familias da Peninsula , cuja prosapia hombreava com a de todas as Coroas d' esta , e mais de uma vez fizera frente á de algumas ; -- cujo senhorio entestava no Guadiana com o territorio portuguez , e do lado do mar , e além d' elle , era auxilio e poderia ser padrasto ás nossas emprezas africanas . Fôra o Rei||_D._Manuel D.|_D._Manuel Manuel|_D._Manuel , quem laboriosamente , com um grande cuidado de Pae e com um grande tino de Politico , escolhera esta Duqueza para que por ella continuasse e se consolidasse , junto da Coroa nacional , a forte e poderosa Casa que restaurara em D. Jayme . É possivel que nem todas estas apprehensões , ou que muitas outras , atormentassem os cerebros mal dormidos das justiças de Villa Viçosa , mas é muito presumivel que ao abrirem a sua -- " inquirição devassa " n ' uma das salas do Paço ducal , ellas se apercebessem que um outro juiz assistia , invisivel e sereno , á grave ceremonia , ou sentissem que alguma cousa insolita e superior penetrava através das paredes e das consciencias : -- ou fosse o olhar de Deus , ou fosse a magestade do Rei , ou fosse um raio da Historia ... ou fosse simplesmente a curiosidade indiscreta , malevola , irreductivel de Toda-a-Gente . Camões . -- Lusiadas . Menor de doze annos e maior de sete , " -- que é quanto dizem os velhos papeis , e com que se teem contentado os modernos e pouco teimosos investigadores , -- Leonor de Mendonça soubera um dia , por fins de setembro -- 1500 , em S.||_Lucar_de_Barrameda Lucar|_Lucar_de_Barrameda de|_Lucar_de_Barrameda Barrameda|_Lucar_de_Barrameda , que se achava casada em Lisboa com o -- " mui illustre e excellente senhor||_Dom_James Dom|_Dom_James James|_Dom_James , Duque de Bragança e de Guimarães . " Como a fidalguinha andaluza receberia , entre alegre e amuada , as graves cortezias da nobreza da Villa , os graciosos cumprimentos dos irmãosinhos , as felicitações aguadas pela idéa d' uma proxima ausencia , -- que devia ser eterna , -- dos velhos companheiros e capitães do pae , os rudes soldados de Granada e Melilla , costumados a vela folgar e correr , menina e moça , por aquellas veigas do Guadalquibir ! ... Ouvira já fallar n ' isto . Mezes antes , muito provavelmente , começariam as donas e a gleba da casa a chamar-lhe , n ' um grande respeito amoravel , -- " a senhora duqueza , " -- como alguns annos depois os escribas de Villa Viçosa quando lhe " devassavam " a honra de mulher e de esposa sobre o mal arrefecido cadaver , com todas as reverencias do estylo . Tinha de ser . Aos sete annos , -- pois que nascera em 1489 , -- morrera-lhe a mãe , a duqueza D. Isabel de Velasco , filha do condestavel D. Pero Fernandes de Velasco e de D. Mencia -- Mecia , -- de Velasco . Dois annos depois fôra-se a avó paterna , a santa velhinha de quem recebera o nome e que a creára desde o berço : a Duqueza D. Leonor de Mendonça . Das irmãs , -- uma , a D. Mecia , tinha um anno menos do que ella , -- a outra , D. Isabel . -- a mais bem fadada , talvez , porque havia de morrer freira no mosteiro de la Reina , de Burgos , -- viera depois . O irmão , -- o mallogrado Duque e successor da Casa , o D. Henrique , -- era mais pequeno ainda . Aquelle solar parecia um ninho devastado . O pae , um grande senhor , a cada momento chamado a Guerra ou á Corte , moço , ambicioso , irrequieto , não havia de prender-se n ' aquella orphandade obscura . Tomára novos amores . Terceiro duque de Medina Sidonia , quinto conde de Niebla , mais tarde primeiro marquez de Caçaça ; oitavo morgado de S.||_Lucar Lucar|_Lucar , Bejel e Almadrava , senhor -- Gibraltar , Ximena , Chinclana , Gausin , -- con su serrania ( a Ronda ) , Huelva , Montecorto , Conil , Zahara , etc. -- fronteiro-mór da Andaluzia , -- Adelantado mayor de la frontera : -- D. João de Gusmão , ou mais propriamente D. Juan de Guzman , era um dos mais levantados e prestigiosos fidalgos -- Castella , não só pela prosapia herdada , como pela desempenada grandeza de seu animo e de seu trato que lh'a fortalecia e augmentava em toda a Andaluzia e na Côrte . Essa prosápia tinha ramificações numerosas e brilhantes na heraldica peninsular que subiam orgulhosamente a enroscar-se nos mais gloriosos thronos . Só á sua parte , uma formosa Gusmão , -- la mas apuesta muger que avia en el regno , -- no tempo de Affonso XI , seu insaciavel amante , o marido da nossa infanta D. Maria , a ... carissima ( ? ) consorte Mulher de quem a manda e filha amada D' aquelle a cujo reino foi mandada , -- só essa Gusmão , acerescentára consideravelmente na sua " prodigiosa fecundidade , " como diz um grave historiador , a nobreza da Península . Outra Gusmão , tambem , a bastarda de Affonso X , fôra desde os oito ou nove annos , rainha -- Portugal , -- e uma boa e santa rainha a quem o pae dera os senhorios de Niebla e de Elche . Dos antepassados varões bastava a memoria de Affonso Peres de Gusmão el Bueno , o verdadeiro fundador da Casa , para lhe sobredourar o nome no respeito das gerações . El Bueno , um aventureiro intrepido e um notavel capitão , estivera ao serviço do Rei de Marrocos n ' uma d' aquellas treguas entre christãos e mouros aproveitadas , por uns e por outros , para se dilacerarem intestinamente . Ali começára a amontoar o grande thesouro tão cubiçado e disputado depois . Um sinistro episodio , principalmente , o tornara celebre . Senhor de Niebla e de Nebriga , herdeiro de S.||_Lucar Lucar|_Lucar , foi collocando os ganhos das campanhas marroquinas no arredondamento do seu território andaluz . Quando o Rei de Casíella precisou um governador para Tarifa , posto avançado e extremamente arriscado , da reconquista christã , offerecera-se elle por 600 mil maravedis annuaes , somma enorme , mas que cedo havia de mostrar-se como bem empregada foi . O irmão do Rei , o infante rebelde D. João , repelido de Portugal , offerecera-se a Marrocos para lhe reconquistar Tarifa . Um patife . Entre os instrumentos de guerra para vencer Gusmão , levou o refalsado infante um filho , creança ainda , do valente capitão . Como este ultimo resistisse rijamente , D. João mandou levar o menino junto das muralhas e declarar a Gusmão que se não lhe entregasse Tarifa lhe mataria o filho . O mesmo episodio do nosso Castello de Faria ! El Bueno , -- que de então se ficou appellidando assim , -- respondeu firme : -- " Antes quero que me mates esse filho e outros cinco se os tivera , do que entregar-te uma terra que tenho por El-Rei . " E atirando do adarve ao campo , o próprio cuchillo voltou as costas á renegada canalha . Com essa mesma adaga , o bestial Infante fez degolar a creança , mandando arrojar-lhe a cabeça por uma catapulta aos pés do heroico soldado . O nosso D. João de Gusmão era filho unico do Duque D. Henrique e de sua mulher D. Leonor de Mendonça . Casára , em vida do pae ainda , aos 21 annos , com D. Isabel de Velasco , uma grande senhora que lhe trouxera um miseravel dote : apenas 4 contos de maravedis . Os Gusmões não precisavam riquezas , só estimavam virtudes , -- observa emphaticamente um seu historiographo . Parece ter sido feliz mas foi pouco duradouro , este consorcio . Em 1496 D. João enviuvára , ficando , como vimos , com quatro filhos creanças . Fòra somente quatro annos antes que suecedera a D. Henrique , por morte d' este , quando voltava com elle da conquista de Granada O pae fora um verdadeiro Gusmão : audaz , ostentoso , aventureiro , servindo dedicadadamente a Coroa e defrontando altivamente com ella . Parece que a Rainha||_Catholica Catholica|_Catholica , que o temia , por o haverem intrigado de pensar em passar-se para o serviço de Portugal , quizera fazer matal- o á traição . Era um processo corrente , muitas vezes indeclinavel , dos tempos : -- o mais expedito , e geralmente o menos cruel . O Duque mandou-lhe um fidalgo da sua Casa reprehendel-a asperamente da ingrata aleivosia , e sahiu ao campo , desarmado e em festa , como quem não se arreceava mais dos mandatarios regios do que das bestas feras dos seus matagaes andaluzes . Usava por timbre duas enxós de tanoeiro e por lemma : -- Las cosas mas peligrosas , comigo aseguran su peligro . Bonito , mas comprido . D. João sahira ao pae . A reconquista christã da Peninsula estava feita , e fora sempre na vanguarda d' ella a signa e o braço dos de Niebla . Chegára o tempo de passar o mar e de levar a terras d' Africa a Cruz vingadora e triumphante . Era mais do que uma questão de segurança ou de ambição politica : -- era uma questão de economia , de equilibrio , de fatalidade social . Ha hoje , ainda , " velhos de aspecto venerando , " como o de Restello , que não querem perceber isto . Era necessario lançar no continente fronteiro uma linha de fortes sentinellas que guardassem e contivessem o Mouro . E a onda aventurosa , que viera rolando das montanhas do Norte até á beira extrema da Peninsula , tinha de ir espraiar alem as ultimas curvas torvas e insubmissas , -- talvez melhor : -- o excedente da sua força equilibrante . Fôramos nós , os portuguezes , os que avançáramos primeiro , por um grande numero de rasões , entre as quaes não foram das somenas o havermos tido um João I , um Infante||_D._Henrique D.|_D._Henrique Henrique|_D._Henrique , sobre todos , um João II , e antes d' elles e entre elles , uns poucos de homens , ou uns poucos de reis , ou uns poucos de governos consideravelmente mais intelligentes do que teve Castella . Com poucas falhas , -- a maior das quaes , um D. Fernando , na primeira dynastia , e um Cardeal Rei , na segunda , -- a politica portugueza , n ' aquella metade da nossa existencia nacional , é , no seu conjuncto , na sua grande mancha historica , até sob um ponto de vista artistico , um trabalho primoroso de harmonia e de logica . Providencial ? -- como quizeram alguns . Simplesmente fatal ? -- como pensaram outros . Os termos valem-se e não se explicam . Mas foi naturalmente assim , ou por isso , que podemos ser aquella -- ... gente ousada mais que quantas No mundo commetteram grandes cousas Graças ao facto de não terem sido tomadas a sério as lamurias do Velho e as matutações estadisticas , tão lendárias como ellas , do infante||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro . , Do lado de Castella os Gusmões fizeram a avançada . Naturalmente , não podendo já alargar o seu senhorio em Hespanha senão por compras onerosas ou por concessões regias , mais onerosas ainda , lançavam de ha muito as vistas para além do Estreito . Os Reis Catholicos tinham enviado um Martin Galindo , homem que fôra da Casa de Niebla e que se bandeara -- " por enojo " -- para a sua rival e inimiga de Marchena ou de Cadiz , a estudar a conquista de Melilla , em Africa , caminho de Fez , e o estabelecimento , ali , de uma sentinella perdida do imperio castelhano . Voltára o sujeito com desanimador conselho . Soube-o D. João de Gusmão , e enviando á descoberta Pedro de Estopinhão , -- Pero de Estopiñan , -- com quem logo nos encontraremos , -- seu fidalgo e contador maior , -- onbre bien entendido é deligente en toda cosa , -- entregou-lhe , em seguida , uma forte expedição de 5:000 homens de pé , muitos cavalleiros e varias naves e petrechos , que sahia de S.||_Lucar Lucar|_Lucar , em setembro de 1497 . Melilla foi tomada , reedificada e guarnecida , gastando o Duque , só na muralha , cava e barreira , o melhor de doze contos de maravedis . Jubilaram os Reis Catholicos e deram a D. João tres contos de renda para ajuda do custeio da praça , além de -- " dos mil hanegas de pão , " -- e de reforços de soldados para a conservação d' ella . Logo no anno seguinte nova expedição maritima e terreste sob o mando do Estopinhão e de outro capitão do Duque , -- Garcia Léon , -- avançou pelo territorio de Oran , arrazando Bucifar e trazendo , a S.||_Lucar_de_Barrameda Lucar|_Lucar_de_Barrameda de|_Lucar_de_Barrameda Barrameda|_Lucar_de_Barrameda , 260 mouros captivos : -- homens e mulheres . Em seguida , as vistas de Gusmão voltavam-se para Caçaça , outra pequena praça africana , mas emquanto não conquistava o marquezado d' aquelle nome , -- que os marquezados , então , faziam-se esperar e custavam caro , -- foi por este tempo que indo á côrte , a Toledo , recebeu , provavelmente pelos primeiros feitos , Gausin -- é sus aldeas , -- uma boa enfiada d' ellas . Não era sómente n ' estas emprezas bellicas que o Duque distrahia a sua opulência e a prematura viuvez . D. João passava a maior parte do tempo em Sevilha que era uma especie de capital accessoria para o sul da Hespanha , n ' aquelles tempos em que o poder central jornadeava com a Côrte por diversas terras conforme as conveniencias , as necessidades , muitas vezes os caprichos da sua ostentação realenga . Exactamente no anno em que se fechava em Lisboa a negociação do casamento da filha de D. João de Gusmão com o Duque de Bragança , vinham os Reis Catholicos a Sevilha , e por elles fazia as honras da cidade o Medina Sidónia ao Rei de Navarra que os viera visitar ali , exhibindo uma faustosa galhardia em banquetes , justas , jogos de canas e touros , festas que foram memoradas . Tambem então iam adeantados os novos amores do moço viuvo com uma sua prima-irmã , D. Leonor de Gusmão e de Çuniga , irmã do Duque de Bejar , D. Alvaro de Çuniga . Vivia esta formosa dama em Sevilha , em casa da mãe , D. Thereza de Gusmão , filha bastarda de outro Duque de Medina Sidonia , e mulher que fora de D. Pero de Estuniga . O proximo parentesco exigia dispensa da Egreja , mas Roma ficava longe e os namorados encontravam-se todos os dias . D ' ahi proveiu que um filho , D. Alonso Peres de Gusmão , precedeu o breve pontificio , ficando comtudo perfeitamente sanadas as coisas logo no anno seguinte , em 1501 , com as bodas publicas , muito solemnes e festivas , por signal , coroadas pouco depois pelo nascimento de outro filho mais geitoso do que o primeiro que sahira mentecapto , naturalmente por não ter aguardado a dispensa do papa Borgia . Vem isto a proposito para se entender que pelo mesmo tempo em que obtinha esposo para a filha , D. João lhe arranjava madrasta . Teria D. Leonor , a filha , sete annos , talvez ainda em vida da avó , quando D. João começara a negociar-lhe este marido através das mais complicadas preoccupações diplomaticas e da mais temerosa e brilhante concorrencia . Fôra uma longa e difficil campanha , e fôra ainda o habil Pero de Estopinhão , -- tão diplomata como guerreiro , -- que lh'a vencera . Haviam entrado no certamen quantas grandes familias de Castella tinham filhas no berço ou a collocar na politica das prosapias e das conveniencias solarengas . Duarte Brandão , um previdente conselheiro educado naturalmente na escola de D. João II , que achava avisado procurar enxertia principesca além dos Pyrineus , lembrava que conviria a D. Jayme ... ou ao Rei , a filha do monarcha francez . Esta filha não podia ser outra , porque a não havia , senão a infeliz e coxa princezasinha Claudia , que acabára de nascer , e que , desposada aos sete annos com o futuro Francisco I , havia de merecer do povo e da historia o nome de " Boa Rainha " como premio da sua desolada existencia . O celebre imperador||_Maximiliano Maximiliano|_Maximiliano , -- o neto do nosso D. Duarte , -- que bem sentia como a politica castelhana procurava arredal- o dos negocios peninsulares , fôra uma noite ceiar com o nosso Thomé Lopes , para dizer-lhe muito á puridade que estimava casar o Duque portuguez com sua filha dilecta , " Madama||_Margarida Margarida|_Margarida , " a noivasinha de quatro annos , de Carlos viu de França , brutalmente repudiada por este , e viuva , bem pouco havia , de D. João , o malogrado herdeiro de Castella . Uma bella viuva de dezesete annos . Chegára tarde a carta do Lopes , e como o casamento de D. Jayme era negocio feito , a intelligentissima e futura auctora da liga e da paz das damas , desposava em 1501 o Duque de Saboya . Mas a competencia que maiores embaraços pozera ao empenho e diligencias do pae de D. Leonor , fora a de Joanna de Aragão , filha natural do Rei||_Catholico Catholico|_Catholico , cujo casamento , parece que patrocinado pela irmã , futura Rainha de Portugal , D. Manuel mandara definitivamente negociar por Lopo de Sousa , em 1497 , tornando por base a verba dotal promettida a D. Leonor pelo pae ! Muito provavelmente fôra a unica das noivas do Duque de Bragança que elle tivera occasião de conhecer . E não era creança , esta . Mas n ' aquelle anno realisava-se o casamento de D. Manuel com a filha primogenita dos Reis castelhanos , a viuva do malogrado filho de D. João II , e pouco depois , morto o herdeiro d' aquelles , o Rei portuguez era açodadamente chamado a receber , por sua mulher , a investidura de presumptivo successor dos sogros , assustados com as pretensões denunciadas pela Casa de Austria . Passando a fronteira , D. Manuel encontrava á frente da brilhante comitiva castelhana que o aguardava ali , D. João de Gusmão , cujas boas disposições não eram para desdenhar n ' aquellas circumstancias e alturas . Outras preoccupações ainda favoreciam o intento de D. João . Por um lado , a politica castelhana vigiava ciosamente esta questão do casamento de D. Jayme , receiando competencias novas á successão eventual da Corôa portugueza , ou novas allianças d' esta que viessem ameaçar a tranquillidade e as pretensões dos Reis Catholicos . Do nosso lado , independentemente do valor que a adhesão de D. João de Gusmão , ou o bom accordo com elle , poderia ter na crise que se annunciava , -- que se abrira já , -- nos destinos da monarchia visinha : -- D. Manuel , propondo-se a proseguir e consolidar as conquistas d' Africa , pensando mesmo em passar a ellas , naturalmente via no Duque andaluz um auxiliar excellente , um conveniente amigo . -- " Muy magnifico señor , y gran gastador , " -- como o pinta o nobliarchisca Alonso Lopez de Haro , -- e posto que , como os seus antecessores , muito dedicado á Corôa , D. João de Gusmão era bastante intelligente e sagaz , era , além d' isso , bastante homem do seu tempo para que deixasse de perceber que a sua riqueza , o seu enorme prestigio , a bella situação dos seus dominios , a sua " nobre cidade -- Gibraltar , " os seus estrategicos postos de S.