Camillo CASTELLO BRANCO O QUE FAZEM MULHERES ROMANCE PHILOSOPHICO QUARTA EDIÇÃO 1907 PARCERIA Antonio MARIA PEREIRA Livraria editora e Officinas Typographica e de Encadernação Movidas a electricidade Rua Augusta -- 44 a 54 LISBOA É uma historia que faz arripiar os cabellos . Ha aqui bacamartes e pistolas , lagrimas e sangue , gemidos e berros , anjos e demonios . É um arsenal , uma sarrabulhada , e um dia de juizo ! Isto sim que é romance ! Não é romance ; é um soalheiro , mas tragico , mas horrivel , soalheiro em que o sol esconde a cara . Como da seva mesa de Thyestes Quando os filhos por mão de Atreu comia . Escreve-se esta chronica em quanto as imagens dos algozes e victimas me cruzam por diante da phantasia , como bando de aves agoureiras , que espirram de pardieiro esboroado , se as acossa o archote de um phantasma . Tenebroso e medonho ! É uma dança macabra ! um tripudio infernal ! cousa só semelhante a uma novella pavorosa das que aterram um editor , e se perpetuam nas estantes , como espectros immoveis . Ha ahi almas de pedra , corações de zinco , olhos de vidro , peitos de asphalto ? Que venham para cá . Aqui ha cebola para todos os olhos ; Broca para todas as almas ; Cadinhos -- fundição metallurgica para todos os peitos . Não se resiste a isto . Ha-de chorar toda a gente , ou eu vou contar aos peixes , como o padre||_Vieira Vieira|_Vieira , este miserando conto . Os dias actuaes são melancolicos ; a humanidade quer rir-se ; muita gente , séria e sisuda , se compra um romance , é para dar treguas ás despoetisadas e pêcas realidades da vida . Sei-o de mais . Eu tambem compro os livros dos meus amigos , para espairecer de meditações serumbaticas em que me anda trabalhado o espirito . Sei quantos devo , e que favores impagaveis me deveria , leitor bilioso , se eu lhe encurtasse as horas com paginas galhofeiras , picarescas , salitrosas , travando bem á malagueta , nos beiços de toda a gente , afóra os seus . Tenha paciencia : ha de chorar ainda que lhe custe . Se respeita a sua sensibilidade , fique por aqui ; não leia o resto , que está ahi adiante uma , ou duas são ellas , as scenas das que se não levam ao cabo , sem destillar em lagrimas todos os liquidos da economia animal . Este romance foi escripto n ' um subterraneo , ao bruxolear sinistro de uma lampada . Alfredo de Vigny não diz que escreveu um drama , ás escuras , em vinte dias ? E Frederico Soulié não se rodeava de esqueletos e esquifes ? E outros não se espertaram com todos os estimulos imaginaveis de terror ? Menos o do subterraneo ... este é meu , se me dão licença . Pois foi lá que eu desentranhei do seio estes lobregos lamentos . No fim de cada capitulo , vinha ao ar puro sorver alguns átomos de oxigenio , e todos me perguntavam se eu tinha pacto com o diabo . Almas plebeias ! não sabem o que é a fidalguia do talento , que tem alcaçar nos astros , e nos antros lobregos da terra ; não entendem este fadario do " genio " , que elles chamam " excentricidade " , como se não houvesse um nome portuguez que dar a isto . O leitor sabe o que isto é ? Já sentiu na alma o apertar de um caustico ? Excruciaram-no , alguma vez , os flagellos da inspiração corrosiva , como duas onças de sublimado ? Se não sabe o que isto é , estude pharmacia , abra um expositor de chimica mineral , e verá . Não cuidem que podem ler um romance , logo que soletram . se mais conhecimentos para o ler que para o escrever . Ao auctor basta-lhe a inspiração , que é uma cousa que dispensa tudo , até o siso e a grammatica . O leitor , esse precisa mais alguma cousa : intelligencia ; -- e , se não bastar esta , valha-se da resignação . Ora , está dito tudo . Leiam isto , que é verdadeiro como o " Agiologio " de Ribadaneira , como as " Peregrinações " de Fernão Mendes , como todos os livros legados de geração a geração com o sinete da crença universal . A ALGUNS DE+OS QUE LEREM Não será uma acção meritoria amoldurar em fórmas verosimeis a virtude , que os pessimistas acoimam de impraticavel n ' este mundo ? Hão de só crer nas façanhas do crime , nas hyperboles da maldade humana , e negar as perfeições do espirito , descrêr o que ultrapassa as balisas de uma certa virtude convencional , que não custa dores a quem a usa ? Se os espanta as excellencias da mulher que vou debuxar , antes de m ' as impugnarem , afiram-se pela natureza , interroguem-se , concentrem-se no arcano immaculado da sua consciencia . Se me rejeitam a verdade de Ludovina , se me dizem que a este inferno do mundo não podia baixar tal anjo , sabem o que é esse descrer ? é apoucamento de alma para idear o bello ; é o regelo do coração que rebate as imagens ainda aquecidas do halito puro da divindade . Se a mulher assim fosse impossivel , o romancista que a inventou , seria mais que Deus . PARA SER COLLOCADO ONDE O LEITOR QUIZER Francisco Nunes ... Que nome tão peco e charro ! Francisco Nunes ! Pois se o homem chamava-se assim ! ? Deus sabe que tristezas eram as d' elle por causa deste Nunes . O rapaz tinha talento de mais para escrever folhetins lyricos , e outras cousas . Pois nunca escreveu por que não queria assignar- se Nunes . Ha appellidos que parecem os epitaphios dos talentos . Um escriptor Nunes morre ao nascer . Bem o sabia elle . Houve em Portugal um escriptor chamado Antonio José . Se a inquisição o não queima , ninguem se lembrava hoje d' elle . Francisco Nunes só poderia viver na memoria da posteridade , se S. Domingos fizesse o milagre de reaccender as fogueiras nos subterraneos do theatro de D. Maria . Outros lá soffrem tractos agora , mas é em cima , no palco ... Se , ao menos , Francisco Nunes escrevesse uma comedia ... Não escrevia nada ; mas falava muito , e , quasi sempre , sósinho , em casa , e na rua . Não incommodava ninguem ; era um anjo ; tinha só a perversidade de chamar-se Francisco Nunes . Elle ahi vae , faz agora tres annos , por uma rua do Porto , vizinha da de Cedofeita , falando só , e falando , ao que parece , enraivecido . Ninguem o escuta , se não eu , porque lhe vou na alheta , com subtis sapatos de borracha . Esta rua , por um lado , tem raros edificios ; pelo outro é marginada por um comprido muro de quintaes que pertencem ás casas da rua parallela . Nunes , de tempo a tempo , sustem o monologo para puxar com sorvos sibilantes o vapor de um charuto . Depois , faz um tregeito iracundo , com o pé com sanha , e prorompe na imprecação interrompida , do seguinte theor : " Arado pelo fogo do inferno seja o torrão maldito onde nasceu a folha d' este charuto ! " A chuva candente de Sodoma e Gomorrha tisne a folha do tojo e do carrasco que nascer no terreno que te produziu ! " Frieiras , gotta , paralysia , e morte tolham os dedos que te colheram ! " O sol , que te seccou , morra nos olhos de quem te trouxe aqui ! " As mãos que te enrolaram , charuto infame , sequem-se e mirrem-se como as das mumias de Memphis . " E