O CURA DE S.||_LOURENÇO LOURENÇO|_LOURENÇO ROMANCE POR M. M. S. A. E VASCONCELLOS . LISBOA IMPRENSA NACIONAL . 1855 O Conde DE NESLE Mr. de Nesle , descendente dos antigos heroes das cruzadas , Raoul de Nesle , condestavel e armado cavalleiro por Luiz IX , e João II de Nesle , regente de França , na ausencia de S. Luiz , havia herdado de seus antepassados , não sómente a lealdade e o valor , como tambem essa fé robusta na sua religião e no seu Deus , fé por elles tão altamente testemunhada , quando deixavam o solo patrio por largos annos , expondo a vida a todos os azares e incertezas , não em busca d' essa gloria estrondosa e vulgar , d' esses loiros ceifados nos campos de batalha , mas para trazerem junto ao peito uma reliquia d' essa cidade , santificada primeiramente pelas prophecias , depois pelos milagres , e finalmente pelo sangue de Christo . Fazendo parte da côrte , Raoul de Nesle tinha ali passado a maior parte da sua mocidade . Sua mãe , dama idosa e respeitavel , conservára até á morte as modas e a elegancia da Fronda . Esse capricho não lh'o tinham inspirado ideas aristocraticas : conservava este luxo antigo , como uma reminiscencia da sua alegre juventude . A condeça viuva deu uma educação esmerada ao seu unico filho . Os primeiros estudos de Raoul tinham sido dirigidos por um theologo eminente ; tendo a religião por norte , o seu caracter se foi formamdo á proporção que o seu espirito colhia uma e outra flôr , nos abundantes ramos das sciencias . Madame de Nesle falleceu , dois annos depois do casamento de seu filho com Lucia de Coislin . O conde residia em Paris , no antigo palacio da praça de Luiz xv. Raoul era muito generoso para não professar o amor da igualdade ; era republicano de coração . Com quanto amasse de nome e de raça a antiga familia dos Rourbons , afogou dentro em si o profundo sentimento pela magestade decaida . A sua alma elevada e livre , não escutava sempre as affeições do coração ; n ' ella só se encontrava a imparcialidade , quando se tratava do bem geral da grande familia da sua nação ; não era nem pelo povo , nem pelos grandes , mas pela humanidade inteira . O conde desejava que a civilisação , desentranhando e apurando as nobres virtudes que nascem e morrem nas trévas da ignorancia , arredasse o véu que encobre as luzes do proprio entendimento ao pobre e ao pequeno , soltando alfim do longo captiveiro a sua rasão , e a sua vontade ! Todavia , apesar das suas idéas politicas e religiosas , guardava o devido respeito á antiga magestade de um rei ; não como o juiz soberano e arbitrario de um povo , o que só a Deus compete , porém como o patriarcha de uma numerosa tribu , o chefe , o pae de uma familia de homens como elle . De resto , amante da ordem , gostava de ver conservada sempre em pè essa graduada escala social ; repugnando à sua philantropia , que o merecimento illustrado continuasse de rojar-se nos ultimos degraus . Elle via uma vigorosa geração , que caminhava ; era necessario , que uma grande revolução lhe abrisse as portas ; e a politica , que tinha creado arbitrariamente as velhas jerarchias , devia chamar todos os homens á mesma luz e á mesma perfeição . Era em 1789 . Moderado nos seus principios , Raoul de Nesle tinha sempre em vista o progresso moral ; e nos primeiros dias d' essa revolução , dias agitados de uma alegria confusa , mas tingida do nobre sentimento da liberdade , não só uniu a sua voz ao grito da nação , mas procurou concorrer para o conseguimento da igualdade , que exaltava a populaça até ao delirio , chamando todos á ordem e á concordia . Mas , pouco a pouco , foi-se annuveando o formoso horisonte das suas esperanças ; e , sobre a sua infeliz patria , vein agglomerar-se uma atmosphera pesada e tétrica ! A unidade do governo da multidão arrastou após si a desordem moral : viu-se o cadafalso substituir a lei ; e o crime , desenfreado , desconhecer os vinculos da humanidade ! As inquietações moraes causam em certos homens tão grande impressão , que , perturbando-lhes profundamente o sim estado physico , lhes deterioram a saude , que nunca recuperam , perecendo a final victimas de uma exagerada susceptibilidade . Em 1791 os medicos decidiram , que a saude do conde de Nesle carecia absolutamente do sol mais quente do sul , e de uma briza mais temperada . Mas uma das rasões que resolveram o conde a abandonar talvez por muitos annos a sua residencia em Paris fôra a idade quasi adolescente do seu unico filho , o joven Frederico . O aspecto da capital não podia senão extraviar uma intelligencia ainda tenra . Em certas idades , a alma toma-se muito da impressão dos olhos , e é mister offerecer-lhe imagens risonhas , fareis e coherentes . Como apresentar-lh ' as nesse cabos confuso do erro e da devassidão ? A riqueza dos paramentos nos templos do antigo culto ; a respeitosa observancia dos ritos e ceremonias , eis o mais digno espectaculo em que podem pousar os olhos e a imaginação , avida de impressões , de um joven . Mas , que era feito d' esses templos sagrados , d' esse religioso apparato , e desse culto ? -- A bella nave gothica dos Franciscanos acabava de ser demolida ; a igreja dos Theatinos tinha-se convertido em um café e sala de dançarinos de corda ! As terras de mr. de Nesle eram no departamento d' Ardêche , no Languedoe . Ali possuia um vasto e antigo castello , cercado de extensissimas alamedas , cujos velhos troncos , tendo resistido aos annos e á intemperie das estações , como as pyramides do celebrado Oriente , rendiam muda homenagem á gloria e esplendor dos seus antigos proprietarios . Madame de Nesle partiu , um mez antes de seu marido para a provincia , com uma parte de seus domesticos , incluindo o fiel Anselmo , o qual tinha sobre todos a primazia na estima de seus respeitaveis amos . ANSELMO . Aqui daremos de corrida uma pequena noticia do homem , que adiante encontraremos como o grande heroe da nossa historia ; porque a honra o a lealdade , quando se alojam no peito do homem , seja illustre ou humilde , dão-lhe a verdadeira nobreza ; e porventura os acontecimentos , arrojando o humilde para longe da sua esphera , fazem-lhe desenvolver rasgos sublimes de amor e resolução , e da mais pura e estremada honradez ! Anselmo era filho do jardineiro dArdéche . Esta occupação tinha passado de pae a filho . Era usança antiga dos proprietarios do castello dArdéche passarem ali alguns mezes no verão . O filho do jardineiro tinha apenas um anno mais que o joven Raoul . O conde , nos seus folguedos infantis , achou sempre nelle um docil e util companheiro ; o pequeno era esperto , e surprehendia o seu joven patrão com engenhosas ideas . A preferencia que elle assim adquiriu sobre todos os camponezes dos arredores , não produziu o mais pequeno orgulho no simples Anselmo ; mas neste contacto , um nobre sentimento começou de girar-lhe pelas veias , planta que jamais fenece , torrente que não distilla senão das fontes do amor : -- a lealdade ! A habilidade , rara na idade do pequeno Anselmo , e mais que tudo o seu genio humilde , grangearam-Ihe a protecção da condeça , que o trouxe comsigo para Paris , tendo então pouco mais de nove annos . Tratado com desvelo e solicitude , pôde adquirir mais algumas luzes do que ordinariamente se encontram nas pessoas da sua classe , e o seu trato constante com pessoas bem educadas inspirou-lhe o amor do bello , e fez-lhe adoptar nas suas expressões e modos um ar distincto que o tornava notavel . Seu pae o casou aos vinte e tres annos com uma pupilla e predilecta , e esta união teve o consenso da sua muito estimada protectora . Anno e meio depois do seu casamento , no mez de junho , Anselmo esperava alegremente o regresso de seus patrões ao castello ; porém essa alegria foi perturbada por uma desgraça tão profunda quanto inesperada . A boa Ignez Beaupré , tendo esgotado os dolorosos soffrimentos de um trabalhoso parto , morreu poucas horas depois de haver dado á luz um filho ! Raoul e sua mãe trouxeram immediatamente para o castello o pobre viuvo . Anselmo tinha uma unica irmã ; Anna Beaupré , casada com o piloto de uma embarcação mercante , fôra residir no porto -- Fréjus , no meio-dia da França . Anna costumava visitar de tempos a tempos seu pae , e achando-se presente ao repentino fallecimento de sua cunhada , tomou nos braços a creança recemnascida , e começou a alimenta-la com o leite que dava a um filho de sete mezes . Em vesperas de partir , ella procurou seu irmão , e falou-lhe desta maneira : -- Anselmo , eu levo a creança comigo ; não posso consentir que uma mulher estranha nutra do seu leite e do seu sangue o filho de meu irmão ! -- Entrega-me a sua primeira infancia , e confia que terá de mim o carinho e o ensino de mãe . Anselmo acceitou a caridosa proposta de sua excellente irmã , e alguns dias depois ella partia para Fréjus com o pequeno Alberto Beaupré . A presença de seus amos , e as palavras de consolarão e de religião de madame -- Nesle , foram pouco a pouco resignando o desconsolado viuvo ; mas o que arahon o seu restabelecimento foi o ultimo accôrdo que tomaram de o conservar outra vez : em sua casa como uma especie de mordomo ; logar que lhe competia , tanto pela sua intelligencia como pela sua probidade . Esta novidade agradou sobremaneira a seus parentes : -- " A vida lhe-ha aprazivel na companhia de seus patrões " , diziam elles . Anselmo era o orgulho da familia . A ENTRADA EM+O CASTELLO . Frederico tinha acompanhado sua mãe . A primeira educação do joven conde havia sido muito interpollada ; a creança , até aos dez annos , tivera poucos intervallos de samle . N ' esta idade começava elle apenas a soletrar ; sua mãe , que fòra sempre a sua carinhosa enfermeira , foi ao mesmo tempo a sua primeira mestra . Durante as convalescenças de grandes febres e outras molestias , que deterioraram a dehil constituição do joven conde , Lucia de Nesle o entretinha horas e horas , com interessantes historias , todas tiradas das Santas Escripturas . Ella tinha mandado reunir em um volume precioso certo numero de estampas , representando os passos mais simples , bellos e sempre maravilhosos d' aqulles primeiros tempos . O longo captiveiro em que o tivera sempre na infancia o seu delicado estado physico , pouco a pouco o impregnaram de uma certa melancolia , que o tornava quasi indifferente , e o arredava mesmo de todos os brinquedos naturaes daquela idade . Mas Frederico conservou por muito tempo a innocencia da infancia ; e se elle não era muito vivo e expansivo , a chamma do amor nunca no seu coração se extinguia , e era ardente nas suas affeições . A docilidade vinha-lhe da natureza : uma palavra de sua mãe tinha sobre elle tal poder , que não era mister castiga-lo , nem mesmo ameaça-lo . A sua amargurada infancia , e o cuidado de seus paes em afasta-lo cuidadosamente dos perniciosos espectaculos que se offereciam a cada passo na capital , o fizeram transpor os tempos até á idade de doze annos , n ' uma completa ignorancia do mal . Frederico amava extremosamente sua mãe ; mas amava-a por inclinação , por gratidão , e por necessidade ; amava-a , porque era sua mãe , e sua melhor amiga , e porque d' ella sempre recebêra carinho e protecção . D ' esta sorte