QUATRO NOVELAS Composto e impresso na Typographia França Amado , rua Ferreira Borges , 115 -- Coimbra . Anna DE CASTRO OSORIO QUATRO NOVELAS A VINHA . A FEITICEIRA . DIARIO DE+UMA CRIANÇA . SACRIFICADA . COIMBRA FRANÇA AMADO-Y EDITOR 1908 Quando Manoela entrou para o convento , todas as freiras e recolhidas correram apressadas á grade do côro para conhecerem a nova companheira , de que a superiora , Soror Gertrudes , ha muito anunciara a vinda . Falavam a um tempo , riam satisfeitas com aquella diversão , que desmonotonisava a vida fastienta de todos os dias , emquanto que ella , nervosa e pálida , as olhava assustada , como quem entrevê , sem o compreender , um mundo estranho . Sentia-se abandonada no mundo , sem um aféto ou uma ilusão que lhe devesse dar o desejo e a alegria de viver , mas , apesar disso , aos seus dezeseis anos encantadores não sorria positivamente a ideia da prisão . Era tão dôce o sorriso triste que lhe errava nos labios , e a sua voz , ligeiramente cantada , com o sotaque provinciano , era tão fresca e cariciosa , que as bôas freiras a consideraram desde logo um anjo do Senhor , mandado para as consolar naquelle triste fim da sua casa religiosa . Encheram-na de presentes : uma trazia-lhe uns bentinhos , outra uma lâmina ingenua , salpicada de papelinhos doirados ; rendas finas , outrora feitas na casa ; dôces , especialidade do convento ; coisas insignificantes , que eram no entanto toda a sua fortuna . E ella sentiu-se assim prêsa pelo reconhecimento , integrando-se numa vida que em breve seria tambem a sua . A mãe perguntou-lhe : se queria entrar desde logo para o convento ou ficar alguns dias fóra , para vêr a cidade . -- Não ; se tinha que entrar ali , então que fôsse já . Vêr a cidade para quê ? ! Que lhe importava a alegria , o movimento , a luz , -- aquilo que era a existencia da outra gente ? Não estava ella perdida , morta para o mundo , despedaçado tudo que tinha feito o encanto da sua propria existencia , que era agora uma coisa áparte , fóra da normalidade ? ! ... A mãe aprovou , contente com aquella resolução ; ansiava por a vêr entregue aos cuidados da bôa tia , Soror Gertrudes , que a recebeu soluçando de contentamento e magua -- alegria de têr a sobrinha junto de si , fundo desgosto pela sua imensa desgraça . Porque era uma historia um pouco triste , a dessa rapariga , que assim vinha esconder a sua vida em flôr no silencio dos longos corredores cheios de sombra , adormentar o espirito nessa vida que já pertencia ao passado . Manoela ficara , muito nova , sem pai , e por isso quasi inteiramente abandonada a si mesma , visto que a mãe , duma devoção estreita e dum caráter frio e áspero , entregava-se por completo á prática das suas muitas rezas e orações e deixava os filhos em plena liberdade . A pequena , que era uma natureza delicada e emotiva , assim foi crescendo sem um carinho que lhe afagasse e dulcificasse a existencia , retrahindo-se numa aparencia de frieza melancolica . Os irmãos , três rapazes , viviam alegremente , sem cuidados nem canseiras , caçando pelas serras , comendo e bebendo á tripa-fôrra com os companheiros , jogando o pau pelas romarias e feiras -- senhores morgados de aldeia que todas as raparigas disputavam para seus pares , e dos quais todos os homens tinham como honra a convivencia . O mais velho , bom rapaz , bronco e ingenuo apesar da sua aparencia de gosador , fôra para Coimbra por sua alta recreação , segundo o costume tradicional dos morgados beirões , e por lá se ia formando aos solavancos : " R R " daqui , guitarradas dali , ceias e patuscadas com os amigos , sempre alegre e satisfeito comsigo e com os outros . Ora uma vez , a pretexto de caçadas que se faziam melhores que em parte alguma pelos matagais cerrados das suas serranias , levou , para passar umas férias na aldeia , o seu mais íntimo amigo e companheiro mais certo das suas noitadas e " troupes " em vesperas de feriado . Cavalgando os possantes cavalos que os criados lhes levaram com tempo , juntaram-se á caravana dos mais rapazes da região e seguiram , como era costume , atravessando vilas e aldeias ao som marcial das cornetas , como um verdadeiro batalhão , que ia diminuindo , não pela morte , mas pela alegria dos que primeiro encontravam as suas casas e se despediam dos companheiros até ao fim das férias . Fôram elles os últimos a chegar ao vasto casarão de provincia , onde a adega estava sempre aberta , as espingardas carregadas atraz da porta , e a matilha impaciente tudo invadia , roubando na cosinha , sujando as salas e quartos , batida pelas criadas em desespero , afagada pelos amos que riam das suas partidas e se sentiam muito á vontade no meio daquela desordem . Manoela era um verdadeiro milagre de graça e pureza num meio tão vulgar e rude . O rapaz , ao vê-la assomar ao alpendre , mal sentira a tropeada dos cavalos e descer correndo os degraus de pedra que davam acesso exterior para o andar nobre da casa , para abraçar o irmão , ficara deveras impressionado . Tanto mais que não contava encontrar , numa irmã do seu herculeo companheiro de estúrdia , tanto mimo e graciosidade de linhas , uma tal delicadeza e aristocracia nativa de porte . Á primeira impressão de agradavel surpresa seguiu-se o desejo da posse e o projéto da conquista . Para que essa criança , ignorante e ingenua , se prendesse a um homem que lhe falava a dulçorosa e enganadora linguagem de vulgar D. João , que para ella representava a verdade , a honra , o ideal supremo porque tantas outras têm , como ella , sofrido , não era preciso muito . Um homem honesto ter-se-ia-cautelosamente afastado , receoso de despertar uma alma tão confiada e crente , na sua ignorancia infantil ; mas elle , conquistador sem escrupulos , de palidez sentimental e cabeleira romantica , cantando ao luar fados chorosos que falam de amôres infelizes com tremuras na voz e fundos ais arrastados , dedilhando a guitarra que soluça baixinho caricias de beijos gritando alto paixões estridulas ... Elle , sem alma nem consciencia , viu apenas a flôr que se abria á vida e que as suas mãos brutais podiam desfolhar e arremessar depois como coisa inutil e sem importancia . Representou , mais uma vez , a vulgarissima comedia do amôr-paixão , em que ella , a pobresita , acreditou , exatamente porque era ingenua e pura , deixando-se arrastar , sem que houvesse mão amiga que a fizesse parar a tempo na descida perigosa . Acabadas as férias , promessas feitas e juradas , elle partiu alegre e triunfante , ella ficou abismada na mais desesperadora tristeza . A saüdade , fustigando barbaramente a sua pobre alma mal preparada para o sofrimento , punha-lhe nas faces a palidez da morte e nos olhos arroxeamentos de incuravel doença . Os dias fôram passando , os mêses decorreram lentos e monotonos , e o desespero ia-lhe tomando o coração avassaladoramente , visto que elle , o ingrato , nem uma unica palavra lhe enviara a encorajá-la e a dar-lhe esperanças . Confiando da Ama-Rita o seu segredo , conseguiu da pobre mulher -- que a amava , mais do que aos proprios filhos , porque a criara com o seu leite -- a promessa de receber e mandar as cartas para o namorado . Enviou muitas , muitas , mas respostas nunca as recebeu , porque nunca elle lhe&lhes+as mandou . Sentindo-se abandonada , quando mais necessario se lhe tornava o auxilio moral do homem que a enganara vilmente , e não podendo esconder por mais tempo o seu estado , foi têr com a mãe implorando protéção e piedade . Contou tudo , por entre soluços e lagrimas , nem tentando sequer atenuar com uma desculpa a grandeza do delito , como se tivesse um prazer estranho em se torturar e deprimir , num princípio de expiação . Quando a mãe compreendeu o verdadeiro sentido das suas palavras , possuiu-se dum desespero louco . Levantando os braços e os olhos ao céo , tomava-o como testemunha da sua ignorancia e inocencia em tão grande crime , como se o esperasse vêr cahir sobre a cabeça da pecadora que soluçava a seus pés . Mas como do céo não baixou nenhum sinal indicador da colera divina , ella afastou-se brutalmente , prohibindo-a de sahir mais do quarto . Escreveu então ao filho , contando-lhe em poucas palavras o que se passava e encarregando-o de procurar o amigo , e -- prometendo um bom dote a Manoela -- fazer com que casassem imediatamente . Essa carta , mandada pela Ama-Rita para Manoela vêr , deixou-lhe no coração um vislumbre de esperança , naquelle desejo que todos nós temos de nos agarrar ao menor luzeiro que prediga felicidade . Mas a resposta não podia sêr mais cruelmente aniquiladora : -- o namorado de Manoela tinha casado , pouco tempo antes , com uma prima muito rica , e nunca mais pensara na criança que ia começar a expiação duma culpa que era só dele . Não havia pois maneira de legalisar ao pequenino ente que vivia já da vida da infeliz mãe , a entrada no mundo e na familia . Tratou-se então de esconder um facto -- que seria a vergonha para todos . Levaram-na para uma casa meio arruinada , numa propriedade distante ; e foi ali , entre rochedos desolados e na visinhança lugubre dos lobos que uivavam a sua fome pelos matagais , que Manoela , entregue aos unicos cuidados e carinhos da ama , teve uma filha . Com que dulcido encanto , depois do martirio de algumas horas , em que as velhas paredes repercutiram os seus gritos lancinantes , ella acalentou nos braços o corpinho fragil , que era uma parte do seu proprio sêr , e premia sob os seus labios febris a carnesinha arroxeada e setinea da pequenina face ! Nos olhos , que mal se abriam á luz , queria ella lêr um infinito de ternura ; da boquinha , que ainda não sabia sorrir e já sabia chorar , esperava talvez ouvir palavras de justiça e consolação ... E as lagrimas iam correndo serenamente pelas suas faces desbotadas , lagrimas que eram ainda uma felicidade , que em breve deixaria de possuir . A Ama-Rita chorava tambem , sem coragem para de pronto lhe arrancar a criança , como lhe fôra ordenado , na impotencia de todas as bôas almas para despedaçar uma ilusão alheia , principalmente quando toda uma existencia está suspensa dum sorriso de criança . Foi ainda a mãe que a veiu arrancar desse passageiro sonho , anunciando-lhe como coisa decidida a sua entrada para o convento onde Soror Gertrudes já a esperava . Manoela revoltou-se : -- o convento , a prisão para ella , que apenas fôra uma vitima ! ? ... Pois era tamanha a sua culpa , santo Deus ! ? ... -- Era , sim , tão grande que já coisa alguma poderia lavar essa mancha do seu nome , recahindo sobre toda a familia . Apenas o silencio e a ausencia poderiam atenuar o mal fazendo-o ignorar do público ! ... Soluçava baixinho , num grande aniquilamento de toda a vontade , escutando as palavras que sahiam frias e ásperas da bôca da mãe . -- " Bem , irei ! -- disse por fim Manoela , resignada -- mas ao menos quero levar a certeza do seu perdão , minha mãe ! ... -- " O meu perdão ? ! Não , nunca poderei perdoar á senhora que assim desce ao nivel de qualquer camponia sem principios ... Então , sentindo-se ferida , mais pelo tom do que pelas palavras , que representavam apenas o seu orgulho de casta , a alma de Manoela levantou-se tambem com altivez . Uma revolta surda a tomava toda , partidos definitivamente os laços que a prendiam a essa mãe que a repelia sem encontrar uma atenuante á sua culpa , sem um lampejo de piedade pela sua existencia tão cêdo anulada . Embora ! Se não lhe perdoavam os outros , absolvia-se ella a si mesma . Não conhecia o mundo ; mas a sua consciencia presentia vagamente que não eram justos acusando-a duma falta que se baseava apenas no preconceito social , que entre dois cumplices escolhe , para imolar como vítima expiatoria no altar da hipocrisia , aquelle que pela inocencia e ignorancia menor responsabilidade apresenta . Avaliando bem -- agora que a vida se lhe antolhava tal qual é : cheia de deveres e responsabilidades para os fracos , livre e tolerante para os fortes e cinicos ... -- a perversidade moral do homem que amara , uma grande repulsa , um grande desprezo lhe invadiu o espirito por tal criatura . Vieram então novas cartas de Coimbra nas quais o irmão , numa furia brava , contava como procurara o sedutor para o matar , como costumava matar os lobos que lhe ameaçavam os rebanhos , e não o podera encontrar . " Apenas lhe souberam dizer : que fôra com a mulher passar a lua de mel , não lhe quizeram indicar para onde . Oh , mas havia de encontrá-lo , fôsse onde fôsse , fôsse como fôsse . Quanto á irmã , que desaparecesse -- não a queria mais vêr ! Manoela sorriu , já conformada . Tambem ella não tinha vontade de viver mais com uma familia que tão levianamente a abandonara e era agora tão cruel na condenação . -- Sim , iria para o convento o mais depressa possivel . Mas duas condições punha á sua completa submissão : saberia onde ficava a filha , que não queria deixar entregue ao acaso , como sêr desprezivel que não merece a esmola dum afago ; e fariam prometer ao irmão que não continuaria a perseguir o sedutor . Para quê ? ! Matá-lo era forçarem-na a lamentá-lo , quando era apenas