para vós , contractadores , caixas , comarqueiros , e estanqueiros do contracto do tabaco , para vós o inferno illimitado , a região tenebrosa dos condemnados , onde ha o ranger dos dentes , e o sempiterno horror ! " Para vós , Borgias , para vós , raça de Locusta , e de Brinvilliers , para vós , envenenadores impunes , o patibulo n ' este mundo , d' onde fugiu espavorida a vergonha e a justiça ; e as caudaes de sulphur em combustão eterna nas furnas tartareas , onde é de fé que dá urros medonhos um condemnado chamado Nicot , que trouxe para a Europa o tabaco , e teve a impudencia de o trazer a Portugal em 1560 , onde viera com embaixada de França . " Porque os vossos charutos , propinadores de venenos , ennegrecem as substancias organicas , como o acido sulphurico . " São amargos e causticos como o acido nitrico . " Calcinam os beiços como o acido hydrochlorico . " Queimam a laringe como o acido phosphorico . " Laceram o esophago como o acetato de chumbo . " Fulminam e despedaçam como o acido hydrocianico . " Em quanto elle repuxava o vapor do incombustivel rôlo de erva-santa ( que blasfemia ! santa ! ) façamos tremendas reflexões : Um " manual de chimica para uso dos leitores de romances " é instantemente reclamado . Sente-se na litteratura este vazio desde que a novella é um extendal da sciencia humana ; e esta póde , sem immodestia , graduar-se assim . Quando se escreviam bacamartes para as gerações soffredoras , que os lêram , o sabio repunha ahi em azedo vomito as indigestas massas , que ainda agora resistem ao dente roaz da carcoma e da ratazana , nos lotes esboroados das bibliothecas . O in-folio era uma crença , uma religião , uma faculdade d' aquellas gordas almas , que resumavam pingue chorume por tres mil paginas em typo-breviario . Não vos faz melancolia vêr a lombada d' esses enormes volumes aprumados n ' uma estante ? Não ha n ' aquelle aspeito triste alguma cousa que vos faz crer que o in-folio chora pelo frade ? Agora não se escreve d' aquillo , posto que o saber humano seja mais vasto , e opulentado com as vigilias de dois seculos laboriosos . Reina o romancista , que é o successor do frade , na ordem das intelligencias productivas . Ora , o romancista ha-de , por força de sua natureza scientifica , despejar no romance a sciencia que lhe traz intumecido o estomago intellectual ; e o romance , assim , deixará de ser lido , se o conselho superior de instrucção publica não organisar os estudos de modo que as sciencias transcendentes , em consorcio com as da natureza physica , desbravem o espirito-charneca de muito leitor sandio , que não póde entender a iracundia chimica de Francisco Nunes . O qual continuou assim : " Ha cinco seculos que a raça proscripta de Israel soffreu em Pariz uma perseguição sanguinolenta . Morreram milhares de judeus entre labaredas , porque a calumnia , infamando a religião do Messias , disse que o povo judaico tentára envenenar as fontes e poços de França . " E vós , judeus christianisados , caixas do tabaco , derramaes o veneno á luz do meio dia , abris as vossas tendas , vendeis pelo preço de vossas carroagens a droga homicida ; mataes a mocidade de uma nação , que asfixia ás mãos dos velhos : a vós , que alimentaes o vicio alheio com o crime proprio , quem vos obriga a fumar um charuto de vintem ? " Portugal , tu queimavas os judeus industriosos , a quem deveste os melhores livros de sciencia , as obras primas da arte , os dinheiros extorquidos á pobre raça , que tão caros pagou os trinta dinheiros que Judas não comeu ! Queimavas o povo inoffensivo , nação de cafres , e dás refrescos , e condecorações , e honrarias , e montes de ouro aos envenenadores publicos , aos sicarios de charuto , que te desentranham a alma n ' um rôlo de fumo negro . " Que é dos vestígios da civilisação christã ? Que é da egide que protege o fraco dos affrontamentos do forte ? Em que lapide está escripta a lei que assegura a vida do homem ? " A Roma pagã era o sanctuario da justiça . Ahi os propinadores de venenos eram clandestinos . A mão cruenta do verdugo ia arranca ' -- los ao segredo das suas fornalhas , e mandava-os de presente ao diabo . " Lucius Cornelius Sylla , a tua lei de supplicio para os empeçonhadores vale só de per si uma legislatura d' esta horda de togados rotos , que nos espremem da algibeira 1$960 réis diarios , por cabeça . " Aqui , ha o morrer sem recurso de revista , o expirar em vomitos negros , o tossir rispido da bronchyte , as asthmas offegantes , o ronco profundo da pieira laringea , os deliquios da cabeça atordoada , a podridão dos dentes , as fendas carboniformes dos beiços , os abcessos pulmonares , as hemorrhagias de sangue apostemado : -- ha tudo isto , debaixo d' este céo impassivel , na presença do codigo criminal , n ' um paiz , onde trabalha a electricidade por arames , onde se comem omelettes sucrées e soufflées , e d' onde se mandam rapazes para o extrangeiro estudar BENEFICENCIA " Mentira ! Mentira e escarneo ! " Se quereis beneficiar este paiz , não mandeis lá fóra , oh parvos governadores da Barataria , não mandeis lá fóra estudar o processo do bem-fazer . " Vêde- me este moço , que apenas tem vinte e dois annos , e já precoces sulcos da doença lhe enrugam a fronte . A cutis macilenta , onde deviam vicejar as rosas da adolescencia , adhere aos ossos desmedulados e cariados ; uma tosse violenta lhe reteza os musculos do pescoço , expedindo das glandulas salivares um pus granuloso , pardo , e alcalino . As faculdades intellectuaes estão entorpecidas n ' esse mancebo . Estimulando-se com cognac e absynto , esta especie de cretino , bestificado por uma enfermidade incuravel , apenas consegue dizer tres tolices ácerca de Donizetti , sentado n ' um mocho de botiquim , encostando o corpo enervado á banca dos licores incitantes . " Sabeis quem reduziu esse vegetal a tão quebrantado estiolamento ? " Foi o charuto ! " O contracto do tabaco empeçonhára a seiva d' esse moço , que os fados , menos poderosos que os caixas , talvez tivessem destinado para exercer o magisterio do folhetim , maximo esforço de intelligencia , n ' uma época , e n ' um paiz , cujo amor ás letras não vale a correspondencia de uma local bem poetica como a do baile do sr. fulano . " Voltae para esse corpo achacadiço e apodrentado o vosso animo beneficente , Sanchos-Panças lerdos , pantalões administrativos ! " Chamae a juizo os vampiros que sugaram o soro d' esse sangue aguado que o faz tolhiço para tudo . " Fazei a autopsia de um charuto como este -- proseguia Francisco Nunes , parando e contemplando as nervuras negras do rôlo de folha , que semelhava uma rolha de cortiça queimada -- e vereis que ha aqui dentro um talo de couve lombarda , uma carocha secca , uma folha de leituga , uma casca de bolota , e tres grãositos excrementicios de rato ou coelho . " Horrivel , e sujamente infernal ! " Senhores deputados ! não se mata