distinguia elle seu pae dos outros homens ; mas avaliava-os todos pela sua innocente concepção , julgando-os todos bons e verdadeiro . Grande erro de educação ! Lucia de Nesle nunca se deliberou a apresentar a seu filho as hediondas fórmas da mentira e da falsidade ! E a verdade , não usa insinnar-se como a lisonja capciosa ; é necessário conhece-los distinctamente , para , poder optar entre o mal e o bem . Mr. de Nesle não queria fazer de seu filho um sabio , mas pretendia que elle soubesse perfeitamente a sua lingua , o latim , a arithmetica , e que tivesse alguns conhecimentos da lei civil . N ' esses tempos de revoluções , de subitos engrandecimentos , e fortunas decaidas , não era difficil encontrar o talento posto de parte , deslembrado , e porventura votado á mendicidade ! Mas a pureza de costumes , a virtude como a queria o conde , no instructor , e assiduo companheiro por alguns annos , de seu filho , não se achavam logo ao alcance das suas pesquizas . O acaso lhe deparou uma noute o encontro de mr. Pocion , sub-prefeito , demittido do seu emprego por um acto devido ao seu melindre . A intelligencia , e a elevação de sentimentos politicos e religiosos d' este homem de bem , excitaram a attenção do conde ; na manhã seguinte elle procurou-o em sua casa , foi affavelmente recebido , e a sua proposição foi acceita . Mr. de Pocion era um dos que compunham a comitiva que entrou com o conde no castello d' Ardêche ; mr. de Nesle tinha feito uma acquisição duplicadamente vantajosa ; no respeitavel mestre de seu filho tinha um amigo e um companheiro para os dias e os annos da sua solidão . Os habitantes d' Ardêche conservavam o antigo costume de celebrarem com suas rusticas festas a chegada dos condes ao castello . Os homens soltavam aos ares alegres vivas , que os echos multiplicavam ; e ouviram-se tiros de pistola até altas horas da noute ; as camponezas acompanhavam respeitosamente seu nobre senhor até o limiar ; e as donzellas traziam suspensos ao braço açafates cheios de bellas flores , que iam espalhando pelo caminho . Este tributo , singelo e edificante , de antiga lealdade , arrancava agora lagrimas e vozes de gratidão : Raoul de Nesle era respeitado e considerado , não só como senhor , mas tambem amado e estimado como pae e protector dos seus vassallos e dependentes . MORTE DE+O CONDE . A differença dos ares , e a socegada vida do castello , alliviaram o conde dos seus padecimentos , e quiçá- lhe prolongaram a debil existencia ; porém esta melhora era passageira ; a sua figura , extenuada pela febre lenta , apenas os- tentava o antigo garbo ; os seus bellissimos cabellos louros , os seus olhos vivos e expressivos , contrastavam fortemente com aquelle rosto macerado , aquella livida tez , desmaiadas as ultimas côres da vida ! Tal era o seu estado physico em 1793 , passados já dous annos desde que residia no castello d' Ardêche . Foi no outomno que a molestia se pronunciou com symptomas assustadores , e a morte pousou sobre o leito do bom fidalgo , adejando as sinistras azas . Havia um anno que elle tinha presagiado o funesto acontecimento , que estava agora pendente sobre aquella triste familia ; occupou-se desde então inteiramente da sua ultima jornada . A oração e a meditação vigoravam-lhe o espirito , ao passo que as forças do corpo o abandonavam de dia para dia ; e o contentamento interior derramava na sua physionomia uma alegria tão serena , que offerecia verdadeiramente o aspecto da santidade . Ás vezes elle fallava da morte a sua esposa , como uma separação necessaria , uma ausencia momentanea ; as suas esperanças apontavam-lhe uma aureola de gloria na eternidade . Uma manhã , nos primeiros dias de abril , o conde tocou cedo a campainha ; sua esposa , que o sentira gemer de noute , não se tinha despido , e foi a primeira que acudiu ao seu chamamento . " Minha boa amiga , lhe disse , estimei que viesses ; queria dizer-te adeus ! O conde fez uma leve contracção para colher a effusão das lagrimas , em quanto sua esposa enxugava tristemente as suas . " Lucia , não chores , continuou o doente ; occupa-te antes da tua felicidade , cuja via ? hoje . " O Senhor||_Deus Deus|_Deus vem esta manhã á nossa casa . Condeça de Nesle : como receberieis a visita d' um monarcha da terra ? -- Certamente adornada com todas as vossas joias mais ricas : como deveis pois adornar-vos para hospedar o Rei de os reis ? " Esta visita de Deus derrama tanta doçura nos ultimos momentos , que agora te digo , o coração não poderia contel-a ; dotou-nos o Eterno com a alma para os gozos de uma felicidade infinita . " Para que um apparato funebre , na hora em que a eterna e celeste mansão nos abre as portas ? -- Não , minha esposa : a minha alma está contente , e a morte antolha-se-me como uma ditosa transição ! " Festeje-se : este dia em minha casa como um grande natalicio ... vae , Lucia , empenha-te em celebra-lo com luxo e esplendor . " A condeça saiu . e Anselmo entrou no quarto de seu amo . O conde repetiu-lhe o mesmo que havia dito a sua esposa , porém , com mais minuciosidade : o aio reprimia a muito custo a sua affliccão . O doente recebeu ás oito horas a visita do padre||_Gregorio Gregorio|_Gregorio , capellão do castello , que se demorou no quarto até ás dez . Raoul de Nesle não fallou mais , em quanto Anselmo andava executando as ultimas vontades de seu amo . Ao meio dia em ponto , a porta de ferro massiço do castello abriu-se de par em par , e viu-se entrar primeiramente um respeitavel cortejo de padres da provincia de todas as idades , e atraz caminhavam , dois a dois , em uma longa fileira , os homens e mulheres dos arredores , antigos suhditos e dependentes dos senhores -- Ardêche : as donzellas trazendo , como no dia da chegada de seus amos áquella terra , pequenos cestos cheios de flores do campo . As ricas salas do conde estavam abertas para receberem este grande concurso . Um momento depois saiu da capella interior do castello o acompanhamento do clero , e o sacerdote revestido debaixo de um riquissimo pallio . Era um dia magnifico , e o sol entrando por todas as janellas abertas dos quartos , alegrava com os seus raios a casa , cujas paredes estavam graciosamente enfeitadas de festões de murtas e , grinaldas de flores . Os creados da casa seguiam o pallio , vestidos com os seus melhores trajos ; á frente d' elles e immediatamente atrás do santo sacerdote . caminhava o fiel Anselmo , a par dojoven Frederico . Depois seguiam os camponezes a passo lento , e guardando o silencio mais profundo e solemne . Em frente da porta do grande quarto , estava erigido um altar , sobre o qual o sacerdote foi depor respeitosamente a sagrada custodia . O leito do moribundo estava descoberto . Raoul estava sentado entre almofadas e coxins . Os seus olhos expressivos pareciam soltar-se do quadro mortal do Iindo rosto ; os seus labios descorados confundiam-se , á primeira vista , com a pallidez do semblante : porém , quando se abriam a saudar a pobre gente que entrava umas ligeiras pregas se desenhavam nos cantos desses labios , como projectando um melancolico sorriso . Junto á cabeceira do leito estavam de joelhos sobre o tapete Lucia de Nesle , o joven Frederico , e Anselmo . Os mais bellos vasos da baixella dos Nesles adereçavam por todos os lados o altar , coberto de ricos paramentos , cujo brilho scintillava com as luzes dos candelabros . -- Era meio dia : uma serena claridade alumiava esta scena pathetica . As sombras da morte sumiam-se n ' este deslumbrante quadro , que das prateadas alfaias do altar , e ricos diamantes da nobre castellã rematava no alegre e variado matiz das flores naturaes que pendiam dos braços das moças camponezas dArdêche . Houve um pequeno momento de silencio ; e depois o sacerdote começou a missa . Chegou a occasião de commungar : o conde recebeu com uma visivel satisfação o pão sagrado das mãos do ministro ; o veneravel padre||_Gregorio Gregorio|_Gregorio administrou este mesmo sacramento á afflicta esposa do moribundo conde , a seu joven filho , e ao honrado Anselmo . O sacerdote dirigiu-se depois para o altar a passo lento : n ' esse momento de grave silencio e de unção a que estavam entregues todas aquellas almas , ouviu-se um leve murmurio para o lado do leito ; no mesmo instante todos os olhos para aIi se dirigiram , e todos viram , excepto o padre que continuava a missa , o ultimo olhar do adeus que o conde lançou sobre o caro grupo que lhe ficava á cabeceira , quando entregava o espirito a Deus . Logo ( que o sacerdote lançou a benção sobre o auditorio , a um leve aceno de Anselmo toda aquella pobre gente foi saindo , saudosa e compungida , do quarto : nem um leve gemido interrompeu a ceremonia funebre . FREDERICO . Dous mezes antes da morte do conde , Frederico tinha igualmente perdido o seu mentor ; e essa perda inesperada contribuiu a abreviar o fim de seu chorado pae . O aspecto do joven conde era tambem demasiado grave e melancolico para a sua idade . Este abatimento prematuro , e a profunda magoa da viuva , contristaram os parentes que tinham vindo de Paris e de Montpellier , ( cidade natal da condeça ) a fazer-lhe a visita de pezames . Empenharam-se , pois , em arranca-la áquella solidão do tumulo . Madame de Nesle condescendeu com os solicitos rogos de seus parentes , e resolveu-se a deixar o triste castello de Ardêche , partindo , não para Paris , aonde a sua dor fôra assaltada coro frescas recordações , mas para Montpellier . Montpellier recebeu o seu nome de duas virgens santas ; Mons puellarum : d' ahi lhe veiu , segundo uma piedosa tradição , a belleza das mulheres . Mr. Pocion deixára a educação do seu pupillo bastante adiantada . Frederico linha uma idéa geral de tudo , mas não aprofundada ; todavia , escrevia correctamente a sua lingua , e traduzia bem o latim . Tinha já decorrido um anno que a condeça de Nesle se achava em Montpellier , quando um de seus parentes , mr. de Valmont , decidido a viajar por algum tempo pela Italia e Grã-Bretanha , veiu fazer-lhe a agradavel proposta de levar comsigo o joven conde . Nada podia ser tão vantajoso como as viagens para desenvolver o caracter indeciso e acanhado de Frederico ; esta idea tinha occorrido muitas vezes á condeça , porém deteve-a sempre o receio de ver inutilisado o seu trabalho de tantos annos , expondo a innocencia e simpleza de seu filho aos perniciosos exemplos que a cada passo havia de encontrar . EIla recebeu , pois , como uma benção do çeu o offerecimento do seu bom parente , e não hesitou um momento em confiar á vigilancia do digno cavalheiro a mocidade de seu unico filho . Foi então que o joven conde deu as primeiras mostras da sensibilidade do seu caracter ardente e affectuoso . As primeiras palavras da condeça causaram não pequeno sobresalto ao mancebo ; pela primeira vez a obediencia filial lhe custava uma repugnancia profunda ; a idéa de separar-se de sua mãe jámais lhe passara pelo pensamento ; manifestando o seu desgosto , não somente com tocantes lagrimas , mas tambem com palavras energicas e quasi irresistiveis . -- " Eu louvo a tua sensibilidade , lhe disse a condeça , ella é o grito da natureza , e o effeito do amor que me consagras ; mas não queira Deus que o egoismo