||_Lucar Lucar|_Lucar e de Huelva , haviam de fazer uma certa apprehensão oppressiva na politica dos seus augustos suzeranos . Sabia-o excellentemente . Já do pae houvera indicios soffrivelmente seguros , como vimos , de que se quizera livrar a Rainha||_Isabel Isabel|_Isabel . Uma das preoccupações d' aquella politica , que ella propria não calava , que até com impertinente insistencia fazia sentir aos Gusmões , era a posse de Gibraltar . Gibraltar custara muito sangue e muita fazenda aos de Niebla . tinham-n* ' a conquistado elles . Os Reis Catholicos haviam-lhes proposto por varias vezes a troca de Gibraltar por outros senhorios mais productivos , talvez , -- mais internados , -- principalmente , mais faceis de vigiar ... Mas Gibraltar era um brasão de familia . Quando D. João suecedera ao pae , a Rainha||_Izabel_suppondo- Izabel|_Izabel_suppondo- suppondo-|_Izabel_suppondo- o na dependencia das confirmações regias da successão , prometteu-lh ' as logo , se lhe cedesse Gibraltar . D. João respondera-lhe altivamente que a sua Casa pouco tinha que houvesse recebido da Corôa e que por isso precisasse da confirmação d' ella : -- apenas a terra de São Lucar , que lhe fôra dada deserta e baldia para que os Gusmões a povoassem . Tudo o mais custára- lhes o seu dinheiro ou o seu sangue , e que por isso : -- fuesen sus altesas servidos de no les pedir Gibraltar pues no se la dieron . Mas , com toda esta arrogancia , D. João não se illudia , e acautelava-se . Conhecia o latente e fatal antagonismo de Castella e Portugal , -- muito melhor e muito mais de perto do que o nosso illustre contemporaneo , o sr.||_Canovas Canovas|_Canovas ; -- convinha-lhe d' este lado um amigo que poderia n ' um dado momento ter um grande interesse em ser um alliado . E vendo o empenho politico dos Reis Catholicos em consolidar as boas disposições da Corôa portugueza por um segundo casamento de D. Manuel com uma filha d' elles e a dilecção singular do monarcha portuguez por D. Jayme , seu possivel herdeiro , fazia conta , -- é o proprio D. Jayme quem o diz , -- que comprava ou salvava Gibraltar no casamento de D. Leonor com o Duque de Bragança . Havia de mallograr-se-lhe o calculo , mas eram dois espertos e praticos negociantes : -- o Rei e o Gusmão ! Acabaram por entender-se , ... enganando-se . O objecto da operação , sabe-se já qual era . Mas façamse todos os casamentos liuremente per vontade verdadeira d' aqlles q ouuerê de casar segundo manda a santa madre ygreja . Ord. de D. Man. , Liv . 4º tit. VII 2.ª ed. 1514 O cabo de tres ou quatro annos de negociação e de intriga , pôde , em 15 de junho de 1500 , o Affonso Paes , -- " escrivão publico " -- de S.||_Lucar Lucar|_Lucar e redondezas , espanejar gloriosamente a sua sabença tabellioa na procuração esponsalicia da pequena fidalga andaluza . Por esse curioso documento , " D. Leonor de Mendonça , -- " menor de doze annos e maior de sete " -- vimos já que teria onze , -- declarava que lhe -- " prasia " -- e -- " era contente " -- do -- " esposorio e casamento " -- d' ella com D. Jayme , contractado entre seu pae e -- " o mui alto e mui poderoso serenissimo senhor||_D._Manuel D.|_D._Manuel Manuel|_D._Manuel , Rei dos Reinos de Portugal , -- e a mui alta e mui poderosa serenissima senhora||_rainha rainha|_rainha D. Leonor , mulher do mui alto e mui poderoso serenissimo senhor||_D._João_Rei D.|_D._João_Rei João|_D._João_Rei Rei|_D._João_Rei que foi dos ditos Reinos , -- e a mui illustrissima senhora||_Infante_D._Beatriz_de_Portugal Infante|_Infante_D._Beatriz_de_Portugal D.|_Infante_D._Beatriz_de_Portugal Beatriz|_Infante_D._Beatriz_de_Portugal de|_Infante_D._Beatriz_de_Portugal Portugal|_Infante_D._Beatriz_de_Portugal , -- e a mui illustre senhora||_Duqueza_D._Isabel Duqueza|_Duqueza_D._Isabel D.|_Duqueza_D._Isabel Isabel|_Duqueza_D._Isabel " , madre " -- de D. Jayme . E , como era assim -- " contente " -- do caso , dava -- " todo o seu livre , valledoiro e comprido poder " -- ao commendador Pero de Estopinhão , o de Melilla , -- uma especie de ministro da fazenda do pae , contador da sua fazenda , -- para que -- " tomasse as mãos " -- com o Duque e -- " se desposasse " -- com elle em seu nome e como se ella pessoalmente o fizesse , porque -- " desdagora por entonces e de entonces por agora se outorgava por sua esposa e mulher segundo ordem da Santa Madre||_Egreja_de_Roma Egreja|_Egreja_de_Roma de|_Egreja_de_Roma Roma|_Egreja_de_Roma " . Tudo fôra prevenido e previsto : -- aquella Santa Madre||_Egreja_de_Roma Egreja|_Egreja_de_Roma de|_Egreja_de_Roma Roma|_Egreja_de_Roma , então supremamente timonada por Alexandre VI , que pouco havia fizera contracto analogo para a filha , Lucrecia Borgia , da mesma edade , e que passados dois annos , -- aos treze , -- a mettera no leito de outro marido , -- solemnemente auctorisava a pobre creança a esta complicada delegação , por Carta de D. Diogo Furtado de Mendonça , Patriarcha de Alexandria e Arcebispo de Sevilha , de 12 d' aquelle mez e anno , que o Affonso Paes não se esquecera de incluir no arrasoado . Um habil e meticuloso notario , o Paes , que não dispensava formulas , nem poupava cautelas , e que ainda depois de ligar muito bem e enfadonhamente ligada a palavra da sua illustre constituinte , com todas as -- " incidencias , dependencias e connexidades , " -- da technica tabellioa , não se esquecia de pôr-lhe na bocca , -- importando-se muito pouco que não lhe coubesse na gentil cabecinha , -- esta grave e prudente advertencia : -- " E renuncio as leis dos Emperadores Justiniano e Valiano que são em favor e ajuda das mulheres , que me não valha nesta rezão . " E não havia de valer-lhe , realmente ! ... O menos com que haviam de contar os que a casavam era que ella fosse um dia mulher . Disseram-lhe que assignasse , e por testemunhas de como -- " era contente " -- certamente de se ver livre da fatigante e incomprehensivel leitura , -- lá ficavam tambem as garatujas respeitaveis do capitão do pae , Bartholomeu de Estopião , e do Capellão do irmãosinho D. Henrique , o reverendo||_Gonçalo_Carrilho Gonçalo|_Gonçalo_Carrilho Carrilho|_Gonçalo_Carrilho . A este documento juntava-se outro , passado em Sevilha , a 13 de junho , pelo escrivão Bartholomeu Sanches , na presença de dois collegas , o João de Murgua e o Affonso de Fumuzello , pelo qual D. João de Gusmão , que o firmava , como -- " padre legitimo amenistrador que era de foro e de direito e sob cujo poderio paternal " -- D. Leonor se achava , pelo mesmo commendador -- " a outhorgava por esposa e mulher do dito senhor||_D._James D.|_D._James James|_D._James bem assy e compridamente como se ella pessoalmente com elle tomasse as mãos e o desposasse . " Mas uma questão capital , -- a do dote , -- demorara em Lisboa a negociação e estivera á beira de mallogral-a . Os negociadores de D. João de Gusmão não promettiam mais de 40:000 cruzados , -- uns oitenta contos de hoje . D. Manuel , porém , era homem sagaz e pratico , embora uma historia mal feita , não lhe perdoando que fosse extraordinariamente feliz , lhe conceda apenas , em guisa de remoque depressivo , o epitheto de venturoso . O dote da noiva -- D. Jayme , convertido pela finança realenga em titulo de renda perpetua , deveria fornecer um subsidio importante aos gastos das emprezas d' Africa . Nada menos moderno do que a Finança , ao contrario do que julgam os emproados agiotistas de hoje . O Rei portuguez comprehendia , decerto , as rasões de interesse , não simplesmente heraldico , mas immediatamente politico , que moviam o Duque de Medina Sidonia a diligenciar aquelle casamento para a filha . Era conhecida , -- lendaria , até , -- a riqueza numeraria , o thesouro , como então se dizia , de D. João de Gusmão , e a situação singular de D. Jayme , não sómente pela grandiosa restauração da Casa de Bragança , mas pelo extraordinario valimento que D. Manuel lhe concedia e pelo logar que occupava na escala dos herdeiros eventuaes da Corôa , exercia manifestamente , como dissemos já , uma forte seducção nas justas prosapias e apprehensões da grande Casa andaluza . Além de que D. Manuel tinha verdadeira affeição por D. Jayme . Como que o adoptára por filho , e até , quando nenhum tinha , ensaiára indigital- o por herdeiro , posto que com mais manha do que sinceridade . Enviando Lopo de Sousa a tratar do casamento d' elle com D. Isabel de Aragão , recommendára ao enviado que fizesse insidiosamente sentir aos Reis Catholicos que Gusmão offerecia de dote á rilha , no caso de a desposar D. Jayme , dezoito contos , e -- " lhe daria mais e não deve ser menos que por rasão de seu estado o custo hade ser maior , " -- tendo além disso de -- " correger e reformar sua casa . " Muito previdente e pratico . A morte do pequenino principe D. Miguel , unico filho de D. Manuel e da sua primeira e mallograda mulher , em 22 de julho de 1500 , pareceu valorisar extraordinariamente a situação do Duque de Bragança . O Rei mandára então chamar os mensageiros castelhanos , -- entre os quaes , naturalmente , o nosso conhecido commendador Pero , -- e observára- lhes que -- " bem viam que elle não tinha outro filho , " -- e que por isso , se queriam que consentisse no casamento , arredondassem em trinta contos o dote que o Gusmão poderia -- " levemente dar . " Regatearam um pouco e fechou-se o negocio em vinte e seis contos , -- uma enormidade , ainda assim -- o duplo approximadamente da proposta primeira : -- como quem dissera hoje cento e trinta contos de réis . Provavelmente , D. Jayme tivera de vir para Lisboa aguardar o termo da negociação , abandonando o seu castello solarengo , -- o Castello Velho , -- de Villa Viçosa , e os planos da edificação do Palacio em que teria de alojar a esposa que o Rei lhe impozesse . O que é certo É que pousava então nas -- " casas de Pero Vaz que estam cerca da cidade , junto de Santos o novo , " -- o mosteiro em que penitenciava as suas saudades mundanas a formosa amante de D. João II , D. Anna de Mendonça . Foi ali que , em 3 de setembro , mandou chamar " Pero Vieira , -- " notario publico geral , " -- e que este lhe fez a procuração pela qual -- " confiando da bondade e discrição de Lopo de Sousa " -- seu aio , governador de sua fazenda , e do Conselho do Rei , o -- " constituia e ordenava por seu abondoso procurador sufficiente para contractar e afirmar o dito casamento , " -- com o Pero de Estopinhão . Serviram de testemunhas Henrique de Figueiredo , fidalgo e veador da casa de D. Jayme , e Duarte de Goes , escudeiro n ' ella , um parente , talvez , de Damião de Goes . Onze dias depois , a 11 de setembro , se as duas ceremonias finaes , a do contracto de dote e arras , e a de -- " tomar as mãos " -- e -- " receber por palavras de presente , " -- sendo curioso que é a primeira , -- a do contracto , -- que se realisa na Egreja , -- na de S.||_Christovão Christovão|_Christovão , -- e a segunda , -- a do " esposorio , " que se faz em casa , -- nas da Rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , viuva de D. João II e tia de " D. Jayme , -- " que estam junto com Santo Eloy , " -- onde então se dizia que pousava o Duque . E ' prolixo , mas interessante o contracto . Apresentados os poderes pelos respectivos procuradores , Lopo de Sousa e Pero de Estopinhão , e accordado -- " que D. Jayme e D. Leonor hajam de casar e casem por palavras de presente fazendo matrimonio , como manda a Santa Madre||_Igreja Igreja|_Igreja , " -- fixam-se , minuciosa e cautelosamente , as clausulas . O Duque de Medina Sidonia daria -- " em dote e casamento , com a dita senhora||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , sua filha , " -- ao Duque portuguez , vinte e tres contos de maravedis -- " em dinheiro contado , " -- um conto em prata branca de serviço e dois contos em enxoval . Rigorosamente , D. João de Gusmão , dava só dezoito contos do seu " thesouro , " porque , como explicava , oito eram já da filha , que lh'os deixara em testamento a Duqueza sua avó paterna , e que agora lhe " prazia " pagar . Este dote seria entregue por partes : -- quinze contos a D. Jayme , dentro de quinze dias depois de os mandar receber de D. João , -- cinco ao Rei||_D._Manuel D.|_D._Manuel Manuel|_D._Manuel , mediante recibo d' este , e a prata e o enxoval -- " quando a dita senhora se entregar . " Os cinco contos que se concertára pagar a D. Manuel entravam claramente na conta de vinte e um que havia de receber d' este dote por troca de uma renda de -- " conto e meio " -- em que esse capital teria de converter-se . Para illucidação de uma referencia que atraz fizemos a esta operação financeira , como hoje diriamos , observaremos que encontrámos registo de uma escriptura feita , no mesmo dia d' este contracto , entre D. Manuel , a Rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor e a Duqueza mãe de D. Jayme , de uma parte , e o Duque de Medina Sidonia , da outra pela qual este ultimo se obrigava a pôr nos logares d' Africa que o Rei portuguez determinasse -- " 6:400 carizes de pão " -- por conta d' este dote , devendo os primeiros entregar a D. Jayme o correspondente valor . É uma nota interessante . Ao pagamento integral do dote , acautelado por uma longa enfiada de formulas e hypotheses peritas contra as contigencias do futuro , obrigava D. João o -- " terço e quinto " -- de seus bens , e por maior segurança dos vinte e um contos que entravam no thesouro regio , -- " se porventura El-Rei os desquitasse ou se gastassem em maneira que se não podessem haver pelos bens patrimoniaes " -- ficavam a elles caucionadas as villas -- Portel e Borba , para que D. Leonor recebesse as suas rendas -- " sem descontar até que seja paga d' elles . " Pelo seu lado , o " Duque de Bragança , -- " por honra da pessoa da dita senhora||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor " -- dava-lhe de arras , -- " cinco milhões " -- ou contos de maravedis , -- " os quaes ella hade ganhar e ganhe segundo forma e maneira que per direito commum está determinado , " -- ficando de penhor a estas arras -- " as villas -- Souzel e de Alter com suas rendas e jurisdições . " Parecerá enfadonho , mas offerece , sob mais de um aspecto , um particular interesse este summario de uma convenção esposalicia do século XVI . Servira mal o Romance , até porque desencanta e desmente muita phantasia rendilhada ainda , á custa e por conta das boas noções da Historia . Depois , através das velhas folhas e da linguagem morta d' estes documentos juridicos , vê-se palpitar e revolver , nas suas paixões , nos seus interesses , no seu modo peculiar de sentir , de pensar , de ser , como que uma humanidade estranha . E é absolutamente necessario vêl- a tal qual era , para julgal-a e comprehendel- a tal qual tinha de ser nas varias manifestações da sua vida : -- no Individuo e no Facto , nos grandes movimentos e nos mais pequenos episodios . Pondo , porém , de parte as condições financeiras do contracto , notemos duas de bem diversa natureza . Entre elle e a consumação do consorcio que se procurava garantir , tinha de mediar um espaço relativamente longo . Lembremos uma vez mais que D. Leonor era -- " maior de sete annos e menor de doze . " -- A Natureza sempre conseguia impôr-se ao respeito d' estas combinações artificiosas . Não podia passar despercebida , e não passou , aquella circumstancia aos praticos e prudentes negociadores , por egual empenhados já , em assegurar o pleno exito do tratado . Preceituou-se , então , naturalmente por iniciativa do negociador portuguez , que o Duque castelhano entregasse a filha até ao rim de março do anno seguinte , á mãe de D. Jayme para que ella -- " a tenha e crie até ser em idade pera com graça de nosso Senhor haja de casar . " O pae havia de envial- a á fronteira , e D. Jayme e a mãe fazel-a receber ali , com as honras e seguranças devidas , -- " como a semelhantes pessoas convém . " Por outro lado , e provavelmente por exigencia do negociador de D. João de Gusmão , obrigava-se o Duque de Bragança , no caso da pequena noiva morrer primeiro que elle e antes que -- " se confirmasse o dito matrimonio , " -- a casar com a irmã d' ella e rilha segunda de D. João , -- D. Mecia , então de dez annos , -- subsistindo integralmente o contracto , se esta ao tempo estivesse por casar . Não esquecia também a hypothese de fallecer o irmão de D. Leonor , ou de cahir n ' esta , por falta de successão varonil , a herança da Casa de Medina Sidonia . Se dois filhos houvessem de D. Leonor e D. Jayme , as duas Casas continuariam apartadas , pertencendo a cada um a sua . Se porém quizessem os pães que em um só se reunissem , esse residiria na de Medina Sidonia , se o Rei de Portugal nisso consentisse , o que não seria provavel . Quando existisse um só filho , os pães resolveriam o que por melhor tivessem . É curioso isto . Póde bem imaginar-se o que teria sido a fusão das duas Casas , como quem diz dos dois potentados ducaes ! ... Convém notar que por aquelle tempo deviam andar já muito adeantados os amores de D. João de Gusmão com a prima-irmã , a futura Duqueza de Medina Sidonia . Não viera ainda a dispensa de Roma , mas podia contar-se já com um novo pimpolho dos Gusmões . Por natural discrição , D. João não figurava de viuvo nem de casado n ' estes documentos . Terminava o accordo por todas as prolixas e complicadas formulas e precauções de segurança , obrigando as duas partes ao exacto cumprimento d' elle , todos os seus bens , independentemente de uma multa de dez mil cruzados -- " apertente e guardante a qual pena , pagada ou não pagada toda a via este contracto seja firme e em todo o seu vigor . " Firmado o documento pelos procuradores e pelas testemunhas , bacharel||_Fernão_de_Moraes Fernão|_Fernão_de_Moraes de|_Fernão_de_Moraes Moraes|_Fernão_de_Moraes , ouvidor de D. Jayme , Diogo Pires , contador das suas terras e Diogo de Moraes , capellão d' elle , passouse , acto continuo , á segunda ceremonia , como já dissémos , nas Casas da Rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor . Estavam ali D. Jayme , " D. Diogo Pinheiro , " vigario de Thomar , " D. João , conde de Penella , Pero de Castro , Henrique de Figueiredo , fidalgos da " Casa do Duque de Bragança , -- " e outros " -- accrescenta o termo . Não o diria assim se assistisse o Rei , a Rainha viuva , a propria Duqueza Mãe . A formalidade foi simples e rapida . O celebre Vigario da " Ordem de Christo -- " tomou as mãos " -- ao Pero de Estopinhão que figurava a noiva , fez o mesmo ao Duque , e -- " recebeo a senhora||_D._Leonor_de_Mendonça D.