assim impunemente um povo ! " As nações tyrannisadas , quando a oppressão requinta , erguem-se como um só homem , e fogem para o Aventino . " Os envenenadores congregaram-se em conciliabulo de abutres , e crearam o charuto de vintem , a pitada do meio grosso , e o cigarro onde cresce o musgo como em parede velha . Cadafalso para os envenenadores ! " O conselho de saude , bandeado n ' este tripudio de canibaes , forma o cortejo scientifico das parcas que nos arrebanham para a região dos suicidas . Morte ao conselho ! " Não ha typhos , nem cholera , nem febre amarella , senhores deputados ! Ha charutos , ha o meio-grosso , e o cigarro . A epidemia não está nos canos , senhores ; está n ' estes canudos , por onde os contractadores cospem affronta e morte na face do povo ! " Que elles sejam malditos setenta vezes sete vezes , como se dizia no Oriente ! " Na hora do trespasse , a alma d' elles , tisnada pelo remorso , será negra como este charuto , d' onde eu sorvi um pus que me requeima os bofes ... Vae-te , infame ! " E , assim rugindo , n ' uma como inprecação do moribundo atormentado , arremessou o charuto por cima do muro para o quintal . -- Ludovina , já pensaste a resposta que has-de dar a teu pae ? Pergunta que faz a sua filha uma senhora de nobre presença , quarenta annos , ainda frescal , chamada Angelica , e casada com o sr.||_Melchior_Pimenta Melchior|_Melchior_Pimenta Pimenta|_Melchior_Pimenta , empregado na alfandega do Porto . Ludovina respondeu : " Como hei-de eu responder , se ainda não vi o homem ? -- É um homem como os outros ; -- replicou D. Angelica -- são todos o mesmo , menina . Teu pae sabe o que faz . Um homem é quem melhor conhece outro homem . Se elle te disse que achou um bom marido , não póde enganar-se . " Ora essa , mãe ! E se eu antipathisar com elle ? -- Deves casar , como se sympathisasses . " Bravo ! ... e depois ? -- E depois , virá a sympathia . Imaginas lá com que repugnancia eu casei ? Casaram-me , deixei-me levar porque era uma creança , vivia na aldeia , e sonhava com os vestidos e os bailes , e os theatros do Porto . Depois , teu pae ... teu pae adorava-me , dava-me mais do que eu ambicionava , e sem saber como , nem porque , contentei-me tanto com a minha sorte , que não invejava a de ninguem . Tinha vaidade em ser bonita , vestir com gosto , e chegar onde as mais ricas não podiam chegar . Via homens elegantes , reconhecia a differença que os fazia superiores a teu pae , e , comtudo , nunca me passou pela cabeça a loucura , a ingratidão , o crime da infidelidade . Posso dizer que principiei a amar meu marido , quando as outras mulheres se enfastiam . Aqui tens o que nunca te disse . Não ha homem nenhum que seja indigno da estima de uma mulher . " Mas a mãe sabe que eu ... amo outro homem . -- Eu não sei se amas outro homem ... Sei que namoras outro homem , e entre namorar e amar está o reflectir , menina . Esse rapaz que te manda romances e cartas entre as paginas ... ( não te inquietes , que sei tudo , e tudo pouco vale ... ) esse rapaz quem é ? Um filho-familia , sem posição , sem modo de vida , que te ama , que será teu marido , se tu quizeres ; que viverá das tuas sopas , se as tiveres para ti , que se envergonhará da sua dependencia , quando o amor obedecer á razão ; que se enfastiará dos teus carinhos , se quizeres prende ' -- lo com elles a ti , ou ao berço de teu filho . Se quizesses exemplos , dava ' -- tos . Tens ouvido censurar duas ou tres amigas , que tens , casadas com homens ricos de cabellos brancos ? " Ainda hontem li um folhetim contra as mulheres que se deixam seduzir pela " fortuna " de estupidas creaturas ... -- Lêste ? De quem era o folhetim ? Se o auctor fôr rico , e tiver quarenta annos , o auctor é insuspeito , e , n ' esse caso , digo-te que sujeites o teu destino á determinação do folhetim . Escreve uma carta ao auctor , e conta-lhe que és uma menina pobre , virtuosa , com excellentes joias de espirito . Offerece- lhe o teu coração , e promette que has-de levar-lhe a felicidade com a pobreza . Se elle te vier buscar , peso-te a ouro ao santo que fizer o milagre . Ora , se o folhetinista é um talento raro , um elegante de grande bigode e luneta , mas pobre , faz-lhe o mesmo offerecimento , prevenindo-o de que és tão pobre como elle . Se o folhetinista te vier pedir , é um dia de festa n ' esta casa ... Aprende , creança . Os rapazes pobres , se vivem na boa sociedade , criam ahi ambições , que uma menina sem riqueza não satisfaz . Pois não os conheces tu , Ludovina ? Não os vês no baile e no theatro namorando um dote como quem namora uma mulher ? Não és tu a mesma que censuras a indignidade de certos homens , que recebem resignados todas as repulsas , e teimam sempre em esquadrinhar um dote , como se fizessem voto de casarem ricos , ainda á custa de vergonhas ? Vê lá se entre os folhetinistas aspirantes ao casamento de especulação se te depara o nome que hontem lêste ... Talvez ainda não reparasses em outra injustiça que se faz ás mulheres pobres , se a fortuna lhes dá maridos ricos . Não ha por ahi rapazes com grandes patrimonios ? Recebem elles , por ventura , em casamento meninas virtuosas e pobres ? Não . Procuram-nas ricas , e fiscalisam menos a vida honesta da noiva , que o numero de acções do banco , ou o valor da propriedade paterna . Os moralistas de gazeta que dizem d' isto ? Sacrificam , talvez , a sua indignação ao amor do sexo : não dizem nada , e rebentam por outro lado em imprecações contra a mulher , que os elegantes ricos rejeitam , e os ricos sem elegancia procuram . Olha , filha , se te não fosse penosa a experiencia , deixava-te casar por paixão , como se diz , com o primeiro moço pobre que te encantasse . Depois , quando saísses a passeio com teu marido , levarias um vestidinho de chita , por não poderes levar um de glacé . Os taes censores de folhetim te-mal trajada , e diriam , no auge da sua pena : " pobre rapariga , fez um casamento infeliz ! " Ao teu lado passaria uma das tuas amigas , ricamente vestida , pelo braço de um velho com quem a casaram as conveniencias . Os mesmos censores diriam : " Que mal empregada mulher em semelhante alarve ! " Já vês que o estimulo da compaixão , que fizeste , era o teu vestido de chita ; e o estimulo de inveja , que fez a tua amiga , era o vestido de seda . " Mas se eu fosse feliz com o meu vestido de chita , e o homem do meu coração ? -- Isso é romance , menina . Nunca é feliz com um vestido de chita a mulher que tem amigas com vestidos de seda . Hoje reina a opinião publica , Ludovina , não é a consciencia de cada um . O agente principal do espirito de uma mulher é a modista . Se ha casadas que envelhecem disputando ás netas a melhor eleição de um talhe de vestido , que farão as solteiras ? Basta de razões insignificantes , que devem humilhar a tua razão , Ludovina . Eu nunca embaracei esse ligeiro conhecimento que tens