me cegue , e que eu consinta em ver-te exposto por elle a excesso algum . Os homens , os tempos , e os mares , não podem nunca desunir dous corações que se amam . Vae , meu filho ; viajando e aprendendo , poderás sempre amar tua mãe ; as tuas cartas m ' o dirão , e mais que tudo a tua submissão á minha vontade . " Frederico calou-se , e não ousou mais oppor- se ás determinações de sua mãe ; sua boa indole suffocava-lhe a vontade , e contrafaze-la não era para elle um sacrificio . A boa condeça o viu prestar-se finalmente de bom grado a todos os preparativos que requerem as vesperas de uma grande viagem . O joven conde tinha completado os dezesseis annos quando partiu para a Grã-Bretanha , acompanhado do seu nobre parente . Madame de Nesle recommendou-o tambem á protecção de seu irmão mais velho , o barão de Coislin . Este , fidalgo , tendo casado em Londres com uma rica herdeira ahi residia viuvo , senhor de uma fortuna consideravel . Frederico devia habitar com seu tio todo o tempo que se demorasse em Londres . Madame de Nesle entregou tambem seu filho ao cuidado de Alberto Beaupré , que o acompanhou para Dover . ALBERTO BEAUPRÉ . Não fallàmos mais do pequeno Alberto Beaupré . E comtudo a sua infancia a não foi tão obscura como devera ser a do humilde neto de um pobre jardineiro ! ... Nos primeiros annos Anselmo consentiu , mau grado seu , em que a creança fosse , educada longe das suas vistas ; porém , o brio de Ánna foi profição ao joven Alberto , que recebeu as lições das primeiras letras com um dos mais habeis professores de Frejus . Alberto ia visitar seu pae de tempos a tempos , mas voltava sempre para casa de sua tia . Anna finalmente accommodou seu sobrinho em casa de um tira negociante . Alguns annos depois o joven Becaipré minha de estado casando-se com uma rapariga dos arrabaldes da ridade . Theresa era filha de uma lavadeira , conhecida pelo nome de Joanna a Briosa . A boa mulher offereceu aos noivos a sua casa para assistirem juntos , em quanto seu genro ajuntava o dinheiro necessario para comprarem uma pequena herdade na provincia . A mãe||_Joanna Joanna|_Joanna , como a tratavam os visinhos , tinha muitos filhos ; os dous mais velhos haviam feito toda a campanha da ltalia . Alberto , quando visitava sua futura sogra , começou de enthusiarmar-se pela gloria militar com seus cunhados ; a boa lavadeira era fanatica por Napoleão , e ao domingo , quando jantavam juntos a sua sopa saborosa , junta com mais alguns petiscos d' aquelle dia , a mãe||_Joanna Joanna|_Joanna levantava-se com o copo na mão , e brindava ao general Bonaparte . Foi na companhia de seus futuros cunhados que Alberto assistiu á grande festa dedicada ao heroe da França em dezembro de 1797 . Por esse tempo a toga consular e a purpura imperial não tinham ainda attennado o genio emprehendedor do vencedor da Italia : Bonanarte era o objecto do enthusiasmo universal da França ; o directorio exagerou mesmo a sua gratidão por meio de uma festa triumphal e pomposa , a qual teve por pretexto a entrega do tratado de Campo Formio . Celebrou-se no Luxembourg em presença de todos os representantes das nações estrangeiras . No centro do grande largo estava erigido o altar da patria , decorado com as estatuas da liberdade , da igualdade e da paz . As bandeiras tomadas ao inimigo pendiam em fórma de docel sobre os cinco directores , os quaes estavam vestidos em costumes antigos , esplendidos . Bonaparte , então amado prestigiosamente como o grande defensor da republica , eclipsava todo este luxo fardado simplesmente com o uniforme de Lodi e dArcole . A presença do heroe , e o seu bello discurso , em que elle imprimira o sello do republicanismo mais ardente , fascinaram vivamente o mancebo ; Alberto tinha apenas vinte annos . Elle uniu a sua voz ao brado da grande nação , invocando a gloria e a santa liberdade ; mas , interiormente , estava vexado de ser um homem , de se sentir com animo e coragem , e de ver-se ali como simples espectador das brilhantes façanhas do seus compatriotas . Em 1798 , um anno depois desta epocha memoravel , o joven Beaupré achava-se casado em companhia de sua sogra . Foi então , que as desintelligencias que existiam entre o directorio e Bonaparte determinaram o governo a dispor secretamente todos os preparativos da expedição do Egypto . Espalha-se subitamente por toda a França a a noticia de que trinta mil soldados , e dez mil marinheiros , se reunem nos portos do Mediterraneo , e que um grande armamento se está aprestando em Toulon . Alberto sente agora despertar-se em sua alma um impulso irresistivel ; não diz nada a sua esposa , e parte para Montpellier . É a seu pae que elle vae abrir o seu corarão ; a sua vontade depende do conscuso paternal : implora com lagrimas , intercede com gestos , com meigas palavras , de joelhos , aos pés de seu pae , que abençoe aquelle seu irresistivel desejo de atravessar os mares em busca de um futuro glorio so ; que a sua mocidade e a sua vocação lhe promettem ! o que havia de Anselmo fazer ? Se a Providencia de certo ateara no coração do mancebo aquella fortissima vocação ! O pobre homem , pois , com o rosto babado em copiosas lagrimas , limitou-se a lançar a benção sobre a cabeça de seu unico filho . De volta a Frejus , Alberto descobriu o segredo a sua sogra , encarregando-a de o transmittir á sua Theresa , a quem não tinha valor de o revelar . Á excellente mulher custou a imprimir na alma de sua filha os seus sentimentos varonis . A virtude e a paz só poderiam tomar assento na alma serena de Theresa ; ella era naturalmente dotada de um grande fundo de bondade e rasão . Estas qualidades , quando se reunem , procuram sempre o bem , e um dos mais preciosos e a resignação . Theresa chorou e risignou-se . No primeiro de maio de 1798 Alberto foi alistar-se em Toulon nas tropas que ali estavam á espera de Napoleão . No dia 19 do mesmo mez a expedirão fez-se de vela para o Oriente . Amelia E ALICIA . Dois mezes depois da partida de seu filho . a condeça de Nesle saíu de Montpellier a visitar uma amiga da sua infancia , a qual , tendo a sua principal residencia em Avignão , achava-se então em um bello campo nas margens do Durance . A marqueza de Fermont-Comnène era dotada de um caracter similhante ao de Lucia de Nesle ; ellas tinham vivido quasi sempre juntas na primavera da vida , pois que os paes a marqueza eram tambem naturaes de Montpellier . Estas respeitaveis damas , ambas viuvas , não se tinham visto mais desde a sua separação , por occasião do casamento da condeça : ellas tinham já bebido ambas até ás fezes o calix da amargura ! A marqueza apresentou á sua amiga as suas duas interessantes filhas Amelia e Alicia . Amelia , que era a mais velha , tinha dezesete annos . Seus olhos e cabellos negros faziam um bello contraste com a sua fina e branca tez , levemente rosada . Ella tinha tanto donaire no seu porte e gesto , que a educação brilhava á primeira vista , a par da sua belleza . A formosa creança que acompanhava esta donzella apenas tinha treze annos ; sua figura inda infantil compunha-se de um raro mixto de córes , de graças e de doçura : tinha o poder de fascinar na sua innocencia ; não se podia decidir d' onde vinha o encanto , porque todas as suas feições eram bellas ; a contemplação permanecia vacillante nesse mysterio de formosura , confundido na graça , na ingenuidade , na languidez da confusão , e na mais perfeita serenidade . Seus olhos tinham uma cór indecisa entre o verde e o azul ; esses bellos olhos vagueavam inecertos como o seu pensamento ; longas e sedadas pestanas negras os escondiam inteiramente às vezes , quanto , na sua caudida modestia , ella se suppunha objecto de admirarão , o que esparzia novo colorido sobre o seu rosto . A bôca era breve , expressiva , e animada sempre do meigo sorriso que lhe era natural . Alicia não tinha recebido a sua educação nas salas de seus paes , como sua irmã mais velha : o desgosto que causara ; marqueza o triste acontecimento da sua viuvez a decidiram a confiar inteiramente a infancia da sua joven filha ao cuidado de uma veneranda religiosa , soror||_Angelica_Romana Angelica|_Angelica_Romana Romana|_Angelica_Romana ; mulher de grande instrucção e virtudes . A menina vinha passar sempre um mez de ferias com sua mãe no campo . Alicia era o enlevo de sua irmã , que se aprazia em enfeitar de flores aquella figura de anjo ; e quando ella a trouxe , orgulhosa pela mão á hospeda de sua mãe , esta julgou ver diante de si uma apparição celeste ! " Quem derramou tão lindas flores sobre o vosso cabello ? Quem sois , menina ? " exclamou madame -- Nesle , extremamente surprehendida : -- " Sois vós d' esta terra , e , porventura , amiga ou afilhada de madame -- Fermont-Comnéne ? " continuou a dama sentindo-se como attrahida pela interessante menina . -- " Eu sou Alicia " , respondeu graciosamente a menina , redobrando-lhe a vermelhidão no semblante . -- " Vós sois a filha mais moça da minha cara Adelaide ? disse a condeça ; sê-lo heis tambem minha , e desde hoje vos consagrarei a mais particular affeição ! As férias de Alicia duravam sempre um mez ; os seus estudos não lhe permittiam demorar-se mais . As despedidas eram sempre lacrimosas ; madame -- Nesle , apertando-a contra o seu coração , em uma ardente supplica invocava a Deus , que sabia dos seus desejos e projectos sobre o futuro d' esta menina . As duas irmãs não tinham de viver juntas muito tempo ; a mão de Amelia estava promettida a um joven lord catholico , de uma antiga familia , muito relacionada com a do definito marquez de Fermont-Comnène . O casamento estava fixado para o mez de setembro do seguinte anno , e sò por esse tempo é que soror||_Angelica Angelica|_Angelica dava por acabada a educação da sua pupila . Madame de Nesle demorou-se até outubro em casa da sua amiga ; estas duas senhoras não se separaram sem promessa solemne , da parte da condeça , de que viria honrar com a sua presença o noivado do bella Amelia . -- " preciso que tu faças apromptar mais um quarto para o meu filho , que ha de vir por esse tempo . " Madame de Nesle dizia estas palavras com um ar de intelligencia que parecia ser perfeitamente comprehendido . LORD CLARK Frederico escrevia extensamente a condeça ; em Londres demorou-se dous mezes em casa de seu tio , o qual hospedou tambem mr. de Valmont . Tendo viajado mais tres mezes pela Inglalerra , passou á Italia . As cartas datadas de Roma . em junho do seguinte anno , tinham já certo cunho de elegancia ; as suas despezas começavam a declinar ; Frederico estava encantado da bella e pittoresca patria do Tasso . Fallava com enthusiasmo dos deliciosos saraus , das maneiras attrahentes , e encantos fascinantes das romanas da alta sociedade . Um triste presenlimento perturbava às vezes o prazer com que a illustre dama percorria estes escriptos : a mocidade e a inexperiencia de seu filho achar-se-iam-porventura n ' aquelle momento ladeados pela immoralidade , ou , peior ainda , pela capciosa astucia ? ! Iria ao sou encontro o amor ? ... Amaria Frederico com ingennidade , com fé , com ardor ? A soledade d' esse coração , que jamais servira do guarida ao vicio , seria um digno templo para a affeição ? Ah ! não quizesse