|_D._Leonor_de_Mendonça Leonor|_D._Leonor_de_Mendonça de|_D._Leonor_de_Mendonça Mendonça|_D._Leonor_de_Mendonça per palavras de presente , segundo forma da Santa Madre||_Igreja_de_Roma Igreja|_Igreja_de_Roma de|_Igreja_de_Roma Roma|_Igreja_de_Roma , com Dom||_James James|_James . " O tabellião encerrou o termo , e duas existencias que se não conheciam , e duas almas que nunca se haviam encontrado , -- uma creança de onze annos que talvez áquella hora brincava alegremente nos jardins solarengos do Guadalquibir , e um rapaz de vinte e dois , cheio de intelligencia e de ambição , que -- " desejava pouco de casar e muito de folgar , " -- como elle havia de dizer mais tarde no crú remordimento de tantas recordações implacaveis , -- estavam , -- ella , sem consciencia , -- elle , " muito contra sua vontade , " -- -- indissoluvelmente , fatalmente , ligadas na vida , jungidas ao mesmo destino , fundidas no mesmo nome . Depois de vós ... Lemma da Casa de Bragança , restaurada em D. Jayme . D. Jayme era o segundo filho do terceiro Duque de Bragança , D. Fernando II , o das pernas gordas , e da Duqueza D. Isabel , filha do Infante||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando , Duque de Vizeu . Nascera aos 22 de julho de 1478 : -- tinha pois cinco annos , apenas , quando uma tempestade de sangue e de terror o atirou , e aos pequenos irmãos , -- orphãos e desvalidos , -- para o exilio . O pae era decapitado em Evora , em 1483 ; -- um tio apunhalado em Setubal , pelo proprio Rei ; -- outro executado em estatua , -- as Casas de Bragança e de Vizeu sequestradas e dispersas . Na torva intriga das pretensões senhoriaes e da politica castelhana , a fraqueza dos desventurados chefes das duas poderosas Familias , trahira-lhes desalmadamente a tradição nacional e popular da dynastia de João I , que era a d' ellas , e que só a de Bragança havia de saber resgatar nobremente na restauração da Independencia portugueza , quasi dois seculos depois . Sob a terrivel apprehensão de que a mão de ferro de João II não poupasse as pobres creanças , -- talvez também por uma suggestão perfida d' aquella mesma politica que tanto acariciára a conjuração fidalga , -- D. Filippe , D. Jayme e D. Diniz , os filhos do Duque||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando , -- foram levados a Castella e acolhidos pelos Reis Catholicos . Lá mesmo , porém , havia de continuar a sombrear-lhes a infancia , o espectro da perseguição e da morte . D. Filippe , o mais velho , não voltou a Portugal . Morreu moço , e a suspeita d' um envenenamento veiu accrescentar-se á lenda sombria do Rei portuguez . O proprio D. Jayme parece ter difficilmente escapado a uma grave enfermidade sobre a qual se fez incidir a mesma suspeita , e á qual tinham de ser averbados depois os terriveis accessos de " humor melancholico " que o atormentaram toda a vida . A unica irmã , mais nova que todos elles , ficou com a mãe em Portugal e veiu egualmente a morrer menina . Digâmos , de passagem , que sobre aquella suspeita póde tambem incidir outra , melhor fundada : -- a de que a suggerisse o terror e o odio , explorando-a a intriga politica . O proceder de D. João II para com alguns dos conjurados , e muito particularmente para com D. Manuel , o irmão do Duque de Vizeu D. Diogo , contrariam seriamente a odiosa supposição . Oito annos depois da grande tragedia de 1483 , morria desastrosamente o unico herdeiro directo de D. João II , o principe D. Affonso , casado com a Princesa||_D._Izabel D.|_D._Izabel Izabel|_D._Izabel , -- duas creanças feitas garantes da paz e dos destinos dos dois Estados , -- ella , a filha dos Reis castelhanos que assim bruscamente arredada da Corôa , havia de compartilhal-a , um dia , precisamente com o novo successor , juntar-lhe as dos pães , e como que viver Rainha , apenas o tempo que vivem as rosas : -- l ' espace d' un matin ! Em 1495 desapparecia no tumulo D. João II . -- " Morrera o homem , " -- como exclamara na expansão sincera de quem accorda de um pesadello sinistro , a Rainha||_Catholica Catholica|_Catholica . Envenenado , ou não , -- novo e forte , ainda , -- João II , póde dizer-se que morrera a tempo . Alguns annos mais , e a expansiva vitalidade das duas unicas monarchias peninsulares que haviam de chegar , -- e eram chegadas já , -- á consolidação definitiva , primeiro do que tantas outras , pela necessaria crystalisação nacional , iria talvez gastar-se e dilacerasse tristemente n ' uma d' aquellas longas luctas em que se contorcia a Europa christã , face a face do mussulmanismo recrudescente . Que opulenta e pouco menos que inexplorada mina de estudo e de inspiração , a que este momento historico offerece ao critico , ao politico , até ao artista e ao poeta ! ... Apparentemente , a obra de João II , -- ainda hoje enovelada na Lenda , em sombras que confrangem e em clarões que cegam , -- não só ia interromper-se e truncar-se , mas retrogradar e perder-se , ingratamente engeitada pelo suecessor do grande Rei . Logo os primeiros actos d' esse suecessor parecem confirmar irresistivelmente tal idéa que não é , aliás , senão uma especie de illusão optica . Um d' esses actos foi precisamente a franca e ostentosa restauração da Casa de Bragança . Mas não foram , certamente , apenas as rasões de sentimento e de consciencia choradas junto de João II por D. Leonor , a attribulada esposa , e no coração desopprimido e moço de D. Manuel , pela infanta D. Beatriz e pela Duqueza D. Isabel , as desoladas mães , que moveram o primeiro a nomear seu herdeiro o segundo , -- o irmão do Apunhalado de Setubal , -- e esse , subindo com passo apressado e seguro ao throno portuguez , a chamar do exilio os filhos do Degolado de Evora . João II , o Principe Perfeito , que Machievel teria naturalmente preferido , se de perto o conhecera , áquelle Cesar Borgia que acertou ao seu ideal , havia de perceber , nitidamente , agitando-se e medindo-se na funesta solidão em que a morte o envolvera a elle e á Corôa de Portugal , as pretensões e cubiças da politica imperial e da politica castelhana , esta , a velha e necessaria inimiga . Maximiliano I era neto do nosso D. Duarte , por sua mãe , a formosa e amoravel Infanta D. Leonor , Imperatriz e Rainha , que descera ao tumulo em Neustat em 1467 . Isabel a Catholica , Rainha de Castella e Aragão , tinha a referver-lhe nas veias , sobre o dessorado sangue do pae , o do ousado e ambicioso avô , o Infante||_D._João D.|_D._João João|_D._João , um dos filhos do nosso D. João I. Não podendo legar , tranquilla e firme , a Corôa , ao bastardo amantissimo , D. Jorge , -- D. João II punha áquellas pretensões e cubicas uma previdente objecção chamando a assegurar a successão directa da grande dynastia nacional , um neto de D. Duarte e d' aquelle mesmo Infante , -- homem moço , sadio , ambicioso , -- capaz , como pareceu empenhado em provar , de abastecer largamente a reduzida Casa de Portugal com numerosos esteios de reproducção biologica e de alliança politica . D. Manuel , Rei por acaso , sentiria certo , rumorejar-lhe em volta , as saudades populares por D. João II , podendo fixar-se um dia no moço bastardo que feito Duque de Coimbra , mais tarde , como que avivava no titulo e nas doações a mal apagada memoria do celebre Infante||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro . Por outro lado , via nas mãos dos Reis Catholicos , podendo tornar-se n ' ellas em arma de revindicta e de intriga , entregues , em summa , inteiramente á influencia e ao arbitrio da politica castelhana , os filhos do Duque||_D._Fernando D.|_D._Fernando Fernando|_D._Fernando II , seus sobrinhos , feitos inconscientes depositarios da recalcada reacção feudal , e ultimos representantes de uma grande familia e de uma prestigiosa tradição , intima e necessariamente enlaçadas , nas origens e nos destinos , á Corôa portugueza . Chamando para junto de si , adoptando como filhos , engrandecendo como Rei magnanimo o bastardo de D. João II e os orphãos do Duque de Bragança , -- D. Manuel assegurava-se ao mesmo tempo da sympathia popular e da confiança fidalga , firmando suavemente nos alivios e alegrias de uma reconciliação generosa o -- " o motu-proprio , sciencia certa e poder absoluto " -- da sua auctoridade real , e desanuviando o começo do seu governo de fermentações perturbadoras da paz intestina . Não temos de nos occupar do bastardo . D. Manuel acolheu-o paternalmente , illudiu os ciumes e os partidos que as questões de precedencia e de favoritismo cortezão não tardaram em suggerir entre elle e o filho do Duque de Bragança , fel- o Duque tambem , e casando-o com D. Brites de Vilhena , filha de D. Alvaro , -- o irrequieto tio de D. Jayme , -- afastou d' este um partidario e conlheiro perigoso , que junto do genro teria de abrandar os rancores e impetos de revindicta contra a memoria e os partidarios de João II . D. Alvaro e os mais foragidos haviam sido chamados a Portugal , com os filhos do Degolado de Evora , -- os que existiam ainda : -- D. Jayme e D. Diniz . Atravessando Castella , no meio de singulares distincções em que desabafava o recalcado odio de Rainha||_Catholica Catholica|_Catholica por João II , -- D. Jayme entrava no primeiro de maio de 1496 , em Elvas , e vinha apresentar-se em Setubal , a D. Manuel que o fazia receber com ruidosas festas , e que entregando-o nos braços saudosos das tres senhoras que tanto haviam implorado por elle : -- a infante avó , a Rainha tia , e a mãe , a boa e infeliz Duqueza D. Isabel , -- reconstituia no desvalido moço a forte e opulenta fundação de João I e do grande Condestavel , não só com a mais ostentosa , mas com a mais escrupulosa munificencia . Durante todo o anno , e parte ainda dos seguintes , a chancellaria real trabalhou quasi ininterruptamente em juntar os titulos , os privilegios , as riquezas dispersas e truncadas do collossal senhorio : -- as villas , os castellos , as quintas , as herdades , os padroados , os reguengos , as rendas , os tributos , as jurisdicções de mero e mixto imperio , -- procurando habilmente evitar as resistencias dos direitos adquiridos ou as queixas dos damnos e restituições injustas , negociando compensações e trocas , -- escambos , -- como se dizia então , cobrindo e supprindo generosamente com dadivas avultadas as reversões demoradas e difficeis . Pelo condado -- Ourem em posse do 2.º Marquez -- Villa Real , recebe este o de Alcoutim para que volva aquelle á Casa de Bragança . Diogo Lopes de Lima frue em Guimarães certas rendas que devem ser d' ella ; succede o mesmo em Portel com a Condessa de Faro e com outros : -- D. Manuel compensa em dinheiro ao novo Duque a delonga d' estas reversões . Em auxilio da magnanimidade regia acode até , algumas vezes , naturalmente suggerida por ella , a deliberação popular . Os moradores da Honra de Amarante e os da Honra de Ovelha tomam respectivamente por senhores os Duques -- Bragança , varões ou femeas que sejam . Seguem-lhes o exemplo os das Honras de Britiando , Varzea da Serra , Omisio e Campo Bem Feito . O proprio D. Jayme não se conserva indifferente n ' esta chuva acariciadora e estimulante da fortuna . Pouco depois de entrado em Portugal compra a Gonçalo Pereira e D. Beatriz , sua mulher , as terras de " Penella de contra o levante , villa Chan , Larim , Couto de Penagante e todos os casaes , herdamentos e direitos . " Passados dias , adquire egualmente as terras , casaes e rendas que haviam sido de Tareja Novaes , na freguezia -- Brito Figueiredo , S.||_Martinho_de_Leitões Martinho|_Martinho_de_Leitões de|_Martinho_de_Leitões Leitões|_Martinho_de_Leitões , e " a quinta chamada de Santo Tisso de Riba Dave com sua torre , vinhas , jurisdicções , " etc. Em 20 de junho é-lhe definitivamente confirmado e doado o titulo de Duque de Bragança e " Conde de Barcellos , -- " de juro e herdade para elle e todos seus herdeiros e descendentes em tal fórma que por morte de qualquer Duque , o filho que ficar se chame logo pelos seus titulos sem ser preciso mais alguma ceremonia . " No mesmo dia são-lhe consignadas as rendas , foros , direitos , tributos , reguengos , casas e herdades de Guimarães que -- " por qualquer modo pertencessem á Corôa , excepto as sizas , " -- e quatro dias depois é-lhe entregue a villa e ducado d' aquelle nome -- " de juro e herdade para sempre com todos os privilegios e liberdades . " Em 18 do mesmo mez haviam-lhe sido doados a villa e castello de Chaves e seus termos , a terra e julgado de Montenegro , o castello de Montalegre e uma infinidade de quintas , casaes e padroados no norte do paiz . Em 21 , é feito fronteiro de todas as suas terras , como o haviam sido os seus antepassados ; -- no dia seguinte é-lhe aclarada e aditada a Lei Mental por segurança e proveito da successão da Casa . Dois mezes depois , em 16 de agosto , é nomeado fronteiro-mór d' Entre Douro e Minho e Traz-os-Montes , como fora o pae , e no mesmo dia é-lhe restituido o condado -- Arrayolos . Damião de Goes , no seu respeitoso affecto por João II havia de resmungar um pouco quando escrevesse a sua bella Chronica manuelina . Caetano de Sousa , geneologista cortesão , mais cortesão , até , do que geneologista , e muitas vezes cortesão desastrado , reprehende duramente , a murmuração que pressente nas entrelinhas do grande historiador . Mas deve fazer-se justiça a D. Manuel , até porque não tem sido o Rei portuguez mais favorecido por ella . Esta restituição de D. Jayme aos titulos e estados do Duque de Bragança não teve realmente o caracter , que a tornariam odiosa , de uma exauctoração insolita e brutal da justiça ou da politica de D. João II , como phantasiou Caetano de Sousa . Muito intencionalmente , decerto , e muito habilmente tambem , não se enleou e apoucou nos artificios e delongas de uma revisão , sobre suspeita , inutil , -- " n ' outra alguma prova de Direito , " -- como diz pomposamente o geneologista illustre . Foi uma deliberação expontanea , uma affirmação positiva e plena do Poder Real , exercendo-se -- " absoluto , por motu proprio , livre vontade e sciencia certa , " -- precisamente na suspensão , na remoção generosissima de um Direito absurdo que dava ao cutello do algoz a forca exterminadora que recusava ao dedo de Deus , na successão das honras e das fortunas , segundo as idéas do tempo . Seja qual fôr o grau de ostensiva ou real contradição d' esse acto , fossem quaes fossem as intenções e a inspiração que nem sempre é facil , e póde às vezes ser injusto , attribuir a estes movimentos de uma politica que mal podemos já conhecer em todo o seu obscuro e perdido trama , -- o que é certo É que ha n ' aquelle proceder de D. Manuel , na sua propria affirmação documental , como que o relampear de um grande principio que só bem tarde , quasi á beira da nossa geração , apenas , logrou vingar e impôr-se á moral e á politica dos Estados . Que espirito e que coração de hoje , por mais cerrado n ' uma intransigente e rigida imparcialidade critica , poderá incriminar o Rei Venturoso , por ter , uma vez na vida , -- como diz na sua pittoresca linguagem : -- " quitado , removido e tolhido " -- nos filhos a culpa do pae , e affirmado , consciente ou inconscientemente , que a sentença dos homens que abre um tumulo não tem o direito de afundar n ' elle um berço ? Além de que as circumstancias de algum modo faziam d' esse berço uma garantia de paz e de segurança nacional , e se fôra pueril pretender negar a parte que o coração , as affeiçoes intimas , as proprias paixões indeclinaveis e mal contidas de casta , havia de ter no procedimento do Duque de Vizeu e de Beja , feito Rei e successor de João II , não seria menos racional deixar de reconhecer como esses impulsos e influencias se equilibram e conformam , como chegam , até , a subordinar-se ás necessidades e inspirações da politica e da rasão de Estado , nos actos de D. Manuel , exactamente como nos do seu antecessor . Antes que D. Manuel case , antes que esse casamento se torne productivo , quando mesmo , nascido d' elle um herdeiro presumptivo da Corôa portugueza , a pobre creança segue de perto ao tumulo e mallograda Rainha , -- todas as vistas e não poucas apprehensões hostis e cortezãs , naturalmente , se lixam no moço Duque , ha pouco desvalido e exilado , como n ' um successor regio . D. Manuel , se por um lado parece empenhado em assegurar uma successão directa , por outro , longe de desilludir , corrobora e confirma essas presumpções . Chega mesmo , não póde duvidar-se , e dissémol- o já , á indigitação formal de D. Jayme como seu herdeiro . Se o não faz publicamente jurar como tal , auctorisa-o a que como tal se trate , adoptando os signaes convencionaes da heraldica e da etiqueta tradicional . A sua munificencia para com elle não afrouxa , e sente-se que , pelo contrario , aos impulsos generosos se accrescenta rapidamente uma confiança e uma affeição especial nas aptidões e qualidades do sobrinho , que será , até á morte , o seu dilecto conselheiro e amigo . Accrescenta- lhe a reconstituição da Casa com cessões e doações da sua propria . Em 1496 , ainda , dá D. Manuel ao Duque a terça parte dos bens que ficaram do Duque D. Affonso e do Marquez de Valença , e que ao Rei pertenciam por herança de D. Filippa , sua tia . Em fevereiro de 1497 , estando em Estremoz , D. Manuel cede no Duque a herança que por morte da tia , D. Filippa , lhe competia . No anno seguinte junta-lhe ás propriedades d' Entre Douro e Minho os bens de " Jeronymo Rodrigues -- " que em quanto judeu se chamava Abram Catel " -- e os perdera por infidelidade . Um anno depois entrega-lhe os paços da cidade -- Lisboa e reguengos do termo d' ella que foram do Condestavel D. Nuno Alvares Pereira , e mais as rendas de Rio Maior , villa -- Porto de Moz , e reguengo -- Alviella . Como haviam sido extinctas as judiarias -- Lisboa -- deixemos agora em paz o espantoso e tão fallado , -- tão mal fallado -- episodio , -- " dá-lhe em escambo e troca " -- das respectivas rendas , as dizimas novas e velhas do pescado da cidade , recommendando mais tarde á Camara d' esta que , por isso , nada altere n ' essas rendas . Vimos já com quanto zelo lhe cuidou do casamento , -- zelo exaggerado , por signal , que nem contava com a vontade e com o