com o Ricardo de Sá , por saber que nunca seriam tardias as reflexões que te faço agora . Não pódes casar com esse homem sem desgostar teus paes , e grangear para ti o infortunio , e para elle o arrependimento . Se soubesses o que deve ser o arrependimento entre casados , a maior prova de amor que podias dar a esse rapaz , seria esquece ' -- lo . Tu sabes que vivemos do ordenado de teu pae : temos podido manter a decencia e o luxo até dos teus caprichos de formosa ; porém , nada mais podemos . Se tivesses um grande dote , a primeira a diligenciar o teu casamento com Ricardo de Sá , seria eu . Assim , reprovo-o , opponho- me , e serei eu a encarregada de dizer a esse cavalheiro que a tua vontade não é livre , ou que a tua escolha foi outra . " Não diga tal , mamã . Se casar com o homem que me destinam , a escolha não é minha . Deixem-me , ao menos , este desforço ... Fique a responsabilidade da acção a quem me obriga . -- Pois teus paes acceitam a responsabilidade , Ludovina . O dialogo rematára assim , quando se fez annunciar Ricardo de Sá . D. Ludovina , com os olhos humedecidos , e desconcertado o semblante , disse á mãe que não podia ir á sala , e recolheu-se ao seu quarto . Foi D. Angelica receber a visita . Ricardo esperava-a na sala , correndo o teclado do piano , com a sem-cerimonia de um visitante habitual . Apertou-lhe a mão , beijando-a ao estylo da França , cousa que elle vira fazer a quatro ou cinco viajantes distinctos do Porto , que tinham conhecido , em Pariz , a " mesa-redonda " dos hoteis onde estiveram . Ahi vão á pressa dois traços d' este Ricardo de Sá . É um bacharel formado em direito , filho de outro bacharel que faz requerimentos , em quanto o filho , reservado para a magistratura , destino em que se dispensa vocação , faz cartas de namoro com letra ingleza , e timbra em comprar no Moré os mais anilados enveloppes , e o melhor papel-setim de fimbria dourada . Lê , e empresta os romances aos namoros ; commenta- os na margem das paginas , e addiciona- lhes appendices manuscriptos de lavra sua , quando a catastrophe merece ser corrigida . Além d' isto , o bacharel tem tres bengalinhas , que reveza , todas muito bonitas , com os punhos de massa de marfim , formando uma o grupo das graças , outra o das musas , e a mais embrincada é uma Suzana a saír do banho , espreitada pelo olho lascivo dos arreitados juizes de Israel . Ricardo de Sá consome as manhãs , que principiam para elle ás onze horas , dividindo os cabellos em delgados fasciculos , e lustrando cada um d' elles com um cylindro de cera . Aguça , quanto possivel , as guias do bigode , encerando-as , e enverniza a pera com um oleo contido no decimo nono frasco da terceira serie . Depois , o laço da gravata , e a collocação symetrica do pseudo camapheu é obra de fôlego que lhe dá tempo de assobiar dois actos do Trovador , a aria valida do Rigoletto , e o acto final da Lucia . De seguida , a compostura airosa das lapellas do fraque , a ultima demão de escova , e o aprumo do chapéo onde não ha um fio erriçado , tolhem muitas vezes a saída do peralta , que se encontra com a terrina da sopa do jantar . O bacharel nutre-se de ar puro , e d' alguns escropulos de carne de boi . O pae , homem roliço e respeitador das immunidades do estomago , suppõe que seu filho desbarata a pequena mezada nas casas de pasto , e não se assusta da inappetencia . Ricardo crê que o seu estomago destacou tecidos para o coração , reservando para o funccionalismo alimenticio um estomago-miniatura , o quantum satis das compleições sylphidicas . Convicto da excrecencia espiritual , crê-se dotado de fluidos nêrveos , magnetismo , electricidade , etherisação . Julga-se em fim anestesico , espasmodico , dynamico , em fim tudo o mais que não se entende . Não ama as mulheres , pranteia-as como victimas do seu poder fascinante . Algumas vezes , tem a piedade de as não encarar para as não abysmar . Outras , exerce a crueza da experiencia , fitando-as com o olho carregado de electricidade , fala-lhes com um timbre magnetico que elle sabe , e , não ha que vêr , o somnambulismo é prompto , a attracção é irresistivel como a da cobra-cascavel do Canadá apoz o tangedor da flauta . Crê tudo isto o bacharel , e ha velhacos que lh'o ouvem com a sisudeza da crença , e lhe não receitam um curativo de causticos . D. Ludovina Pimenta é uma das suas somnambulas , e a menos victima de todas . Ricardo distingue-a , impondo-se a obrigação cavalheirosa de corresponder-lhe quanto em si cabe para que a infeliz desilludida não tente contra a existencia . Vae vela todos os dias , conversa litteratura com a mãe , toma uma chavena de chá sem assucar , e despede-se ás onze horas , dizendo que vae esperar no seu quarto a hora da inspiração matinal para continuar a sua obra intitulada : O SECULO PERANTE A SCIENCIA . É o que podemos esquadrinhar ácerca do bacharel||_Ricardo_de_Sá Ricardo|_Ricardo_de_Sá de|_Ricardo_de_Sá Sá|_Ricardo_de_Sá . Os homens assim não se pintam ; a zombaria não os enxerga na profundeza da sua toleima ... são o Rubicon do folhetim , a desesperação da comedia desde Aristophanes até Molière . O original anda por ahi . Tenho-lhe assestado tres vezes a machina photographica , de rosto ; sahiu-me sempre aquillo . " Ludovina fica hoje no quarto -- disse D. Angelica , respondendo á pergunta admirada do bacharel . -- Doente ? -- Sim , passageiramente doente ; mas é tão debil a pequena , tão melindrosa ... -- É um corpo que não póde com o espirito ... Eu comprehendo o que são esses desfallecimentos d' alma . A filha de v. ex.ª tem uma organisação muito semelhante á minha . As minhas enfermidades são sempre quebrantos , estherismos , lethargia , procedentes das fadigas intellectuaes , ou dos anceios do coração . Compleições infelizes , não acha , minha senhora ? -- Oh ! infelicissimas , de certo ... -- Se , todavia , v. ex.ª tivesse a bondade de dizer a sua filha que fizesse um esforço para me vir contar os seus padecimentos , talvez que uma medicina toda espiritual ... -- A curasse ? ... talvez ... -- Sorriso de incredulidade , não é assim ? V. ex.ª é sobejamente espirituosa para desconhecer a influencia que exerce uma alma sobre outra , quando as correntes magneticas ... -- Não lhe dá treguas a sua paixão magnetica , sr. Sá ! ... A Ludovinasinha queixa-se de enxaqueca ... Eu voto , d' esta vez , por medicamentos caseiros ... Talvez que uns sinapismos ... -- proseguiu ella , rindo , sem ferir o orgão maniaco do bacharel -- dispensem uma descarga electrica . -- V. ex.ª não quiz entender-me , ou eu tenho sido confuso na exposição das minhas convicções . -- É clarissimo sempre , sr.||_Sá Sá|_Sá ; mas desconfio da inefficacia da sua vontade sobre a enxaqueca de Ludovina . E depois , convém-nos que ella esteja doente por um quarto de hora . Vamos falar a respeito d' ella . -- Tenho razões para suspeitar que minha filha não é indifferente a v. s.