Deus , que a falsa imagem da innocencia , fosse occupar esse puro sanctuario ... isso fôra a desgraça completa da sua vida : Frederico não poderia seriamente amar mais de uma vez . Por uma especie de capricho , madame -- Nesle nunca tinha mencionado nas suas cartas o nome de Alicia ; ella queria fazer uma surpreza maior a seu filho , para o bom exito dos seus desejos . Queria vê-lo em Franca infallivelmente no proximo setembro , para assistirem ambos ao noivado da bella Amelia de Fermont-Comnéne . O joven conde annunciou a sua volta até fins de agosto ; porém , a auciosa mãe esperou dias e dias dehalde ; o mez e setemhro ia já em meado , e nada de noticias de seu filho ! finalmente resolveu ir espera-lo em casa da sua amiga . O dia do noivado tinha-se fixado para 2 de setembro ; Alicia saia do convento tres ou miatro dias antes . A marqueza apresentou á sua amiga o futuro esposo de sua filha . Sir Oliver CIare era um cavalheiro alto e garboso ; ainda que , examinado mais attentamente , tinha nas maneiras um certo francezismo , fóra do seu natural , e que transtornava perceptivelmente a harmonia daquele verdadeiro typo do lord . A sua amabilidade parecia exagerada , e como um atavio de apurada gentileza . Comtudo , não era isto um defeito , mórmente na idade do joven lord , e com as pretenções que tinha de agradar a uma bella menina da França . Madame de Gouvion-Saint-Cyr , irmã de Adelaide de Comnène , veiu de Montpellier , com seu marido e filho ; assistir à alegre festividade do casamento de Amelia . Uma noite que o lord jogava com as duas damas e mr. de Gouvion pae , o joven Alfredo entrou na sala com a interessante Alicia , que vinha de deixar para sempre o santo asylo da sua infancia . A menina apresentou-se com o grosseiro vestuario de lã parda das pensionistas , preso na cintura por um largo cinto de coiro ; ella tinha tirado o chapeu pelo caminho para evitar o calor ; os cabellos côr de azeviche , puchados para traz , caíam-lhe naturalmente em longos aneis pelas costas , deixando inteiramente livre a sua testa esbelta , e seus bellos olhos , cercados por uma pequena orla vermelha , desenhando com evidencia o rasto ainda recente do pranto . A pobre Alicia tinha chorado muito á sua despedida do convento ! Suas lagrimas renovaram-se quando ao aproximar-se á mesa ella abraçou a marqueza sua mãe ; mas este era agora um pranto indefinivel , um pranto misturado de risos ... e ao mesmo tempo lançava olhares de ingenna curiosidade para o joven lord , que não conhecêra ainda , mas que sabia pela informação de seu primo Alfredo , ser o seu futuro cunhado . Lord Clare não exagerou desta vez a sua admiração , porque a sentia ; porque , quando ella é verdadeira , escaceiam-nos as expressões . Amelia e Alfredo foram ambos mostrar á joven Alicia o quarto que lhe era destinado . Este aposento estava elegantemente adornado com a mobilia que compõe o toilette de uma donzella nobre . Tudo lhe agradou , porque tudo era novo e bello ; mas o seu bom coração , sentido de uma doce saudade , a incitou a mostrar a estes bons amigos , os parentes , as galantes bagatellas , com que fora brindada á sua saída pelas santas moujas . Assim , uma por uma , foi ella expondo aquellas reliquias da amisade , e sobre cada uma fazia a explicação do nome e occupação da religiosa de quem a recebêra : uma lhe arrancava um leve suspiro , sobre outra derramava uma lagrima ... Eram rozarios de contas ; algumas imagens das santas ; emfim , tudo piedosas dadivas , devotamente estimadas pela docil educanda , cujos principios religiosos haviam sido a base fundamental da sua educação . O BAILE . N ' uma tarde tempestuosa do mez de outubro , a casa terrea de Joanna a Briosa , estava cheia de gente ; a casa compunha-se de um quarto grande , mais duas alcovas , e a cozinha , que era tão grande como a sala . Havia à entrada um vasto terreiro lageado , onde a familia trabalhava á sombra , em quanto as roupas enxugavam em um bello prado arrelvado da propriedade ; porém como tinha choviscado , os amigos , compadres , parente e visinhos da mãe||_Joanna Joanna|_Joanna , haviam sido recebidos igualmente na sala e na cosinha . Napoleão tinha desembarcado n ' aquelle dia em Fréjus , e o general Lannes trouxera consigo Alberto , e um de seus cunhadps . Os amigos de Joanna vinham congratula-la d' esta vinda inesperada , e ao mesmo tempo consola-la da morte do outro seu filho , victima da peste , no deserto . Ora , Joanna , como já dissémos , era grande enthusiasta do heroismo guerreiro ; e poderia figurar a par das mais celebradas amazonas dos antigos tempos . Este fim glorioso , ou esta morte honrosa , do filho , que ella trouxera no seu ventre , em vez de abater-lhe o animo , estampára- lhe no semblante um certp ar de orgulho maternal ; e querendo ostentar uma firmeza e gravidade , aliás quasi impossiveis após um tão grande desgosto , via-se obrigada a todo o momento a enxugar com a ponta do avental as lagrimas que atraiçoando a sua coragem , se lhe deslisavam pelas faces . Ás quatro horas uma carruagem parou á porta da lavadeira ; d' ella sairam um joven e gentil cavalheirp , e outro sujeito mais idoso . O mancebo perguntou a um dos que se achavam à entrada , se era verdade que Alberto Beaupré , genrp de Joanna , a Briosa , tinha vindo n ' aquelle dia com Napoleão ? -- Obtida resposta affirmativa , elle entrou com o seu companheiro . -- " Alberto , é teu pae ! " -- exclamou Theresa , e n ' um momento se acharam nos braços um do outro . Seguiu-se uma interessante conversação , interrompida apenas pelas empathicas expressões da mãe||_Joanna Joanna|_Joanna , mais ufana agora por ter em sua casa um nobre descendente d' esses antigos Nesles decantados nas bellas legendas que ella sahia de cór . Algum tempo depois Anselmo voltou-se para seu amo , dizendo-lhe : -- " Senhor||_Frederico Frederico|_Frederico , eu estou ás vossas ordens : Montpellier ainda nos fica bem longe . A estas palavras , Theresa Beaupré levantou-se , e fazendo uma respeitosa reverencia dirigiu-se a Frederico , dizendo : " Eu vos peço perdão , senhor conde , mas se é vossa mãe que ides procurar a Montpellier , ella não está lá . " -- " E onde está ella ? " perguntou o mancebo . -- " Em Avignão , continuou Theresa . Tive a honra de visitar a senhora condeça : e ella disse-me que ia passar uns dias n ' aquella cidade ; a filha da marqueza de Fermon-Comnène devia casar-se no dia 2 : poriam vossa mãe havia promettido demorar-se até amanhã dia do grande baile . O tempo tinha melhorado um pouco , e em quanto elles fallavam ouvia-se a vozeria da povoação -- Frejus , soltando estrondosos vivas ao conquistador do Egypto e ao libertador da França . Frederico veiu-lhe repentinamente á idéa fazer uma surpreza a sua mãe . Resolveu-se acompanhar Napoleão até Avignão . Partiu pois ás seis horas da tarde , juntando-se á comitiva que acompanhava Bonaparte . Tendo passado o dia seguinte em Aix , foi a 10 de outubro que chegaram a Avignão ás duas horas da tarde . -- " Não sabes o pensamento que tenho disse Frederico ao seu aio quando chegou áquella cidade : -- " nós vamos jantar a uma hospedaria e eu me-hei a minha mãe á hora do baile com Bonaparte , que sem duvida ha de ser convidado ! De feito , Napoleão não perdia occasião de apparecer em publico , e a marqueza de Comnène que era uma das notabilidades de Avignão , aproveitou a opportunidade de examinar de perto o grande heroe da epocha ; que havia sido recebido na cidade com festas extraordinarias . As dez horas da noute Bonaparte honrou com a sua presença o baile , acompanhado do general Berthier : Frederico seguia-lhe os passos . As danças inglezas estavam então muito em moda , e lord||_Clare Clare|_Clare abria uma das alas com Alicia . Frederico que se tinha encontrado com o lord em Londres , não duvidou que a noiva fosse o seu par e na sua passagem teve a curiosidade de observa-la . N ' esse momento elle ouviu o seu nome , e a voz de sua mãe que ali estava sentada . Madame de Nesle tinha escolhido aquelle logar que era na cabeceira da contradança para rever-se na encantadora Alicia que estava vestida igualmente como a noiva , á excepção dos diamantes , que eram substituidos com flores artificiaes . Os cabellos tinha-os ricados e empoados , e um vestido de rico estofo dava á sua belleza um cunho singular e deslumbrante . -- " Tu enganaste-me bem , disse a boa nãe ; as bellezas da Italia , Frederico , faziam-te quasi esquecer das velhas amigas da França ! " Frederico sorriu-se , e contou-lhe como tendo sobrevindo uma grave febre a mr. de Valmont , o não pudera deixar senão qasi restabelecido . Que por motivo d' aquella grande molestia , tendo M. de Coislin decidido demorar-se em Italia mais uns mexes , elle havia deixado Roma e todos os seus attractivos para regressar á casa de sua mãe de quem se não podia mais separar . Estas palavras restituiram o socego á condeça ; ella perguntou depois naturalmente seu filho , que tal achava a noiva . -- " É formosisiima , minha mãe ! " respondeu elle , contemplando Alicia ! N ' esse momento deu fim a contradança , e foram todos saindo d' ali com a noticia da chegada de Napoleão . Frederico ficou quasi só na sala com sua mãe . Lord Clare , que tinha conhecido o joven conde , foi logo depois da dança procurar sua esposa , e veiu apresentar-lh ' a , e comprimenta-lo . O mancebo conheceu que se tinha enganado com o par de contradança do lord , mas não se deu por entendido , e Amelia correu a annunciar a chegada inesperada do conde a sua mãe . -- " Quem era pois aquella menina com quem dançava lord||_Clare Clare|_Clare ? " -- perguntou Frederico á conheça : -- " A outra ? lhe tornou ella vivamente : é a joven Alicia ; é a minha querida filha ... " Estavam assim praticando quando madame -- Fermont-Comnène entrou na sala com suas duas filhas . Frederico beijou respeitosamente a mão da marqueza , e esta dirigindo-se a sua filha mais moça , disse-lhe , apresentando-lhe o mancebo : -- " Alicia , eis-aqui o conde de Nesle : é um inimigo que te vem remover do logar que occupavas no coração da tua boa amiga , madame -- Nesle . " Frederico , um puco perturbado , balbuciou um cumpriento , e pediu ao mesmo tempo a mademoiselle -- Comnène a honra de dançar com elle é seguinte contradança . O SEGREDO . Deus escutou os votos da boa Lucia de Nesle ; no fim dos oito dias que ainda se demorou com seu filho em Avignão , mademoiselle -- Comnène tinha ganhado decididamente a affeição do mancebo . As viagens haviam modificado os antigos habitos do joven conde . Suas maneiras tinham agora aquella gentileza e desembaraço que se adquire no grande mundo : mas de lá trouxera elle uma grande reougnancia ao estudo , e a toda a applicação de que ainda tinha grande mister . Elle tinha visto de corrida e superficialmente homens e os differente usos não tinha porém aprofundado o seu caracter voluvel , eivado de tantos egoismos e falsidades ! Desgraçadamente , na sua primeira educação , sua mãe sempre curava de lhe esconder o revesso da medalha e Frederico costumou-se a regular pelas apparencias ! Este innocente erro da sua primeira instructora poderia ser-lhe ainda mais fatal na primavera da vida . Fascinado pelo