coração do pobre rapaz . Quando a noivasinha de D. Jayme devia transpôr a fronteira , segundo a clausula do contracto , offerecia-lhe ainda D. Manuel , como brinde de desposorio , que não seria o ultimo , a villa -- Monforte com o seu bello Castello , -- " rendas , direitos , jurisdicções e todas suas pertenças . " Apparece-nos com esta doação , a revelação curiosa de um pequeno obice de que não encontrámos vestigio em outras . E ' a da existencia de uma bulla de 22 de junho de 1499 , absolvendo D. Manuel do juramento que prestara de guardar as leis e privilegios do Reino , em attenção ás supplicas de D. Jayme , que por causa d' esse juramento não podia tomar posse plena da importante villa alemtejana . Lembrar-se-hia Monforte de reagir contra a semceremonia real que ia refazendo o senhorio desfeito por João II ? Temos realmente um indicio n ' uma concordata estabelecida mais tarde entre o Duque e os moradores da terra , de que esta sustentava de alguma fórma a justa prosapia do seu nome . Por outro lado , em cartas de D. Jayme , no seu proprio testamento , sente-se um certo desvanecimento d' elle pela alcantilada villa . O que parece certo É que foram estas duvidas e escrupulos legalistas , mais ponderosos então do que geralmente se pensa , -- que moveram D. Manuel a -- " dar a decreração " -- terminante , que Caetano de Sousa encontrou , e que -- " a nós só pertence dar , " -- diz saccudidamente o diploma regio , pela qual -- " remove , tolhe e quita " -- todo o impedimento moral e juridico que para D. Jayme seus irmãos e descendentes respectivos , se derivasse dos -- " processos e sentenças que foram dadas e feitas contra o Duque D. Fernando , seu pae , por que foi condemnado no caso maior . " Os homens do Direito , -- e não só elles , que nada valeriam os seus escrupulos e veleidades , se a força lhes não viesse de outra parte : -- do Povo , da Nação , da tradição historica e juridica , d' ella , -- os homens do Direito não prescindiam de uma legalidade formalista , coherente , que arredasse a suspeita ou retrahisse o impeto , a extravagancia , do capricho , da paixão despotica . Só assim , ab ovo , no seu principio , e por conseguinte na subsistencia da sua acção legitima , é que ficava correctamente removida a legalidade anterior , á voz do mesmo poder e do mesmo direito que a affirmára . -- Justiça que manda fazer nosso Senhor||_ElRei ElRei|_ElRei ! -- E era realmente , a mesma Justiça . Estava definitivamente reconstituida a grandiosa Casa em que se fundira o sangue generoso e o espirito intrepido dos dois valentes que haviam salvo e firmado a Independencia Portugueza . D. Jayme não era um fidalgo qualquer , exilado ha pouco , lançado agora por um simples acaso de fortuna no fastigio de uma riqueza e de um nome passageiro , que podesse esbanjar caprichosamente . Era uma instituição da Corôa , -- como disseramos hoje , -- da Nação . E quando , longos annos depois , elle se revoltava contra a inflexivel vontade de João III , que lhe prohibia casar os primeiros filhos em Castella : -- não era elle , era o Rei quem tinha por si a rasão e o direito ... Ah ! rasão teem , -- posto não tenham com ella nem o Direito , nem a verdade serena e justa da Historia , em criminarem rudemente os Filippes por não terem exterminado a gloriosa Casa : -- aquelles dos nossos estimaveis visinhos que cultivam e acariciam ainda a phantasia iberica , -- a velha obsessão castelhana ! ... PARTE II EM VILLA VIÇOSA Não se póde dar regra certa para todos . M. Bern . Pão Part. , 1.ª parte . Quantas vezes , desde que repassára a fronteira . -- homem feito , restituido á grandeza , a familia , ao valimento regio , ao respeito popular , -- quantas vezes volveria elle os olhos , cheio de funda saudade , -- ao tempo em que , exilado , quasi sem nome , pobre de recursos , entre estranhos insolentes de poderio e de riqueza , escondido receiosamente na sombra d' uma protecção precaria , -- era livre , ao menos , bem mais livre , certamente , -- se alguma vez o fora , -- no coração , no pensamento , na vontade ! ... Agora , a situação era outra : -- o coração , que lhe desabrochava em plena adolescencia , tinha de retrahir-se e conter-se nas conveniencias e nos interesses d' uma vontade alheia ; -- a vontade que lhe saltitava , talvez , fremente e leviana , nas illusões e nos impetos da mocidade , -- como avesinha que ensaiava os primeiros voos , -- tinha de recolher-se , muda e inerte , no pensamento e nos calculos da politica real . E que politica , a d' aquelles tempos ! ... A propria familia lhe era mais estranha do que os estranhos que deixára . Como recordar na velha dama que lhe chamava filho , os beijos e as lagrimas d' aquella adoravel mãe , que dezesete annos antes , n ' um dia de espanto e de terror , o escondera com os irmãosinhos nos braços do servidor fiel , que por envios atalhos e assustadas noites os levara ao exilio ? Filho lhe chamava tambem o Rei , mas Rei é que era esse pae de fortuna que , restituindo-lhe a grandeza , lhe tomava a liberdade , e erguendo-o , generosissimo , ao fastigio do poder lhe descontava logo os vinte annos por vinte e seis contos de maravedis . Feiticeira seria já a côrte de D. Manuel , como não era mais , -- como não seria tanto , -- a que D. Jayme entrevira em Castella . Respirava-se ali um ar estimulante de amor e de festa . Era como o acordar de um pesadello torvo : -- rebentavam as esperanças , refloriam as ambições , desopprimiam-se alegremente as almas . Moço era tambem o Rei Magnifico . A intelligencia , a mocidade , a formosura , a intrepidez volitavam-lhe em roda do throno simples e severo , no rumorejar capitoso de novos ideaes . Aquelle mundo embarcava na grande aventura de uma nova Edade . João II deixára apparelhadas as naus , e da Italia e do Norte ventavam refegas estranhas que revolviam os espiritos , as consciencias , os costumes . Cortesãos e amigos , companheiros petulantes , adulações e afagos , devaneios e folgares , olhares brandos , sorrisos promettedores , enlevos de coração , desvanecimentos de orgulho , estímulos de novas grandezas , -- não faltariam ali , ao exilado de hontem , banhado n ' um rocio perenne de honrarias e riquezas que o penetrava , que deveria lavarlhe a alma das sombras que lá tivesse deixado um passado de desgraça e de tristeza . Do velho Castello de Villa Viçosa , d' onde partira foragido , infante , sahia elle agora á frente de uma cavalgada imponente , da flôr da Côrte Manuelina , feito loco-tenente do Rei , e como se fosse elle proprio , a encontrar-se com os que o haviam conhecido , sem nome , sem patria , sem fortuna , n ' um desterro amigo , é certo , mas Deus sabe quantas vezes fustigado por insolentes desdens . D ' aquelle D. Diogo Furtado de Mendonça , Arcebispo de Sevilha , que poucos mezes antes auctorisára a procuração da pequena noiva -- D. Jayme , ia elle receber uma mulher moça e formosa , que conhecera creança , para a conduzir reverenciosamente aos braços de outro homem . Era a nova Rainha de Portugal , a segunda desposada de D. Manuel . Podia desejar mais honraria e fortuna ? Pois no meio d' estes deslumbramentos , e apesar de que a situação se accrescentára em segurança e riqueza com a decraçam regia e com o contracto de dote , de 1500 , -- o Duque de Bragança monta um dia a cavallo e acompanhado por um só servidor , vae-se delongada , caminho da fronteira , mandando dizer ao Rei que desse a Casa e o Titulo ao irmão , D. Diniz , e não quizesse saber mais d' elle , desgraçado ! que não podia com a fortuna e com o casamento . Não se póde precisar quando foi . O mais antigo e seguro vestigio do extraordinario facto é apenas a referencia ligeira de Damião de Goes , segundo a qual succederia em 1502 depois da vinda para Portugal da pequena " D. Leonor de Mendonça : -- " sem ainda ter idade pera se entrelles poder consumar ho matrimonio " . Quando veiu ella ? Pela lettra do contracto deveria ser entregue na fronteira até fins de março -- 1501 , mas Caetano de Sousa rebujando sempre com Damião de Goes , concorda com elle em que fora só em 1502 que D. Leonor viera . Presume , comtudo , que n ' esse anno a juvenil duqueza -- " cumpriria a idade competente " -- e que o matrimonio se consumára então . Mas em junho d' este anno D. Jayme estava em Lisboa : -- levava á pia baptismal de S. Domingos o recemnascido infante que deveria ser D. João III . O proprio Sousa o diz . Fugira antes ? Fugiu depois ? Vamos ver que tivera tempo para alongar-se muito . Podendo dar-se por definitivamente apurado , como damos , não só pelas informações accordes de Goes e de Caetano de Sousa , mas pelo testemunho do proprio chronista contemporaneo da Casa de Niebla , que D. Leonor viera em 1502 , e não no anno anterior como preceituava o contracto , o que consideramos prejudicado não é a data da fuga do Duque , mas a affirmativa além de tudo perfeitamente arbitraria da consumação do casamento . E liquidemos já este ponto . Sousa não só desconhecia a data do nascimento de D. Leonor , como esqueceu , na sua contenda com o texto de Goes , de que nos fins de 1500 , segundo os proprios documentos que publicava , era ella ainda " menor de doze annos . " Teria onze . E nós sabemos já que somente em 1503 ou 1504 fazia os quatorze . Dizia pois a verdade Damião de Goes . Ora uma bulla de 18 de junho de 1505 , cujo registo Sousa poderia ter visto , como eu , na Casa de Bragança , responde a um pedido do Duque em termos que indicam claramente que esse pedido fora ao mesmo tempo a " participação do casamento " de D. Jayme , ao Pontifice , como diriamos hoje , -- a communicaçao de que fizera definitivamente sua mulher , -- vxorem dixisti , etc. -- D. Leonor de Gusmão . É importante este documento , e , -- curiosa cousa ! -- vem juntar a toda esta historia mais uma coincidencia sinistra . O Duque pedira , e Julio II concedia , que qualquer sacerdote secular ou regular podesse absolvel- o plenamente , a elle , á duqueza e aos filhos que tivessem , em transe de morte , -- mortis articitlum , etc. Sousa não pôde descobrir também a data do nascimento de D. Theodosio , o primeiro filho dos dois . Este documento parece affirmar que até 1505 ainda elle não era nascido . Mas quando se foi D. Jayme ? Bem considerado , o texto de Goes não tem talvez o sentido absoluto que se lhe pudera attribuir , em relação á fuga do Duque . Vimos já que pelo contracto nupcial o Duque ou a Duqueza Mãe teriam de mandar receber á fronteira D. Leonor de Mendonça , que ali deveria ser entregue até rins de março -- 1501 . Em principios d' esse mez , D. Jayme recebia a doação de Monforte . Approximava-se o cumprimento d' aquella clausula . O silencio do Duque acerca da pequena noiva , ao annunciar ao Rei a sua partida , -- silencio revelado e notado por todos os commentadores , -- o pedido de que o Titulo e a Casa passassem ao irmão , o que implicaria a annulação completa dos esponsaes de 1500 , finalmente o adiamento da vinda de D. Leonor , achando-se , aliás , D. João de Gusmão em Sevilha , e partindo então para a pequena campanha da ( Ronda ) em vez de enviar a filha a Portugal , são rasoaveis indicios de que foi exactamente quando se approximava aquella vinda , quando o contracto ia tornar-se effectivo , talvez nesse mesmo mez de março -- 1501 , que D. Jayme resolvera desenlear-se d' elle , abandonando o Reino e devolvendo ao Rei quanto recebera d' este . Em relação aos tempos , -- em que taes rupturas e renegações dos mais solemnes compromissos eram não só vulgares , sanecionadas , até , quando não exemplificadas , pelos mais altos e prestigiosos poderes da Terra , com bem poucos escrupulos de forma , -- a maneira de D. Jayme tem incontestavelmente uma certa grandeza de consciencia e de caracter . Elle quebra a palavra dada por grata e dedicada obediencia , mas quebrando-a quando n ' ella está apenas empenhada a honra propria , e não a da mulher que lhe impozeram por esposa , -- uma creança ainda , -- despoja-se , desapparece Annula o vinculo , annulando-se elle . Que destino levava ? o que o movera a ir-se ? Aqui vimos topar em duas tradições que , ampliadas na Lenda , lhe forneceram o argumento de uma justificação soffrivelmente duvidosa , visto que não se contenta com elle , da tragedia de 1512 . Uma suspeita occorre . Teria o pobre Duque prendido os olhos e o coração n ' alguma d' estas paixões que , quando mais resignadas parecem ao mallogro fatal , irrompem , vivas e doidas , da mais corajosa e demorada contenção ? Amava outra ? Seria um bello lance romanesco , e confessamos que a apprehensão d' elle nos fatigou nas mais pacientes buscas pelo lendario pó dos archivos e pelos textos das historias , geneologios e memorias mais suspeitas de guardarem o segredo do caso . Sabe-se que mal D. Jayme regressara da primeira vez a Portugal , D. Manuel , como que dando aviamento e favor a desejos ou projectos antigos , mandara negociar o casamento d' elle com D. Joanna de Aragão , a bastarda do Rei||_Catholico Catholico|_Catholico , pouco mais velha que o Duque , e com quem este naturalmente convivera em Castella . A propria irmã d' ella , a futura rainha -- Portugal , D. Isabel , quando lá estava e era ainda Princeza , patrocinava aquelle projecto . E D. Jayme , contando , muitos annos depois , a D. João III a sua indifferença ou o seu desdem pelos bellos casamentos fidalgos que lhe propunham , dizia , a respeito do que lhe fizeram com a Medina Sidonia , que tinha então " o ponto em mais alto logar . " Mais alto do que a primogenita de uma das primeiras , de uma das mais ricas Casas da Peninsula ! ... Devia ser então muito alto . Aquelle projecto mallogrou-se , não , talvez , porque não conviesse ao Rei||_Catholico Catholico|_Catholico , mas porque a D. Manuel conveiu mais o outro . D. Fernando quiz casar a bastarda na Escocia , e acabou por dal- a ao gran-condestavel de Castella , D. Bernardino de Velasco . Não durou muito este consorcio , pois que em 1507 ou 1508 , D. Bernardino estava já viuvo . Mas além de que , o proprio D. Jayme diz tambem , que n ' aquelle tempo , precisamente , em que o fizeram marido , -- desejava pouco de casar e muito de folgar , " -- os chronistas e geneologos mais auctorisados , severamente tolhem qualquer idéa de mundanas e romanescas paixões que quizesse ensaiar-se sobre a brusca resolução do moço , -- affirmando-nos , com positiva segurança , que elle , por então não pensava n ' outra cousa que não fosse ... em fazer-se frade . Era essa a sua inclinação revelada e accrescida no convivio com os frades de " S.||_Francisco_da_Observancia Francisco|_Francisco_da_Observancia da|_Francisco_da_Observancia Observancia|_Francisco_da_Observancia , " a que chamam da Piedade ; " -- foram elles que lhe aconselharam e induziram -- " a vontade que trazia de seruir a Deos em religiam , mais do que no estado matrimonial . " De um d' estes padres confiou a carta que escreveu ao Rei , despedindo-se . Caminho de Roma se partia a pedir ao Papa a dispensa de noviciado para ir em Jerusalem , -- " tomar o habito e nelle passar todo ho discurso de sua vida . " Contrariadissimo n ' este ancear devoto , firmára o contracto esponsalicio , e com egual constrangimento , naturalmente , recebera as grandezas e honrarias mundanas que durante cinco annos lhe choveram , incessantes , sobre a adolescente cabeça , procurando mesmo accrescental- as por diligencias e iniciativa propria ! ... Quando eminente o casamento , rompera-lhe n ' um impeto irresistivel , a recalcada devoção , e essa fôra a causa da inopinada fuga . Conta o Goes , exaltam-n* ' o Caetano de Sousa , e outros . Goes , que era então muito rapaz e que só mais tarde havia de recolher a explicação na Côrte , vae deixando vêr nas entrelinhas , com uma certa malicia inconsciente de sabio , a despeitada semsaboria do moço que se acha casado com uma creança que não vira , que não amava , que não escolhera , que nem mulher era ainda : -- " sem ainda ter idade pera se entrelles poder consumar ho matrimonio ." Insinúa mesmo na versão piedosa um elemento pathologico , a que logo nos havemos de referir , e não deixa de tocar com a ponta insidiosa da sua penna de critico , o " induzimento " dos frades da Ordem . Mas a rasão mystica desdobra-se e floresce nos encomios e arrobamentos rhetoricos dos historiographos aduladores e beatos , diluindo , de mais em mais , a verdade historica da primeira parte da vida do Duque , -- da que termina e inclue a tragedia , -- sem dar-se muito ao incommodo de considerar que a Lenda bem pouco se ajusta á segunda metade d' esta extraordinaria existencia . E consegue-o , em parte , que lhe é cumplice a ruina dos Archivos , a dispersão e a perda dos documentos sobre os quaes essa verdade havia de fazer-se segura e integra . Fr. Manuel de Monforte não podia deixar de aproveitar , no século XVII , -- e aproveitou e explorou demoradamente , -- o thema e o personagem , para a glorificação , cheia de piedosas patranhas , da sua Provinda da Piedade . Rude e dolorosa fôra a gestação d' essa espiritua provincia , que no moço e potente Duque lográra encontrar , no periodo mais proceloso , um singular favor , um prestigioso reclamo . D. Jayme recolhera os revolucionados frades , e a doutrina d' elles , -- mais propriamente , a sua pregação apaixonada e ardente das mysticas deleitações do deserto , da soledade ascetica , do desprendimento desilludido do Mundo tão enganoso no seu fastigio , -- offereceria talvez ao temperamento , á educação , á propria situação actual do rapaz estranhas e insinuantes seducções . Por outro lado era uma conquista importante a d' aquella alma , ou antes a d' aquelle grande nome , para a nova seita seraphica em batalha accesa com os seus rivaes e competidores monasticos . Na rhetorica pomposa de Fr. Manuel e dos seus congeneres , o moço Duque absorveu-se rapido n ' uma vida toda de devoção e de penitencia , acompanhando os seus dilectos frades nos mais asperos exercicios e jejuns , escondendo-se com elles entre as selvas e fragas do seu senhorio alemtejano , no isolamento e na contemplação ascetica , mostrando , em summa , n ' um antecipado noviciado , curtido de despresos pelo Mundo e de humilhações para a prosapia ducal , uma predestinação extraordinaria para o glorioso burel . Sem nos emaranharmos agora n ' estas historias e revindicações fradescas , não pensaremos em contestar uma cousa que não sómente a referencia de Goes , mas muitos factos e documentos , -- alguns d' estes , até , do próprio punho do Duque , -- attestam com irrecusavel segurança . O Duque era profundamente devoto . Aos nossos olhos de hoje é natural e facil tornar-se imperceptivel a distancia que poderia separal- o do fanatico ou do beato , posto que na continuação da sua vida , nas cartas que d' elle nos restam , na tradição meio obliterada , sobretudo mal meditada , do seu criterio e do seu caracter , essa separação se insinue e imponha , por vezes , irrefragavelmente . O " indusimento " dos frades poderia tel- o dominado e movido , que encontraria , até , azado terreno para vingar , n ' um dado momento ; -- a ascese mystica tão especialmente favorecida pelas circumstancias do individuo e do tempo , talvez absorvesse o moço , e o impulsionasse um dia a procurar em novo e voluntario exilio , no fundo de sonhadas thebaidas , o esquecimento , o repouso , a liberdade que não encontrára nas riquezas e grandezas da vida real . Se É que escondido em tudo isto não fermentava tambem um pouco aquelle espirito aventuroso , que levára o Infante||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro a percorrer as partidas do Mundo , -- que havia de impellir-lhe o proprio filho , o Duque D. Theodosio , o que tinha " melancolias " como elle , a abandonar egualmente a Casa e o Rei , para seguir o Infante||_D._Luiz D.