ª. -- De certo , não . -- Póde dizer-me até que ponto me devo lisonjear com a affeição que Ludovina lhe merece ? -- Voto á sr.ª||_D._Ludovina D.|_D._Ludovina Ludovina|_D._Ludovina um sentimento profundamente respeitoso ... -- Só ? -- Uma affeição nobre e desinteressada ... -- Amor ? -- De certo ... amor ... reflectido , e bem intencionado ... -- Uma paixão verdadeira , não é verdade ? -- Quanto em mim cabe , minha senhora ... quanto é possivel apaixonar-se um homem de vinte e oito annos , apalpado já pelas desillusões , e esterilisado tanto ou quanto pelos ventos contrarios dos revezes da alma ... D. Angelica fez um geito de quem ouvia chamar ; ergueu-se com a mais destra simulação , dizendo : -- Minha filha tocou a campainha ... As creadas não a ouvem de certo , eu volto já ... Ricardo de Sá fez mentalmente o seguinte monologo : -- D. Angelica vae propôr-me o casamento da filha . Eis-me entalado n ' uma crise imprevista ! Está explicado o enygma da carta que Ludovina me escreveu hoje . Receia que eu me esquive á proposta ; e tem razão . Eu não caso . Esta mulher está abaixo dos meus calculos . Lisonjeia um amante , mas não póde satisfazer as complicadas necessidades de um marido ... É horrorosa a minha posição ! ... Sei que faço uma victima ... de certo a mato ... Estudemos uma evasiva , não obstante ... O monologo continuava , quando Ludovina , conduzida machinalmente por sua mãe , se collocava atraz de uma vidraça da alcova immediata á sala . D. Angelica era um assombro de esperteza . A leitora já admirou a eloquencia persuasiva com que ella abalou o coração da filha ; já disse , de si para si , que , com tal mãe , não ha filha que rejeite o casamento de um brasileiro rico ; já leu as paginas que ahi ficam á mãesinha para que ella saiba os argumentos com que se vence a desobediencia das filhas , em casos identicos . Pois , se gostou e admirou as palavras de D. Angelica , ha de tambem admirar-lhe as obras . D. Angelica viu o mais secreto do animo do bacharel ; previu o desenvolvimento da conversação , e quiz dar á filha o mais rude , mas tambem o mais proveitoso desengano . -- Nada era ... ou era muito ... Queria saber como v. s.ª estava -- disse a matreira esposa do sr.||_Pimenta Pimenta|_Pimenta . -- E ella como está agora ? -- Soffre bastante ... Falei-lhe no seu magnetismo , e a tolinha córou ... Era talvez o clarão da descarga electrica , seria ? -- V. ex.ª sempre " fazendo espirito " com os axiomas da sciencia ... Ha de convencer-se ... A experiencia lhe apontará as evidencias ... -- A mim ? ora essa ! Terá v. s.ª a infausta idéa de me magnetisar ? Adormecer-me ... isso é facil ; bastam os livros que tratam da sciencia , não é precisa a acção ... Não " faço mais espirito " como v. s.ª diz ... Vamos á nossa pratica interrompida que é muito séria : Disse o sr. Sá que minha filha lhe merecia um sentimento profundamente respeitador , uma affeição nobre e desinteressada , um amor reflectido e bem intencionado , e finalmente uma paixão , que não era bem uma paixão , por quanto desillusões , revezes , et ctera , lhe haviam ... não me recordo ... -- Esterilisado a alma ... -- Foi isso ... Em toda a sua resposta só ha de desagradavel essa esterilidade de alma ; todavia , eu creio que tão boa alma ha de sempre florescer e fructificar , quando a cultura fôr confiada a uma mulher de bom coração , meiga , docil , maviosa , em fim , a uma que não inveje as boas qualidades de minha filha . -- De certo ... assim o penso , minha senhora -- balbuciou o bacharel , forçado pelo silencio interrogador de D. Angelica . -- Minha filha ama-o , sr. Sá . Ama-o delirantemente , perdidamente , quer ser sua ou da sepultura , não acceita admoestações nem esperanças tardias , quer unir-se ao esposo da sua alma , mas já , já , senão ... diz que , mais tarde , será victima da sua paixão . Sabia v. s.ª que era tamanho o seu dominio n ' aquella innocente alma ? -- Sabia ... desgraçadamente sabia . -- Desgraçadamente ! ... essa palavra faz tristeza ! Pois nem sequer o orgulho de ser assim amado o alegra ? -- Sim , minha senhora -- tartamudeou o bacharel , afagando as guias do bigode -- tenho orgulho de ser assim amado ... Desgraçadamente disse eu , porque me doem os soffrimentos da sr.ª||_D._Ludovina D.|_D._Ludovina Ludovina|_D._Ludovina ... -- Estando na sua vontade o mais facil e desejado remedio d' elles ? é singular ! -- Ainda assim ... ha situações na vida ... -- Sei o que quer dizer -- atalhou a zombeteira senhora -- ha situações em que quizeramos immediatamente felicitar as pessoas que soffrem por nossa causa . Isso é assim ... Pois bem . Tratemos definitivamente da felicidade da nossa Ludovina . Minha filha , como v. s.ª sabe , não tem dote . É pobre , supposto que o fausto com que vive queira desmentir esta triste verdade . Em riquezas de espirito é millionaria . Nas do coração , sabemos nós o que ella é . A " fortuna " porém , é muitas vezes a inimiga da verdadeira felicidade , não é assim ? -- De certo , minha senhora ... -- V. s.ª tem uma habilitação , tem uma vasta intelligencia , sobram-lhe expedientes para grangear o sufficiente para duas almas venturosas ; agouro a ambos uma felicidade duradoura . Entrego-lhe minha filha , na certeza de que nunca me será turvado o prazer d' este instante de expansão maternal pelo arrependimento da minha leviandade . Dê-me um abraço , que já começo a consideral ' o meu filho . -- Minha senhora -- disse o enfiado bacharel , extendendo a mão a D. Angelica -- eu estou cordealmente penhorado pela confiança que mereço a v. ex.ª. Cumpre , porém , reflectir n ' um passo tão momentoso . Eu amo em extremo a sr.ª||_D._Ludovina D.|_D._Ludovina Ludovina|_D._Ludovina , toda a minha ambição é identifica ' -- la ao meu destino sobre a terra , mas , minha senhora , eu não posso dispôr da parte de obediencia que devo a meu velho e respeitavel pae , sem consulta ' -- lo , porque dependo d' elle , em quanto não entrar na carreira da magistratura , e o cabedal dos meus estudos não me abona tanto quanto v. ex.ª imagina que póde proporcionar-me a intelligencia . -- Pensa mui judiciosamente -- redarguiu D. Angelica formando com a prolongação dos beiços , e o abrimento dos olhos , um tregeito de mui sisuda approvação -- e qual conjectura v. s.ª que seja a resposta de seu pae ? -- Não sei , minha prezada senhora ... -- Se fôr negativa ? -- Se fôr negativa ... -- Obedece ? -- Como filho dependente ; mas os dias da minha existencia serão poucos , e attribulados ... -- Mas isso é horrivel , sr. Sá ! Minha pobre filha succumbe ... V. s.ª mata a mulher que mais o amou , a unica n ' este mundo que o compreendeu , um anjo que não viu outro homem digno d' ella ... Que diz a uma mãe consternada , sr. Sá ? -- Minha senhora ... a nossa posição é desgraçadissima . " Remedeie-a , que póde . Se seu pae o não acceitar casado , tem a casa de sua mulher , onde será recebido como filho ... Oh ! que insensibilidade ! o senhor não ama Ludovina ! -- Se a não amo ! Isso mata-me , snr.