desprezo e asco o que sentia por tanta abjéção . Esquecessem-nos a ambos ... Ella entraria desde já para o convento , sem nenhuma relutancia . O irmão cedeu , instado pela mãe , ansiosa por vêr o caso liquidado como entendia sêr melhor , sem mais desasocegos e desgostos . Os outros dois irmãos , não tendo entrado na confidencia , admiraram um pouco a subita vocação de Manoela , mas como lhes não desagradava inteiramente , pois ficavam assim mais á vontade , -- visto que a mãe , afóra as horas de comer , raro sahia do quarto , a não sêr para a capela -- aprovaram a resolução com toda a bôa vontade . Desde que obteve a certeza de que as suas condições eram acatadas , Manoela ficou apática e indiferente para tudo . Deixava-se levar sem resistencia para onde a mãe queria que fôsse . No seu espirito não havia senão ruinas e desmantelos . Sempre melancolica , sem raiz que a prendesse á vida , parecia nem sequer se preocupar com a filha que tanto a sobresaltara de princípio e deixava especialmente entregue aos cuidados da ama . -- " Adeus Ama-Rita , -- dizia-lhe na última hora -- estima a minha filha como me estimaste a mim , e que Deus a faça mais feliz do que a sua triste mãe ! Até ... um dia -- em que nos havemos de encontrar . Mas quando esse dia ? ... Não sabia , não via nada claro no seu futuro . Encostada á varanda do quarto onde tanto sonhara e tanto sofria agora , passeava os olhos amortecidos por toda a montanha que limita o horizonte , e naquella ocasião , em que a primavera tudo cobria com o seu verde manto , se afofava em cambiantes de pelucia cara . Ao seu lado , a pobre mulher abafava os soluços que a sufocavam e limpava as lagrimas á ponta do avental . Seguira-se a viagem , a cavalo , atravessando terras desconhecidas , onde gente espantada as seguia com a vista pelos caminhos poeirentos e pedregosos , deixando-lhe tal confusão no espirito que nunca saberia dizer por onde passara nem o que vira . Logo á chegada , a mãe conferenciou com Soror Gertrudes , tia do marido , agora superiora do convento , que a pouco e pouco iria acabando pela morte das últimas freiras , e onde Manoela foi recebida em festa por todas essas tristonhas almas encarceradas precocemente envelhecidas . A mãe partiu , socegada emfim , sem saüdades que a fôssem mortificar ou distrahir dos seus austeros deveres de bôa católica . Tambem a filha as não sofreu , porque nunca se tinham compreendido nem estimado aquellas almas , que ninguem diria tão estreitos laços uniam , tal a dessemelhança que involuntariamente as separava . Manoela parece que vinha , inteiramente , do pai , de quem se lembrava vagamente , fazendo-a saltar nos joelhos , rindo e chalaçando com todos , enchendo a casa de vida e satisfação . E um dia , subitamente , estando sentado á mêsa , do rompimento duma aneurisma morrera . Quasi se não lembrava do facto em toda a sua nitidez , tão longinqua era essa recordação , que ficara apenas na sua alma infantil como sensação dolorosa , a primeira tristeza na sua vida tão cheia delas . Agora vinha encontrar , na tia , o mesmo caráter , essa amizade confiante que lhe faltara , essa alegria que tão bem fazia á sua alma dolorida . Sentia-se envolver naquella atmosfera de paz , que nunca tinha respirado , e sentia-se bem naquelle esquecimento de tudo quanto a fizera padecer . Os dias sucediam-se aos dias , de quando em vez cortados por noticias de casa , que recebia indiferente ; o tempo ia correndo sempre igual , com as mesmas festas aos mesmos santos , as mesmas rezas , as mesmas infantis preocupações de vestidos a bordar para o menino Jesus tal ou para a Senhora||_de|_invocação de||_de|_invocação invocação|_de|_invocação diversa , o presepe no Natal , o dôce para a venda , a mesma comida sempre ás mesmas e invariaveis horas . Mas um dia Soror Gertrudes morreu . Manoela tinha então vinte anos . Era uma criança pela simplicidade do espirito , que ficara ingenuo e ignorante do mal , apesar de tudo , mas era uma verdadeira mulher pela reflexão e pela dôr . Os últimos quatro anos passados naquella casa conventual tinham decorrido num meio sonho vago , que nem chegava a compreender bem . Depois da catastrofe que lhe angustiara a existencia , a alma tinha-se-lhe afundado num como branco nevoeiro , que a deixava viver inconsciente e passiva essa vida comum sem que nella tomasse verdadeiramente parte . Dir-se-ia-um meio estado sonâmbulo de que a morte da tia , a bôa Soror Gertrudes , a vinha acordar dolorosamente . Como ia sentir a falta dessa querida vélhinha , que lhe dera um aféto todo maternal na solidão em que a austeridade da verdadeira mãe lhe deixara o coração ! Logo ao entrar , passados os primeiros dias de surpresa , as palavras de conforto da bôa vélhinha tinham sido um grande bem para o seu espirito . -- Aconselhava-a a têr esperança -- o futuro traz surpresas que não podemos prevêr E ella era tão nova , santo Deus , como desesperar ? ! Socegasse , estava entre bôas criaturas que a amavam , e ella como tia a teria sempre junto de si . Ainda que o não fôsse , estimá-la-ia na mesma , bastava sêr uma criança que a desgraça lhe tinha tão tragicamente arremessado aos braços ... Tinha razão Soror Gertrudes -- Manoela era bem digna de piedade . Entrada apenas na vida , era dela expulsa com vergonha , e a sua mocidade , que mal desabrochara , iria fenecer entre as paredes frias dum convento . Quebrados todos os laços que a prendiam ao mundo exterior , o que ficava dessa pobre rapariga tão admiravelmente feita para amar e sêr amada ? Sentia-se cahir pesadamente num abismo . Fechando os olhos , estendeu os braços em busca dum apoio , e encontrou a mão trémula , o sorriso alegre na sua bôca desdentada , e a face macerada da freira , que para ella teria carinhos inegualaveis . Bem sentia ella o cancro brutal , que a ia corroendo lentamente , mas nada dizia para não afligir a sobrinha . Sorria dolorosamente quando uma picada mais aguda a fazia levar a mão ao seio esquerdo , num gesto mecânico , quasi involuntario . Manoela sobresaltou-se quando as dôres começaram a sêr mais amiudadas , lembrando-se da terrivel molestia que de quando em quando assaltava a sua familia paterna . A tia socegava-a : -- era um " nascido " que tinha havia muitos anos , não seria coisa de morte ... Mas nos últimos três mêses a doença agravara-se caminhando rapidamente para o fim . O cancro rebentara , vermelho , luzidio , enorme , deformando horrivelmente o pequenino seio esteril , branco como o marfim -- esse seio que guardara com tanto recato durante sessenta anos e se mostrava agora na sua infermidade horrivel . Quando Manoela o viu pela primeira vez , perdeu a côr , vacilou e só se conteve por um esforço de vontade , que se manifestava nella com a revolta natural contra mais esse golpe do destino . Daí para diante nunca mais abandonou a tia , assistindo-lhe a todo o martirisante fim , sentindo , por assim dizer , na sua alma todas as dôres que ella ia sofrendo no seu magro corpo esfacelado . Foi-lhe infermeira solícita , disfarçando a repugnancia que lhe inspirava a ferida , que se ia arroxeando , com laivos azuis , quasi negros , numa aparencia ascorosa de podridão . Em volta a péle retesada do peito ia-se abrindo e esfarelando . Manoela tinha sempre diante dos olhos a ferida horrivel que tão cuidadosamente tratava , e que era o fim -- ella sabia-o -- dessa existencia tão querida . Por fim Soror Gertrudes nem sequer se podia assentar na cama , e ella assistiu-lhe á agonia , que durou dois longos dias , -- lento quebrar de cadeias que se tinham enferrujado mas não carcomido . Quando a superiora declarou que chamassem Soror Angelica para a substituir , porque já se não podia levantar e a morte não tardava , toda a comunidade acudiu em pranto : -- era pois certo que Soror Gertrudes as ia deixar para todo o sempre ? ! Foi-se prevenir o capelão , que a confessou rapidamente , tal era a inocencia dessa alma imaculada , e quando voltou com a comunhão todas as freiras e recolhidas ajoelhadas em volta do leito choravam silenciosamente , com os véos negros cahidos sobre os seus rostos de cerusa . Manoela encostara-se á cama , e a tremura do seu corpo fazia estremecer esse leito onde a morte já se instalara triunfante . A ceremonia prolongou-se com o perdão que a moribunda foi pedindo a uma por uma das suas companheiras , numa voz que era já um éco de outra existencia passada . Quiz a sobrinha sempre ali , e consolava-a com a esperança dum futuro melhor . Deixava-lhe o Menino Jesus do Milagre , que fôra o seu companheiro de longos anos , desde que uma senhora freira do convento do Paraizo ali morrera e lhe&lhes+o deixara por lembrança . E deixava-lhe tudo mais que propriamente possuia , e bem pouco era , naquella vida estreita de renúncia . Dirigindo-se a Soror Angelica entregou-lhe a sobrinha e pediu-lhe para ella todo o seu amôr e carinhosa solicitude . Custava-lhe muito deixá-la . Deus mandara-lhe ao fim da vida aquella suprema provação , que fôra afinal a maior felicidade de toda a sua existencia . Quando ella já se sentia cahir na cova , com tão egoista alegria , vinha aquelle aféto imenso prendê-la á terra com laços tão fortes que ao parti-los metade da alma lhe ficava cá . Fechou os olhos : imaginaram-na morta e já os soluços se ouviam mais altos . Mas não , era apenas um dormir de extenuamento que breve durou . Ao acordar já a voz lhe estava prêsa no estertor , que causava calafrios a todas as assistentes . Fazia esforços para falar , queria talvez dizer coisas que a sua alma , já quasi desprendida do mundo , via como nunca tinha visto emquanto a materia a segurava á terra . Os seus olhos , dum azul pálido , como desbotado pelos anos , voltavam-se para a sobrinha numa ânsia derradeira . Choravam todas por a vêr assim , implorando a morte que a viesse libertar do incomportavel martirio . Manoela escondia a cabeça na roupa , soluçando e gemendo apavorada ; teria fugido áquelle espétáculo superior ás suas forças , se a moribunda lhe não tivesse agarrado desesperadamente as mãos como última ancora ... A situação prolongava-se pela noite fóra , e tão pungitiva que todas se entreolhavam em pânico . Era alta noite quando uma criada , vinda do campo havia pouco , se propôs pôr termo áquelle martirio , voltando a senhora . E explicava , muito sabida e vista nessas coisas : -- que era o demonio que estava ali , não deixando morrer a senhora , emquanto estivesse deitada sobre o lado esquerdo . Vingava-se assim de não lhe poder levar a alma , que era de Deus , pela muita bondade da Madre-Superiora . Todas acreditaram piamente na explicação da rapariga ; não estava o_*livro o_*livro da fundação " cheio de factos que comprovavam as tentações e maleficios do eterno inimigo das esposas do Senhor , especialmente dirigidos contra as piedosas irmãs daquela santa casa tão rica em milagres e indulgencias ? ! ... Aceite o alvitre , voltaram o corpo pesado , que a morte já quasi gelava completamente , deixando-lhe apenas aquelle imenso sofrimento como despedida duma existencia de que não conhecera senão as tristezas . Mal lhe tocaram , despediu num suspiro o último lampejo de vida , tal como aquelles cadaveres conservados intactos por anos e anos nos seus tumulos socegados e logo que se lhes toca , trazendo-os ao ar , se desfazem em pó . Manoela sahiu do dormitorio logo que a tia deixara de existir . Cambaleando , os olhos sêcos , a alma vazia , sem a sensação dolorosa da pena , como se a tivessem magnetisado para a furtarem ao sofrimento , apenas uma necessidade material a impulsionava . Tinha sôno -- havia tantas noites que não dormia ! Agora que tudo estava acabado , que não havia uma esperança a sustentá-la , estonteada , inconsciente , deixava-se vencer por esse torpôr que segue a excitação dolorosa de dias sobre dias de espétativa diante da morte . A natureza retomava os seus direitos , e a reação era tanto mais violenta quanto fôra maior o predominio do espirito sobre a materia . Logo na pequena sala contigua ao dormitorio , que fazia de livraria , deixou-se cahir numa cadeira sem força para ir mais longe . No dormitorio ia um vai-vem silencioso que mais parecia mover de sombras num pesadêlo . As freiras ciciavam ordens ás criadas , acendiam-se luzes , rezavam baixinho , limpavam as lagrimas que teimavam em enevoar-lhes os olhos , e levantavam com respeito a morta para a vestirem como havia de ir para a cova , com o mesmo triste habito que trouxera em vida e logo ao entrar para o convento , noviça ingenua e formosa , lhe tinham dito que seria a sua mortalha . E assim , eternamente amortalhada , passava da tristeza de viver ao unico sôno consolador dos infelizes , porque é daquele que se não acorda para sofrer mais . A sua face , serenada pela morte , reflétia a suprema felicidade de não existir conscientemente num triste mundo tão cheio de desacertos e injustiças . As freiras benziam-se e murmuravam baixinho , pondo as mãos com devoção : -- que o seu rosto de santa reflétia já todo o goso da bemaventurança . Manoela , abrindo os olhos no meio sôno em que ficara embebida , viu os