|_D._Luiz Luiz|_D._Luiz á aventura de Goleta ... Se é tambem que aquelles despeitados arrufos pela competencia do bastardo de D. João II , a que se refere Çurita , não sombreavam por esse tempo o animo altivo , a prosapia naturalmente feita tão mimosa nos favores realengos e nas tradições da familia ... Mas se realmente se deu com tal intensidade a crise devota , -- foi um incidente , apenas , n ' aquella existencia ou n ' aquelle espirito tão fortemente constituido , não para as abstracções e para os desvanecimentos mysticos , mas exactamente para a observação , as preoccupações , os interesses da vida pratica e da grandeza senhorial , como elle se revela depois , como se revelára antes , na propria reconstituição afanosa e ciosa da sua Casa . Vimos já que muitos annos depois , alludindo exactamente ao seu constrangido casamento , nem ligeiramente se refere ao episodio seraphico , -- não accentúa e avoluma aquelle constrangimento pelo sacrificio da sua inclinação , da sua predestinação piedosa , -- e mais fallava a João III , e mais recordava-lhe altivamente os seus merecimentos e os seus sacrificios . -- " Então -- diz-lhe -- " tinha eu o ponto em mais alto logar , " -- mas esse calado objectivo não havia de ser o de -- " servir a Deos em religiam , " -- escondendo-se amortalhado no burel capucho d' alguma thebaida . Não que elle prevenira logo que -- " era mancebo e desejava pouco de casar e muito de folgar , " -- o malaventurado ! Ah ! pobre Fr. Manuel de Monforte , quanto dera a tua soprada rhetorica por ter feito desapparecer esta phrase diabolicamente naturalista , do teu predestinado ! Mas tambem , valha a verdade , não te déste+este a grandes incommodos por saber que indiscretos testemunhos elle teria deixado de si . Desastrado Provincial que fôste ! Ao menos , o illustre Caetano de Sousa foi tão escrupuloso e severo que não hesitou em truncar , com mão firme e prudente , nas suas Provas da Historia ! o testamento de D. Jayme para que não provasse ... contra o historiador , embora provasse a favor do historiado . E afinal , de contas , o sacrificado foi este em todo esse trama de falsa piedade e de inepta adulação . -- " O que tomou Azamor , " -- consolidando as nossas conquistas d' Africa , o amigo de Vasco da Gama , o protector de Lopo Vaz de Sampaio , o conselheiro leal e intemerato de D. Manuel e de D. João III , o iniciador da tactica e da organisação militar moderna de Portugal , ... imaginaveis vós como o apresentaveis á posteridade de tres seculos adiante ? Como uma " alma tisnada de fanático " ! Chãmente , como uma " devota besta fera " ! A vaporibus prauis -- ventriculo multiplicatis ascenditibus ad cerebrum , aegros -- grauissima pericula , deprauatas imaginationes , et innumeras delirij fortes incidere , probat Aetius tetrab . 2 serm. -- hypochondriaca melancholia firmant Gal . 3 de loco . cap. 7.. . . Zacvti Lusitani ... Operum , etc. Lvgd. 1657 . D. Jayme era um melancholico . É esta a indicação pathologica de Goes . Exactamente quando o fizeram casar em Lisboa , andava elle -- " muito doente de humor melenconico , " -- diz o grande historiador . E dil- o uma tradição constante , que perfeitamente se conforma , não só com alguns factos apurados e com o tom dominante dos documentos que nos restam do proprio punho do Duque , -- mas com as circumstancias e condições que deveriam formar-lhe o temperamento e o caracter , com certos indicios , até , da herança biologica que deveria ter recebido n ' aquelles . Os terriveis successos que lhe estremeceram , forte e sinistramente , a infancia ; aquella fuga com os irmãos , sob o terror d' um perigo desconhecido ; aquella orphandade violenta ; aquelle prematuro e assustado exilio , -- a morte do irmão , a suspeita doença de que elle proprio difficilmente escapara , -- até aquella especie de resurreição insolita , inopinada , para um fastigio quasi real , e depois , e ainda , as invejas , os ciumes , as competencias e intrigas que logo n ' essa resurreição o assaltaram : -- são circumstancias , influencias , estimulos que por si bastariam para explicar uma d' aquellas disposições ou affecções que os antigos ingenuamente attribuiam á acção exaggerada , desequilibrada da bilis , e ás quaes , como da hypocondria havia de dizer Mead , não ha que determinar outra séde senão todo o complicado trama individual . Porque é claro que quando digo que D. Jayme era um melancholico , nenhuma duvida tenho em comprehender que era um doente . Doente , de um d' aquelles estados obscuramente , complicadamente pathologicos , pelo estudo dos quaes esta sciencia nova , tão enriquecida de revelações antigas que poderemos chamar a hysterologia , vae dia a dia reconstituindo a unidade , a coherencia fatidica , integral do corpo e da alma humana , do orgão e da intelligencia , da faculdade e da funcção . Era um nevrotico . Tinha a mobilidade , a desegualdade , a trepidação mental , confusamente , extraordinariamente coexistente com um fundo de teimosia , de fixidez , de desdenhosa concentração , que define o caracter hysterico , se póde -- que julgo que póde , -- dizer-se assim . Frequentemente , nas suas cartas , allude D. Jayme , a uma cephalalgia insistente , a insomnias terriveis , que elle procura vencer com fortes canceiras do corpo , fatigando-o em longas caçadas e passeios . Falla do seu mal , como de cousa sabida e antiga . O filho , o Duque D. Theodosio , soffre tambem de longas melancholias . Gasta as noites a ouvir as historias do seu guarda roupa . Através de uma redundancia fastidiosa de indicações vagas , de allusões que se copiam e confundem , encontrei em um ou dois velhos geneologios uma anedocta curiosamente caracteristica . Um dia , D. Jayme deixou de comer . Recusava intransigentemente toda a alimentação . Comer para quê , se elle -- " tinha morrido " -- ? Aquella intelligencia tão viva , tão pensadora , fechára- se n ' esta idéa fixa : -- " morrera . " Quando foi ? Não se sabe , e importaria pouco . Sobretudo , aos geneologistas , esta questão de datas parece ser uma questão perfeitamente indifferente . O facto é que o duque estava n ' um dos seus accessos de -- " humor melencolico , " -- e que esse accesso dera-lhe o que é perfeitamente symptomatico , para não comer . A situação tornava-se grave , quando um dos medicos , -- oh desconhecido hypnotista do seculo XVI ! -- teve esta idéa luminosa : -- arranjar uma -- " visão " -- pela qual fez saber ao Duque , -- sugeriu-lhe , -- que não morrera tal , e que por conseguinte , precisava comer , exactamente para que não morresse . E a -- " visão " -- salvou-o . O impeto que levou o Duque a sahir de Portugal , a fugir ás grandezas do mundo e aos enlevos do poderio e da Corte , em demanda da solitaria thebaida , seria pouco mais , ou , talvez , pouco menos , do que um d' estes accessos . Melancholia , soledade , obsessão mystica , são cousas correlativas , muitas vezes . Como ficaria desconsolado o nosso pobre Fr. Manuel de Monforte se lhe dissessem que afinal de contas os seus devotos e apaixonados pregadores do deserto não eram senão uns maniacos anthropophobos , segundo a terminalogia douta , uns nevroticos , uns hystericos , quando não fossem , -- que tambem aconteceria algumas vezes , -- outra cousa peior , de mais plebeu appellido ! ... Mas deveria ser um nevrosismo natural , como diria Despine , esse do Duque D. Jayme , -- explosindo em accessos , -- " agora de subita colera , agora de indeterminable melencholia , " -- como diz D. Francisco Manuel , -- sem que , comtudo , fizesse transpôr áquella singular individualidade , quer nas manifestações pathologicas , quer no juizo e conceito dos contemporaneos , a distancia , certamente difficil de determinar , mas indeclinavelmente perceptivel , que vae d' um caracter excentrico , original , á vesania , á loucura definida , irreductivel , certa . Como succede com as inclinações devotas do Duque , -- tão facilmente explicaveis até , sem o elemento critico do seu caracter hysterico , dos seus " humores melancolicos " , mas perfeitamente illuminadas por elle , agora , -- é o proposito desastrada e imprudentemente cortezão que exaggera , n ' uma falsa lenda , o elemento pathologico . Nem vale dizer D. Francisco Manuel , apegando-se á suspeita de uma tentativa de envenenamento em creança , que -- " la reverencia dissimula en los grandes , " -- estas tristes contingencias do homem , porque exactamente é tão inepto aquelle proposito systematico , que exaggerando a supposta insania de D. Jayme para cobrir com ella um facto natural e documentalmente explicavel , lança a suspeita , a contradição ou a duvida na affirmação simultanea das qualidades mais exalçadas ou dos actos mais glorificados do Duque . Goes , que o conheceu , Goes que não é um cortesão do século XVII , cheio de preconceitos e de susceptibilidades ridiculas , mas um homem do século XVI , mas um sabio , mas um critico , Goes refere a devoção do Duque , refere a sua " doença , mas diz tambem que elle " foi homem muito prudente , e cita-o como conselheiro recto , leal , auctorisado . E mais Goes ... não gostaria d' elle . Singularmente prudente e valoroso , homem de correcta e levantada estatura , o pintam os seus contemporaneos , os que o conheceram de perto , os que com elle lidaram , e só de homem havido e conhecido por tal se confiára , -- mezes depois , precisamente , da tragedia de Villa Viçosa , -- a fina flôr da fidalguia portugueza , uma das mais numerosas e brilhantes expedições que de Portugal sahiu , expedição entregue discricionariamente , note-se isto , ao criterio e á auctoridade absoluta d' elle . Bastavam porém os documentos que nos restam de D. Jayme , as suas cartas a D. Manuel e a D. João III , verdadeiros monumentos que são de energica hombridade , de espirito levantado e lucido , de pratico e sensato criterio , para se comprehender quanto se amplificou a tradição , no fundo exacta e comprovada , d' esse " humor melancholico " que affligiu e que , em grande parte , inutilisou , -- foi o mais que fez , -- aquella forte individualidade do nosso seculo XVI . Certamente , D. Jayme era da massa de que se fazem os Hamlets . Melhor lhe assentára esta litteraria etiqueta do que a de Othello que lhe teem dado , se bem lhe assentasse alguma . Aquella extraordinaria incongruencia , aquella contradição flagrante do caracter do Duque , -- que justamente impressionou o sr.||_Fernando_Palha Fernando|_Fernando_Palha Palha|_Fernando_Palha , primeiro do que a nenhum outro escriptor , seja dito em honra do seu estudo e do seu senso critico , -- naturalmente nos suggere a apprehensão lisongeira para as nossas preoccupações litterarias de encontrarmos n ' elle um bello exemplar portuguez da grande concepção shakspereana . Mas além de que essa incongruencia provém , seguramente , em grande parte , das obscuridades historicas que aos nossos olhos isolam certos factos e situações mais salientes , -- logo occorre a objecção de que a D. Jayme faltou exactamente a força absorvente , contínua , logicamente , fatalmente tragica que contrahiu as mãos leaes do Mouro na loucura de um estrangulamento cobarde e vibrou o ferro do principe da Dinamarca ao peito do regio assassino . Para Othello faltou-lhe a Desdemona . Para Hamlet não encontrou sequer o matador do Pae . Outro , porém , foi " o ponto " , -- como elle dizia , -- em que se lhe fixou o destino da sua existencia , o leito que as circumstancias implacavelmente cavaram á corrente tumultuosa da sua individualidade moral . Não foi o amor , -- e mais elle havia de alvorecer um dia , ardente e dominador , n ' aquella alma regelada e sombria , como se fosse na alma selvagem e ingenua do Mouro . Não foi a vingança , -- que a antecedera e desarmara a desolação e a morte . Foi a grandeza , o orgulho , a honra do Nome substanciado , perpetuado na Casa , -- exactamente ao que elle fugia , o que elle abandonava bruscamente sob a suggestão mystica de se approximar de Deus . Como não fazemos um romance , podemos antecipar as revelações . Ha uma carta , -- um documento , sob todos os aspectos notabilissimo , de D. Jayme , -- em que elle proprio se quiz pintar , bem definido e certo , á prosapia real que suppunha impôr-se-lhe ou rendel- o pelo deslumbramento d' uma honraria singular . -- " E este sou eu pintado pelo natural , " -- diz elle -- " e creio que achará vossa alteza em vosso reino poucas pinturas que se pareçam com esta . " É na questão do dote d' uma filha , -- a d' elle e de D. Leonor , -- escolhida por D. João III para esposa de seu irmão , o Infante||_D._Duarte D.|_D._Duarte Duarte|_D._Duarte . Entendia o Rei que o Duque , desvanecido com esta escolha , deveria cortar largo e fundo pelo proprio senhorio e fazenda , para na grandeza do dote corresponder á extraordinaria honraria da mercê . D. Jayme defronta altivamente com a illusão real . Desfal-a prompto . Lembra-lhe rudemente quem é , não o confunda ella com esses -- " villões ou christãos novos que por remir sua villania ou judearia quando querem haver pessoas de differente estado que são tão baixas que se querem vender por dinheiro esses taes os compram " -- ou com os -- " que veem da India ricos de roubar vossa alteza que assim como lhes custa pouco a ganhar , tem em pouca conta de o dar . " Filha sua póde bem ser desposada de Principe , que tem sangue de Reis nas veias , e n ' elle -- " não minguam merecimentos para isto que depois do conde||_Nuno_Alvares Nuno|_Nuno_Alvares Alvares|_Nuno_Alvares a esta parte se o bem olhar vossa alteia ninguém os teve taes . " Finalmente , e este é o " ponto " capital , decisivo , caracteristico : -- " bem devera de ver que eu não havia de dar a minha filha cousa que me houvesse de desfazer nem destruir porque eu lhe dice logo , que eu queria ainda mór bem a mim que a meus filhos , e após mim a minha casa mais que a elles , e por isso não havia de fazer cousa que desfizesse em meu filho herdeiro e na casa que lhe havia de ficar , e porque tinha esta tenção estava bem fóra de desejar para minha filha marido a que eu houvesse de beijar a mão , e que queria antes casal- a com homem que m ' a beijasse a mim . " Como isto é mais comprehensivel e nitido , mais natural e persuasivo , do que todas as phantasticas pinturas dos chronistas seraphicos e dos geneologistas cortesãos ! Como mais e melhor condiz com as circumstancias e as condições em que se formou e fez o nosso Hamlet , -- sem Clandius , -- o nosso Othello , -- sem Desdemona ; -- ou que , em summa , lhe enquadraram fatalmente , a mentalidade , a vida , o destino ! ... A influencia , os habitos do assustado exilio : -- a concentração , a contenção prolongada do pensamento , da vontade , da palavra , a provavel lição da velha parente , junto do qual se educára , de que só na Religião , -- em Deus , -- havia de pôr toda a esperança e segurança da vida , mais de uma vez haviam de produzir affrontamentos e trepidações violentas n ' aquelle caracter em formação , no meio do inopinado fastigio . Parece que assistimos á representação real do auto da alma que Gil Vicente , cinco ou seis annos depois da fuga do Duque , havia de exhibir nos paços da Ribeira deante d' aquelle mesmo Rei||_D._Manuel D.