ª " D. Angelica ! " V. s.ª é que mata uma santa , uma martyr ... -- Segui ' -- la hei na morte ... " Pois o melhor é viverem ambos ! -- disse D. Angelica , desafivelando a mascara da amargura , e abrindo o riso mais galhofeiro e fulminante que imaginardes , leitores phantasiosos -- V. sr.ª tem sido logrado desapiedadamente , snr. Ricardo de Sá . Peço-lhe que viva muito tempo , porque uma pessoa como v. s.ª não deve morrer , em quanto a tristeza , que foge ao riso , andar por este mundo . Snr. Sá , é preciso dizer-lhe que minha filha ouviu esta nossa scena comica , e acredite que o magnetismo não operou a approximação . Eu comecei a falar-lhe em minha filha para pedir ao seu cavalheirismo que não a inquietasse , porque vae esposar um homem que seu pae lhe escolheu . V. s.ª alumiou-me o entendimento , deu-me um alegrão inapreciavel ; e voltou as minhas idéas para o lado opposto . Fui buscar minha filha , para assistir ao espectaculo do coração de v. s.ª , e dei-lhe um bello espectaculo . Snr. Sá , a sua posição é desagradavel , e faz-me pena , por não dizer tedio . Um homem como v. s.ª nunca devera erguer os olhos para uma menina honesta . D. Angelica retirou-se da sala , soberba como uma rainha na descida do throno . O auctor possivel do SECULO PERANTE A SCIENCIA , emergindo do estupor momentaneo , procurou a bengalinha de Suzana a saír do banho , e caminhava atordoado para a porta , quando entravam Melchior Pimenta , e um sujeito desconhecido ao bacharel . -- Ólá , por cá , snr. Sá ? " É verdade , snr. Pimenta . -- Ninguem lhe falou ? ! estava sósinho ? ! " Saiu da sala , n ' este instante , a snr.ª D. Angelica . -- E Ludovina ? " Está de cama , creio eu . -- De cama ! ? ella ficou boa quando eu saí ... Alguma dôr de cabeça ... " Creio que sim ... Dá-me as suas ordens , snr. Pimenta ? -- Saude , meu amigo , appareça á noite , que lhe quero dar o conhecimento d' este meu amigo , que será provavelmente o marido de minha filha ... " Sim ? ... estimo muito conhecer ... Ás suas ordens , meus senhores . Saíu ; e o snr. João José Dias ( que é o tal ) , franzindo a testa , disse ao pae da esposa promettida : -- Que diabo de cousa é isto ? Cuidei que me picava o bom do homem com os galhos do bigode ! Eu corto as orelhas ambas e duas , se aquillo não fôr um patarata ! " É um pobre diabo que lê novellas , e não é mau rapaz -- respondeu o snr. Melchior , limpando o suor da testa . -- Novellas ! ... hum ! -- este hum do snr. João José Dias é uma cousa semelhante a um grunhido roufenho ; aquelle hum é a these de uma dissertação que elle , em tempo opportuno , ha de fazer contra a leitura immoral dos romances -- A sua filha lê novellas , snr. Melchior ? -- continuou elle pondo os olhos de esguelha , como molosso desconfiado . " Entretem-se com a mãe , às vezes , n ' essa leitura ; mas lê sómente as que a mãe já tem lido . -- Pois não faz bem . As novellas são a perdição das mulheres . Lá no Rio está aquillo mal de religião e virtude desde que pegaram a ler romances as moças . Em minha casa é sujidade que não entra . Eu já uma vez , para ver o que era aquillo , puz-me a lêr uma novella , chamada ... chamada ... era de um tal ... d' um tal Kocles , ou Koques , e , meu amiguinho , era maroteira de ferver bicho . A snr.ª D. Angelica interrompeu a parlenda acrimoniosa de João José contra os romances . " Aqui t ' o apresento -- disse Melchior . D. Angelica mirou-o de alto a baixo , e fez-lhe uma ligeira cortezia . No rosto expressivo da sympathica senhora , liam-se estas dolorosas palavras : Minha pobre filha , que impressão vaes receber ! João José Dias devia orçar pelos seus quarenta e cinco annos . Era de estatura menos que mean , adiposa , sem proeminencias angulares , essencialmente pansuda , porque João José tinha uma serie descendente de panças , desde a papeira côr de rosa até ás buchas das canellas ventrudas . Nas faldas de uma testa estreita , chata , e rugosa , como um elytro da concha de um cágado , luziam os olhos pequenos e esverdinhados de João José . As palpebras tumidas e pillosas como a casca da fava , enviezavam-se para dentro , formando á raiz das pestanas um rebordo purpurino . O nariz , sem base nem ossos , nem cartilagens , devia ser a desesperação de Falopio e de Bichat : rompiam-lhe d' entre os olhos as ventas já formadas , com a ponta arregaçada e as azas convexas , dilatando-se até ás alturas dos ossos malares , entupidos nas bochechas gordurentas . Os beiços eram bicolores ; nacarinos no centro , e rôxos para as extremidades quasi invisiveis sob os refegos relachados dos musculos limitrophes . João José tinha quatro dentes incisivos de brilhante esmalte , entalados nos outros quatro , formando de commum accordo as saliencias irregulares de um pedaço de crystal bruto . Os dentes laniares ou caninos tinham uma crusta de carie , e algumas luras chumbadas . Os vinte malares estavam no goso das suas funcções triturantes , com quanto amarellados de saes terreos , e regorgitamentos do bolo indigesto . João José não tinha pescoço : as espaduas ladeavam-lhe os bocios da garganta , alteando-se ao nivel das orelhas escarlates , com bolbos da mesma côr , e não sei que excrescencias no lobulo , simulando pingentes de coral . Disse-se que era todo barriga o homem , já que Buffon e Cuvier asseveram que é homem , feito á imagem e semelhança de ... não ousamos escrever a blasphemia . O que se não sabe é que a barriga lhe marinhava peito acima , até levar de assalto o campo onde fôra pescoço . As pernas de João José eram dois cepos , postos em peanha a uma esphera armilar . Tão curtas eram ellas , e tão desmesurados os pés , que me não seria difficultoso convencer-vos de que a natureza , em hora de travessura , fez da porção de materia , destinada para perna e pé , duas partes eguaes , juntou-as e o ponto de juncção denominou-o calcanhar . As botas de João José tinham incriveis expansões de couro : eram um oceano de bezerro cortado de ilhas . Os joanetes do pé direito formavam um archipelago . No remanescente das milhas despovoadas , o pé era raso e chão como uma lousa de mercieiro . Deram-se uns longes para auxiliar a phantasia de quem não conhece o snr. João José Dias . Para os que o viram , a pintura , vae tacanha e inhabil , aqui o confesso , envergonhado do meu descredito . Vamos á biographia da pessoa , e veremos que boa alma se nichou n ' este hediondo envolucro . João foi cachôpo para o Brasil , e estreou-se n ' uma loja de molhados , onde grangeou renome de rapaz videiro e possante . Abraçava uma talha de azeite de tres almudes , e aguentava com ella do armazem para a loja , sem impar . Levantava do sobrado para o balcão o peso das tres arrobas com os dentes . Punha a prumo meia pipa de cachaça , e levava á bôca , sem gemer , um barril de dois almudes , com o braço testo na aza . Isto constou na rua dos Pescadores , e , ao terceiro anno , João era alliciado por varios patrões , que disputavam o lanço . Não pertencem á alma estes esclarecimentos , bem o sei ; mas a alma de João José formou-se então . A probidade , a lisura , a honradez do boçal caixeiro nunca foram desmentidas pela gaveta do patrão . Os convites , feitos á sua cubiça de melhores ordenados , repelliu-os sempre , dizendo que nunca deixaria a casa onde comera o primeiro bocado de pão . O augmento de ordenado vinha sempre espontaneo dos patrões : podendo inculcar-se com as propostas dos vizinhos , nunca João José se queixou dos pequenos ganhos . Os paes de João eram uns pobres fazendeiros de Celorico de Basto , que se desfizeram do unico cevado e de uma vitella para pagarem a passagem do rapaz . João não esqueceu estes sacrificios nem as lagrimas que vira no rosto da mãe , quando , em Miragaia , lhe deu um quartinho em ouro embrulhado em seis camadas de papel . Os lucros dos tres primeiros annos foram quasi todos enviados a seus paes , e , d' ahi em diante , metade do ordenado vinha repartido em pequenas mesadas para os velhos , que lh'os devolviam em roupas brancas . João José , morrendo um socio da casa , achou-se herdeiro da terça parte do negocio . Pudera então retirar-se com haveres sobejos para viver descançado na patria ; mas , para obviar os desarranjos da liquidação , continuou na sociedade . Veiu a Portugal em 1835 , comprou no Minho a cerca de um convento , e , deixando o uso-fructo aos paes para que vivessem regalados , voltou ao Rio de Janeiro , onde achou fallida a sua casa commercial , e compromettida a compra que fizera na terra . Tinha sido escandalosamente roubado o pobre homem . Aconselharam-no que intentasse acção judiciaria contra os socios . Rejeitou o alvitre , dizendo que Deus os julgaria . Acceitou os enormes creditos que lhe offereceram , estabeleceu-se , e dentro de doze ou treze annos pagou as dividas de seus socios , e liquidou cem contos de réis fortes , entre os quaes , diz elle , e dizem todos os que o conheceram , não havia cinco réis adquiridos deshonrosamente . Chegou a Portugal em 1848 . O pae era morto e a mãe octogenaria estava entrevadinha , pedindo ao Senhor que a não remisse das penas d' este mundo sem ver seu filho . João José Dias assistiu seis annos aos longos paroxismos de sua mãe , adoçados com as lagrimas da felicidade . Em 1854 finou-se a velha nos braços do filho , dizendo-lhe que fizesse feliz uma moça pobre , casando com ella já que Deus lhe déra a riqueza . Passado o luto , o capitalista veiu ao Porto , e conheceu casualmente , na alfandega , Melchior Pimenta , que lhe fez um pequeno serviço na brevidade de uns despachos . Alguns dias depois , encontrou o empregado da alfandega com uma formosa menina pelo braço , e perguntou-lhe se era sua filha . No dia immediato foi á praça , e colheu de alguns negociantes informações ácerca da filha de Melchior . Todos á uma lhe disseram que a menina gosava de excellente opinião ; mas tinha só o defeito de querer hombrear em luxo com as filhas dos negociantes mais abastados . Um dos informadores accrescentou que os tafetás , as rendas , e as pelliças da filha do empregado da alfandega não pagavam direitos . Esta mordedura dos malevolos não magoou João José Dias . Fez-se encontradiço com Melchior , e falou-lhe dos seus teres , e da tenção que tinha de mudar de estado , até para cumprir uma promessa que fizera a sua mãe . Disse-lhe Melchior que era acertada a resolução , e muito facil o realisa ' la . Replicou o brazileiro pedindo que lhe indicasse alguma menina honesta . Pimenta pediu tempo para pensar , e o capitalista , com a rude franqueza de uma boa alma , disse que a sua escolha estava feita . Averiguada a cousa , a escolhida era a filha do sr.||_Melchior_Pimenta Melchior|_Melchior_Pimenta Pimenta|_Melchior_Pimenta , que não cabia n ' um sino . -- Isto é um modo de falar ... -- observou João José -- Sem que sua filha dê o sim , nada feito . Eu sei que estou no calçado velho , e não trajo cá á moda dos janotas , como por ahi dizem . A sua filha é muito nova , e quererá um rapaz . Fale com ella , diga-lhe a verdade , eu irei lá se o senhor quizer ; se ella quiz , muito bem ; se não quiz , ficamos amiguinhos como d' antes . -- A minha filha é docil e ajuizada : ha-de querer o que eu quizer . Foi educada por uma mãe , que teve melhores principios que eu , e faz com que ella lhe obedeça , tractando-a como irmã . Posso dizer-lhe que minha filha será sua esposa ; mas bom é que o senhor nos dê o prazer de frequentar a nossa casa , para conhecer o coração da minha Ludovina . É este o resumo do grande dialogo que precedeu a apresentação do sr.||_João_José_Dias João|_João_José_Dias José|_João_José_Dias Dias|_João_José_Dias a D. Angelica . Não querendo eu , nem por sombras , indispôr contra os meus fieis escriptos o imperio do Brazil , peço ao meu sisudo editor que faça estampar o seguinte epilogo d' este capitulo : João José Dias adquiriu com exemplar probidade os seus bens de fortuna . Foi bom filho . Levou a honra commercial ao primor de embolsar credores roubados pelos socios que o roubaram a elle . Foi trabalhador , quando precisava acreditar-se pelo trabalho ; e foi-o tambem , na opulencia , como o ultimo dos seus servos . Nunca teve escravos , comprados ou alugados : remiu alguns na decrepitude , e deu-lhes uma cama onde o ultimo instante da vida lhes fosse o primeiro de bem-estar . Que mais virtudes , ou maiores encomios a um bom caracter ? Se pintei João José Dias feio , não é d' elle a culpa , nem minha . João José Dias era realmente muito feio . Do Brasil vem muita gente galante . Tenho na pasta um esboço de romances onde figuram quatro brasileiros bonitos . Hão-de ver com que isenção de animo se escreve n ' esta provincia das lettras . Acabou-se o epilogo , e preveniu-se uma crise litteraria no Brasil . -- Então a pequena está incommodada ? -- perguntou Melchior a sua mulher , que não declinava os olhos do cepo informe do sr.||_João_José_Dias João|_João_José_Dias José|_João_José_Dias Dias|_João_José_Dias . -- Um pouco incommodada . -- Vaes dizer-lhe que venha á sala , menina ? -- Irei . -- Estou boa , papá -- disse Ludovina entrando subitamente , e cortejando o hospede , que ella reconhecera de o ter visto outra vez . -- Tem a bondade de sentar-se , snr. Dias ? -- disse Melchior ao acanhado brasileiro , que mal pudera gaguejar um " creado de vossa senhoria " que corrigiu bruscamente em " vossa excellencia . " -- Minha filha , quando hontem te disse que a Providencia me deparára para ti um digno marido , era d' este senhor que te falava . -- Tenho muito prazer em conhece ' -- lo -- atalhou Ludovina com uma affabilidade e desembaraço que espantou a mãe , alegrou o pae , e lisonjeou o noivo . -- Para satisfazer a uma exigencia d' este cavalheiro -- continuou Melchior -- é preciso que tu digas se acceitas livremente a minha escolha , ou direi melhor a escolha com que te distinguiu o sr.