brilhantismo das idéas em voga , elle teria sido levado pelo turbilhão de abuso , de erro em erro , e do precipicio ao abysmo se a meiga e innocente creatura que tão fortemente o captivou na passagem não lhe tivesse vindo ao encontro , como uma barreira , entre a sua mocidade e o contagio dos maus exemplis . Alicia appareceu-lhe como um magico encanto sua imagem breve veiu a ser o seu unico pensamento : as angelicas feições da donzella respiravam divinal bondade : a serenidade da sua alma communicava-se á dos outros ; e o amor que ella inspirava era um amor casto e puro . A mãe e o filho continuaram de guardar o mysterio um ao outro , sobre o objecto principal do pensamento de ambos . Apesar do seu genio reservado , esse era o primeiro segredo que Frederico occultára a sua mãe . Pela sua parte , a condença usava n ' este caso de uma escrumptosa delicadeza . Todavia habituada espreitar a minimas inclinações do filho mui bem sabia o que se passava no seu interior sem o auxilio das palavras . O joven conde havia enunciado a madame -- Nesle em todas as suas cartas o seu desejo de ir occupar a nobre residencia de seu pae em Paris ; e tinham decido durante aquella correspondencia passar o futuro verão no castello d' Ardêche e de lá seguir para a capital . Depois dos oito dias passados em Avignão , Frederico não tornára a ver mademoiselle -- Comnène mais do que uma só vez e rapidamente na sua passagem por aquella cidade , sob o pretexto de uma jornada a qual não tivera tido outro fim . Corria o mez de abril -- 1800 . Uma manhã que o conde folheva um volumoso livro , madame -- Nesle disse pausadamente a seu filho que achava bom que elle fosse até Ardêche para presidir a cartas obras que tencionava mandar fazer nos aposentos do castello . -- " Eu devo dous verões de amavel hospitalidade á miha cara Adelaide , e como vou para Paris , e provavelente não nos encontraremos mais n ' este mundo , ( disse maliciosamente a condeça ) lembro-me que na tua viagem podias passar um dia em Avignão para convidar da minha parte madame -- Fermont-Comnène e a minha querida Alicia a acompanhar-nos ao castello , aonde faremos juntos umas longas despedidas . " -- " Minha boa mãe , disse o mancebo , alegre e ao mesmo tempo desgostoso do astucioso rodeio da condeça : -- eu era bem novo quando sai de lá podém vós me assustaes com a idéa de Paris . Essa grande capital me-ha um cemiterio se formos viver ali longe dos entes que mais amâmos . -- Se me dizeis que indo para Paris não tornarei mais a vêr ... " -- " quem ? -- tornou a condeça apertando ternamente a mão do filho : -- " amas tu algem na provincia ? -- eia , diz-me , Frederico : tu não deves ter segredos para tua mãe ! " -- " Minha excelente mãe , exclamou o mancebo , ajoelhando aos pés da condeça : -- " ella merece-vos uma particular affeição e é por isso que a amo dolorasamente ... vós adivinhastes ; vosso filho devia amar infallivelmente Alicia ! Frederico partiu , com effeito e voltou por Avignão . No aicado de maio a pequena comitiva do conde de Nesle foi pernoitar n ' aquella cidade , e d' ahi saiu no dia immediato , augmentada com a amavel familia de Fermont-Comène . A viagem foi feita vagarosamente para se poder mostrar o paiz a mademoiselle||_Alicia Alicia|_Alicia . Chegaram ao castello n ' uma bella manhã ás nove horas . Raoul de Nesle havia sido enterrado na antiga capella que ficava um pouco desviada da casa . Madame de Nesle tinha mandado ali plantar alguns ciprestes e dispor um pequeno jardim . A viuva encaminhou-se na direcção do ultimo jazigo de seu esposo em quanto o novo conde de Nesle conduzia a casa as suas hospedas , seguido da alegre turba de seus numerosos caseiros . A DECLARAÇÃO . Frederico estidava todos os meios de agradar á joven Alicia sem lhe fallar de amor . Dous caminhos conduziam ao coração da educanda das Ursulinas : o amor de Deus e a caridade com o proximo . O conde tinha aprendido a amar a Deus com sua mãe , e os piedosos exemplos de Alicia fizeram-no voltar aos santos exercicios da sua infancia . Mademoiselle de Comnène tratava com meiga lhanez os seus inferiores , e até folgava de conversar com Margarida , mãe do guarda-portão do castello . Posto que já um pouco idosa , Margarida trazia sempre para assumpto da conversação os tempos da sua mocidade ; e como ella se complicava com as de seus defuntos patrões , a menina ouvia a todo instante as mil bençãos de que a pobre mulher acompanhava sempre o nome venerando do pae de Frederico . Alicia começou de affeiçoar-se ao filho , por causa do pae ; além d' isso ella tinha observado que o coração de Frederico era excellente . Ao cabo de dois mezes de convivencia , o conde de Nesle entrava no precioso catalogo das amisades de Alicia , a par de sua mãe e irmã de madame -- Nesle e das religiosas de ... Porém a convivencia não durou só dois mezes , prolongou-se até cinco e era chegado o fim de outubro , prazo fixado para uma longa e talvez eterna separação . Uma manhã Frederico entrou triste e pensativo no gabinete da condeça . -- " Minha mãe , disse elle , Alicia está só no jardim ; ide lá agora mesmo , e fazei-lhe comprehender com as vossas palavras os meus verdadeiros sentimentos : bem vêdes que a nossa separação está proxima ... " Sim , filho redarguiu a condeça : e receias que outro mais feliz te tome a dianteira . Eu vou ao que me pedes , mas vem tu comigo : o negocio é delicado e a tua presença será necessaria ... O mancebo calou-se , e seguiu sua mãe . Alicia mal avistou madame -- Nesle , veiu-lhe ao encontro . -- " Minha filha , lhe disse a condeça , vêde como Frederico apresenta hoje um ar demudado e triste ! -- Teve um mau sonho esta noute ... sonhou com+vós : -- a condeça fez uma pequena pausa e depois prosseguiu : -- " Frederico sonhou que tendo vindo visitar-vos á vosse casa de Avignão , para mitigar saudades da sua joven companheira d' Ardêche , vos achára casada com um estrangeiro que vós amaveis certamente mais do que ao meu pobre filho ! A condeça usou d' aquelle estratagema para servir de premiliminar ao melindroso asumpto que tinha de tratar . Mademoiselle de Comnène dirigiu immediatamente os formoso e expressivos olhos para Frederico , e ficou confusa com aquella tristeza e seriedade . Ella não accertava bem com o que devesse responder ; mas tendo pensado um momento , disse o que naturalmente sentia . -- " Repugna-me , e repugnará sempre a idéa de ir para longe como Amelia , e dizer um longo adeus a uma mãe , e aos amigos do coração : mas esse susto não me contrista : minha boa mãe não tem aogra mais do que esta filha ... " -- Frederico a interrompeu , dizendo : -- " Vejo que não sou d' esses felizes amigos do vosso coração , mademoiselle -- Comnène ; vós fallaes de separação mas não do nosso proximo adeus ... -- eu não sou dos vossos escolhidos ... " -- " Não sejaes ingrato , respondeu a menina com os olhos arrazados de lagrimas ; -- se tivesseis uma irmã , mr. de Nesle , ella não vos amaria mais do que eu ! -- " Alicia , eu não sou vosso irmão , mas posso ser vosso parente inda mais proximo ; dizei-me : terieis grande repugnancia em chamar-me vosso esposo , e repartir o nosso futuro entre a vossa e a minha boa mãe ? " -- " Nenhuma , lhe respondeu francamente a donzella : a minha futura felicidade parecêra- me mais segura comvosco do que com qualquer outro homem . Mas isto , aqui para nós , continuou ella graciosamente , não passa de um brinquedo : minha mãe não quererá tão cedo annullar os seus direitos sobre a sua Alicia ... " -- " Mademoiselle de Comnène , redarguiu o mancebo , vós já me dissestes a verdade , e não deveis retractar-vos . Vamos procurar vossa mãe ; e necessario que este nogocio fique decidido hoje mesmo . " A respeitavel marqueza de Fermont-Comnène gostava de ver bem estabelecidas as suas duas filhas ; mas esta segunda alliança fôra por ella desejada ardentemente , antes mesmo de ella occorrer aos dois . O NOIVADO . Tres dias antes da separação das duas familias , fez-se o contrato de casamento . Em junho do anno seguinte Alicia e sua mãe deviam achar-se no castello d' Ardêche , e n ' esse mesmo mez mademoiselle -- Comnéne seria condeça de Nesle . A marqueza , não podendo resolver-se a deixar a sua socegada vida d' Aviguão , onde tinha a seu cargo uma numerosa familia de viuvas e orphãos desvalidos , devia passar com sua filha os verões no castello d' Ardêche . O conde passou o inverno quasi sempre em viagens de Paris para Aviguão , o logo que veiu a primavera , a mãe e o filho deixaram a capital , porque tinham preparos e arranjos a fazer no castello para a recepção dos hospedes . O casamento fixou-se a final para o dia seguinte ao da chegada da marqueza . O conde , para fazer uma agradavel surpreza á sua noiva , tinha mandado arranjar um largo terrado debaixo das janellas , onde estava preparada uma rica illuminação ; nella se representava o nome de Alicia , em grandes caracteres . Este largo era destinado a um grande banquete para os pobres lavradores ; e as compridas mesas já ali se adiavam dispostas . Os habitantes d' Ardêche celebraram alegremente a manhã daquele dia com rusticas musicas , cantigas , e seus costumados tiros de pistola . Mr. de Gouvion-Saint-Cyr e sua familia , e mr. de Valmont foram os convidados . Ás quatro horas da tarde Alicia desceu ao cerrado com seu joven esposo , para fazerem as honras e ajudarem no serviço do grande jantar . A caridade animava as graciosas feições da nova condeça ; os diamantes que lhe emnolduravam o mimoso rosto não podiam augmentar a sua formosura , mas harmonisavam com ella ; o seu vestido de uma lina gaze branca , listrada de prata ; acabava de illudir a imaginação , que a mirava como uma deslumbrante apparição ; mas os simples camponios , que não sabem dessas idéas poeticas , julgavam ver n ' ella a imagem dos anjos , que elles suppunham deviam ser tambem bellos e vestidos com aquelles esplendidos trajos ! -- " Don graças ao Senhor , dizia a boa Margarida , contemplando Alicia , de ter vivido até agora para ver cá na terra tanta belleza e gloria ! " A festa terminou á noite com uma esplendida illuminação no terrado . Tres mezes mais tarde , quando Frederico , passeando com sua joven esposa , lhe dizia que o mundo podia ainda offerecer-lhes a felicidade completa , mal pensava elle que as suas alegrias iam ser cortadas pela mais profunda e inconsolavel dor ! A morte de Raoul de Nesle tinha deitado doloroso vestigio no sensivel coração de sua esposa ; a saudade que elle não podia mitigar , consumia-a de dia para dia , e cada vez as suas forças se debilitavam mais . Lucia não presentiu o seu proximo fim , como o defunto conde : -- a parca foi subitamente cortando-lhe um após outro os nós da vida ; -- e a condeça falleceu quasi repentinamente no mez de Agosto , no centro de uma felicidade invejada , e quando as avesinhas , as arvores , e os campos pareciam ainda festejar o consorcio de seu filho ! ... Frederico era por natureza extremoso ; e extremoso era o seu amor filial : a sua dor foi grande , immensa ; e houvera talvez sido inconsolavel , se Alicia não existisse . A marqueza de Fermont-Comnéme foi porventura uma das grandes consolações do joven conde , que n ' ella depositou , se não todo o amor , todo o affecto que tributara a sua chorada mãe . O conde e sua esposa demoraram-se no Languedoc , apenas o tempo do nojo ; Alicia acompanhou para Aviguão madame -- Fermont-Comnèue , e tendo-se demorado com ella ainda um mez , partiu para Paris com seu marido . A CAMPONEZA . Era uma bElla e alegre manhã de maio . Nos arrabaldes da cidade -- Livron , pela estrada que segue parallela á margem do Drome , caminhava uma mulher . Seus passos às vezes apressados , como quem forceja por ganhar caminho , augmentavam-lhe a fadiga que lhe tingia o rosto de vivas côres ; a pobre mulher , de mais a mais , trazia nos braços uma creança de quatro ou cinco annos , que com a cabecinha reclinada sobre o seu hombro esquerdo , ahi adormecêra . De vez em quando parava , não para dar descanso ao corpo , mas ao espirito , como quem precisa reflectir ; e então , voltando-se para traz , percorria rapidamente com a vista todo o espaço ; e não vendo aquillo que esperava ou receiava , proseguia novamente no seu caminhar . Assim atravessou campos cultivados , e cobertos de vigorosa vegetação ; immensas searas que , balouçadas pelo vento , imitavam a oscillação das ondas no oceano , e onde as borboletas de mil côres achavam breve pousada ; grandes espaços de terreno , que jamais fôra rasgado pelo ferro , mas que a natureza vestira de verdura , humedecidos em parte pelas copiosas fontes , cujo suave murmurio era o unico som que interrompia o severo silencio d essas deliciosas solidões . A nossa viajante , depois de ter andado assim pelo espaço de tres horas , entranhou-se por uma espessa mata , e ahi depondo sobre a relva a sua innocente companheira de viagem , tirou de um pequeno saco de esteira de palha um pão branco e algumas broas , provisão que trouxera para a viagem . Então sentou-se ao pé da creança para ambas almoçarem . A mulher parecia ter seus trinta annos , ou pouco menos . Seus trajos eram de camponeza ; mas a finura da pelle , e a pouca firmeza com que trilhava os caminhos , tropeçando militas vezes nos silvedos e nas raizes enlaçadas que avultam pelos campos , indicavam não ter ella sido creada no campo . Seus olhos grandes , azues , e cercados de negras pestanas , revelavam certa intelligencia , pouco commum entre a gente ordinaria ; não a distinguiam menos o seu aspecto sereno e resignado , os seus gestos meigos e delicados . Trajava um vestido de lã escura ; um alvissimo terço , cujas pontas cruzadas sobre o peito iam atar-se ás costas , deixavam ver a sua garganta esbelta . Calçava botas á moda do campo , e uma toalhinha branca lhe resguardava a cabeça do sol . -- " Vamos , minha filha , disse a nossa viajante ; tu deves ter fome : come d' estas broasinhas ; merquei-as para ti . " -- " O minha mamã , disse a creança , não tem café lá em baixo quentinho ? -- e diga-me , continuou ella , com a innocente loquacidade da infancia ; se eu nunca for desobediente e má , compra-me tão bellos vasinhos de porcelana , como os que me dava a outra mãesinha ? " -- As ultimas palavras da creança causaram um involuntario estremecimento á sua companheira ; mas tendo elevado um momento os olhos ao ceu , voltou-os risonha para a galante menina , e beijando-a uma e outra vez , lhe disse : -- " Minha Maria , terei sempre sopinhas quentes de leite para o teu almoço : te-hei muitas cousas bonitas quando o mereceres , e serei sempre muito tua amiguinha , assim como teu pae e irmãos : -- não te lembras o que te eu disse ? -- minha filha , tu tens uma irmã ... " " Sim , respondeu a creança ; a mamã disse-me que eu tinha uma irmã , Luiza , e que era da minha idade : mas onde está o meu papá ? -- " Longe , muito longe , disse a mulher ; com os olhos arrazados de lagrimas . Depois , acabada a singela refeição , a camponeza ergueu-se e ajoelhou de mãos postas . A creança imitou-a immediatamente naquella reverente postura ; e os passarinhos , que sobre as arvores gorgeavam harmonias , pareciam partilhar nesta acção de graças da creatura , soltando pelos ares seus hymuos ao Universal Creador ! Acabada que foi a oração , a camponeza tomou novamente nos braços a menina , e seguindo a mesma vereda por onde tinha entrado , saiu em pouco tempo da sombria floresta . Teria andado obra de meia hora , quando chegou a uma estrada assas frequentada . Passavam jumentos carregados com gigas das lavadeiras que levavam as roupas á cidade ; algumas calcças conduziam gente , outras iam carregadas só de mantimentos : vinham tambem algumas vazias . A camponeza aproximou-se ao conductor de uma d' estas ultimas , e propôz-lhe conduzi-la até S.||_Lourenço Lourenço|_Lourenço , pagando-lhe o seu transporte . O homem conveiu , e as nossas viajantes proseguiram mais commodamente na sua derrota . A CARTA . É noute . Entremos agora em uma pequena habitação campestre , são onze horas , um profundo silencio reina nesta casa , e nos seus arredores ; mas num dos aposentos ha luz . Em candieiro de cobre luzidio allumia o quarto ; este candieiro está sobre uma mesa , em a qual avultam alguns utensilios de quem escreve : algumas folhas de papel ordinario , um pequeno tinteiro de louça , e algumas pennas ahi estão espalhadas : quem escreve é uma mulher . Está já assignando uma longa carta , cuja escriptara certamente lhe ha custado algumas vigilias : o nome que firmou foi -- Thereza Beaupré . -- Eis o que ella havia escripto : 2 de Junho do I S.||_Lourenço Lourenço|_Lourenço , no Delphinado . Meu bom marido Alberto : " Fui entregue da carta que me mandaste , em resposta a uma que te escrevêra por occasião das cavas : ha bastante tempo , pois já estamos quasi chegados ás colheitas : e digo-te , meu Alberto , que , apezar do grande atrazo em que nos trazem estas guerras , a nossa França este anno tem pão . " Bem vês donde dato esta carta ; já não te escrevo de Fréjus . Ai ! -- nem sei por onde comece ; tenho tanto a dizer-te ... " Se eu soubera pintar uma bella casa com arvores e verduras , com aguas , e animaes de diversas qualidades , aqui mesmo n ' este papel te enviára trasladada a tua casa e fazenda , como um lindo espelho para te mirares , E a dona da casa , Alberto ? -- a dona da casa eu a poria a cozer sentada ao seu portal com um ramo de ceceus ao peito , rodeada de seus tres filhos ; um rapazote branco e vermelho como uma bella maçã , e duas creancinhas ambas de cinco annos : mas uma d' ellas ... como poderei retratá-la ? nem se pode com pincel ou penna dizer a côr certa do seu mimoso rostosinho , nem dos seus olhos ... e tu , que estás a ouvir este meu aranzel ; tu que mal sabes o que por cá tem havido ; que quando partistes para a fronteira me a deixaste só com um casal de filhos ; certamente não cuidas que sou eu a rainha do palacio encantado , e que essa que te eu pintára , se não fòra tão tosca e escassa a minha expressão , tenra avesinha roubada de tão alto ninho ... " -- é mais uma filha que tens de amar , e que já dorme ha dias debaixo do nosso humilde tecto ! ... " Eu sei a quem escrevo , e tu sabes quem é Theresa : portanto , entre nós nunca existiram , nem jamais existirão suspeitas : a orphã que eu acolhi , e que me chama mãe , vae ser uma tua filha , e estou certa que de lá a abençoarás ao ler esta . " Ora pois ; vou dizer-te tudo . " Lembras-te d' aquelle fraude carvalheiro que está á entrada da nossa casa em Fréjus ? -- depois que partiste affeiçoei-me por tal modo á frondosa arvore , unica que ali havia , que muitas vezes largava os trabalhos domesticos para ir sentar-me junto d' ella sósinha . Desde uee te não a tenho ao pé de mim eu amo a solidão ! " Uma tarde de abril teu pae appareceu-me ali de repente . -- Minha filha , preciso muito fallar-te , e tenho pouco tempo a perder , disse elle com um ar inquieto e melancolico . -- " Aconteceu alguma cousa a Alberto ? -- exclamei eu assustada . -- " Socega , filha , me respondeu : -- " teu marido está bom ; fallei com um sujeito que nos trouxe d' elle noticias -- as cousas vão correndo bem ; Alberto está satisfeito , e já falla correctamente o italiano . " Theresa , continuou elle , vou começar a minha triste narração , com quanto pese ao velho servidor de nobre familia embaciar com o mais leve bafejo o luzente brilho da sua venerada e antiga reputação ! ... A indigna filha de Henrique de Fermont-Comnéne deixou para sempre a casa de seu desgraçado marido ! " Estas ultimas palavras de teu pae abysmaram-me . Bem saltes quanto elle nos elogiava a joven condeça ! -- " O bom Anselmo proseguiu : " Guardae-vos de revelar o vosso coração a todo o homem ( disse um grande doutor da Igreja , se não ao homem moderado e temente a Deus . -- " Theresa , minha boa nora ; no meu coração havia bastante capacidade para a amisade e o segrodo : mas eu vim aqui com outro fim : não desanimes , filha ; e confio que terás forca e resolução para desempenhares a alta e mysteriosa missão , a que o Senhor me enviou hoje a tua casa ! " Sabes que em 1801 meu amo viu-se constrangido a separar-se de sua joven esposa , e a partir para Inglaterra , aonde o chamava um tio materno . Mr. de Coistiu , desenganado dos medicos , deixava-o herdeiro de um immenso cabedal ; naturalmente desejou velo junto a si nos seus ultimos dias . " Eu fui ocular testemunha do desgosto que esta separação causou aos dons esposos . Durante os onze mezes porque se dilatou esta ausencia ( pondo de parte certas palavras mysteriosas , que não me soaram agradavelmente aos ouvidos , e que foram para mim como uma terrivel revelação , os dias da joven condeça passaram-se uniformemente , e numa serenidade que nada parecia perturbar . " Mr. de Nesle tinha deixado sua esposa gravida de pouco tempo , e ao cabo de seis mezes ella deu á luz uma menioa , em casa de sua mãe , em Montpellier , onde tinha ido passar o tempo da gravidez . " Algum tempo depois do regresso de minha ama a Paris , lord||_Clare Clare|_Clare , cunhado de madame -- Nesle , chegou de Inglaterra ; trouxe cartas do conde , e a noticia da morte de seu tio . " Este acontecimento devia prolongar ainda por dois ou tres mezes a ausencia de meu amo . CONTINUAÇÃO DE+A CARTA . " Lord Clare ficou hospedado em casa de sua cunhada . " Vem a pêlo dizer-te , continuou teu pae , que , não sei por que , nunca pude engraçar com o tal lord ! " Aos dezesete annos de idade , no viço dos annos e da belleza , madame -- Nesle proseguiu , como durante o tempo da sua gravidez , de recusar-se a todos os convites das pessoas com quem estava relacionada . Saia umas duas ou tres horas de manhã a fazer visitas , e eu , que sempre a acompanhava nestas digressões , não a seguia somente ao palacio dos grandes , mas com ella transpunha o humilde limiar da indigencia , aonde a condeça levava sempre soccorros e consolações ! -- A maior parte do tempo passava ella entretida nos lavores proprios do seu sexo , ou animando nos braços a filhinha . Mr. Clare saia raras vezes á noute , só quando algum de seus compatriotas o convidava para jantar . Nessas noutes chegava tarde , e subia as escadas cambaleando , e de mau humor : umas vezes atirava ao chão o castiçal que eu trazia para o alumiar ; outras dizia-me más palavras , rematando sempre em os Godams da sua lingua . Uma d' essas noutes , por tal