|_D._Manuel Manuel|_D._Manuel que no nosso caso faz inconscientemente o papel de Diabo , -- o que nada de injurioso tem quando o do Anjo da Guarda é desempenhado pelo fanatismo idiota dos frades do Deserto . O Duque , -- a Alma , -- ... mui temerosa da contenda , debata-se incerta e fraca entre os dois rabulas . Vence o Rei . Alva pomba , pera onde is ? Gosae , gosae dos bens da terra , Procurae por senhorios E haveres . Quem da vida vos desterra A triste serra ? Quem vos falia em desvarios Por prazeres ? Esta vida he descanco Doce e manso , Não cureis d' outro paraiso : Quem vos põe em vosso siso Outro remanso ? Vence o Rei : -- o Duque volta á grandeza , ao senhorio , ao fastigio do Mundo ... Que Gil Vicente nos perdôe a impiedosa apropriação . Menina e moça me levaram ... Bern . Rib . -- Menina e Moça . Boas centenas de leguas tiveram de andar aquelles dos enviados de D. Manuel que primeiro acertaram na pista do foragido Duque , até o encontrarem numa pousada de Calatayud , em pleno Aragão , nas margens do Xalon . O Rei portuguez não se conformára com a isempção rebelde ou seraphica do moço , e parece até que carregara o sobr'olho , desconfiado e colerico , do zelo indiscreto dos novos frades que não tardariam em sentir o inconveniente d' aquella insolita pretensão de levarem para o seu ideado deserto as almas ducaes tão necessarias ao serviço de Deus ... na Côrte . Expedira ordens e mensageiros em diversos sentidos , -- por terra e por mar , dizem alguns , -- para que lhe trouxessem D. Jayme . O escandalo feria simultaneamente o amor , a auctoridade , o bom senso do Rei , -- a sua honra e o seu interesse : -- o interesse do Estado . Era uma aventura inadmissivel , uma rematada loucura . D. Manuel era auctoritario , teimoso , pratico . Nada mais inexacto do que suppôl- o um passivo , um mimoso da fortuna , e mais nada . Exactamente por aquelle tempo , quando as suas esquadras cortavam já os mares , não só para a India , mas para o Brazil e para a America do Norte , quando negociava com os mais ricos negociantes e armadores de Lisboa a exploração do commercio oriental , teimava elle , contra a opinião do seu Conselho e contra as instancias da Rainha , em que havia de passar á Africa , a fechar d' aquelle lado o cerco á soberba mussulmana . Tendo , porém , de dispôr de grande parte da expedição que reunia , em soccorro da christandade do outro extremo da Europa , enviava na esteira d' aquella uma expedição que varresse o caminho de Oran e occupasse Mazalquivir , o que o Rei||_Catholico Catholico|_Catholico , aconselhado por D. João de Gusmão , mais feliz , havia de conseguir pouco depois . Annos mais tarde , quando Arzilla esteve a pique de perder-se , D. Manuel , recebendo a nova , em Evora , indo para uma festa n ' aquella formosissima egreja de S. Francisco , que é ainda um dos nossos mais notaveis monumentos , -- e dos menos conhecidos , -- mandou prescindir do sermão , apressar o jantar , apparelhar a sua melhor egua andadeira , e sem mais ceremonias poz-se , a mata-cavallos , no caminho do Algarve , com sete ou oito servidores , na resolução de passar além . Naturalmente com pressa egual , embora sob bem differente impulso , o nosso D. Jayme atravessára escondidamente a Estremadura e as Castellas , e chegara á tradicionaria Bilbilis , á pequena patria de Marcial , d' onde tanto podia fazer caminho para Barcelona e ir embarcar ali , como seguir para o norte a entrar em França . Se realmente levava o fito em Roma e a cabeça exaltada nas glorias da religião , de bem cruel decepção o livraram os enviados de D. Manuel . Em Roma tripudiava á solta o Boi Borgia , sanguinolento , impudico , garanhão , e o pobre Duque portuguez que alguns annos depois fallava das " embrulhadas " que iam por lá , n ' uma especie de recatado assombro do seu caracter sinceramente devoto e austero , havia de sentir-se muito ridiculo e desastrado quando defrontasse com o glorioso collega , aquelle outro Duque , -- o de Valentinois , -- filho do Papa , -- o que fazia tremera cidade , " -- ou quando depois de atravessar os opulentos oedes Borgia do Vaticano , cheios de mulheres e de cortesãos , para pedir ao glorioso Pontifice a graça do burel , elle o convidasse amistosamente para um " banquete de castanhas , " ou para um almoço de familia em casa da , bella Julia Farnesio , a Sposa del Cristo ! Ou porque visse que não havia meio de eximir-se ás ordens e exortações de D. Manuel , ou porque attenuado e espairecido na longa travessia o accesso misanthropico , a rasão lhe impozesse o regresso , D. Jayme voltou para Portugal . Entre a partida e a volta deveriam medear longos mezes . Como dissemos já , em meiado de 1502 , -- antes até , -- estava o Duque em Lisboa , e apparecia em publico engrandecido por uma nova e singular demonstração do favor e da dilecção real . Era elle que levava ao baptismo o herdeiro da Corôa . Ou pouco antes , ou pouco depois , d' este ultimo facto , como nos inclinamos a crer , -- e em todo o caso n ' aquelle anno , -- realisava-se a entrega de D. Leonor de Gusmão que ia de S.||_Lucar Lucar|_Lucar a Sevilha e depois de brilhantes festas , em ambos os pontos , era enviada á fronteira com principesca comitiva . Em Sevilha reuniram-se os parentes e amigos mais qualificados da Casa de Niebla e a principal nobreza da Andaluzia . Durante muitos dias succederam-se os torneios , as justas , os jogos de cannas , os touros , as " aventuras y todo genero de grandesas " com que o Duque , -- ou melhor os Duques , pois que D. João regularisára já o seu segundo casamento , -- opulentamente , -- um pouco politicamente , tambem , -- ostentavam a satisfação e as esperanças que punham na prestigiosa alliança . D. Leonor foi recebida na fronteira e conduzida a Villa Viçosa pelo proprio D. Jayme com lustroso cortejo de parentes , amigos e vassallos , sendo entregue no Castello Velho aos cuidados da Duqueza Mãe , muito inclinada á educação das meninas da familia , segundo se vê do seu testamento . D. Leonor atravessava então a edade menos seductora : em que as graças da puericia teem desapparecido e as fórmas e encantos da mulher não se definiram e bolearam ainda . Teria treze annos . Seria formosa ? Talvez não podesse dizer-se então . Mesmo posteriormente , -- á parte as phantasias da invenção litteraria e a adjectivação banal , ainda assim bastante escassa , d' esta vez , da geneologia cortesã , -- não póde affirmar-se que o fosse , sobre testemunho algum auctorisado e claro . Aos vinte e quatro annos , no meio de uma Côrte em que as mulheres formosas não escasseavam e o eterno thema do suspirar e cuidar renascia e se glossava alegremente em aventuras e ostentações de uma galanteria irresistivel , -- aquelle marido sem mulher , que não podia ser um namorado viavel e que seria um amante inseguro , -- " um servidor " suspeito , -- faria certamente uma estranha figura . Restaria a D. Jayme o exemplo pratico de Affonso III , que formando e creando desde os oito annos a pequena e tambem um pouco obrigada noiva , -- uma Gusmão , tambem , fôra espairecendo publicamente nos braços de Aldonça Annes os enfados e delongas d' aquelle consorcio solteiro . Mas os tempos e as circumstancias eram outras . Que o Duque era um temperamento amoravel e vigoroso , apesar dos " humores melancholicos " que lhe opprimiram toda a vida o coração e o espirito , prova-o , pelo menos , a farta prole que deixou . N ' essa prole ha bastardos , mas estes , -- os que chegaram ao nosso conhecimento , -- vieram muito depois , precisamente na constancia do segundo e tranquillo matrimonio . Tenham paciencia os romanticos . A verdade É que desde que volta novamente á patria , resignado ou convencido , -- mais exactamente , desde que apparece levando o futuro Rei ao baptismo , em meiado de 1502 , D. Jayme escondese-nos quasi inteiramente da vista , por mais que a fatiguemos a sondar o vacuo produzido pelo desbarato dos archivos . Apenas uma ou outra vez o encontramos de passagem , ou o adivinhamos a lidar calladamente na consolidação e na administração da grande Casa , no exercicio e nas excursões do seu alto officio de Fronteiro , nas diversões peculiares a um grande senhor , intelligente , moço , opulento . A mãe ; a Duqueza D. Isabel , continuou vivendo no Castello Velho até juntar os dois desposados . Ali se conservaria então a joven noiva , -- ou até que " se entrelles podesse consumar ho matrimonio " -- segundo a phrase pittoresca de Goes . Da sua apparição em Lisboa ou na Côrte não encontramos vestigios . No Castello Velho , que tantas transformações soffreu , e que seria , a bem dizer , o nucleo do Castello actual , já bastante truncado tambem , -- ha ainda casas , e sobretudo , ruinas d' aquelle tempo . Estão de pé e excellentemente conservadas as formosas salas da Armaria começada por D. Jayme e largamente opulentada depois , que foi fallada , aqui e fóra , e desappareceu de todo nos varios torvelinhos e sorvedouros que teem devorado todas as riquezas artisticas do paiz . Apresentam um aspecto imponente e formosissimo essas salas desertas , sustidas por elegantes columnadas e artesões . N ' uma casa terrea , sob as camadas implacaveis da caiadura alemtejana que invade e esconde tudo , encontrou S. A. R. o actual Duque o resto de uma pintura a fresco extremamente curiosa : -- um grupo de rapazes a cavallo em cannas , certamente allusão ao episodio ou á lenda de umas creanças que nos seus brinquedos marciaes prognosticaram , segundo uns , a acclamação de João I , segundo outros , a de João IV . Ainda sob o aspecto da historia militar , o Castello de Villa Viçosa , testemunha dos primeiros e faceis triumphos da invasão castelhana e da sua mais desastrosa derrota , é um monumento interessantissimo . Nas melhores presumpções , em quanto a noiva completava sob a educação da Duqueza Mãe a sua educação de mulher , D. Jayme entregou-se á transformação da propriedade solarenga . Muito dado aos prazeres da caça , é possivel que fosse então que traçasse a vasta tapada actual . O que parece averiguado , É que foi n ' estas vesperas longas do casamento definitivo que fez edificar á beira do reguengo a nova residencia ducal , que ampliada e enriquecida , pelos seus dois immediatos successores , havia de espantar a embaixada pontificia de 1571 como o palácio " mais aprasivel e comodo , " com a unica excepção do Paço Real de Madrid , de quantos encontrára através da Peninsula . Continuada depois , ainda , essa collossal construcção é uma das raras residencias monumentaes e principescas do paiz . A sua extensa fachada , simples e magestosa , um pouco , até , monotonamente magestosa , que faz lembrar o Palacio Farnesio , de Roma , lança nas nossas idéas e preconceitos artisticos , quando suppômos ir defrontar com uma construcção manuelina , a nota brusca d' uma invasão italiana . Essa fachada não é certamente da vida de D. Jayme , mas a maior parte d' ella , pelo menos , estava feita no tempo de seu neto quando pousou ali a embaixada de Pio V. Logo que entramos o singelo portal e subimos a larga escadaria de bello marmore da região , nos apparecem em face e dos dois lados as grandes pinturas muraes da tomada de Azamor por D. Jayme , de que falla Venturino , e que mandou fazer D. Theodosio I , o filho successor do Duque . Os riquissimos pannos de Flandres é que se foram de ha muito . Foi D. Theodosio , seguramente , que completando a consolidação e o engrandecimento da Casa de Bragança na sua ostentosa organisação interna , primeiro transformou e ampliou a edificação de D. Jayme . A parte anterior e superior do palácio , sobretudo a enfiada longitudinal de vastos salões , as adaptações e accrescentamentos successivos , até uma época relativamente recente , absorveram , abafaram e esconderam , quasi inteiramente , a traça e a construcção primitiva . Mas através d' esses lanços e adaptações posteriores encontram-se , ainda , muitos elementos nitidamente reveladores , -- excellentemente conservados até , -- das " casas " de D. Jayme , e póde mesmo atinar-se , talvez , -- pelo menos , julgo tel- o conseguido , -- com boa parte do restricto theatro em que se representou e desenvolveu a tragedia de 1512 . Quando os dois noivos poderam finalmente reunir-se sem escandalo maior da Natureza ... ou dos canones , a Casa dos Duques passou para a parte já habitavel do Paço do Reguengo , e a Duqueza Mãe , abandonando o Castello Velho , veiu viver em Lisboa , com a irmã , a Rainha||_Viuva_de_João Viuva|_Viuva_de_João de|_Viuva_de_João João|_Viuva_de_João II . Se não póde dizer-se com perfeita segurança que D. Leonor fosse ou não fosse formosa , menos póde surprehender-se a sua feição moral , definir o seu caracter , o seu temperamento , o seu genio , adivinhar-lhe o espirito , auscultar-lhe o pobre coração em plena florescencia bruscamente parado e emmudecido . De D. Jayme restam-nos ainda testemunhos dispersos , revelações truncadas , mas nitidas , sufficientemente nitidas ; -- os rastos de uma existencia de exterioridades ruidosas , diversas cartas mais ou menos denunciadoras , -- para quem saiba lêr o que ha sempre por traz ou entre as gavinhas que a mão traça ao movimento de uma intelligencia que se dissimula ou que se expande . De D. Leonor , as referencias que poderiam ser mais seguras são vagas e insignificativas . Fez-se em volta d' ella um grande silencio . A curta existencia deslisou-lhe numa completa obscuridade . Não atravessou a Côrte , -- aquella Côrte intelligente , luminosa , litterata , que deixou no Cancioneiro , nos Autos , nas Chronicas , o rasto indiscreto , umas vezes sinistro , tantas vezes brilhante ; as notas , ora maliciosas , ora épicas , do seu original , do seu singular movimento . Duqueza de Bragança , filha do primeiro Duque de Castella , a primeira dama da fidalguia portuueza , depois das que pisavam o estrado real , pôde dizer-se que é apenas ... um nome . Depois , -- a sombra do marido sobrevivente , -- uma grande figura prestigiosa e temida , adensou , mais ainda , a sombra do seu viver obscuro , afastado , a propria sombra em que a envolveu a morte prematura . Um escriptor moderno suppoz ter-lhe encontrado o perfil nas velhas folhas de algum nobiliario desconhecido : -- uma especie de caricatura , por sigilai : -- uma " galantissima menina affeiçoada a bonecas e a borboletas , mui festeira de gatos e periquitos d' Africa . " Compulsei uma infinidade de geneologios e cartapacios de memorias , e o que encontrei foi uma mudez absoluta , que , a fallar a verdade , não vale menos do que aquella revelação picaresca . Conhecemos os pães , -- e podemos imaginar o meio , -- sabemos que D. Leonor era uma moça andaluza , nascida e creada n ' uma raça forte e irrequieta , na opulencia , na ostentação , numa atmosphera viva e quente de grandes paixões ; -- que a sua infancia se passára na contenção educativa de uma grande e velha fidalga , -- a avó ; -- que esta e a mãe lhe haviam morrido quando menina ; -- que depois se achou desposada d' um grande senhor , que não conhecia , um estrangeiro , austero e triste , que andava quasi sempre por fóra , -- e tutellada e educada , n ' um velho castello estranho , bem menos ruidoso e alegre do que os seus Paços de S.||_Lucar Lucar|_Lucar , por uma dama que era quasi uma Rainha , muito carinhosa , certamente , mas cheia de recordações sombrias , que só teria uma preoccupação : -- fazer d' ella uma Duqueza digna do elevado estado e da grandiosa prosapia da Casa e do filho , -- do filho adoptivo do Grande Rei . Mas tudo isto fornece-nos apenas indicações confusas , fugidias , inconsistentes ; -- uma luz bruxeleante , indecisa , através da trevoa compacta e perfida , que a cada momento póde fazer-nos resvalar na Phantasia , ou nos suspende na Duvida . D. Leonor , a Rainha||_Viuva Viuva|_Viuva , a irmã da Duqueza Mãe , não fizera traduzir e imprimir , ainda , o Espelho de Christina , aquelle interessante e minucioso codigo endereçado -- " aas Raynhas , Princesas , Duquesas e grandes Senhoras ... como se ham de regir e gouernar no regimento de suas casas fazendas e honrras " -- mas pode bem imaginar-se com que cioso amor , com quanta escrupulosa e severa lição a nobre sogra de D. Leonor de Mendonça cuidaria de preparar e formar a joven andaluza , sofreando-lhe , ageitando- lhe , nos moldes necessarios da situação que lhe fôra destinada , a nascente adolescencia que ia breve sentir-se dominadora . É ainda nas pallidas e inconscientes revelações recolhidas pelas justiças de Villa Viçosa , no dia da grande tragedia ; -- é ainda n ' aquellas amarellecidas e tortuosas gavinhas , e entre ellas , e através d' ellas , -- nesciamente votadas ao esquecimento e ao despreso pela Lenda e pela phantasia litterata , -- que se pódem surprehender e colher alguns traços seguros , -- truncados e incompletos , embora , -- d' aquelle espirito e d' aquelle coração juvenil . É meditando essas folhas que mal se comprehende como poderam salvar-se e chegar até nós , -- e correlacionando-as com as escassas informações positivas que aqui ou ali conseguimos apurar , -- que n ' esta obscuridade densa se nos desenha , n ' uma especie de rasto phosphorescente , o esboço , o esquiço de uma mulher moça , de uma rapariga alegre , amoravel , ingenuamente expansiva e leviana , feita , sem consciencia e sem vontade , companheira material e ostensiva de um homem em quem havia de ver antes um senhor do que um consocio amante que lhe recebesse e retribuisse a exuberancia da adolescencia que se desopprimia após uma infancia obscura e triste : -- pobre planta passivamente destinada á enxertia e reproducção necessaria da Casta , em estufa solitaria e estreita , quando mais forte e capitosa lhe circulava a seiva , -- como diria Manuel Bernardes : -- o licôr da vida ... Gostava de fallar e rir ; tinha impetos e caprichos de creança ; a criadagem respeitosa , -- modelada na contenção adorativa da grandeza , da magestade ducal , -- espantava-se das desenfadadas familiaridades em que se " desauthorisava uma tão grande Senhora ! ... " Havemos de fixar mais de perlo este perfil tão natural e tão comprehensivel . Em 1503 ou 1504 completava D. Leonor os seus quatorze annos . Como vimos já , no anno seguinte o consorcio era facto consumado . N ' esse mesmo anno devia estar concluida a capella do novo Paço , não certamente como é hoje , mas como póde adivinhar-se ainda através das transformações e retoques successivos , pois que Julio II lhe concedia que os capellães d' ella podessem resar em côro e celebrar os officios divinos . O claustro conserva-se approximadamente completo , com o cunho do tempo . Certo , a devoção de D. Jayme não afrouxara , mas os impetos e aspirações asceticas tinham desapparecido , e o Duque , perfeitamente conformado com a situação e com " o estado matrimonial " para o qual tão erradamente imaginara não prestar , ensaiava briosamente servil- o e honral- o tornando-o productivo . D. Leonor deu á luz um filho , não sabemos quando , que recebeu o nome de D. Theodosio , não sabemos porque , -- e mais tarde uma menina , a futura infanta D. Isabel . Eram ambos muito creanças em 1512 . Queira perdoar a poesia da Lenda : -- poderia suppôr- se até que usassem ainda " coeiros , " da funcção de cuidar doestes consignada a certa mulhersinha que foi personagem importante na tragedia de então . Sá de Miranda . -- Ecl. v. Tres ou quatro annos depois do consorcio definitivo , em pleno inverno de 1508 , um extraordinario incidente veiu agitar a vida , pelo que póde entender-se monotonamente tranquilla , do Paço de Villa Viçosa . Chegára ali o irmão mais novo de D. Leonor , D. Henrique de Gusmão , acompanhado , -- mais propriamente raptado , trazido , pelo cunhado D. Pedro de Girão ou Giron , terceiro conde de Urenha , que casára , dois annos antes , com D. Mecia , -- a que ficára de remissa no contracto de casamento de D. Jayme para o caso de D. Leonor fallecer menina . Vinham litteralmente fugidos de Sevilha , a