pés da morta calçados com as sandalias da ordem , magros e compridos , atados com uma fita para não descahirem ; e , mergulhando de novo em letargo , sonhou que esses pés caminhavam por sobre o seu corpo desfeito e lhe batiam com força no coração . E a sensação foi tão dolorosa e a dôr tão forte , que acordou de vez , sentindo realmente uma pontada que lhe suspendia quasi a respiração e a fez gritar levando as mãos ao peito , sufocada . Foi quando Soror Angelica veiu têr com ella e a condusiu para o segundo dormitorio , fazendo-a deitar na sua propria cama , encarregando uma irmã leiga de a vigiar e acompanhar . Então Manoela cahiu num sôno pesado e mau , cheio de sonhos que a faziam chorar e gemer baixinho como quem se sente estrangulado , sem poder gritar , e a que a irmã leiga punha termo chamando-a carinhosamente e abanando-a de leve todas as vezes que a sentia . Era já manhã quando a vieram chamar para assistir aos responsos que se iam fazer no côro e para os quais toda a comunidade se preparava . Levantou-se sobresaltada , sem nada perceber , como quem acorda dum terrivel pesadêlo e reconhece com surpresa que ainda existe na vida tal qual a deixara ... Atiraram-lhe o véo para a cara , composeram-lhe o vestido , e levaram-na pelo braço , sem que compreendesse intimamente de que se tratava . Mas quando se encontrou no côro e viu a morta estendida no chão sobre um pano preto , entre quatro grossos tocheiros , os padres rezando os responsos , e toda a comunidade em volta com os véos cahidos e segurando velas acêsas , compreendeu finalmente o que se passava , a sua alma despertou para o sofrimento intenso da pavorosa realidade . Já não havia dúvida possivel , e a noite , que se passara num atordoamento de sonanbulismo , aparecia-lhe agora em toda a sua nua e horrivel fatalidade . Debaixo do véo que lhe cobria o rosto , as lagrimas corriam sem cessar mas já sem explosão de soluços , tão amargas e lentas que cada uma parecia vir arrastando um pedaço da sua alma esfacelada . Procurava nessa face amada , coberta igualmente com o véo preto , o sorriso bondoso , o olhar de carinho , que em quatro anos de reclusão a tinham feito esquecer que a vida existia fóra daquelas paredes soturnas . O véo era denso bastante para lhe velar a face , mas nada obstava a que os seus olhos halucinados vissem , debaixo do grosseiro hábito , o peito entumecido escancarando-se na repelencia da ferida . Finda a encomendação , seguiu atraz das freiras , vélhinhas alquebradas e esquecidas pelo mundo , que assim iriam rareando , uma por uma , na longa fila que vinha do côro . Era o último enterro a que assistia ali , porque a nova lei prohibia enterrar fóra do cemiterio público e fôra não pequeno trabalho para se conseguir das autoridades aquella excéção em favôr de Soror Gertrudes , que era conhecida e estimada em toda a terra . Manoela tremia de pavôr observando a serenidade extatica das freiras , que não se distinguiam umas das outras , com os véos negros derrubados , as velas a arder na mão direita , hirtas e silenciosas e graves como espétros . Lá dentro , -- quem sabe ? -- talvez que as suas almas tremessem de frio a cada sacudidela do vento da morte que ia levando uma a uma as companheiras de muitos anos , e que nunca mais seriam substituidas . Já no refeitorio iam faltando tantas que , ao meio dia , a hora antigamente tão alegre de jantar , -- quando sobre as toalhas de linho alvejante os moringues de barro de Estremoz marcavam nas mêsas estreitas e compridas , voltadas para o pulpito , o logar de cada uma -- mais parecia que a sineta chamava para um banquete de sombras . Os padres iam compassando os responsos , rodeando a cova onde já repousava o cadaver , e cada um ia deitando uma pá de terra , seguindo-se na ceremonia toda a comunidade . Ah , bem feliz era Soror Gertrudes que ainda encontrava um abrigo santo junto das suas irmãs , vivendo com ellas no eterno sôno , sob o abrigo das arcarias do claustro florido , acalentada pelo murmurio fresco da fonte que transbordava na sua concha de marmore . As outras -- pobres delas ! -- já não teriam na morte esse mesmo abrigo sagrado e seriam relegadas a mãos estranhas e indiferentes , esquecidas nesse campo desabrigado e devassado por todos os olhos profanos , que eram os novos cemiterios . As velas tremiam nas mãos enrugadas das pobres vélhinhas . Das trinta e três freiras que o " Livro da fundação " dava como limite para a comunidade , homenagem piedosa aos anos de Christo , e que ao soar a hora , que para muitos fôra de redenção e para ellas de mágua , se preenchera á pressa , abreviando as profissões das noviças , já quinze dormiam insubstituidas sob as lages do claustro . Sentindo o lento caminhar das vivas , que eram como fantasmas errantes nesse asilo guardado pela morte , sentiriam a dôce ilusão de assistirem com ellas na vida comum . Olhavam-se apavoradas , as velhas freiras , a cada nova escolhida que a morte vinha tocar com o seu beijo gelado , e murmuravam entre si : -- de qual será agora a vez ? -- terrificadas com a ideia de sêrem a última . Soror Claudea , com o seu olhar sombrio e desvairado , seguia a ceremonia funebre com tremuras convulsivas no seu corpo magro de que a loucura histerica fizera uma bôa prêsa . Dantes tambem morriam , é certo , mas a cada cova que se fechava abria-se a porta a uma noviça que tomava o véo preto , e no simbolico número se ia conservando sempre a comunidade . Manoela soluçava agora , vendo cahir a última pedra que a separava para sempre da bôa tia , que era a sua unica grande afeição no mundo -- tão diluida tinha na memoria a lembrança do passado que a filha era apenas uma vaga recordação , tão pouco pungitiva como a que lhe ficara do pai , que mal conhecera . Soror Angelica ficara superiora sem quasi se proceder á ceremonia da eleição , tanto se impunha a todas a sua inteligencia , a sua energia , e a sua cultura , rara entre as senhoras daquela casa de regra áspera e humilde . A nova superiora era uma bôa e valiosa amiga para Manoela , considerando como um dever estimá-la tal qual o fizera Soror Gertrudes , que tão solenemente lhe&lhes+a entregara . Mas Soror Angelica era um espirito mais varonil e energico , e , se dava amizade segura e protéção incondicional , não tinha como a tia de Manoela os carinhos e as delicadezas dum espirito que tinha ficado menineiro apesar da esterilidade duma vida sem familia propria . A nova superiora era respeitada por todas ; a antiga tinha sido amada e era chorada como uma bôa mãe . Se Soror Angelica tivesse nascido anos atraz , seria uma dessas preladas temidas e escutadas por todos , porque sabiam fazer valer a força do seu direito e pesar a influencia das familias , da fortuna e do nome profano de todas as suas governadas , em qualquer questão que as interessasse . Se tivesse nascido alguns anos mais tarde , seria , em qualquer campo para onde dirigisse os seus passos , uma criatura representativa , uma destas influencias que todos procuram captar para o seu lado porque em toda a parte entra com o valôr da inteligencia , da energia e da tenacidade , qualidades sempre raras em todos os tempos . Superiora sem importancia num convento desapossado de todos os seus rendimentos e que existia apenas emquanto vivessem as últimas freiras -- como existe , sustentado pela hera que o reveste , o velho muro em ruinas -- Soror||_Angelica Angelica|_Angelica era um desacerto porque era uma força inutilisada . Desde que ficou naquelle quasi isolamento , o espirito de Manoela começou a acordar , a debater-se para sahir do torpôr em que esses quatro anos amimalhados lhe tinham adormentado a alma . Essa loucura ardente da fé que despreza o presente pela vaga esperança dum futuro cheio de delicias , já por vezes a compreendia , exaltada pela devoção e pelas leituras misticas que a superiora lhe indicava . O caminho que leva á sarça em fogo onde se consomem as pobres almas doentes , que dão as Santas Terezas de Jesus , já por vezes se abria diante da sua imaginação inátiva e do seu coração amoravel tão implacavelmente impelido pelo destino para a solidão e o desamôr . Naquelle meio de apertada devoção , no silencio dos grandes corredores pontuados de capelinhas milagrosas , o seu espirito inclinava-se para um misticismo apaixonado e obsessivo , como tudo seria naquella alma de peninsular temperada e subtilisada pelo sofrimento , que vencera sem queixa . Andava vagarosamente pelos claustros lageados , sentindo-se prêsa dum respeito supersticioso por essas pedras que cobriam corpos macerados de santas ; tinha sorrisos silenciosos , gestos vagos de corpo apenas vivo pela esperança de se consumir em breve e reviver só em espirito purificado . Á hora das orações rituais , assentava-se com as companheiras nos cadeirões de pau santo , que se defrontavam em duas filas sobrepostas e dantes eram só destinados ás professas , e pensava que a vela benta que as separava era a alma de cada uma das freiras que ardia no amôr apaixonado do Senhor seu Esposo e seu Deus . O bruxoleamento da luz sobre as paginas do livro de oficios , que seguia por dever , tinha para a sua mente enfebrecida a significação clara dum suspirar de espirito aspirando á eterna bemaventurança . Ali , naquelle côro grande como uma capela , revestido de azulejos policrómos , cheio de santos e relicarios preciosos , que irradiavam na meia obscuridade das suas doiraduras e pedrarias , numa luz quasi de sonho , Manoela gastava os seus longos e inuteis dias . O côro era , como tinha sido sempre desde que se fundara aquella casa , o unico luxo , o cuidado e gosto de todas aquellas almas privadas doutras delicadezas e distráções feminis . Privadas até de irem á igreja , que Manoela contemplava extatica pelas grades estreitas , revivendo a vaga recordação que lhe ficara do dia da entrada , quando os seus olhos enevoados pelas lagrimas a tinham visto sem lhe poderem dar o verdadeiro valôr . O convento nem se via de fóra , construido em quadrado por traz da igreja que o guardava , imperturbavel e austera como sentinela incorruptivel da fé . A igreja era magnifica , nada dizendo com a humildade da regra nem com a modestia do resto da casa : duma traça arrojada , em que as colunas em marmore côr de rosa subiam em cordas espiraladas , até se juntarem na cúpula alta e sonora . As janelas , do nosso gotico rendilhado a que se chama " manoelino_$, manoelino_$, conservavam ainda restos dos antigos vitrais , que deviam ter sido dum brilho e colorido que encheriam de encanto as naves silenciosas . Os paineis , que a rodeavam , sobresahiam das largas molduras doiradas e entalhadas , pelo colorido um pouco frio e o desenho convencional e rigido do estilo que se impunha no tempo em que uma grande dama da côrte se lembrara , apaziguando talvez recordações importunas duma mocidade cheia de dôces culpas , de fundar aquella santa casa onde , propositadamente , só á igreja fôra dada a magnificencia e o fausto devidos ao Senhor omnipotente , dispensador de todas as graças , arbitro de todo o julgamento . Para as Esposas , as virgens oferecidas como vítimas expiatorias do pecado deleitoso da fundadora , a humildade , o desconforto , e a asperesa da regra . Contemplando a igreja , Manoela sentia-se amar um Deus imenso e magestoso , arrastando purpuras e fazendo refulgir as joias da sua corôa imperial por catedrais goticas de naves resoantes , cheias de grandezas e misterio . Prostrava-se ante o seu trôno de luz nessa côrte celestial tão fantastica e deslumbrante , que lhe descreviam as almas crédulas e os livros piedosos . O Christo torturado , empalidecido e humanisado pela dôr , não o compreendia ali , no luxo e na grandeza da arte , como o poderia compreender na igreja humilde da sua modesta aldeia . Ali era um Deus para camponezes e para as almas simples ; aqui era um Deus aristocratico e soberbo que se impunha aos grandes e aos poderosos . Prêsa naquelle deslumbramento , que a fazia viver uma existencia á parte , Manoela assim iria gastando a existencia se não viesse um banal incidente chamá-la a si , chamando-a á vida com novos interesses e novos deveres a cumprir . Ama-Rita , a bôa mulher que nunca a esquecêra , escrevia-lhe uma longa carta , de letra tortuosa , quasi ininteligivel , que ella decifrava a custo . " Só passados sete anos lhe escrevia , porque a senhora lhe&lhes+o tinha prohibido e , não sabendo escrever , não confiava em ninguem da terra para fazer uma coisa contra a sua ordem . Agora era a sobrinha , a Luisa da Roda , que o fazia . A menina devia lembrar-se dela , eram da mesma criação , tinham brincado bastante em pequenitas ... Viera de servir , mas tão doente que o mais certo era não poder voltar . Podiam confiar nella e emquanto vivesse não teria a menina falta de cartas " . Manoela tinha os olhos rasos de lagrimas ao pensar na pobre rapariga , talvez tisica , que tinha sido sua companheira de infancia , dessa breve infancia que lhe vinha , numa lufada sã , evocada por essa mal redigida carta de camponia . Era um pedaço da sua rude terra , que a urze e o rosmaninho incensavam . Depois , as noticias alongavam-se : -- este que tinha ido para o Brazil , aquelle que voltara da tropa , casamentos , bátisados , mortes ... e porfim , numa linha só , como misteriosamente , a causa primaria de se ter escrito aquella grande carta : -- " A menina criava-se muito bem ; a menina era muito linda " . Mais nada ... E , no entanto , que mundo novo de pensamentos e de paixões essas poucas palavras desenrolavam diante dos olhos e do coração da triste reclusa ! O seu espirito , adormentado numa crise de misticismo para que a predispunha o meio ambiente , reagia agora com toda a energia , porque a sua alma não era feita para vagas abstrações ; antes fôra , era , e seria sempre , uma mulher humana , nascida para viver e sentir humanamente a vida , com todas as suas amarguras e alegrias compensadoras . A filha ! ... Quasi a tinha esquecido , naquelle viver sem consciencia de si propria , que fôra a sua existencia ali . Como podera resignar-se durante tanto tempo só com a certeza de que esse pequenino anjo , que era a carne da sua propria carne , vivia , nessa terra longinqua e áspera , sob os cuidados da velha Ama-Rita ? Sentia remorsos e agradecia intimamente á bôa serviçal , que assim a chamava á vida lembrando-lhe o cumprimento do seu dever . Relendo aquella frase incolôr , sentia que dentro da sua alma se ia levantando outro altar , criando uma nova religião , que mal sabia como era dificil de harmonisar . Encostada ás grades da janela do dormitorio , para onde viera na ânsia de se encontrar a sós com a sua propria alma , olhava o campo que se estendia num verde luminoso , com um castelo ao fundo , na imponencia de cenografia espétaculosa . Na cerca a nóra gemia e a agua cahia no tanque donde era tirada para as regas . Esse murmurar da agua corrente evocava-lhe o passado distante , a sua terra , o fiosinho de agua transparente a deslisar por entre os choupos , ao fundo da sua quinta , e aquella pequenina enseada onde se ia esconder , num desejo calmo de solidão , a olhar a agua saltando de pedra em pedra num grande esforço de quem vem exausto de longa caminhada . Recordava , com tanta saüdade que chegava a sêr uma dôr material , essa época tão afastada para o seu espirito que já parecia têr pertencido a outra existencia , as horas que passara ali sósinha , idealisando um futuro de poesia e de romance , como o idealisam sempre as mulheres que uma educação racional não preparou para entrar na vida pela porta ampla e sem mentidos encantos da realidade . Recordando todo esse passado , para sempre morto , a sua alma tão cruelmente torturada e tão profundamente humana acordava num alvoroço . Chamavam-na para a vida , e ella vinha toda inteira , corpo palpitante , coração sangrento pronto a entregar-se a um novo ideal . Desde esse dia nunca mais deixou de pensar na filha , que se tornou a sua obsessão ; sentia-lhe a vózinha de choro chamando-a mãe ; via-lhe o pequenino rosto , que idealisava duma pureza de linhas que só igualariam os anjos das pinturas rafaelescas ; tremia com a ideia de que podia uma doença cruel arrebatá-la sem que a tivesse uma vez sequer acalentado nos braços . Já não rezava como dantes , mas ainda passava no côro as melhores horas da sua vida , ajoelhando-se de preferencia diante duma grande Virgem que a lenda dos seus milagres tornava célebre em toda a cidade . Dizia a crónica : -- que essa imagem viera de Candia com destino a Espanha e fôra por milagre trazida á cidade . Recebida entre musica e fogos de artificio , foi levada em procissão e confiada ás freiras que tinham fama de mais virtudes entre todos os conventos da terra . De tal maneira se avigorou a fé nos milagres da formosa imagem que raro era o dia em que a irmã rodeira não recebia , de pobres criaturas sofredoras , bilhetes e cartas implorativas dirigidas á Virgem para sêrem colocadas sob a sua guarda . A crença no milagre , o último refugio dos fracos que não podem resistir á dôr , fizera da bela Senhora uma consoladora permanente como dispensadora desse beneficio inestimavel para a maior parte dos sêres humanos : a ilusão . Tambem Manoela se afervorava na devoção pela milagrosa imagem ; mas o motivo que a arrastava até aos seus pés e a prostrava agora em extasis era mais humano do que mistico . É que diante dessa Virgem , que era uma mulher que a escultura traçara com toda a verdade , sustentando nos braços um pequenino Jesus , filho humano e verdadeiro , que ella , humanamente mãe , acariciava com a doçura do seu olhar veludoso e a caricia dum sorriso angelical , sentia a sua alma pacificada , sentia-se irmanada no mesmo sentimento . Essa mulher , mãe dum Deus , não a perturbava , porque era bem mulher , bem maternal , para compreender o sobresalto do seu coração , a saüdade que a sufocava por esse pequenino corpo adoravel , leitoso e macio , que apenas podera vêr e beijar á nascença . Aspirava pela caricia dos seus braços roliços e da sua boquinha perfumada ; morria de paixão por esse entesinho dealbante , que lá longe ia crescendo e vivendo rudemente entre camponêses , que mal a saberiam amar . Num inverno humido e triste em que o claustro , a igreja e o palratorio chegaram a sofrer uma inundação que muito assustou a comunidade , Manoela tremia arrepiada sob o mantéo curto das recolhidas , e pensava com horror no frio que arroxearia as pequeninas mãos da filha que se aninharia ao canto da lareira fumarenta da miseravel casa onde se criava , por essa invernia inclemente que tudo abafava sob a nevada deslumbrante . Sentia o pavôr da sua almasinha trémula , quando os lobos esfomeados rondassem o povoado , acossados da montanha pela neve , e as ovelhitas timidas se aconchegassem no curral balando tristemente . Ah , ella não podia acostumar-se á ideia de que a filha , a sua querida filha , viveria assim eternamente sem conforto nem os mimos que para ella sonhava . Já por vezes tinha tentado convencer a mãe , levá-la ao esquecimento e á tolerancia pelas suas humildes súplicas , mas nada até ahi a tinha demovido do seu proposito de conservar em misterio a existencia daquela criança que a seu vêr não era do mesmo sangue que das suas veias tinha passado ás da filha , e da filha á neta , na continuidade fatal da natureza . Manoela insistia , pedia ainda ; mas a força instintiva do amôr maternal , que a impulsionava agora , começava a fazê-la admitir a revolta contra esse poder que a natureza naturalmente afrouxa , porque assim o acha necessario para a conservação da especie , embora os homens o tenham querido fortalecer com as suas leis e costumes antinaturais . Soror Angelica , como superiora e como amiga , continha-a e aconselhava-a a conformar-se com a vontade de Deus ... -- " Depois , -- dizia-lhe ella , um dia , aspirando deliciada a flôr perfumosa duma angelica que se abria num vaso colocado na varanda da sua céla de superiora , mimo gracioso duma das suas amigas da cidade -- depois , Soror Manoela , de que lhe serve ir contra a vontade de sua mãe ? ! ... Não é ella a senhora da casa ? ... Não é ella que tem só o poder do dinheiro ? " -- " É a senhora , porque nós , os filhos , assim o queremos ; mas não sabe , Madre Angelica , que temos direito a puxar pela herança de meu pai e exigirmos a nossa parte ? ... Por pouco que seja , me-ha o bastante para viver com a minha filha ... Por menos que Manoela soubesse das leis que governam os homens , sabia o bastante , pelas relações mundanas entretidas entre o convento e a sociedade , para conhecer o direito que a tornava senhora da sua pessôa e da sua fortuna . -- " Revoltar-se , Soror Manoela , cuida que isso lhe daria felicidade ? ! ... Santo Deus ! Os pais representam na terra a autoridade divina . Triste daquele que no pecado procura a coragem bastante para lhe fugir ! ... -- " No pecado ? ... -- murmurou Manoela , limpando as lagrimas . -- E não será maior pecado o meu se deixar morrer ao abandôno a minha filha , esse pobre anjo que não tem culpa nenhuma de têr sido chamada á vida ? ! ... -- " Sim , é uma grande culpa que sua mãe levará ao tribunal supremo , mas quanto maior não seria a sua , minha pobre filha , se levasse a de rebeldia e de orgulho filial ! ... Não chore ! Tenha resignação ; se soubesse quantas lagrimas têm chorado outros que ... que ... que por fim se resignaram a não viver senão com a esperança na morte ! ... E Soror Angelica desviou-se um pouco , abafando no lenço um soluço que não poude vencer . -- " Madre Angelica ? ! ... -- interrogou ansiosa a recolhida . -- Porque chora ? Tambem , como eu , sabe o que é sofrer o pêso duma vontade alheia , que esmaga o coração ? -- " Ah , minha filha , se sei ! ... Não queira , Soror Manoela , sofrer como eu sofri ... como nós sofremos ... a tirania duma ordem , que despedaçou duas existencias ! ... A freira , que tinha sido uma das últimas professas , não era ainda muito velha , mas o seu rosto , amargurado agora pela recordação , evocava um tal passado de dôres e sacrificios , que Manoela , inconscientemente , curvou-se para lhe beijar as mãos , que juntava num gesto de imploração extrema , numa prece em que ia toda a sua alma de mistica e de sofredora . Depois , mais socegada , sentando-se junto da mêsa de trabalho , convidou a recolhida a sentar-se num pequeno escabelo e disse : -- " Soror Manoela , o que lhe vou dizer julgava-o para sempre sepultado no fundo da alma , tão esquecido e longinquo como se o lêra duma outra infeliz , num desses livros da nossa santa casa . Mas Deus Nosso Senhor inspirou-me a ideia de lhe&lhes+o contar para que nesse exemplo Soror Manoela encontre força para resistir á tentação diabolica que a impele á revolta contra a vontade de sua mãe . Soror Manoela , houve numa terra linda do Alemtejo uma familia que juntava aos seus pergaminhos de fidalguia uma grande fortuna em terras e dinheiro . Era pai e filho no tempo em que ... em que os conheci . O pai era o tipo acabado da nobreza altiva e autoritaria ; o filho a bondade , a inteligencia e a docilidade numa só criatura humana reunidas . Em pequenino ficara orfão de mãe , entregue aos cuidados duma velha parenta que o educara e cuidara como um perfeito cavalheiro . O seu gosto e a sua alegria estavam só nos livros que folheava sem descanso e na penna com que se servia para versejar ... ás escondidas . Só uma pessôa sabia do seu " crime_$, crime_$, como elle lhe chamava , a rir ... -- e Soror Angelica sorriu tristemente para esse fantasma saudoso da mocidade . -- Era uma pupila , do pai , orfã e morgada como elle . Oh , Soror Manoela , se soubesse como se compreendiam e se amavam aquellas duas almas que o destino parecia impelir uma para a outra ! ... Ambos novos , ambos sem um coração de mãe que lhe tivesse sido refugio e consolação , ambos ricos , ambos filhos unicos e ambos sentindo os mesmos prazeres , e tendo os mesmos gostos simples e modestos . Oh ! deixassem-nos lêr as lindas historias de cavalaria que a velha prima alinhava com amôr na bibliotéca do seu quarto ; deixassem que elle lhe recitasse as suas poesias emquanto ella matisava um bordado , sob a protéção carinhosa da vélhinha , que lhes queria como a filhos gemios do seu coração ... e eram felizes . o que lhes faltava ? Apenas a idade para que o pai consentisse no casamento , que via tambem com olhos complacentes . -- " E casaram ? ... -- perguntou Manoela , seguindo com vivo interesse a linda historia de amôr que lhe rasava os olhos de lagrimas , a ella que do amôr tivera apenas uma fugaz e mentida visão . -- " Não , não casaram -- respondeu a freira , sorrindo , apesar da dolorosa contráção da sua face marfinea . -- Não lhe disse que o morgado era um homem ainda novo e belo , apesar dos seus quarenta anos ? Pois era ... Ao contrario do filho , montava com garbo um cavalo andaluz , que ninguem domaria como elle , só com a pressão dos joelhos e a firmeza da sua mão de rédea ; sabia aprumar-se numa sala diante dos cavalheiros e curvar-se , como ninguem , num requinte de gentileza , diante das senhoras ; jogava como um verdadeiro fidalgo , sem que ninguem podesse perceber-lhe no rosto se perdia ou ganhava ... emfim era querido e procurado por todos e convidado com o maior empenho pelas familias aristocraticas da provincia e da capital . A quantas formosas raparigas não teria sorrido a ideia de o têrem por marido e quantos pais o não teriam desejado para genro ? Elle ria-se dessas pretensões e estava bem convencido de que o seu destino estava traçado em vêr a felicidade do filho e receber os netos para herdeiros e continuadores do seu nome . Mas , um dia , o morgado viu uma senhora que se apoderou do seu coração , e desde logo deixou de se pertencer . Era uma mulher formosissima e igualmente rica , mas dum orgulho que nada havia que podesse igualar . Apaixonou-se tão loucamente que desde a hora em que a viu até que a morte o levou nunca mais teve vontade nem pensamento que não fôsse a dela ou por ella inspirado . Apresentou-se como pretendente á mão da orgulhosa fidalga , e , apesar da sua idade e da concorrencia de muitos outros candidatos , foi aceite . A ambiciosa calculava o