modo veiu embriagado , que queria por força dirigir-se ao quarto da senhora condeça ! " Madame de Nesle , como era muito discreta , não censurava diante dos servos conducta do seu parente ; todavia , apesar da sua grande reserva , pouco a pouco fui percebendo quanto lhe era desagradavel ; a final começou de usar com elle certos modos que denunciavam claramente o seu enfado . No primeiro mez d' esta hospedagem almoçavam e juntavam juntos ; porém a senhora condeça alterou a sua hora de comida : almoçava ás nove horas , quando ainda lord||_Clare Clare|_Clare dormia a somno solto ; jantava pontualmante ás duas , hora em que o seu hospede apenas acabava de espalitar os dentes das viandas do almoço . Madame de Nesle dizia que Ihe convinha esta regularidade ; e que para exercer as funções de mãe era mister ajudar tambem a natureza . O nosso hospede demorou-se dous mezes , e esta mudança da parte de minha ama effectuou-se um mez depois d' ele estar em casa . " Por esse tempo veiu a Paris um primo da condeça , Alfrede de Gouvion Saint-Cyr ; mancebo de genio arrebatado , mas de um coração flexivel como o vime quando verga tenro : -- Denso tenha na sua guarda , e lhe perdoe os erros da mocidade ! " O rosto de teu pae annuiviou-se , e prosseguiu : -- O primo de madame -- Nesle vinha sempre de tarde , e demorava-se parte da noite . " Tratava a todos com a maior affabilidade , valha a verdade ! -- Como era excessivamente folgasão , usava de um continuo motejo com o lord||_Clare Clare|_Clare , com sua prima , e comigo . " Mas o mancebo tambem mudou ao cabo dos quinze dias , espaçando mais as suas visitas , e procurando visivelmente evitar o lord . " Bem se vê que estavam combinados , continuou meu sogro : mas por grande que fosse a minha esperteza , como poderia eu suppor mal de uma senhora , cujo procedimento fôra sempre irreprehensivel ! " Mas um dia era um sabbado por tal signal ) tive alguns passos a dar por fóra : quando cheguei a casa , a senhora condeça estava na sala com seu primo Alfredo , conversando em idioma estrangeiro , e elle parecia teimar em alguma cousa , e batia com a mão na mesa como quem ameaçava ; pouco depois senti-o descer as escadas . " No decurso do dia a senhora condeca mandou-me com uma cartinha á hospedaria onde estava seu primo , rua S. Honoré ; disse-me , que se o não achasse em casa , o esperasse algum tempo , porque carecia muito da resposta . " O sujeito estava em casa , e mandou que me introduzissem no seu quarto . -- " Chamei-te , meu bom Anselmo , me disse elle , porque temos umas contas a ajustar . E dizendo isto , continuava limpando as suas armas placidamente , como quem está em vesperas de uma alegre caçada . -- " Tu és pobre , trabalhas , e pouco gozas , continuou " elle : eu sou vadio , divirto-me , e não me falta dinheiro . Não é bem que sejas meu credor : Anselmo , eu devo-te um chapéu ( elle havia-me rasgado por brincadeira um velho chapeu ) e tirando da algibeira uma boa moeda de ouro : -- " Toma , me disse ; com isto poderás comprar dous ou tres chapeus . Depois escreveu duas linhas á pressa , que me deu para entregar a madame -- Nesle . " Ás quatro horas da tarde , em quanto eu fazia uns assentos no meu quarto , que fica contiguo á casa da entrada , senti os passos de mr. de Gouvion ; demorou-se pouco , e depois , quando descia ... ouvi distinctamente estas palavras da esposa do " conde de Nesle . -- " Alfredo ! se não desistes do teu funesto intento , se teimas em querer morrer por minha causa ... considera que commettes dois crimes ! ... juntas ao suicidio um assassinio : eu não te sobrevivo ! ! . " Teu pae soltou estas ultimas palavras com intonação lugubre e pausadamente , como custando-lhe a proferi-las . CONTINUAÇÃO DE+A CARTA . " Meu pobre sogro guardou por alguns instantes profundo silencio , mas logo reanimando-se , continuou como fielmente te vou referindo ; e com esta já são duas noutes que passo a escrever-te ! " Morreu-me uma esposa que eu adorava ; esse golpe traspassou-me de uma dor agudissima : porém , com o tempo , esta dor se foi metamorphoseando em outra , triste tambem , mas supportavel pela sua doçura ; era uma suavissima saudade , a serena imagem de tua mãe que me acompanhava na minha solidão , que me seguia por toda a parte . " Vi morrer meus amos , continuou o ancião , -- meus caros amos , com quem eu passara folgada mocidade : andei por muito tempo com o coração afogado em tristeza , e chorava sempre que a vista dos objectos que lhes haviam pertencido m ' os recordavam com inextinguivel saudade ! ... soffi muito ! " Não foi assim n ' este ultimo suceesso : aquellas palavras soaram-me aos ouvidos , como evocadas pelas furias do inferno ! " Fiquei como assombrado ! " Mas era sabbado , e eu tinha férias a fazer ; sai a cumprir as minhas obrigações . O lord tinha jantado fóra e veiu muito tarde : a senhora tambem não foi mais vista n ' essa noite . " Parece que uma estranha vertigem se apoderára duma parte dos habitantes d' aquella casa . Eu por mim , não dormi : a senhora explicava-se quasi por acenos ; e o nosso lord , que se recolhêra para casa ao amanhecer , appareceu-me tão cedo e tepido , que quasi duvidei que se tivesse deitado ou despido ! " Ás dez horas chamou-me ao seu quarto ; então soube " a verdadeira causa de seu desusado madrugar . Tinha resolvido repentinamente partir n ' aquelle mesmo dia para " Inglaterra , aproveitando a companhia na viagem de um de seus amigos . Pediu-me que lhe preparasse as malas , mandando-me primeiramente com um recado á senhora condeça , de que desejava fazer-lhe as suas despedidas na sala aonde a ia esperar . " A condeça fez-me repetir duas vezes o recado , porque estava n ' aquelle dia preoccupada ... e com um pequeno esforço respondeu machinalmente que não tardaria . " Chamei Leonardo para me ajudar nos arranjos de mr. Clare com mais brevidade , porque não queria perder uma bella festa que se celebrava n ' esse dia em Nòtre-Dame . Acabado o meu trabalho fui vestir-me com os meus trajos domingueiros . Antes de sair fui receber as ordens da senhora , como era meu costume . " Procurando-a em vão pelos quartos , fui achada de joelhos no seu oratorio , lavada em lagrimas ! -- Ia já retirar-me , porém ella fez-me signal para que entrasse . -- " Anselmo , me disse , com a voz cortada : não posso nem devo sair hoje ... mas tu que podes ir , encommenda nas tuas fervidas orações a alma de meu pobre primo ... Alfredo de Comnéne succumbiu hontem , victima de um imprudente desafio ! " Confio muito na sua salvação , porque uma alma boa está sempre prompta a partir . ! . mas lamento minha infeliz tia , que não tinha outro filho ! " Aquellas palavras foram proferidas com tão fundo accento de verdade ; e o rosto angelico da condeça , no qual a mão do crime não pudera desenhar uma sombra sequer , reflectia tão sincero e profundo sentimento , que tive remorso das minhas suspeitas ; e obedecendo a um irresistivel impulso cai aos pes da senhora -- Nesle , e beijei-Ihe as mãos , que inundei de pranto . " Levantei-me , e sai d' ali triste , é verdade , mas leve do peso que desde a vespera trazia sobre o coração . " Poucos dias depois li na Gazeta a noticia fatal da morte de mr. de Gouvion Saint-Cyr :o duello fôra occasionado por uma forte desavença ao jogo com um allemão . " Meu amo veiu de Inglaterra mais cedo do que se esperava . A senhora condeça festejou a sua chegada como o faria a mais extremosa esposa . " O senhor||_Frederico Frederico|_Frederico continuou como d' antes a seguir o trilho de seus avós e pae : acompanhava sempre madame -- Nesle ás solemnidades religiosas ; era meigo , bom , e generoso com os pobres . " Passados dois annos resolveu fazer uma viagem pela Italia , com sua esposa , por onde se demoraram um anno e alguns mezes . " Meu amo precisou d' ahi a tempos passar á Inglaterra ; e como não se suppunha que essa ausencia fosse prolongada , a senhora condeça decidiu ficar em Paris . " O conde escreveu d' ali regularmente a sua esposa ate 10 de fevereiro ; houve então uma delonga de vinte e sete dias , no fim dos quaes , oh ! Theresa ! exclamou teu bom pae : -- este golpe ainda sangra no meu coração ! " N ' uma manhã , um homem procurou-me , proseguiu elle -- era um inglez ; não sympathico com aquella nacão ! Esse inglez entregou-me duas cartas , que deviam ser-me dadas por mão propria . As cartas eram , uma para mim , outra para madame -- Nesle . entreguei-lh ' a no momento em que se sentava para almoçar . " Madame leu-a rapidamente , e ergueu-se extremainente pallida ; lançou em redor uns olhos indecisos . . , e pousando-os sobre mim ; disse : -- Anselmo ! apertando com a mão o coração ; e depois saiu sem nada tomar de alimento . CONTlNAÇÃO DE+A CARTA . " Fiquei , continuou teu pae , attento a escutar-lhe os passos , ate que a senti fechar uma porta . -- " Animo , Anselmo , exclamei eu ! deslacrando tremulo e confuso a carta de meu amo : então li estas regras : Londres , 8 -- março . " Anselmo : " Ao receberes esta , reveste-te da minha authoridade em casa , e immediatamente te revestirás tambem de uma grande reserva com Alicia de Fermont-Comméne ... evita o seu contacto ! " Essa mulher não é digna do menor serviço ministrado por um homem da tua tempera ! ! " Alicia de Comnène cobriu de opprobrio o nome que eu herdei de meus paes . " Eu dou-lhe oito dias para sair da minha casa , e procurar o asylo que lhe convém . Em meado de fevereiro conto achar-me em Paris , onde me demorarei para alguns arranjos : decididamente venho residir em Inglaterra . Frederico , " conde de Nesle . N. B. Dá todo o dinheiro e tudo o mais que , ella te pedir ; e recommenda- lhe que deixe por escripto a direcção para onde quer que lhe seja remettida a somma animal necessaria para a sua subsistencia . " " Não me foi preciso luctar muito com a imaginação para adivinhar o ponto d' onde partia esta desordem ; ella troume- me á idéa uma antiga recordarão ; aquellas phrases vagas de madame -- Nesle a seu primo ... " Quiz desde logo retirar-me seguindo os conselhos de " meu amo ; mas a creança que ficára sósinha á mesa careciado meu serviço . Mal tinha findado correu em procura da mãe ; no mesmo instante ouvi um brado triste e prolongado de mulher ... esse profundo gemido partia certamente de uma infeliz mãe ! -- e fiz comigo viotencia para resistir ao desejo de a soccorrer : -- mas a honra de meu amo vedava-m ' o ! " Desci logo , peguei no chapeu , e retirei-me de casa . " Onde fui não sei , continuou teu bom pae ; sei que deitei a fugir para não ouvir o toque dos sinos , e o canto alegre dos homens : a bulha atordoava-me ainda mais o espirito ; parava somente de tempos a tempos para ver que horas eram no meu relogio , mas o molino domava a minha agonia ; a pendula continuava , a meu pesar , no seu inalteravel equibrio ! " Deixei-me de o consultar , e fui andando de uma rua para a outra , até que a linal ouvi dar quatro horas ; achei que era tempo de recolher-me la já perto de casa , quando encontrei o doutor||_Arnauld Arnauld|_Arnauld , medico da casa , que me chamou para dizer-me , que no caso que a senhora condeça não acordasse á hora marcada para tomar o remedio , a não perturbassem ; que o socego