matacavallos . Graves acontecimentos se haviam passado em Castella e uma grande tempestade estalara sobre a Casa dos Medina Sidonia . A Rainha||_Catholica Catholica|_Catholica morrera em 1504 , e exactamente dois annos depois morrera o genro , Filippe I , o marido da pobre Joanna , a Louca , a herdeira real . Fernando , o viuvo Rei , tivera , pois , de voltar apressadamente de Napoles , chegando a Hespanha em julho de 1507 , para assumir pela segunda vez a regencia . Mas n ' estes intervallos torvas discordias e verdadeiras guerras traziam divididos e levantados os grandes senhores -- Castella . A intriga intestina soprada pela intriga exterior , alimentada pelas rivalidades e ambições desopprimidas dos fidalgos , ameaçava subverter a obra unitaria dos Reis Catholicos . Fernando encontrava uma forte resistencia á restauração do seu poder , e de longe , o Imperador||_Maximiliano Maximiliano|_Maximiliano , pae de Filippe I e d' aquella " Madama||_Margarida Margarida|_Margarida , " viuva do suecessor immediato da Corôa , açulava essa resistencia e annunciava a sua vinda á Peninsula . As esperanças politicas de D. João de Gusmão no casamento da filha com D. Jayme , haviam-se mallogrado cedo . Os Reis Catholicos , não sabemos como , nem quando , tinham-se apoderado de Gibraltar , e este facto lançára naturalmente o Duque de Medina Sidonia no partido de Filippe I. Pelo menos , tel- o-hia indisposto com D. Fernando . O que é certo É que em 1506 , D. João fora a Valladolid prestar preito e homenagem ao marido de Joanna , a Louca , como a seu Rei natural , e por essa occasião reclamára e obtivera reparação do aggravo que lhe haviam feito os Reis Catholicos tirando-lhe Gibraltar . Voltou com uma Cedula Real para que a cidade se lhe restituisse , ou para que elle a retomasse á força . No caminho , porém , soube que o Rei fallecera , e a nova , espalhando-se rapidamente , chegou a Gibraltar antes d' elle . Os que tinham a praça pela Corôa , recusaram-se a entregal-a , allegando que não havia de prevalecer a ordem do Rei morto sobre a que haviam recebido do Rei vivo . Era este D. Fernando , que aliás estava em Napoles , e não era ainda , pela segunda vez , Regente de Castella . Organisou o Duque uma forte expedição , pôz-lhe á frente o proprio filho herdeiro , D. Henrique , uma creança , -- n ' aquelle tempo os rapazes fidalgos tinham de ser homens , cedo , -- e fez cercar apertadamente a sua " nobre cidade . " Gibraltar resistiu , e , ao cabo de dois mezes , o inverno e a fome , -- o anno de 1506 foi el año de la hambre , como o seguinte havia de ser o da peste , -- fizeram levantar o cerco . Por este tempo negociava D. João , para a segunda filha , D. Mecia , -- já liberta da clausula do contracto esponsalicio da irmã , -- um casamento politicamente mais efficaz e seguro do que se mostrara o de D. Leonor . Era o de D. Pedro de Girão , -- Giron , -- filho do segundo conde de Urenha . Tinha D. Mecia dezeseis annos , e D. Pedro era já -- " onbre en edad e onbre en ser " , -- audacioso , guerreiro , cheio de ambição . D. Mecia recebeu de dote , apenas quatro contos de maravedis : -- a differença enorme para o dote da irmã , suppria-a certamente a superioridade heraldica que levava ao marido . E para que fosse mais intima , ainda , a alliança das duas Familias , uma filha do Urenha , -- Dona||_Maria Maria|_Maria de Archidona , -- já mulher , desposava o futuro Duque D. Henrique , o irmão de D. Leonor e de D. Mecia , que tinha apenas onze annos . A noiva continuava a viver com os paes , aguardando que o pequeno podesse ser marido , -- e recebia d' elles um dote de sete contos . Serão enfadonhos estes pormenores , mas são , sob mais de um aspecto , interessantes , andam desconhecidos , e importam ao criterio com que se ha de comprehender a época . Além de que já prevenimos : -- não fazemos romance . No anno seguinte viera a peste . Fugindo a ella , o Gusmão pôz-se a jornadear pelas terras do Axarafe . Por signal que o não quizeram receber em Xerez com medo do contagio . Mas com elle jornadeava a paixão da perdida Gibraltar . Passando a Medina e Bejar , o Duque foi juntando um verdadeiro exercito e voltou a cercar a sua " nobre cidade , " procurando intimidal- a com a assolação dos arredores , de que depois generosamente indemnisava os seus antigos subditos . Resistiu , ainda , Gibraltar , e resistiu tambem o Duque ás instancias dos delegados regios de Granada , que lhe aconselhavam a derimir a contenda perante D. Fernando , o Catholico , que ia chegar . Evidentemente a estrella dos Gusmões declinava . Do lado de Portugal , não havia que esperar : -- ninguem se mechia . A politica portugueza , além de que tinha muito em que se occupar , limitava-se a vigiar cautelosamente o que se passava em Castella . D. Jayme tratava da sua Casa ou percorria as terras do seu fronteirado , fazendo reparar os castellos e fortalezas um pouco desleixadas pela paz da metropole e pelas preoccupações ultramarinas . Mas que D. Manuel não se desinteressava inteiramente dos movimentos do Duque de Medina Sidonia , parece mostral- o uma carta que em julho de 1507 o informava de que aquelle cercára , pela terceira vez , Gibraltar . D. João tivera de levantar novamente o cerco , e disfarçando o seu despeito , fazia uma especie de entrada triumphal em Sevilha , em plena manhã de S. João , com grande arruido de trombetas e atabales , e a sua guarda ducal de duzentos alabardeiros garridamente vestidos á la moda de Italia . Fôra o seu ultimo triumpho , porque dias depois , em 10 de julho de 1507 , morria , no vigor da edade , ainda , deixando a esposa gravida , tendo devotamente recebido todos os Sacramentos e feito o seu testamento , em que instituia por suecessor o D. Henrique . Constituindo-se em protector e tutor do pequeno Duque , o cunhado d' este , Pedro de Girão , apoderou-se logo , em nome d' elle , das fortalezas e terras do senhorio , não se esquecendo do famoso " thesouro " dos Gusmões , que não pensou em dividir com D. Jayme , segundo o incriminam asperamente os nossos chronistas . Diria a isso que a parte que poderia competir ao cunhado , a recebera antecipadamente no grosso dote de D. Leonor . Voltando a Castella D. Fernando , o Catholico , D. Pedro de Girão apressou-se em ir com o pupillo prestar-lhe obediencia , sendo D. Henrique excelentemente acolhido e o primeiro fidalgo que beijou a mão do Regente , -- por ser su titulo de duque el primero de Hespaña , observa o historiador da Familia . Mas D. Fernando foi informado d' aquella especie de usurpação exercida pelo Girão , recebeu queixas e denuncias contra este , e resolvera introduzir na Casa de Medina Sidonia , uma sua neta D. Anna de Aragão , casando-a com o Duque herdeiro , cujos esponsorios anteriores annullaria com o pretexto de não os ter precedido a licença real . Vindo a Sevilha , no anno seguinte , o Rei mandou intimar D. Pedro a que largasse o governo do Ducado , entregasse as fortalezas de Bejar , S.||_Lucar Lucar|_Lucar e Huelva a um seu delegado D. Inigo de Velasco , e apresentasse D. Henrique na Côrte . O Girão tomára apressadamente as suas precauções . Recommendára aos alcaides que não entregassem os castellos e os defendessem , ainda que em nome e á ordem do proprio Duque lh'os exigissem , fez juntar o moço -- lo hizo velar , -- com a noiva , sua irmã , que se conservára em casa dos pães , em Ossuna , e respondeu que D. Henrique era senhor do seu estado e que a elle é que deviam pedir-lh ' o . D. Henrique além de ter apenas onze ou doze annos , era de compleição fraca e doente . Depois de retardar quanto pôde , a apresentação d' elle , D. Pedro levou-o finalmente a Sevilha . O Rei acariciou o joven Duque , quiz que ficasse com elle , e desterrou o Girão . Este sahiu da cidade indo pernoitar ao convento de las Cuevas , a curta distancia , e D. Henrique dançou n ' essa noite no sarau da Côrte , muito festejado pelas damas e pelos cortesãos . Mas por horas mortas o Girão entrou em Sevilha escalando os muros ; foi direito á camara em que haviam recolhido o pobre moço ; acordou-o , e auxiliado por um pagem d' elle , companheiro dos seus brinquedos , um João Ortiz , -- convenceu-o de que o Rei o queria fazer degolar por ter ido sobre Gibraltar , e que urgia montar a cavallo e fugir , caminho de Portugal , para casa da irmã , a Duqueza de Bragança . Imagine-se o furor do Rei quando na manhã seguinte soube do extraordinario lance . A gente enviada logo em perseguição dos foragidos , não conseguiu alcancal-os . Passava-se isto em novembro de 1508 . D. Fernando mandou que se apresentassem em Sevilha todos os alcaides do senhorio ducal , e nomeou governador d' este o arcebispo . Faltou e resistiu o alcaide de Niebla , leal ao seu preito e ás ordens do Girão e do Duque , que haviam passado ali em fuga para a fronteira . Niebla foi occupada e saqueada pela gente real , e o alcaide , e outro , e quatro regedores da terra foram enforcados . Eis como e porque o pequeno irmão de D. Leonor , Duqueza de Bragança , que ella deixára menino , mimoso e cuidado , nos Paços de S.||_Lucar Lucar|_Lucar , lhe vinha cahir nos braços , cheio de cansaço e de terror , ao cabo d' uma fuga vertiginosa pelos campos alagados da Andaluzia . D. Jayme não estava em Villa Viçosa . Andava para Entre Douro e Minho . Avisado por uma carta da joven Duqueza veiu ao solar , passando naturalmente pela Côrte a conferenciar sobre a nova com o Rei . Rasões teria para não gostar muito da visita , principalmente , se , como diz Caetano de Sousa , o rebellão cunhado não contára com elle na questão do " thesouro " dos Gusmões . Parece , comtudo , certo que acolheu excelentemente os foragidos e que lidou , com D. Manuel , junto do Regente castelhano por diminuir-lhes o exilio . Mas que vinham elles , -- ou mais exactamente , -- que vinha o Girão fazer a Villa Viçosa ? O Girão fora desterrado da Côrte castelhana , e se realmente eram fundadas as suspeitas de D. Fernando , das relações d' elle com o Marquez de Priego e os outros revoltosos andaluzes , bem fizera o Conde em pôr-se a salvo , passando a fronteira . Mas o rapto do pequeno Duque e as ordens para a resistencia á auctoridade real denunciam mais alto pensamento . Elle não ignorava , certamente , que , áparte as más vontades e reacções intestinas que Fernando ia abafando com mão de ferro , os estados visinhos , e entre elles Portugal , vigiavam com natural desconfiança , até com mal disfarçada hostilidade , a consolidação e engrandecimento da monarchia nova formada pela reunião das Corôas de Aragão e Castella . Do lado de Portugal a decisiva expansão castelhana sobre a costa fronteira d' Africa , em concorrencia , um pouco tumultuaria , com a prioridade e com os propositos das occupações e conquistas portuguezas , viera accrescentar um fermento novo á desconfiança e desgosto latente , dando logar , n ' aquelle mesmo anno , com a tomada de Peñon de la Gomera , por Pedro Navarro , a uma coalisão de mau agouro entre a politica dos dois Estados . É provavel que Girão , e não só elle , mas os mais conjurados e conspiradores contra o poder de Fernando , pensassem encontrar cooperação e favor na politica portugueza , offerecendo-lhe o ensejo , realmente seductor , de crear á expansão triumphante de Castella , d' aquelle lado , uma objecção , por assim dizer uma barreira imponente , e ao mesmo tempo de alargarmos a influencia , talvez até que o dominio , sobre as terras andaluzas . O Duque de Bragança seria realmente o melhor dos auxiliares . Além da sua situação singularmente preponderante junto do Rei portuguez e da sua ligação com a Casa de Medina Sidonia , poderia levantar forças consideraveis , e começára talvez a manifestar já aquellas inclinações para a organisação e para o commando militar , que o tornaram tão notável depois . Do pae , o Degolado de Evora , se contava que dos seus largos senhorios poderia levantar tres mil homens de cavallo e dez mil infantes . E de quanto este enorme poder , reconstituido e accrescentado em D. Jayme , poderia pesar n ' uma aventura bellica havia de ver-se , poucos annos passados , na conquista de Azamor . A perspectiva não podia ser mais seductora , simultaneamente , para a revindicta andaluza e para a politica portugueza . Mas é evidente que nem esta , nem D. Jayme , se deixaram seduzir por ella , e nem o alargamento do dominio castelhano em Africa , até Oran , Tunis e Tripoli , alterou a reserva ou a ostensiva cordealidade mantida com o Rei||_Catholico Catholico|_Catholico . Se o Girão contára com a influencia que a cunhada , D. Leonor , poderia exercer no animo do marido para movel- o em favor dos seus planos rebeliões , absolutamente se illudira a respeito d' ella e d' elle , sobretudo a respeito da situação relativa dos dois . E bem pouco via e sabia , tambem , do espirito e dos interesses que moviam e norteavam então a politica portugueza , o ousado e irrequieto aventureiro andaluz , suppondo prendela aos impetos e planos da sua retardataria insubordinação fidalga . O tempo das prosapias autonomicas e dos impetos e aventuras do poderio senhorial eram idos . Passava sobre elles a rasoura , -- que quando encontrava resistencia se fazia cutello , -- do Direito Real . Anno e meio , ou pouco mais , se conservaram D. Henrique e D. Pedro em Portugal , na hospitalidade generosa do Duque de Bragança . Caetano de Sousa diz que o Rei||_Catholico Catholico|_Catholico se doera d' esta hospitalidade , devendo-lhe o Duque tanto , pela que recebera d' elle , mas que exactamente D. Jayme se desculpava das queixas com o exemplo proprio . Demais conhecemos já o criterio superficialissimo do famoso geneologista . Estas cousas não se determinavam , então , simplesmente , por impulsos sentimentaes . A hospitalidade do Duque importava a do Rei , e natural é que á politica portugueza não deixasse de convir , precisamente , n ' aquella occasião , ter á mão e sob a sua dependencia , aquelles emigrados politicos . Não guardára ella com o mais cioso e habil cuidado a " Excellente Senhora " ? O facto parece , comtudo , ter passado geralmente desapercebido aos nossos chronistas , e é provavel que os exilados se mantivessem n ' uma obscuridade discreta em Villa Viçosa . Mais graves acontecimentos e mais altos personagens occupavam as attenções . Finalmente , por intervenção e diligencias , decerto , de D. Manuel e de D. Jayme , junto da Corôa castelhana , o Gusmão e D. Pedro poderam voltar á Andaluzia , tomando aquelle , que teria então entre quatorze a quinze annos , conta da sua Casa e estados . Debil ou doente , a fuga para Portugal abalára- o profundamente . O consorcio prematuro acabou por matal- o , em Osuna . Apenas dois mezes havia de sobreviver á irmã que o acolhera em Villa Viçosa . PARTE III ESTRELLA CADENTE ... porq prudêcia lhe dyra q muyto repouso jeera pecado . Esp. de Cristina , C. CX . O paço do Reguengo recahira na sua monotonia habitual . D. Jayme fazia continuar a ampliação d' elle , e quando estava em Villa Viçosa enchia o tempo com as suas occupações devotas e administrativas , ou nos longos passeios e caçadas . O convento dos Agostinhos , logo ali em frente do solar , á beira do caminho de Borba , merecia-lhe já os extraordinarios cuidados que o levaram a substituir-se n ' elle , ao Geral da Ordem , por uma licença ou delegação d' este , -- Fr. Egidio de Viterbo , -- em 1510 . Visitava-o frequentemente , provia ao sen engrandecimento , tratando já , talvez , de fazer ali o pantheon dos Duques , e às vezes , exercendo a um tempo as suas inclinações disciplinadoras e religiosas , mandava tanger a capitulo e cathechisava os frades sobre o melhor regimento que haviam de ter no serviço de Deus . Mas não o assoberbava nem lhe bastára a ascese mystica , fortemente combatida pela fatalidade da situação e pelas trepidações contraditorias d' aquella mal soffreada individualidade , altiva e dominadora . A caça e a equitação , -- attribue-se-lhe , mesmo , na ultima , a introducção em Portugal , da brida , -- eram das suas diversões mais dilectas . Nos exercicios -- " d' uma e d' outra sella , " -- da portugueza e da que aprendera em Castella , -- como nas longas correrias através dos campos , procurava naturalmente espairecer e illudir os affrontamentos melancholicos e vencer pela fadiga as insomnias impertinentes . Era esmoler e caridoso , -- signal de que era bom , -- e até n ' isso era exaggerado , nervoso . Um dia , voltando de caçar no campo de Veyros , encontrou um pobre , perdido e gemebundo . Deu-lhe uma esmola , e outra , e mais : -- despejou-lhe nas mãos a bolsa : -- " Até que te fartei de dinheiro , " -- disse . E mandou-o caridosamente levar ao povoado . Gostava muito da musica : -- encontraria n ' ella um doce e mystico allivio . A guerra , a milicia , a tactica , a bella e difficil arte de organisar , de mover , de dirigir , de arrojar as grandes massas humanas umas contra as outras , muito provavelmente o occuparia tambem . Dentro em pouco o encontramos introduzindo as novas unidades tacticas dos regimentos , fazendo exercitar regularmente quatro , -- de mil homens cada um , -- sob o commando de velhos cabos experimentados nas campanhas da Italia , -- e logo dirigindo em pessoa , e por seu absoluto e seguro alvedrio , uma enorme expedição militar , simultaneamente maritima e terrestre , e corrigindo e acautelando e reprehendendo , com extraordinario senso pratico , a velha tactica desordenada e aventurosa . Eram herança de sangue estas aptidões bellicas . Vinham talvez do grande Condestavel e do grande Mestre , os dois fundadores da familia . Um duque , o D. Affonso , o bastardo de João I , ensinára duramente ao Infante||_D._Pedro D.