valôr das fortunas reunidas e optara pela pretensão do morgado , que lhe dava margem a viver na opulencia e grandeza que sonhara . Mas ... o morgado tinha um filho , o herdeiro da casa , o futuro morgado e senhor , que mais tarde , morto o pai , a esbulharia dos seus direitos de posse , nada deixando para os filhos que podesse vir a têr . -- o que fez então ? -- " Oh , a desventurada sabia bem conciliar as coisas ; só não soube conciliar a felicidade propria com a dos outros ! ... -- " Casou com o filho ? -- " Não , que horror ! Pôs como condição para o casamento com o morgado que o filho ... se fizesse padre . -- " Oh , que sacrilegio ! E o morgado aceitou ? ! -- " Assim foi . Em vão o filho e a pupila lhe pediram , de joelhos , que os deixasse casar ; em vão elle ofereceu a sua desistencia ao morgadio . Ricos seriam os dois -- com o seu trabalho e a fortuna de ... da pupila do pai . Tudo debalde ! Elle foi implacavel , porque ella o foi tambem . A lei só lhe garantia a posse do morgadio para os filhos se o verdadeiro morgado fôsse frade ou padre ... -- " Que desespero ! Que mulher tão má ! E depois , " Madre Angelica ? ... -- " Depois ... elle foi padre ! -- " Oh ! ... E ella ? -- " A noiva ? -- " Sim , a noiva do rapaz . -- " Essa cuidou morrer de desgosto , mas deu-lhe o Senhor coragem para resistir á doença do corpo e á da alma e ... professou tambem . -- " Freira ? Resignada , resignados ambos ? ... Que almas eleitas , meu Deus ? Mas ... morreram ? -- " Elle morreu . Dorme ha muito na paz de Deus . O seu corpo ficou , a seu pedido , no claustro do convento que fundou quando ficou herdeiro da fortuna ... -- " Como ? ! Então sempre foi morgado ? -- " Sim . A maior dôr foi essa ! ... Soror Angelica encostou a cabeça á mão e as lagrimas escorregaram-lhe por entre os dedos , uma a uma . -- " Mas porque não fugiram ? Para que se sujeitaram a essa lei odiosa ? ! -- " Porque elle era o pai . E os filhos não podem ir contra as suas ordens terminantes . Sugeitou-se , sacrificou-se , pela felicidade paterna . Mas ... pouco tempo depois a nova morgada , apesar de rica , autoritaria e feliz , não poude resistir á fatalidade . Logo ao dar á luz o primeiro filho morreu , cheia de pavôr do castigo , consolada e amparada pelo homem que sacrificara ao seu orgulho e ambição . Mêses depois , o filhito que ficara o herdeiro da fortuna morreu tambem deixando o pai consumido de remorsos , envelhecido e triste , e herdeiro de toda a casa . E aqui tem porque , sendo padre o filho mais velho , sempre este ficou o infeliz herdeiro de toda essa fortuna maldita . -- " Então não acha , Madre Superiora , que foi absurda , que foi até um crime essa obediencia que destruiu duas vidas ? -- " Soror Manoela -- e a voz da freira tinha uma entoação grave , que nunca lhe conhecera , como se fôsse o éco apenas duma alma pairando muito alto -- esse absurdo não deixou remorsos nas almas que se irmanavam e se amavam até ao infinito . Elle morreu sorrindo e perdoando ; ella ... vive na esperança duma vida melhor , sem que -- graças a Deus ! -- tivesse sentido ainda a dôr amarga de ter causado o mal alheio . -- " Amarem-se dessa maneira , têrem diante de si a vida , e matarem por suas proprias mãos toda a esperança de felicidade , Senhor ! Como tiveram coragem ? Eram decerto duas almas santas -- não se podem tomar como exemplo ... E não posso , não posso seguir o seu conselho , Madre Superiora ! Se os velhos são egoistas e impiedosos , os novos têm direito a reclamar a sua parte de felicidade na terra . -- " Faça o que entender , minha filha . Mas fique certa que , volvidos tantos anos e choradas tantas lagrimas , ainda não trocaria a paz da consciencia e a dôce consolação da minha saüdade por uma alegria construida sobre as ruinas doutra existencia ... -- " Pois era a " Madre Superiora ? ! ... -- " Eu , sim , que não tive nenhum merito , porque " elle " e só " elle " foi o inspirador da nossa conduta , " elle " o filho heroico que sacrificou , sem um protesto , a felicidade propria á felicidade de alguns anos de seu pai ! ... As duas calaram-se , entristecidas e como que suspensas , ouvindo uns gritos lancinantes que vinham da outra extremidade do corredor . -- " Pobre Soror Claudea ! ... -- lamentou Manoela -- Anda agora tão louquinha ! -- " Ahi tem , Soror Manoela , uma que se não poude resignar de bôamente ... -- " O quê ? Ella não foi sempre assim ? -- " Oh , não ! Era a mais alegre , a mais encantadora , a mais viva de quantas têm vindo a esta casa procurar o repouso e a felicidade ... que nunca poude encontrar entre nós . Se a visse ! ... Soror Claudea nunca teve vocação para freira e nunca pensou que o poderia sêr . Se entrou para o Convento das Bernardas foi na ideia de que de lá seria facil fugir á tirania do pai , que a queria fazer professa a todo o transe . -- " Meu Deus ! Mas porquê ? ! -- " Porque a fortuna da casa era pequena e era preciso que ficasse toda reunida nas mãos do filho mais velho , o representante da familia . " As irmãs e irmãos de Madre Claudea espalharam-se , resignadamente , por varios conventos e fôram homens e senhoras muito respeitados na religião . Ella é que se revoltou sempre , porque , para seu castigo , desde pequenina que queria , com um amôr profano e intenso , a um moço de modestos recursos , filho segundo como ella , que se desesperava por a não poder furtar ao poder despotico do pai . " Começava nesse tempo a falar-se nos liberais que se juntavam no desterro para conspirar , os quais , dizia-se , eram recebidos de braços abertos pelo imperador , desde que mostrassem sêr homens de valia e de coragem . Se a causa liberal triunfasse , dizia-se , esses ficariam ricos e cheios de dignidades . Na esperança de por esse meio conquistar a fortuna que lhe asseguraria a felicidade sonhada , o rapaz emigrou e voltou mais tarde com as tropas liberais pondo em todos os átos de coragem da sua brilhante carreira militar o unico fito de libertar a mulher que amava , prêsa num convento e obrigada a professar , embora protestasse sempre e chorasse sem descanso durante toda a ceremonia . -- " Assistiu a essa cêna , sem lagrimas , " Madre Angelica ? " -- " Felizmente não foi no nosso convento que a fizeram professar , mas , embora as freiras chorassem e a lamentassem , o que lhe podiam ellas fazer ? ... O sr. bispo era parente da familia , e o sr. bispo é que aprovou a profissão . -- " Pobre mulher ! ... -- " E bem desditosa ! Quando o namorado chegou a Portugal soube da sua profissão violentada , mas não desanimou . Combinou as coisas de modo que se poude corresponder com ella e ... combinaram a fuga . -- " Soror Claudea fugiu ? -- " Sim , chegou a sahir do convento , descendo por uma corda da altura dum segundo andar . Quando chegou á rua onde elle a esperava tinha as mãos em carne viva , tão feridas que ainda hôje conserva as cicatrizes e ficou com as articulações prêsas ... -- " Sim , já tinha reparado que mal pode trabalhar com desembaraço ... -- " Fugiram ... mas na guerra não ha felicidade possivel . A morte foi tão cruel para o sacrílego como a familia o tinha sido para a desditosa ... -- " Infeliz mulher ! E depois ? -- " Depois , abandonada de todos , aceitou este pobre refugio , apesar de não sêr professa da nossa Ordem . É desde então que Madre Claudea sofre as crises aflitivas que Soror Manoela conhece ... Pobre Madre Claudea ! Não soube conformar-se , e não foi por isso mais feliz fugindo á obediencia filial ... -- " Oh , Madre Angelica , sempre o peor é ter nascido mulher ! Terá sido sempre assim ? Será eternamente a mesma coisa ? ! ... -- " Quem o sabe ? ! ... -- " Que grande culpa a minha em têr dado vida a uma criatura que hade , como nós , sêr uma sacrificada ! ... -- E Manoela torcia as mãos chorando numa crise de nervos , que a velha freira tentava aplacar . -- " Tenha esperança , minha filha ; quem sabe o que será o futuro ? ! ... Houve sempre mulheres que escaparam ao destino comum e fôram felizes . Manoela foi-se resignando a esperar , cedendo sempre , adiando de mês para mês a realisação do projéto que acariciava no seu coração , e que importava o áto público de rebeldia , que Madre Angelica tanto condenava . Os anos fôram decorrendo e ella assistindo , com o espirito dolorido e a vontade embotada , áquelle fim miserando de vidas que se iam extinguindo , num bater de azas lugubres que enregelava . O convento ia-se despovoando a pouco e pouco , como que tornando-se maior , á medida que as vélhinhas , uma a uma , iam sahindo , para não mais voltar , a tomar o seu modesto logar no cemiterio público . Manoela era agora a cabeça que por todos pensava , a alma e a energia que sustentava aquelle resto de vida conventual , dando-lhe uma aparencia de cohesão , que não tinha . Sentia-se apossada de todo esse vasto casarão , que parecia crescer a cada nova baixa que a morte marcava , com a sua fatalidade cega de força inconsciente , na comunidade já tão diminuida . Era a herdeira natural e incontestada dos santos que lhe iam deixando as pobres vélhinhas , como recordação , e na vaga esperança de que assim viveriam mais na sua memoria , unico abrigo ás suas almas exauridas . Das freiras que ao entrar a tinham enchido de blandicias e amimalhado como mães carinhosas , já poucas existiam . Iam-se mirrando e fenecendo , seguidamente umas atraz das outras , quasi sem doença e sem sofrimento , num descahir e murchar de vontade que nenhum ideal sustenta . Apenas três ou quatro vélhinhas entorpecidas pelos anos , Madre Angelica ainda energica apesar da sua idade e da sua dolorida existencia , e Madre Claudea cada vez mais dificil de aturar , fugindo endoidecida do convivio dos outros , seguindo apenas automaticamente as devoções obrigatorias do côro , que eram como que um farrapo de lucidez a alvejar no seu triste espirito entenebrecido . Chorava dias inteiros , com gritos dilacerantes , os pecados do mundo , que queria carregar sobre os seus miseraveis hombros , mais do que os dos outros pecadores , sem esperança de perdão . Tinha visões que assustavam as meninas do côro , e apavorava as criadas narrando-lhes : como na igreja do convento fôra uma vez enterrado um grande fidalgo da cidade cuja alma em pena o diabo veiu buscar com medonho barulho . Ella não se lembrava , Soror Claudea não era desse tempo ; mas ouvira contar bastas vezes ás santas freirinhas que tinham assistido a essa luta homerica do diabo , querendo levar uma alma abrigada pelas paredes santas daquela virtuosa casa . O fidalgo durante toda a vida não tivera uma palavra de justiça nem de piedade para ninguem , nem se lembrava de minorar a miseria alheia , a não sêr por orgulho e fama . Assim , logo que morreu e que o trouxeram com pompas principescas ao carneiro de familia , feito na igreja por deferencia especial a quem muito protegera a comunidade , um verdadeiro e espesso nevoeiro se levantou logo do chão escurecendo a vista ás freiras , que nem podiam distinguir o padre oficiando no altar . E , á noite , o ruido era tanto pela nave magestosa , que as freiras atemorisadas deixaram de abrir as grades do côro para as rezas noturnas . Era impossivel resistir ao pânico que se apoderou daquele rancho de mulheres , que viam e ouviam tudo quanto diziam vêr e ouvir por um fenomeno vulgar de sugestão , que tanto milagre tem feito no mundo . Madre Claudea descrevia e pormenorisava , então , a festa do exorcismo que fôra feita por santos monges arrabidos auxiliados por todas as outras comunidades dos arredores , que de cruz alçada entraram na igreja . Aberta a sepultura e aspergido o cadaver , uma nuvem negra sahiu da cova espalhando-se pela igreja e sahindo pela porta entre-aberta com fragôr . Depois tudo cahira no silencio , tudo se pacificara , ouvindo-se apenas as orações dos frades prostrados de joelhos num santo respeito por tão grande castigo . E quando fôram vêr a cova ... não continha mais do que um punhado de cinza ! Madre Claudea benzia-se murmurando exorcismos e orações , e as ouvintes entre-olhavam-se sentindo pela espinha um arrepio de pavôr . E não era só isto o que ella sabia . Uma ocasião -- isso já fôra talvez ha seculos , mas o " Livro da fundação " lá o tinha escrito -- aparecera um rapazinho trazendo um feixe de varas resequidas que ofereceu á irmã rodeira para plantar na cerca . Se ella as plantasse veria como dum instante para o outro , por milagre do Senhor , cresceriam logo e se tornariam em belas e frondosas arvores . A irmã rodeira ralhou com o garoto e despediu-o ; mas como nessa ocasião passasse uma noviça , criança e amiga de brincar , disse-lhe com empenho : -- deixe-me experimentar , irmã rodeira ; não faz mal nenhum e sempre a gente se rirá da lembrança do rapazinho . Assim foi . Pegou numa das varas e foi a correr enterrá-la na cerca , seguida por outras noviças em recreio . Imediatamente -- Santo Deus , os maleficios que faz o mafarrico ! -- a vara engrossou e cresceu desproporcionadamente e tornando-se numa arvore magnifica encheu de assombro as pobres noviças , que viam , sobre ella , uma multidão de macacos fazendo-lhes negaças . Foi o inferno na casa ! Todas as que olhavam a arvore maldita ficavam possuidas do espirito imundo e faziam os maiores desacertos e gritarias . Como toda a comunidade corria a vêr a causa de tal alvoroço , toda ella sofreu do mesmo mal , e têriam- se-perdido todas , certamente , se não fôsse a Madre Superiora , que , antes de mais nada , mandara chamar pela moça de recados os senhores capelães e confessores para pôr termo áquelle inferno com as suas preces e esconjuros . Madre Claudea sabia mais e mais , mas já se não lembrava bem e a sua memoria fraquejava ao recordar tantas coisas idas ... Apertava a cabeça com as mãos e chorava , num chôro desfeito e infantil que enchia de lagrimas todos os olhos . Só Manoela podia apaziguá-la e por assim dizer chamá-la á realidade e , com a sua voz persuasiva e grave , fazê-la socegar e adormecer confiada como uma pobre inocente . E olhando-a esqualida e apenas com os ossos cobertos por uma péle resequida e empergaminhada , Manoela pensava com amargura na linda rapariga que ella fôra , segundo lhe contara Madre Angelica , amada com paixão , amando com loucura , vítima de interesses e preconceitos alheios , um dia rebelde e desvairada rompendo com todas as peias , logo humilhada e cheia de remorsos , entrepondo-se voluntariamente á vida que engeitara , num terror atavico de escravo que não sabe o que hade fazer á liberdade , com sacrificios heroicos . Tambem Manoela teve um dia , e quando menos a esperava , depois de tantos anos de sujeição , a sua alforria , e tambem , como ella , a não soube usar , porque a sua vontade longamente oprimida não se fortalecera e definira . Ao princípio , quando chegou , a noticia da morte repentina da mãe , não se compenetrou bem do que essa morte representava para a sua existencia e apenas se sentiu surpreendida -- não tendo a pretensão de querer sofrer , por costume , o que de facto não sentia , por aféto . Mas , relendo melhor as cartas do irmão e da Ama-Rita , compreendeu por fim que era rica e senhora absoluta da sua pessôa . Isto não lhe podia de pronto dar a sensação da liberdade que por vezes pensara deveria sentir , porque o hábito lhe dera uma nova servidão , que os timidos e os prisioneiros conhecem . Mas , a pouco e pouco apossando-se de si mesma , resolveu fazer prontamente o que havia tanto desejava com ânsia : mandar buscar a filha , reconhecê-la como tal , e conservá-la junto do seu coração e até á morte , triplicando em carinhos os anos de amargurada saüdade em que a tinham conservado . Foi têr com Madre Angelica , que era ainda a Superiora venerada e querida , que anos antes a acolhera no seu coração maternal . Parecia outra , galgando lestamente as escadarias e correndo pelos corredores que levavam até á céla da Superiora , que já quasi nunca sahia do seu cantinho cheio de sol . Com os seus trinta e quatro anos vividos numa vida quasi vegetativa , os traços finos do seu rosto , que fôra duma formosura discreta de morena , conservavam , apesar de tudo , a delicadeza e a graça ingenua que fôram o grande encanto da sua mocidade , quando a tinham trazido para ali . Nos momentos -- raros momentos que elles fôram ! -- de perfeita felicidade para o seu coração , toda a sua pessôa irradiava uma alegria confiante , que a tornavam singularmente encantadora . Quando Madre Angelica levantou os olhos do livro de orações para dar a licença que ella lhe pedia á porta , foi já com o assombro que causa uma grande mudança numa pessôa querida , porque a propria voz da recolhida era outra -- um novo timbre de alegria a fazia desconhecivel . -- o que é , Soror Manoela ? ! ... Alguma novidade lá por baixo ? -- " Não , Madre Angelica , a novidade é só minha ... é uma coisa que eu pensei e que lhe venho participar ... E Manoela explanou , diante da pobre freira sobresaltada , o projéto , que tão simples se lhe afigurara . -- " A sua filha para aqui , Soror Manoela , pensou isso ? ! ... -- perguntou apavorada . -- " Sim , para aqui , então não hade sêr para aqui ? ! -- " Oh , meu Deus , meu Deus ! Para que estou eu guardada , santo Deus ? ! -- lamentava a Superiora . -- " Mas eu não compreendo o seu espanto , Madre Angelica ! Então não sabia o motivo porque estou aqui ha dezoito anos ? Não foi a Madre Angelica que me levou á obediencia a minha mãe adiando até agora a realisação do meu desejo ? ! ... -- " Sempre imaginei morrer antes de vêr esse escandalo ! ... Meu Deus , meu Deus ! Então a minha filha quer dar a essas meninas o público espétáculo da sua antiga culpa ? ! ... Quer sêr o riso e a fabula de toda a cidade ? ! o que dirão de nós ? ! Com tanta má vontade contra as casas religiosas , com tanta calúnia que se tem levantado , se Soror Manoela vai agora apresentar publicamente a sua filha , o que não dirão ? ! ... -- " E que me importa tudo isso ? ! -- não sou eu livre porventura ? ! -- " Oh , livre , livre ! ... Ninguem é livre de alardear os seus pecados -- respondeu a freira , impacientada . -- " Não é isso o que nos diz a nossa religião , Madre Superiora . Esconder um pecado ou culpa é uma prova de orgulho que Deus condena . -- " Mas não neste caso , em que a sua publicação trará descrédito e vergonha para a nossa santa casa . o que dirão , sabe , Soror Angelica ? ... Dirão que nesta casa a imoralidade chegou ao ponto de se apresentarem publicamente as filhas das freiras ! ... -- " Dirão uma mentira , que eu propria desfarei contando a verdade . Bem sabe , Madre Angelica , que se não fiz isto ha muitos anos foi por seguir os seus conselhos , nos quais me mostrou que devia obediencia a minha mãe . Por ella , por esse respeito de que me falou para com uma pessôa que me afastou da casa de meu pai , que me expulsou como a uma criminosa , sofri dezoito anos dum silencio que considero uma covardia hôje ... Ah , dezoito anos de saüdades por uma filha que se não conhece e pela qual se morre de amôr ! ... Ah , Madre Angelica , como fôram crueis comigo ! A culpa , se a houve , se uma criança , como eu era , a pode têr por se deixar iludir por um homem da sua casta , um amigo de seu irmão ... essa culpa bem a tenho lavado com lagrimas de um coração ansioso por conhecer a sua propria filha . Ah , a Madre Superiora é cruel : foi-o comigo , quando me fez recuar ante a minha justa vontade ; é-o agora ainda , porque não compreende este meu sentir ! ... Mas agora sou livre ; quero a minha filha -- e heide tê-la ! ... Manoela , sempre tão delicada no dizer e tão submissa , chegava nesse momento á voluptuosidade das almas sacrificadas quando uma vez chegam á consolação de poderem articular a verdade , que lhe sahia em palavras que pareciam golfadas , num atropêlo de quem esteve encarcerado largos anos e vê por acaso uma porta escancarada . -- " E seus irmãos , o que dirão elles desse áto ? -- arriscou a Superiora tentando dissuadi-la . -- " Meus irmãos ! ? ... Que lhes devo eu , Madre Superiora ? Ha dezoito anos que me viram partir de casa , um amaldiçoando-me , os outros nem perguntando a causa dessa sahida , e só agora me escrevem porque apesar de tudo a lei me confere o direito de partilhar com elles a herança de nossos pais . Meus irmãos ! ? Quasi os não conheço ... Nem lhes devo amizade , nem respeito . Á minha filha , sim , a essa devo todo o meu amôr , todos os momentos do resto da minha existencia . -- " Soror Manoela , pense bem . Será um escandalo ! o que dirão essas meninas do côro , as criadas , as senhoras que nos protegem e nos dão a sua amizade ? ! ... Para que estava eu guardada , Senhor ! ? -- E a freira levantava as mãos e os olhos ao céo , num gesto implorativo , murmurando : -- Ah , se Madre Gertrudes fôsse viva ! ... -- " Sim , -- volveu a outra com vivacidade , tão pouco do seu costume -- tem razão ! Se minha tia fôsse viva , ella seria a primeira a chamar a si essa pobre criança que tem sido escorraçada de todos como um cão tinhoso . E já que a não posso trazer para esta casa que me foi abrigo nas horas tristes da vida , sahirei daqui . Irei viver com minha filha livremente ... -- " O que diz , Soror Manoela , deixar-nos ! ? Quer deixar-nos agora que estamos com os pés para a cova , e é a unica pessôa que aqui temos para nos ajudar a bem morrer , acabando em paz na nossa santa casa ? ! ... Os soluços sufocaram-na . Tambem ella sofria com a dôr da sua pupila ; tambem dos seus olhos , que já deveriam estar esgotados , por tanto terem chorado , cahiram lagrimas que Manoela recolheu no coração angustiado . Soror Angelica abriu-lhe os braços , e por largo tempo ficaram chorando juntas o desespero dessa primeira desinteligencia em tantos anos de confiada e dôce amizade . Foi a freira que quebrou o silencio : -- " Soror Manoela , mande vir a menina ; mas , se lhe merecem alguma consideração as suas velhas companheiras , não a reconheça desde já publicamente . Deixe que a morte feche as portas do nosso convento , e então será completamente livre para fazer a sua vontade . -- " Mas que nome dará á amizade por uma criança que tão empenhadamente mando vir para junto de mim ? -- " Não poderá sêr uma afilhada ? ... -- " Afilhada ? ! ... -- Manoela hesitava , pesando-lhe muito aquella fraqueza como uma verdadeira covardia . Mas as velhas companheiras de toda a sua existencia de expulsa mereciam alguma consideração ... Cederia . Tinha de sêr -- mais uma vez sacrificando ao descanso dos outros os seus sonhos , as suas revoltas , as suas alegrias , a sua vontade . Alguns dias depois chegava Christina , acompanhada pela Ama-Rita , que chorava de comoção só com o pensamento de revêr a sua querida menina . Manoela foi esperá-las á portaria , escondendo a custo a ansiedade da sua alma que tumultuava em desejos loucos de tomar a filha nos braços e gritar bem alto a sua paixão . Toda ella tremia , sorrindo contrafeita ás conversas e perguntas das outras senhoras , amparada pela Madre Superiora , que extraordinariamente sahira do cantinho da sua céla para a fortalecer naquella suprema prova . Veiu por fim a hora da chegada ; abriu-se a portaria , e Manoela poude vêr pela grade entreaberta a Ama-Rita , muito vélhita e trôpega , acompanhada por uma mulher , uma verdadeira mulher forte e desempenada , que olhava com visivel curiosidade essas paredes enegrecidas que iam sêr o seu novo abrigo -- sahida dum convento , onde a mãe pagara para a educarem , para entrar naquelle como recolhida . Manoela , á medida que a filha se ia aproximando , subindo a escada para entrar no palratorio , ia recuando espavorida , sentindo um frio de morte no coração , que a asfixiava . É que diante dos seus olhos estava , não a filha que amava e chamara febrilmente durante anos de paixão esteril em que se consumira , mas a imagem viva do homem que , na rétidão do seu caráter , apenas podera desprezar como um sêr ignobil e ascoroso . Christina não era nada , nada do que ella tinha idealisado . Não era a sua " filha , era a filha " delle_$, delle_$, que a natureza , inconsciente na fatalidade da sua força , lhe punha nos braços . Vencendo a repugnancia instintiva que essa semelhança lhe inspirava , foi sorrisonha e meiga que recebeu a afilhada , mas Christina não correspondeu tambem a esse apêlo . Os seus olhos garços ficaram frios e dominadores , como eram habitualmente ; a sua bôca não se desdobrou álêm do sorriso escarninho que lhe errava habitualmente nos labios . Foi tristemente resignada que Manoela a acompanhou ao dormitorio cheio de luz onde ella dormia , e onde , com amoroso cuidado , lhe arranjara a cama velada com cortinados de inexcedivel brancura , fresca como um berço de criança . Ama-Rita seguiu-as falando muito , abraçando de quando em quando a sua querida menina , que ainda era capaz de reconhecer entre muitas apesar de tão mudada e tão triste . Christina não despertou a simpatia viva que a mãe inspirara a toda a comunidade logo ao entrar no convento . Pagava com sorrisos contrafeitos os carinhos que lhe faziam , e mal atentava nos mimos com que a mãe a rodeava . Aborrecia-se e impacientava-se com as pobres vélhinhas , que procuravam nessa mocidade a alegria que as aquecesse e lhes reflorisse as existencias a extinguirem-se . Como á mãe , outrora , todas abriram o coração a esse coração , mas este permaneceu fechado e frio , afastando-as descaroavelmente . Tinha revoltas bruscas , respondia sêcamente , e queixava-se á Ama-Rita de que a queriam sepultar entre quatro paredes e que a tinham tirado duma prisão para a fecharem noutra peor . Manoela sofria com todas essas pequenas coisas , que se iam avolumando , tornando-a odiada por todas as outras companheiras ; mas temia fazer-lhe qualquer observação receando o seu genio , que presentia violento e áspero ... Até que um dia Christina , de combinação com uma menina do côro que levou á rebelião , pôs uma verdadeira nota de escandalo no meio conventual , subindo com ella ao telhado para vêr o que se passava no largo apinhado de gente para a feira . Manoela foi obrigada a proceder , advertida pela Madre Superiora , que a acusava , com a sua voz dôce , de falta de energia para com a filha . -- " Christina -- dizia-lhe meigamente -- para que me obriga a admoestá-la ? Para que faz coisas ... que não ficam bem a uma menina ? ... -- " Mas o que fiz eu , minha senhora ? Foi algum crime subir ao telhado para tomar um pouco de ar , para fugir um instante desta sensaboria ? ! -- " Mas a Christina não está bem , não gosta de estar no convento ? -- " Não , minha senhora , não gosto de estar nesta prisão . -- " Mas oiça : hade sahir , tenha paciencia um pouco . Isto não pode durar muito ; são apenas duas as freiras que ainda existem , e quando ellas morrerem sahiremos ambas . Continuará aqui a sua educação ; a Christina sabe tão pouco que mal se poderá apresentar no mundo , onde ha muita exigencia para as senhoras da nossa classe . -- " Ah , sim ! ? Conselhos , conselhos tenho ouvido muitos . Eu já tenho educação bastante , não preciso mais ... -- " Christina ! ? -- " Minha senhora ! ? -- " Então não está bem ao pé de mim ? ... -- E querendo-a convencer , com a sua voz dum carinho maternal : -- Não diga que não , que é sêr ingrata . Se soubesse como sou sua amiga ! ... -- " Minha amiga ? ! Se o fôsse , não me prendia aqui como uma criminosa . Se o fôsse , não me chamava afilhada -- quando eu sei muito bem que tenho outro nome ... Manoela interrompeu-a com um grito desvairado : -- " Christina , Christina , cala-te ! Tu não sabes , tu não podes compreender nada do tormento da minha vida ! ... -- " Ah , sim , um bom meio de me obrigar a calar , quando eu posso falar porque sou sua filha -- respondeu brutalmente . Manoela empalideceu ; aos seus ouvidos soou uma zoeira congestiva e o seu coração quasi a sufocou na onda de sangue que lhe atirou á cara . -- " Sua mãe ! ? Está enganada , menina ! Nem sequer é minha afilhada . Mandei-a criar e educar por dó , e é por dó que a tenho comigo . Conhecendo o orgulho da filha , pagava essa afronta com afronta maior . Tambem ella se sentia ferida ; tambem ella tinha necessidade de revoltar-se contra a crueldade alheia . Tambem ella tinha um temperamento violento , que a extrema sensibilidade e o prematuro infortunio tinham enfraquecido mas não aniquilado . -- " Quer sahir ? ! -- e o seu peito era sacudido por uma gargalhada nervosa , que tornava ásperas as palavras -- quer sahir ? ! Pois sáia ! Que me importa ! ? Recolhi-a por dó ... não a obrigo a receber um beneficio que não merece . Mas Christina , como todos os egoistas , tinha a covardia das resoluções rapidas . Diante da indignação da mãe , queria recuar , submetia-se , desejava tudo conciliar ... -- " Sahir , minha senhora ? ! Mas para onde ? -- " Para onde estiver melhor , para onde quizer . Que me importa a sua vida ? ! E é melhor fazê-lo já , já . Manoela , com todos os nervos retesados numa crise dolorosa , tinha-se tornado duma palidez esverdeada , os beiços trémulos e descoloridos , o coração a afogá-la numa galopada infernal após uma como rapida suspensão de movimento . Ante aquella ordem e o gesto de repulsa que a acompanhava , Christina não resistiu , dirigindo-se para a porta , de cabeça baixa , contrafeita , unicamente arrependida de têr provocado uma cólera que a privava , dum instante para outro , de todo o bem-estar material a que se afizera . A mãe olhava-a tristemente : -- era afinal aquella a filha que tanto amara e tanto desejara ! ... Um resto de piedade venceu ainda a indignação e o desgosto . -- " Oiça -- disse-lhe quando estava quasi ao fundo do dormitorio , fazendo-a voltar rapidamente a cabeça numa ânsia de esperançada . -- " Minha senhora , chamou ? -- " Sim , venha cá . -- E , sem a fitar , num repelão de magua que lhe causava a atitude tão diferente da filha , agora de cabeça baixa e ar hipocrita . -- Custa-me abandoná-la para ahi , sem familia nem protéção ... Vou pedir a meu irmão para a receber em sua casa , como afilhada ... Se elle consentir , ficará contente ? -- " Sim , minha senhora ; seria uma felicidade para mim . Quanto lhe devo , madrinha ! -- " Não , não me deve nada . Vá á sua vida , e tenha paciencia alguns dias mais . -- " Mas ... eu queria pedir desculpa ... -- " Não ; não me ofendeu . Pode ir . Tinha pressa de se encontrar só . Dizia bem : o seu coração não estava ofendido ; estava despedaçado , calcado aos pés , por aquella que tinha sido o encanto da sua existencia antes de a conhecer e depois não fôra senão motivo para desilusões e evocações pungentes . O desespero da sua alma contrastava com a serenidade da lua , em crescente , que se erguia manso e manso num céo translucido , ainda tingido de oirenta púrpura no poente , e era como um alfange de oiro pronto a vibrar-lhe o último golpe . Soluçava ; já não podia mais . Pela janela gradeada , os olhos nublados de lagrimas mal distinguiam as linhas dessa paisagem , revista em cada dia durante anos , e que umas vezes lhe parecia grandiosa no seu aspéto cenografico , outras banal e triste , conforme as impressões do seu espirito , tranquilo ou perturbado . Sentia um agro prazer em chorar , e em soluçar como uma criança , numa desconsolação de abandôno e de desespero . o que fôra o seu passado ? Apenas uma existencia sacrificada ao convencionalismo ou ao egoismo alheio . O presente era essa amargura de se sentir desamparada das suas proprias ilusões -- as últimas companheiras dos que mais sofrem . O futuro ... Santo Deus ! o que lhe traria o futuro se não lhe trouxesse o hábito de viver para si mesma ? ! ... Madre Angelica , prevenida pela Ama-Rita que vigiava sempre a sua menina , veiu têr com ella , arrastando-se vagarosamente ao longo do dormitorio , como uma sombra que o luar fazia destacar . -- " Soror Manoela , o que tem , o que lhe fizeram para estar assim agoniada ? ! ... -- " Ai , Madre Angelica ! ... Estava ahi ? Ainda bem , ainda bem que a tenho junto de mim neste momento . Julguei-me olvidada de todos -- até de Deus ! ... -- " Soror Manoela ... -- tornou a velha freira com severidade , adoçada pela sua muita estima á reclusa -- veja o que diz , minha filha . Deus é pai e um pai não esquece nem aflige propositadamente os seus filhos . Elle ama os mais amargurados -- e serão esses os que mais perto estarão da sua eterna gloria . -- " Ah , mas custa muito chegar até lá , pelo caminho da vida ... -- " Tenha resignação , Soror Manoela ; aprenda no exemplo dado pelo nosso Salvador : olhe para a sua santa imagem , coberta de chagas e coroada de espinhos ! E tudo quanto sofreu , inocente e bom , foi para remir o mundo , para salvar aquelles que o flagelavam . -- " Tem razão ... terá razão -- soluçou Manoela , humilhada . Mas logo , numa revolta subitânea que toda a sua devoção não poude evitar -- mas elle era Deus , sofreu por sua vontade , e morreu logo ! ! O seu martirio não foi uma longa vida arrastada na dôr e no suplício ! Mas eu que vivo , eu que tenho vivido anos e anos para sofrer em cada hora mais do que a morte ... -- " Soror Manoela ! ... -- reprimendou a freira . -- " Perdão , perdão ! Meu Deus , se o sofrimento enlouquece ! ... E de joelhos , aflita , soluçante , apavorada com a sua propria heresia , foi-se arrastando até ao crucifixo que se destacava no fundo , tremulamente alumiado por uma lampada de cobre , e ali ficou agarrada aos pés chagados da grande imagem , num choro convulsivamente desfeito e tragico . Madre Angelica apiedou-se , ella que era o unico coração capaz de compreender e estimar a misera criatura , e tentou levantá-la com as suas poucas forças , e disse-lhe baixinho , numa voz que era uma consolação para essa alma torturada e desgraçada : -- " Vamos , Soror Manoela , diga-me o que assim a faz sofrer . Conte-me a sua magua -- que verá como ella diminue ... -- " Ai , Madre Angelica , morro de saüdades pela minha filha . Trocaram-ma . Não é esta ! Como fui castigada , Santo Deus ! E a freira , sinceramente surpreendida na sua credulidade ingenua : -- o que me diz ? ! Então a Christina não é a sua filha ? ... Será possivel ? ! ... -- " Não é ! -- volveu Manoela , sobreexcitada , não reparando sequer na dúvida da velha Madre . -- Não é , não é a minha filha , que alimentei do meu proprio sangue , que sahiu do meu corpo como a flôr sai da planta . É uma estranha , é uma alma gelada , que não compreendo nem estimo . Veja-a , veja-a bem , Madre Angelica ; veja-lhe bem os olhos frios e crueis , os seus olhos metalicos como os do " outro_$! outro_$! Veja-lhe o riso escarninho , que é " dele ... Consulte-lhe a alma soberba e impiedosa , como a da avó ... Avalie a minha desgraça , Madre Angelica ! Tenho uma filha que não tem nada , que não é nada de mim ! ... E despreza-me , a criaturinha ! ... -- terminou num riso cascalhado , que era uma derivação do choro histérico que a tomara . -- " Socegue , minha irmã . Então ! ? ... Isso não é proprio de si ... -- " Sim , tem razão ! Eu não devo sofrer assim , mas que fazer ? ! Não posso , não posso habituar-me a esta desolação ; querer amar a minha filha tal como é e não como a sonhei , e não poder , não poder ! ... Falou longo tempo , num soluçar entrecortado que a esfrangalhava e halucinava , e só muito tarde , conseguindo levá-la para a sua céla , onde estavam mais á vontade , Madre Angelica lhe poude insuflar um pouco de coragem e resignação para vencer aquella crise dolorosissima . O irmão de Manoela respondeu afirmativamente á carta muito digna que ella lhe escrevera , consentindo em receber Christina como se fôsse uma filha . A morte da mãe deixara-lhe um vacuo imenso no grande casarão , onde só de quando em quando os irmãos , já casados e cada um em sua terra , o visitavam por ceremonia . " Christina pode vir -- dizia na sua carta á irmã -- quando quizer , e na certeza de que já a estimo como filha . Sentia-se só , e estava na idade em que uma nova amizade é um pouco de vida nova que se insufla na alma amortecida . " Manoela , que fôsse tambem ; dezenove anos de penitencia teriam por certo depurado toda a mácula ... " Esquecia o passado ; talvez um pouco de inconfessado remorso o estivesse a maguar , agora que se sentia tão só e inclinado á vida serena duma familia a refazer . Mas a irmã não ia ; agradecia-lhe muito , tanto a prontidão da resposta como a aquiescencia ao seu pedido e o desejo de a revêr ... Mas não iria . Tinha ali uma triste missão a cumprir ; não abandonaria , no fim da vida , as companheiras de tantos anos de angustia . Christina partiu alegre , numa ansiedade de prisioneira que reentra no mundo por que tem suspirado durante longos dias inresignados . Manoela ficava sem saüdades dessa filha que fôra durante anos a sua razão de viver ; antes sentia , ao despedir-se , uma vaga sensação de alívio , não isenta de cavada amargura . -- " Adeus , Christina , -- disse-lhe na hora da despedida -- diga a meu irmão que resolvi fazer o meu testamento deixando-a herdeira do que me pertence . Elle que administre a casa nesse sentido , pois só quero dispôr do usofruto por causa destas pobres criaturas que me rodeiam . -- " Deixe-me agradecer-lhe , madrinha ... -- e tentava beijar-lhe a mão . -- " Para quê ? ... -- respondeu sorrindo com ironia e encolhendo os hombros á sincera alegria de Christina . Era com um profundo desdem que atirava essa fortuna , que lhe era indiferente , para o poder da filha que não a soubera amar nem reconhecera o presente inestimavel que lhe dera antes , tendo-lhe dado o seu amôr . Partiu , acompanhada de Ama-Rita , que apenas levava o encargo de a entregar ao tio e voltar logo , pois essa é que , decididamente , não abandonaria mais a sua menina . Para ella a menina era Manoela , que nunca deixava de revêr como fôra : a filha adótiva do seu coração , a estranha que tomara na sua alma o verdadeiro logar da filha morta á nascença . Mas bastante mudara nos últimos tempos , apesar dela se não querer convencer do que via : a mulher que pouco tempo antes ella encontrara , senão a linda rapariga que vira partir , lavada em lagrimas , crucificada de dôres , pelo menos uma mocidade ainda florescente , estendendo-se por um outôno que se anunciava formosissimo . Em poucos mêses Manoela fez uma diferença que saltava aos olhos e afligia toda a comunidade , que só nella fundava as suas esperanças e as suas alegrias . O cabelo embranquecia-lhe nas fontes ; a péle amarelecida , enrugava-se impercétivelmente a princípio , mas visivelmente nos últimos dias em que umas olheiras inchadas lhe davam no rosto o aspéto desolador da doença que lhe fizera do coração uma pobre maquina sem regulamento . Podia dizer-se que ia morrendo aos poucos , das feridas incuraveis que nelle sentira , durante toda essa existencia de eterna sacrificada , em que a alma se lhe esfacelara pelos agudos e impiedosos espinhos do egoismo alheio . Com a doença -- Manoela , entrou o desânimo em todas as almas e a morte encontrou facil caminho entre aquelles organismos depauperados e sem resistencia moral . Todos os mêses havia mortes no convento : ora as freiras , ora as velhas criadas e recolhidas , lá se iam , umas atraz das outras , em debandada desoladora . E para ella , a morte que rodeava agora como companheira inseparavel a velha casa conventual , tão suavemente serena e risonha , era um aflar de azas