lhe era agora mais necessario do que toda a medicina . -- " Perdão , senhor doutor , lhe disse eu ; sai esta manhã ás 10 horas , e não voltei mais : sobreveiu alguma indisposição á senhora ? -- " Esteve morta , para assim dizer ! me respondeu elle ; " Só uma natureza de anjo , como a sua , podia d' aquelles estado devolver outra vez á vida . Ella está salva ; ás 8 da noite irei vê-la . " Logo que cheguei a casa , soube que a condeça dormia ainda . As creadas contaram-me o estado mortal em que permanecêra por tantas horas depois de soltar aquelle prolougado grito ; diziam-me isto a chorar , condoidas todas de afflicção , e eu , minha filha , que era o seu favorito , não fôra lá ! ... " A senhora achou-se melhor no seguinte dia . Não lhe appareci , e ella simulou não sentira minha falta . " Tres dias depois do seu accidente , tendo tomado cedo o café no seu quarto , saiu só , antes das nove da manhã . " Demorou-se , demorou-se , e já ia declinando o dia ; -- aquella demora já me impacientava : faltava-me ainda pôr em execução uma boa parte das ordens contidas na carta de meu amo . Respirei quando lhe ouvi os passos nas escadas , e o ranger das sedas ao atravessar a porta do meu quarto . " Comecei então de passear pela casa , desviado dos quartos da senhora , mas vigiando cuidadosamente os seus movimentos . Cloé , aquella negrinha que minha ama trouxera de Montpellier quando casou , passou por mim com muita pressa ; como de acinte eu procurasse detes- la em conversa , disse-me sacudidamente que tinha muito que fazer ; que a senhora estava arrumando toda a sua roupa , calçado , vestidos , emfim tudo , para acudir a uma desgraçada que ia muito longe , minto longe ... grande caso aconteceu á pobre creatura , continuou ella , porque minha ama quando falla n ' ella derrama tão sentido pranto que me faz chegar as lagrimas aos olhos . " Afastei-me arrebatadamente de Cloé e fui postar-me no meu quarto , esperando o momento critico indicado no post-scriptum de meu amo . Minha ama havia de infallivelmente chamar-me . " Á noitinha senti no corredor passos de homens que entravam ; abri um pouco a porta para examina-los na passagem quando saissem : não tardaram cinco minutos ; eram dois , e sairam carregados . " Esperei até anoitecer , mas nada de novo . " A inacção enfada ; sentia-me doente ! Estendi o corpo sobre a cama para descansar um bocado . " Succumbi á fadiga e á emoção ; e quando estava como dormitando , um quarto de hora depois talvez , senti na porta um leve toque , que me causou como um estremecimento de nervos : saltei immediatamente ao chão , e dei a volta á fechadura ; era madame -- Nesle ! " Oh ! minha Theresa ! accrescentou meu sogro , jámais poderei explicar-te a impressão que me causou o aspecto triste , sereno e resignado d' essa celeste imagem de mulher ! ... Desviei logo os olhos para não ficar imbecil , como o rustico que crê ver bruxas e feiticeiras . -- " Anselmo , me disse rapidamente , mas com um accento de voz cortado pela agitarão interior : -- sabes que vou deixar para sempre a casa de mr. de Nesle ? -- " Sim , senhora , lhe tornei eu . -- Segue-me os passos uma só e ultima vez -- disse ella . " Obedeci . " Depressa chegámos ao quarto de dormir da senhora condeça ; ella abriu a porta , e mandando-me entrar , tornou a fecha-la . " Tendo posto em uma mesa o castiçal que trazia na mão , dirigiu-se a mim , e pegando-me pelo braço , conduziu-me ao berço , onde a creança dormia já a somno solto . " Ahi se demorou ella um momento n ' uma melancholica contemplação , e rompeu nestas palavras , que eternamente me ficarão soando aos ouvidos : -- " Aqui te deixo a minha filha : -- disso com tremula voz . Depois , tirando de sobre a mesa um livro de orações , mandou-me que o segurasse , proseguindo : -- e juro-te , Anselmo , pela salvação da minha alma , que a minha filha , que aqui te deixo ... e legitima filha de Frederico , conde de Nesle ! -- " Resigno-me ao destino que a Providencia me reservou ... irei viver uma vida amargurada , longe da mansão em que fui senhora , esposa e mãe ! ... -- " Vês , continuou , reprimindo a custo o pranto : vês ... é a minha filha que ali dorme ... ella me chamará ámanhã , alguns dias ainda : mas a infeliz Alicia em vão invocará cada dia o amor da sua Amélia ! ... Anselmo , honrado Anselmo ! promette á desolada mãe que parte , de vigiar sobre a infancia da innoeente orphã -- orphã do materno amor , que , depois do leite , devia cada dia administrar-lhe os santos alimentos da alma ... vigia sobre ella , Anselmo ! -- Tu podes repartir o teu affecto com a filha e o pae ... ah ! sim ... Frederico ! -- Uma torrente de lagrimas Ihe afogou então a voz ; depois , voltando-se para mim , e apertando-me convulsivamente uma das mãos , pronunciou como uma suprema intimação estas palavras : não o abandones ... os amigos ... estas viagens a Inglaterra ... Anselmo : a tua presença lhe sirva de esteio nos tempestuosos dias do seu nebuloso futuro : a tua presença o acompanhe sempre , como uma reminiscencia dos seus religiosos antepassados ! E agora -- continuou ella , cobrindo-se com uma longa capa , e atando as fitas ao chapeu -- vem comigo ; preciso do teu auxilio para transpor o ultimo degrau . Interrompi-a então , rompendo o silencio em que me havia conservado durante esta secna dolorosa . -- " Senhora , lhe disse , tenho ordem de vos dar dinheiro , e tudo o mais de que carecerdes . -- Não , me respondeu : nada quero . Inda lenho a maior parte do dinheiro que trouxe de Montpellier ; esse dinheiro era destinado a soccorrer os infelizes ... d' elle me vou aproveitar . Tenho além d' isso muitas joias . Receber protecção de quem me não estima é uma das phases da humilhação a que não posso sujeitar-me ! " Logo em seguida a estas palavras correu no leito da filha , aonde ajoelhou como para dirigir a Deus uma ardente supplica ; ergueu-se precipitadamente , e saiu do quarto . Mal tive tempo de tomar a luz , e seguis-la pelos corredores e pelas escadas , que atravessava com extraordinaria velocidade . Quando chegámos ao pateo , mandou-me que abrisse ; deu alguns passos fóra e tossiu : senti logo passos de alguem . -- Então , retrocedendo , veiu a mim , e disse-me com uma voz ... com uma vehemencia terminante : -- Vamos , Anselmo : dá-me á tua palavra ; promette-me que o ensino religioso da minha cara filha fica ao cargo da a tua boa e solicita guarda ? -- Eu voz- lo prometto , senhora , exclamei eu ! Sacrificarei a propria vida se for necessario no cumprimento da sagrada promessa que hoje vos faço , e a Deus ! -- Encommenda nas tuas orações esta infeliz familia ! ... -- disse ella , e partiu . Foi juntar-se a dois vultos embuçados que a esperavam ; e em breve os perdi de vista . CONTINUAÇÃO DE+A CARTA . " Fechei devagarinho a porta , e subi rapidamente a escada para encerrar-me no meu quarto sem ser visto de ninguem de casa . Então , como esses aguaceiros que cáem de repente e nos apanham de sobresalto no raminho , o pranto rebentou-me espontaneo e abundante dos olhos . Por algum tempo desafoguei a minha profunda emoção ; mas finalmente pude conter-me , Iembrando-me que nem sempre se deve dar largas ao sentimento , e das palavras de meu pae , que quando eu ia visita-lo me recommendava lealdade , resolução , firmeza e actividade . " Tenho uma pequena livraria , augmeutada de mezes a mezes por mr. e madame -- Nesle á noite muitas vezes entrentinha- me a ler sosinho : de sorte que a familia inda não tinha dado pela ausencia da senhora condeça , nem tão pouco se haviam lembrado de mim . Apenas meia hora tive para meditar , não no passado , nem no futuro , mas nos trabalhos que me estavam imminentes . Como de feito , comecei de ouvir passadas pela casa , abrir e fechar portas , e pouco depois baterem na minha -- Lá vou , disse en brandamente , affectando o socego do costume . " -- Mas dizei-nos onde está a senhora ! exclamaram ao mesmo tempo Leonardo e Cloé ; o almoço está prompto , e a senhora não está nas salas , nem em quarto algum ! " " Ao tempo que elles fallavam , eu abria socegadamente a porta . -- Historia ! fui eu dizendo , e caminhando adiante d' elles : -- a senhora não é nenhuma formiga para que se sumisse assim pela casa ! Corri os quartos um por um , como elles já haviam feito , e nesta pesquisa de cantos e recantos , passei pela cosinha , e trouxe após mim uma procissão de gente ; o suisso , os cosinheiros , os lacaios , as mulheres , incluindo a boa Cloé , que era a creada grave da condeça , a qual , tenho d' ella recebido a sua carta de alforria , gosava de todos os privilegios e regalias das aias favoritas . Procurámos por todos os logares , mas infructuosamente ... " De repente Cloé , sacudindo-me o braço , e soltando uma estrondosa risada : -- " Pobres tolos que aqui andámos , exclamou ella : nenhum se lembrou que a senhora está na capella ! E largou a correr , e todos a seguiram : ella mesmo abriu a porta da capella . Succedeu á sua alegria um transporte de dor , começando n ' um sentido choro , sentada no estrado do altar . Dei então um pequeno desafogo ás minhas magoas interiores ; chorei um momento com a pobre Cloé ; mas , procurando conter-me , disse então : -- Está claro : a senhora condeça deixou a sua casa . Saiu clandestinamente ; está bem visto que não voltará hoje , nem ámanhã , e Deus sabe quando virá ! E como lhe devemos carinho e protecção , é Deus que nos trouxe na sua procura a este logar ; ajoelhemos todos , meus amigos , e oremos por ella ao Omnipotente , que dispõe dos homens e das cousas . Caíram todos de joelhos a minha voz . " Não me demorarei em contar-te o que passei n ' esses primeiros dias com aquella pobre menina . Cloé ajudou-me a entretela com promessas e carinhos . CONTINUAÇÃO DE+A CARTA . " Meu amo chegou no tempo aprazado , acompanhado do seu parente " lord||_Clare Clare|_Clare . " Theresa , me disse o bom de teu pae , sabes que o joven conde e o filho do meu coração ; o filho da minha adopção ! Acalentei-o nos meus braços ; e o meu amor por naquella creança , transpondo pouco a pouco o espaço immenso entre a sua alta nobreza e a minha rasteira esfera , poz-me finalmente de nivel com elle no caminho da vida . Costumei-me , pois , a ler-lhe no pensamento muito antes do que m ' o exprimisse com palavras . " Mal o vi , conheci nelle differença : a cor demudada ; os olhos pisados . Estes eram os signaes exteriores ; a mudança no interior era ainda maior . O seu corarão não parecia o mesmo ; estava sempre de mau humor , e parecia descontente . " Não se passaram muitos dias que não conhecesse a causa d' esta nova desgraça , para a qual não estava preparado . " Um domingo pela manhã , meu amo , tendo passado ao quarto do lord , que se vestia , fui ali procura-lo , e dizer-lhe que o reverendo||_padre|_Gregorio padre||_padre|_Gregorio Gregorio|_padre|_Gregorio , antigo capellão da casa , o esperava desde muito na capella . Estas palavras excitaram um gesto de mófa no nosso hospede , e sem mais preambulo entrou a soltar os gracejos mais sacrilegos , contra tudo quanto ha de mais sagrado . Volvi os olhos para meu amo , percebi-o contrafeito , e mesmo lhe ouvi balbuciar algumas palavras em defeza da sua religião ;