|_D._Pedro Pedro|_D._Pedro e ao seu soberbo capitão e amigo , o Vaz d'Almada , como sem correrem as partidas do mundo se creavam cá generaes excellentes . O pae , o Degolado d'Evora , fôra um cabo de guerra , afamado , nas campanhas de Castella e da Africa . Mas ao lado de D. Jayme , -- nem nas caçadas , nem nas excursões , nem quando jornadea , nem quando atravessa a Côrte , nem nas exterioridades ostentosas , nem no proprio convivio domestico , -- não se vê , não se sente , não se adivinha a esposa juvenil . Essa vive nos seus aposentos solarengos , especie de gyneceu recatado , n ' uma das extremidades do Paço , com as suas donas e pagens , com os seus dois filhos , meninos , que não lhe ficaria bem trazer muito achegados a si como qualquer femea dos seus burgos ou dos seus matagaes : -- passeiando , um ou outro dia , com o acompanhamento e com o ceremonial conveniente , pelas varandas e pelo reguengo ; -- ouvindo diariamente da sua tribuna , a missa ducal ; -- enchendo as horas , a vida , a mocidade com as historietas das velhas aias e com as frivolidades da sua phantasia ociosa ; -- recebendo , de tempo em tempo , na camara solharia , o Duque " seu Senhor " quando a este aprazia -- " jajer com ella , " -- segundo a phrase crua e luminosa da Inquerição . Ah ! Balzac ! ... Era o que convinha ao " seu estado . " Áparte o isolamento e a monotonia provinciana , -- e accrescentada a indifferença affectiva do marido , esta era a vida a preceito -- " no estado matrimonial " -- de uma grande dama como a " Senhora||_Duqueza Duqueza|_Duqueza . " Lá havia de dizer prudentemente o codigo auctorisado pela tia , a boa Rainha||_D._Leonor D.|_D._Leonor Leonor|_D._Leonor , o bello e santo formulario recolhido , como precioso talisman nas mundaneidades desfreadas da Renascença italiana . -- " E porq he ordê do real estado q as molheres nõ estê sêpre acerca dos maridos , assy como as outras molheres , ella enquerera ameude dos camareyros e dos outros seruidores q sõ acerca dele como estaa . E ho veera o mais ameude que poder . E de o veer seraa muyto leda . " Talvez , por isso , observava o malicioso Resende ao capitão da Mina : As damas que cá ficaram quando daqui vos partiste algûas delias casaram e vivem porisso tristes e outras se contentaram ... Comprehende-se que n ' esta existencia methodica de -- " dereyta honrra , " -- muitas vezes se introduziam perfidamente tentações e devaneios perturbadores . Comprehendera- o e prevenira-o o meticuloso cathecismo , recommendando , em larga lição , ás donas mais especialmente guardadeiras das grandes senhoras , como haviam de atalhar o perigo , -- " ante que a sandice vaa mays auante . " Mas onde elle imaginava que poderia preparar incendios a sandice dos corações e das cahecinhas mal enquadradas na theoria austera , era principalmente quando os olhos se embebiam , e se enlaçavam as mãos , e as conversações volitavam , desopprimidas , e roçavam as sedas e as carnes no turbilhão quente , desgelador do fausto , da galanteria , dos saraus e das diversões cortesãs . Realmente , Villa Viçosa , n ' aquelle tempo , não deveria offerecer uma atmosphera extremamente perigosa , povoada de terriveis microbios mundanos , a semelhantes desvios e fallencias da honestidade senhoril ... da pragmatica . Não era a pequena Côrte que veiu a ser depois . Se alguma vez , já , se corriam cannas ou se faziam torneios no Terreiro , -- suppondo que existia este , que , em todo o caso , no tempo do neto de D. Jayme não era tão desafrontado e amplo como hoje , -- se acaso algum sarau festivo pozera a nota alegre dos galanteios e bailados n ' aquelle meio um pouco frio e artificioso que o Amor , a Arte , o Luxo tanto haviam de opulentar depois : -- fôra incidente que nem pela singularidade parece ter deixado vestigios aos mais esmerilhadores chronistas das grandezas e ostentações do Duque . Nem este permaneceria muito , no incompleto solar . A administração dos seus dispersos estados , a sua situação e valimento junto do Rei , provavelmente a construcção do seu Paço de Lisboa , traziam-n* ' o frequentemente por fóra . O proprio pessoal caseiro e o serviço solarengo estava evidentemente muito longe de ser , em numero e em etiqueta , o que foi quando D. Theodosio I os pôz ao nivel de uma Côrte real . Como dissemos , D. Leonor , moça e folgasã , abandonada á intimidade de um convivio muito restricto de simples famulagem , desenfastiava-se em conversar e rir com esta . A Inquerição revela-nos com soffrivel nitidez aquella desolada monotonia do seu viver : -- os passeios restrictos , a mesa solitária , o jogo de cartas com a dona e com a moça da camara para " matar o tempo . " Os servidores mais pundonorosos no servilismo cortesão , estranhavam , até , que ella se desauetorisasse um pouco em gracejar com os pagens , nos seus pequenos passeios exteriores ou nas distracções senhoris da sala , em que enchia os dias rodeada das suas donas , e com os mocinhos de joelhos deante d' ella ou ladeando-a e seguindo-a attentos aos menores movimentos da sua vontade e do seu capricho . Unico elemento masculo que circulava livremente no gyneceu ducal , -- creanças que mal começavam o tirocinio dos respeitos e das distincções hierarchicas , -- eram naturalmente os pagens que com as suas petulancias e travessuras davam a nota alegre e desenfadada áquelle viver solitario e monotono . Seria n ' elles tambem , -- creados desde a infancia com a Duqueza , -- que ella encontraria uma affeição mais communicativa e facil , que menos sentiriam elles , na ingenua florescencia da vida , a influencia das sombras que pesavam sobre aquelle ninho artificiosamente formado , não pelo Amor , mas pelas conveniencias e pelos interesses da Politica e da Heraldica . Certamente , D. Leonor tinha nos mais servidores , -- nos officiaes e donas da sua Casa , -- um respeito affectuoso , grato . Ella era amoravel e simples ; e quando , sobre o seu cadaver e deante do marido ultrajado e severo , esses servidores vão depor o testemunho do seu trato , sente-se , mais d' uma vez , vibrar a saudade e a dôr através da bruta e fria indifferença que a Convenção e a Tradição hierarchica cava fatalmente na solidariedade dos corações , -- das consciencias , até . Mas o amor , o respeito , a dedicação de toda essa gente pela joven senhora era , naturalmente , uma sentimentalidade de reflexão , menos espontanea ou menos desopprimida , continuando , a bem dizer , a dedicação , o respeito , o amor pelo Senhor , pelo Amo natural , prestigioso , temido . Os pobres rapazes , os pagens , os -- " meninos , " -- como ella lhes chamava na sua graciosa sensibilidade mulheril , esses queriam-lhe de bem differente maneira , porque era moça , porque era alegre , porque era boa e amiga . Um d' estes pagens da Duqueza , -- que fôra posto ostensivamente ao serviço do filho , o pequenino D. Theodosio , -- era Antonio Alcoforado . O pae , -- o Alcoforado , -- como lhe chamam alguns documentos , -- Affonso Pires Alcoforado , -- era moço fidalgo da Casa , antigo servidor , -- " amo " de D. Jayme . Amo correspondia umas vezes a aio , mestre , director , -- como se diz hoje na technologia palaciana : governador de menino nobre , realengo , -- e este fôra o cargo d' aquelle Lopo de Sousa , alcaide-mór de Bragança , do Conselho do Rei , Governador da Fazenda do Duque , que figura nas negociações e contracto do seu casamento ; -- outras vezes significava o marido da ama , da senhora que amamentára a fidalga creança , em summa , como diz o Elucidario , o homem que creava em sua casa ou ao peito de sua mulher os filhos dos grandes Senhores . O termo " acostumado " d' estas creações era de tres annos . N ' outra occasião fallámos da linhagem nobiliaria dos Alcoforados . É uma das geneologias mais complicadas da fidalguia portugueza . Pelo menos das mais atabalhoadamente tratadas pelos estudiosos da especie , alguns dos quaes parece que influenciados muito tolamente pela idéa de expurgir da prosapia gloriosa do appellido a memoria dos que melhor o ampararam e trouxeram pelos seculos adiante : -- a do pobre pagem de Villa Viçosa e a da freira apaixonada de Beja . Tambem sobre a procedencia geneologica do rapaz se faz a confusão e a obscuridade , tentando-se , mesmo , arredal- o do vetusto tronco como excrecencia espuria . É sabido que os Pires e os Alcoforados veem enlaçados desde a raiz da grande arvore , desde o pouco menos que lendario D. Gueda , o Velho . Logo , o primogenito do primeiro Alcoforado foi um Affonso Pires , nada menos que Rico Homem de Sancho II , que como tal assigna a concordata do Rei com as tias e figura nas inquirições de D. Affonso III e de D. Diniz . Evidentemente a casta multiplicou-se muito , mas decahiu um pouco . Um dos mais antigos Alcoforados que encontramos á sombra amiga da Casa de Bragança , e que é até contemporaneo do Ducado , chama-se precisamente Antonio Alcoforado . Foi escudeiro do primeiro Duque , e casou com D. Luiza Velloso Machado , Senhora||_do|_praso do||_do|_praso praso|_do|_praso do Monte , junto a Barcellos . A idéa corrente entre geneologistas modernos de que Barcellos foi o berço da estirpe , não é positivamente exacta , -- perdôe- se a um transmontano a revindicação , -- mas não importa apurar por agora . Teve aquelle casal dois filhos e duas filhas . Foram os primeiros : João Alcoforado , que teve o cuidado de deixar justificada a sua ascendencia nos archivos da Casa ducal , e que casou em 1443 com uma dama da Duqueza D. Constancia , uma filha do secretario do primeiro Duque D. Affonso , -- digamos-lhe sempre o nome : -- Salvador Velloso Machado ; -- e o outro , Martim Alcoforado , que casou com Manuelina Pires , filha unica d' um fidalgo da Casa do Rei , secretario e escrivão da Puridade do Duque de Bragança , um Antonio Pires , cuja nobreza e fortuna o genro relacionou tambem , perante as justiças de Barcellos , em 1460 . Tem uma certa importancia para o nosso caso estas datas em assumptos d' ellas tão safaro geralmente . Este Martim teve um filho , Affonso Pires Alcoforado , que serviu os Duques||_D._Fernando_I D.|_D._Fernando_I Fernando|_D._Fernando_I I|_D._Fernando_I e II , e casou e procreou no tempo do ultimo , não se sabe com quem , recebendo de D. Fernando II mil dobras de casamento . Affonso Pires é até o unico varão , o Alcoforado por singularidade , na geração immediata dos filhos do velho escudeiro Antonio . Mas , como dissemos , este teve também duas filhas , ambas , para os geneologistas , anonymas : -- uma que serviu uma Duqueza de Bragança , que elles não dizem qual fosse , mas que lhes consta lhe dera o bello dote de tres mil dobras quando casára com um sujeito , Diogo de Azevedo , -- e outra que foi dama da Duqueza D. Isabel , a mãe de D. Jayme , em casa da qual se namorou d' ella o pae d' este , o Duque D. Fernando II , e que por consequencia devia ser mulher feita ahi por 1472 . Começa agora a ser extremamente interessante e trapalhona a bisbilhotice geneologica . Não foram perfeitamente platonicos aquelles amores porque d' elles resultou uma menina -- Genebra Alcoforado , -- que ficou desamparada pela morte do Duque , quando não deveria ter mais de dez ou onze annos , e casou com um fidalgo biscainho , especie que não era rara então , e do qual nem memoria do nome ficou , observam lamentosamente os geneologistas . Mas se não ficou o nome , ficaram os filhos . D ' estes , dizem com muita segurança , foi um Antonio Alcoforado , não o nosso , é claro , pois que viveu em Besteiros e procreou lá , até , um novo ramo de Alcoforados , -- o dos Andrades , -- e outro : -- Affonso Pires Alcoforado -- que inopinadamente affirmam ter sido o pagem em questão . Por maneira que seria de uma assentada , neto do pae de D. Jayme e sobrinho d' este ! ... Felizmente para a memoria já soffrivelmente carregada do Duque passou até ha pouco esta extraordinaria nota despercebida á sentimentalidade revolta que o despachou " besta fera . " Que bella e nova complicação romantica perdeu o pobre Luiz de Campos , o mallogrado poeta ! Não pomos duvidas á apparição irregular d' esta D. Genebra . Além de que a irregularidade não foi a primeira nem havia de ser a ultima na estirpe ardente e prolifica dos Alcoforados , também nada teria de extraordinaria nos costumes do tempo , embora Caetano de Sousa guarde o mais discreto silencio ácerca das aventuras extra-matrimoniaes do Duque D. Fernando II . Este mesmo nome de D. Genebra apparece mais vezes no recenseamento geneologico do appellido . Mas os contemporaneos e companheiros do Pagem testemunham positivamente , sem sombras de romance ou de duvida , que elle se chamava Antonio Alcoforado e era filho de Affonso Pires Alcoforado , moço-fidalgo e " amo " do Duque||_D._Jayme D.|_D._Jayme Jayme|_D._Jayme , -- e sobejam ainda as indicações chronologicas para arredar definitivamente a versão d' aquella procedencia arrevesada da D. Genebra e do biscainho anonymo . Que a guardem os Andrades Alcoforados de Besteiros , se lhes serve e se ainda por lá existem . Temos pois de nos voltar para o outro filho do velho escudeiro Antonio Alcoforado , o Martim , que como dissemos produziu , mais regularmente do que a irmã , um Affonso Pires , e uma Anna Pires Alcoforado , que foi mulher de um criado allemão da Casa de Bragança , -- um fidalgo , -- dizem os geneologistas : -- Luiz Truchses . Contámos tambem que este Affonso Pires casára no tempo e ao serviço do pae de D. Jayme . Não acertam os citados investigadores com o nome da esposa , posto alguns cheguem a denunciar-lhe o da amante , -- " Vicencia Affonso , " mulher solteira , " -- que só nos permittimos offerecer á posteridade por ter sido mãe de Pedro Affonso Alcoforado , legitimado em 1473 e que dizem ter sido escudeiro do próprio D. Jayme . Em vez , porém , de nos mettermos mais no labyrinto forcemos-lhe a sahida por este Affonso Pires , que presentimos ser muito provavelmente o nosso , o " amo " do Duque , posto os geneologios não lhe attribuam outro filho legitimo senão um Diogo , que põem ao serviço do Duque D. Fernando II e fazem pae de novo Affonso Pires . Por signal que este ultimo Affonso Pires passa a chamar-se tambem singelamente -- o Alcoforado , -- no tempo de D. Theodosio e depois d' este , não podendo , porém , ser o nosso por se oppôr terminantemente a isso a chronologia . O que é certo e claro É que uma familia de Alcoforados , tendo por chefe um Affonso Pires Alcoforado , moço-fldalgo e " amo " de D. Jayme , vivia em Villa Viçosa ao tempo da nossa historia , no fim da rua da Freira , que , como notámos já , existe ainda com o mesmo nome , e é hoje das mais escusas e pobres da villa . Começa junto das ruinas do Convento da Esperança . Curiosa coincidencia ! -- n ' aquellas ruinas , no côro de baixo , hoje aberto e reunido á Egreja , jazem os ossos da Senhora||_Duqueza Duqueza|_Duqueza . Para bem proximo da casa do pobre pagem foram elles morar eternamente ! Antonio Alcoforado tinha um irmão mais velho , -- Manuel , -- com o qual dormia no mesmo quarto , -- e uma irmã , -- Maria , -- que estava ou vivia para os lados de Arrayolos . A mãe era viva e o pae pressente-se que o era tambem , e até que o era ainda quando D. Isabel , a mãe de D. Jayme , faz em 1521 o seu testamento . O Pagem devia ser muito moço , não só porque era pagem , mas porque ainda não podia usar espada . Comtudo entre 1511 e 1512 revelava já instinctos e basofias adolescentes : -- deitaria talvez aos quinze ou dezeseis annos . Tinha a seu cargo acompanhar e servir D. Theodosio , que não teria mais de cinco ou seis . Era petulante e sobejo no trato e no fallar . Naturalmente , as confianças e familiaridades da joven Duqueza , com os moços , envaideciam-n* ' o um pouco , ferindo o amor proprio das donas , algumas das quaes , -- de uma , pelo menos , póde desconfiar-se , -- sentiriam o coração ou os sentidos alvoroçados por esta mocidade que se expandia e ensaiava entre ellas . Aquelle desenfadamento incorrecto da magestade ducal suggeria reparo nos servidores respeitosos , -- dissemos . Um D. João , -- que devia ser o importante D. João de Eça , alcaide-mór de Villa Viçosa , grande amigo e cortezão da Casa , fizera já advertencia do caso ao vedor da Duqueza , o Fernão Velho . Outros e este se amofinavam tambem . Não ficava bem a uma grande Senhora aquelle " desauctorisar-se , " -- era a phrase , -- em palestras e gracejos com os mocinhos de tão inferior gerarchia . O Vedor , com a auctoridade do officio e da edade , expozera francamente a inconveniencia a D. Leonor . Mas esta , nova e jovial , ria-se das impertinentes observações do Velho e continuava a conversar e a motejar com os rapazes , -- mais especialmente com Antonio Alcoforado , o companheiro e guarda do filho . -- talvez até porque seria o mais crescido , o mais intelligente , o mais petulante , o mais travesso . Uma dona , -- a tal cuja isenção sentimental puzemos em suspeita e que encontraremos adiante , -- Anna Camella se chamava , -- é a que leva mais longe a lembrança reprehensiva das familiaridades concedidas pela Senhora ao Pagem . Já " no anno passado , " -- diz ella , -- isto é , em 1511 , -- se mostrava Antonio Alcoforado sobejo e descortez , e passavam os dois , em casa e em passeio , hora e mais a fallar alto ou baixo , -- " rijo ou passo , " -- como se dizia então . -- em cousas de riso , em palestra desenfadada e leda . Não era por mal , certamente , nem tal suspeita poderia entrar no espirito rombamente respeitoso d' aquella e das mais criadas da grande Senhora . Mas era esquisito , destoante , incorrecto . Um dia o Velho topou com o Pagem á porta dos aposentos da Duqueza , fazendo declarações suspeitas a uma moçoila que ali fora levar fructa . Surprehendera , até , um dialogo terrivel . O Alcoforado desinquietava a rapariga , e esta observava-lhe , desdenhosamente , que elle era " menino . " O Pagem , despeitado e soberbo , respondia : -- " Menino , eu ! sou homem e mais que homem ! ... Não podia ser mais escandalosa a revelação . Fernão Velho foi direito á Duqueza , repisou as suas admoestações anteriores , pediu-lhe por mercê que se -- " não desauctorisasse a fallar com moços , em especial com Antonio Alcoforado . " D ' esta vez o Velho tinha este argumento decisivo , terrivelmente convincente . Ouvira com aquelles ouvidos que a terra havia de comer , sem ficar decerto muito satisfeita , dizer o Alcoforado á rapariga que -- " era homem e mais que homem . " D. Leonor magoára- se : -- " ouvera desto merencoria . " -- " Que quer isso dizer , Fernão Velho ? Como vos atreveis a dizer isso por eu fallar com " um menino ? " E o Vedor zangára- se tambem ; respondera -- " aspero " -- conta-o elle proprio . -- " Ora vos digo que não é bem que vos desauctoriseis a fallar com elle . " E contára o que vira e ouvira d' elle com a moça . Que a Senhora||_Duqueza Duqueza|_Duqueza cuidava que elle era " menino " e que elle era " homem . " Bom Vedor este Fernão Velho , mas um asno .