sinistro que lhe deixava na alma o luto de toda essa querida familia espiritual , a unica que verdadeiramente estimava agora . O convento acabava dia a dia , hora a hora , -- sentia-se , numa halucinação de presentimentos e presagios tetricos , avisos sobrenaturais e factos estranhos que causavam a perturbação e o pânico de todas aquellas criaturas enfraquecidas e mais ou menos doentes , senão do corpo pelo menos da alma . Assim , a sineta que no claustro de cima apenas era tocada quando alguem na casa entrava na agonia , para que as almas se recolhessem com Deus e na sua ânsia de bem merecer auxiliassem a que estava para partir , a desligar-se , sem pena nem pecado , desta vida defeituosa e amarga , começara uma tarde , á hora calma do Angelus , a tocar freneticamente conclamando toda a comunidade , que se olhava espavorida e convicta do tragico aviso . -- Era certo : aquella sineta , que uma só vez tocara assim , segundo constava , anunciando a morte de duas freiras em cheiro de santidade , anunciava agora a morte , o fim da santa casa que fôra abrigo de tanta pobre alma de mulher revoltada ou submissa , mas todas crentes numa eternidade de venturas de que não tinham tido na terra a compensação . E todas ellas , velhas e novas , míseras sombras duma outra idade ou raparigas que a educação conservara afastadas do tempo em que vieram ao mundo , todas curvaram a cabeça á convicção de que a campa as chamava , de que era a morte que as libertaria em breve . Sim , ellas estavam prontas , mas quanta tristeza nesse fim de existencias que já mal se arrastavam , numa vida que não compreendiam já ! ... Outro dia era um reboliço enorme nas casas deshabitadas , que as fazia tremer de apavorante susto , pensando nas irmãs mortas ultimamente e em tantas que descansavam sob as lages frias do claustro . E eram vozes misteriosas vindas da terra , perfumes deliciosos e estranhos que se espalhavam pelos casarões vasios , fantasmas silenciosos de freiras mortas havia seculos e que deslisavam sorridentes como que a animarem as pobres irmãs que assistiam ao fim da sua casa tão amada ! ... Manoela , apesar de todo o seu bom-senso , não resistia ao contágio e , como as outras , vivia numa atmosfera de prodigios e de mêdos que mais activava o progresso do mal que a consumia . Mas não abandonava por esse motivo as velhas companheiras , que só nella achavam conforto para bem morrerem . Foi Soror Claudea a última a deixar a vida , que tão dolorida lhe fôra ; foi ella , a pobre louca , quem fechou , como um ponto final simbolico , mais um periodo de historia feminina , tecida de sacrificios e servidões e ilusões profundas , e sem um fecundo e nobre e belo ideal de vida ! Ali ou na familia , no claustro ou no mundo , a existencia feminina pouco diferia ; pouco mais era que esse decorrer estirado de anos partilhados entre pequenos deveres , insignificantes trabalhos , apagadas alegrias e supliciantes sacrificios a que ninguem prestava atenção , tão naturais são aos servos e aos inferiores ... Morta Madre Claudea , e participado o caso ás autoridades , teve Manoela que aceitar o depósito da casa para fazer a entrega legal . Acabada a clausura e o convento , por assim dizer franqueado ao público , começou um novo martirio para Manoela , que se não podia furtar á indelicada e faminta curiosidade de toda a gente da cidade , que já depois fazia da visita ao convento uma distráção a quebrar a monotonia da vida provinciana . A querida casa tão recatada e fechada a todos os olhares indiscretos , foi uma coisa pública escancarada e esquadrinhada por todos os indiferentes , uns sob a capa amavel da simpatia e da piedade , outros rancorosos ou hostis , desrespeitando as suas crenças ingenuas ou troçando com as suas alardeadas superioridades as infantis preocupações daqueles sêres inuteis ... Manoela afétava uma serenidade que lhe custava anos de vida , não querendo dar aos indiferentes o espétáculo duma dôr que era apenas sua e das suas pobres companheiras , as recolhidas , as meninas do côro e as criadas , que em breve seriam arremessadas para o mundo como folhas inertes e sem vida , e dispersadas ao sabôr do acaso , que as levaria sabe Deus a que dôres e a que miserias ! -- tão mal preparadas como estavam para a luta de cá fóra , quasi todas pobres e sem amigos ou familia que as tivesse como suas ... Já que não podia furtar a casa e as coisas á profanação dos olhos estranhos , fechava a sua alma num silencio orgulhoso que a tornava respeitada , e conservava uma certa distinção naquelle acabar de comunidade que sem ella seria um levantar de feira sem grandeza nem simpatia . O inventario feito , a pilhagem executada por ordem superior , viu com profunda amargura os preciosos " Grão-Vascos " desprendidos das paredes seguirem , com os azulejos hispano-arabes que foi possivel arrancar , a pouca mobilia rica que havia , os livros e as tapeçarias de valôr , encaixotados , segundo diziam , para os museus de Lisbôa ... Eram livros velhos aos cantos , pelos corredores , bahus e caixões devassados e esvasiados ... E ainda lhe foi preciso assistir , sem que a desligassem do triste encargo de testamenteira , á invasão dos operarios que vinham transformar a casa , para novo destino mais em harmonia com a época . Portas escancaradas , divisões deitadas abaixo , montes de caliça pelos pateos e claustros , deslocadas as fontes murmurosas , mortas as plantas que eram o seu encanto -- aquilo afigurava-se-lhe uma ruina completa , um desabar de todo um passado que morria sem têr criado raizes , como morre sem seiva , inutilisada , a planta nascida em terreno pobre e rochoso . Libertada , porfim , foi acabar de viver para uma pequena casa de campo que a Ama-Rita descobriu escondida entre tufos de verdura tenra e uma dôce paz idilica a rodeá-la . Sentia-se de mal a peor , e sem esforço deixava-se morrer , desligada da vida , sem afeições ou deveres que a prendessem . Álêm do amôr humilde da simples camponeza que a criara e a cumulava de carinhos e ternuras na morte , como a rodeara na infancia , nada lhe restava . Christina , muito prática , muito á sua vontade , talhara para si um logar amplo na vida . A última carta do irmão de Manoela pedia-lhe&lhes+a em casamento , e a dela , que vinha junta , pedia , pró-forma , o consentimento da madrinha . Manoela sorriu : era a sua vingança , uma como rehabilitação do seu sangue , da sua propria carne expulsa outróra como coisa imunda da casa e da familia . Era a vida omnipotente readquirindo os seus direitos , a natureza triunfando dos preconceitos , que desprezava as convenções e entrava como senhora donde fôra expulsa como réproba . Christina , na sua cega e egoista caminhada para a vida , fôra a força invencivel da razão e da justiça , fôra a suprema e triunfante palavra do futuro . A mãe , amoravel , generosa e submetida , dera a existencia aos pedaços para satisfazer as outras . A filha , egoista e revoltada , e sem exageros de sentimentalidade que só provocam a dôr , recebia uma por uma transformadas em alegrias as lagrimas da mãe . Manoela sorria : era a sua rehabilitação , era , saboreada com infinito gôsto -- tão certo é que nenhum sacrificio se perde , aproveitando quasi sempre a quem menos o merece . Em toda a noite Manoela não pudera dormir , angustiada , sentindo sobre o peito um pêso esmagador , sufocada e aflita . Com a manhã , que rompera radiosa empoeirando de oiro todo o campo e doirando as montanhas que se destacavam no fundo roseo do céo , serenava um pouco . Sentia-se mais aliviada e quiz arrastar-se até á janela aonde se sentou na cadeira de braços , que era o seu poiso habitual . Olhava atenta a bandada de pombas brancas que sahia do pombal em vôos estonteados e incertos , embaraçando-se nos ramos das laranjeiras que floriam de branco e perfumavam delicadamente a atmosfera . -- " Ah , como era linda a natureza , sempre renovada e sempre a mesma , -- e como era bom viver ! ... E a pobre doente ouvia , num encanto de esperança , nunca extincta no coração humano , as palavras de consolação que a bôa Ama-Rita lhe ia dizendo . -- " Porque não iam passar uns tempos a casa do sr. Morgado ? ... Havia de fazer bem á senhora ... -- " Sim , iriam -- concordava Manoela -- mas não já , a primavera começara apenas , e a Ama-Rita bem sabia como eram ainda invernosos e frios esses mêses de primavera lá na terra . Oh , se sabia ! Quantas noites enregeladas passara acalentando nos braços a sua menina ; quantos dias fechada em casa porque a neve e o frio não dava licença , até maio , de se sahir da lareira ... Manoela , sorrisonha ás recordações da bôa vélhota , prometia fazer essa viagem -- em vindo o bom tempo . -- " E o menino , quando nascerá ? -- perguntava a Ama . -- " Já tens pressa de o chamar teu , não é assim ? ... E comparava , com um certo sorriso ironico a aflorar-lhe aos labios descórados , a ansiosa espera em que se andava pela vinda do primeiro filho de Christina e os transes porque ella passara para que a mãe chegasse a este mundo , onde era agora uma triunfadora . Recordava ... e recordar era tornar a sofrer as horas de desânimo e desespero que por milagre a não tinham atirado para um hospital de doidos ou para o cemiterio . Tornava a vêr a casa em ruinas , onde a criança nascera como um animal bravio , que anda a monte , para não ofender com os seus gritos de filho ilegal as consciencias socegadas ... Como isso já ia longe e como tudo tinha mudado ! Quem lhe diria então que Christina , a sua filha , essa vergonha viva , essa nodoa na familia fidalga de que descendia , anos volvidos seria a senhora morgada a quem todos adivinhavam os desejos e amaciavam o caminho para que désse+esse sem precalço o novo herdeiro da casa ? ! ... E tão desemelhante destino só porque uma tinha um pai que legalmente reivindicava os seus direitos , emquanto a outra era filha dum homem , que na sua inconsciencia de bruto apenas cuidara do prazer material e passageiro , com tanta mais perfidia quanto era maior o seu conhecimento da indulgencia da sociedade para com as leviandades do homem transformadas em crimes para as mulheres . E Manoela , meditando e revendo toda a sua existencia naquella hora de passageiro repouso , que a doença lhe dera , pensava com amargurado remorso no que chamava agora a sua covardia : -- " Sim , Christina , no impulso do seu egoismo e da sua ânsia de viver , é quem estava na verdade ! " A transigencia , a covardia , a fraqueza , mesmo quando são filhas do sentimento , acarretam consigo o triste premio da sua inferioridade . E assim , pela covardia a que tinham dado o bonito nome de bondade , ella ali estava sem familia , sem amigos , sem uma alegria que a prendesse á vida que a ia abandonando como fardo inutil , que já não presta para nada . " Não , não se deve transigir , não se deve esconder uma áção que em nossa consciencia não é um crime , embora a sociedade na sua hipocrisia a mostre , ferozmente , como tal ! " A sociedade acostuma-se a respeitar os fortes e só pede contas severas aos fracos , aos que transigem , aos que a ella se não adaptam ou a não dominam , as duas unicas fórmas de a vencer . " Christina tivera razão : ella não fôra uma bôa mãe , não soubera desempenhar o seu nobre papel , ferindo implacavel porque fôra ferida , cobrindo com a sua revolta o destino da criança que chamara a uma vida que lhe não pedira . Não tinha desculpa . Fôra necessario que a filha , no seu bom-senso de bastarda , soubesse encontrar a desforra no sacrificio do proprio corpo procurando nesse casamento sem amôr o nome que ella lhe negara . " E valia muito o amôr ? ... Ah , ella sorria , com dó de si mesma , recordando como se entregara toda inteira a esse sentimento , o corpo palpitante , a alma fremente , sem uma reserva , sem um pensamento mesquinho de dúvida , com a pureza duma criança , cuja alma não fôra maculada pela desconfiança -- e o que lhe deram em troca ? ! ... " Pois bem , ia reparar a sua falta . E , chamando a Ama , que dava uma certa ordem ao quarto , respeitando a sua meditação , Manoela pediu a escrevaninha portatil que estava sobre a mêsa de cabeceira , pegou num papel e ia a escrever ... Depois suspendeu-se , sorriu com amargura , e pôs a penna de parte . o que ia fazer com essa declaração a juntar ao testamento ? ! Christina já não precisava do seu nome , mais amplamente coberta com o do marido que a tomara como filha de pais incognitos , e a sua declaração extemporanea apenas lhe traria vergonha inutil e dissabores ... Não a fazia -- era já tarde para isso . Recostando-se ás almofadas que a Ama-Rita lhe ageitava na cadeira , sentiu-se agoniada , pediu agua , depois fechou os olhos , franziu frouxamente os labios descórados , e a cabeça tombou-lhe para o lado sem vida . -- " Deixou de sofrer ! -- dizia a velha , soluçando alto , para a criada e para a mulher do quinteiro que chamara aflita na primeira impressão de inevitavel surpresa . E alisava-lhe os cabelos sobre a fronte , juntava-lhe as mãos numa atitude de prece . Deixou de sofrer , coitadinha ! Toda , toda a vida -- uma sacrificada ! ...