||_Dias Dias|_Dias . -- Acceito muito de minha livre vontade -- respondeu com firmeza D. Ludovina . -- Não lhe restam escrupulos ? -- tornou Melchior inclinando-se para o brasileiro . -- Não , senhor -- disse elle -- Estou satisfeito ; o que eu não queria era que a menina viesse um dia a arrepender-se ... e ... -- Não espero tal desgraça ... -- interrompeu Ludovina , sem fitar os olhos no brasileiro . -- Da minha parte , hei-de fazer o possivel por lhe não dar desgosto , porque o meu natural é bom , e ninguem , até hoje , se deu mal comigo . Ludovina ergueu-se , e pediu licença de retirar-se por um instante . D. Angelica entendeu-a , e seguiu-a pouco depois . Foi encontra ' -- la no quarto , afogada em soluços , curvada sobre o leito . -- Que é isto , filha ? -- Nada , minha mãe ... -- É muito , Ludovina ; que tens ? -- Precisão de desabafar assim . Estas lagrimas não fazem mal a ninguem . É uma victima que se entrega ao sacrificio , mas deixem-a chorar ... Que vida , que futuro , meu Deus ! -- Ludovina , não chores , e escuta-me . Eu não imaginava que teu pae te dera a semelhante homem . Tens razão ... É repugnante , e horroroso . Não casarás com elle , menina . -- Hei-de casar , minha mãe . Mal o vi ainda ; não tive ainda tempo de sentir repugnancia ou horror ... Choro como victima , mas não d' elle ; é do outro que me matou . -- Isso é que é cobardia , Ludovina ! Pois não te fez nojo esse miseravel ? -- Fez , fez ; mais que nojo ... É preciso que elle se não persuada que minha mãe lhe mentiu , quando lhe disse que a sua intenção era dar-lhe parte do meu casamento . Devo casar muito depressa , o mais breve que seja possivel . -- Casar por vingança ? ... Isto é um desforço desgraçado ... -- Não caso por vingança , que elle não vale o odio . Caso para salvar a nossa dignidade , minha mãe . Hei-de simular quanto possa o contentamento da mais feliz mulher . Não tenho já coração para sentir desgostos . Será tudo estupidamente alegria na minha vida . Toda a gente dirá que eu amo ... meu marido . As pessoas que souberem do meu namoro com esse infame , dirão que devia ama ' -- lo muito pouco a mulher que se deixou casar com um homem ridiculo . Quero que se diga isto ; quero que me assaquem a calumnia de que eu sou mais uma das mulheres que se venderam á riqueza . O que nunca ninguem dirá é que eu infamei o homem que me comprou ... nunca , meu Deus ! ... Pois a mãe está chorando agora , depois de me ter ensinado a ver o mundo como elle é ? Não se arrependa , minha boa mãe . Deu -- me a maior prova de amor fazendo-me escutar o que esse homem disse ... palavras de tanta afflicção como vergonha para mim ... Fiquei bem , estou desopprimida ... vê ? já não choro . D. Angelica abraçou com vehemencia a filha , beijou-a como beijaria a creancinha de peito , e saíu , enxugando as lagrimas . Entretanto , conversavam assim , na sala , os snrs. João José Dias e Melchior Pimenta : -- Gostou dos modos da pequena , snr. Dias ? -- Gostei muito ; mas , a falar-lhe a verdade , pareceu-me que ella não olhava direita para mim ! -- Recato de moça , pejo , e acanhamento , não acha que é muito natural ? -- Isso sim ; mas dava aquellas respostas tão ... tão ... tão desenganadas , que parecia ter por mim sympathia de mais tempo ... -- Minha filha tem muito juizo , snr. Dias ... -- Não duvido . -- E então quiz desde logo agradar a seu pae e a seu futuro marido . -- Ora , olhe ; o senhor não se lhe dá que eu tenha com sua filha , cá em particular , uma conversasita ? -- Pois não , snr. Dias ! todas as vezes que quizer . Eu mesmo desejo que sonde o coração de Ludovina , e reconsidere a sua tenção , se vir que ella o não merece . Eu vou manda ' -- la . -- Faça-me esse favor . Melchior procurou a filha , reparou nos indicios das lagrimas , e fingiu que os não percebia . Dizendo-lhe que viesse á sala , accrescentou : -- Lembra-te que fazes a tua felicidade e a de tua familia . Esse homem não será só teu marido , será um protector de todos os teus , e fará a tua independencia n ' uma sociedade onde a formosura se estima como um meio de alcançar " fortuna " , e a " fortuna " como um meio de se alcançar tudo . Entendeste-me , filha ? -- Entendi , meu pae . Ludovina entrou jovialmente na sala . -- Minha senhora , -- disse o brasileiro , gaguejando -- Eu fui toda a minha vida negociante , apenas sei ler e escrever , e digo as cousas assim como ellas me vem á idéa . Ora bem ; a menina está resolvida a ser minha companheira de toda a vida ? -- Sim , senhor , disse ainda ha pouco que sim . -- É verdade que disse ; mas póde ser que o dissesse para contentar seu pae , e lá no interior sentisse outra cousa . -- Disse o que sentia , e repito o que disse . -- Quem sabe se a senhora tinha alguma sympathia por ahi , e que lá por eu ter alguns vintens seu pae a fizesse voltar-se para outro lado ? -- Não , senhor , eu não tenho affeição a alguem . -- Porque depois eramos ambos desgraçados ; e eu devo dizer-lhe , que tudo o que eu mais tenho estimado n ' este mundo é a minha honra ; até hoje , louvado Deus , ninguem lhe pôz o dedo sujo ; e seria mais facil eu deixar que me tirassem a vida do que a honra . Trabalhei muito anno para a conservar , cheguei até esta edade sem ser offendido , e assim d' estes cabellos brancos que me vê , se alguem me atacasse a minha honra , tornava aos meus vinte e cinco annos . A menina entende-me ? -- Creio que entendi , e sinto que v. s.ª me esteja offendendo com as suas supposições injuriosas . -- Isto é um modo de falar , sr.ª||_D._Ludovina D.|_D._Ludovina Ludovina|_D._Ludovina , e perdoará se a offendi . Tudo o que lhe digo é em bem seu , e meu . Eu sou o que está vendo ; a menina é nova e linda ; se vê que se ha de arrepender , diga-me a verdade do seu coração , que eu arranjarei as cousas de modo que seu pae se queixe de mim e não da senhora . -- Já disse a v. s.ª que desejo ser sua esposa ; não sei que mais deva dizer-lhe . Não me hei de arrepender , porque espero merecer sempre a sua estima e confiança ; mas tenho um favor a pedir-lhe . -- Diga lá , seja o que fôr . -- Desejava que ficassemos na companhia de meus paes . -- Ficaremos ; e quando formos passar algum tempo á nossa casa de Celorico , a nossa familia irá com+nós . Era só isso ? -- Não tenho outra ambição . -- Isso pouco é ... Ha- se de fazer tudo que a menina quizer : graças a Deus , temos mais que o preciso para satisfazer as nossas vontades . Agora , se quizer dizer a seu pae que já lhe disse o que tinha a dizer , vá lá , que eu fico á espera d' elle e de sua mãesinha para me despedir , até á noite . D. Ludovina chamou o pae , sem saír da sala . Melchior , lendo o bom resultado das suas reflexões na cara jubilosa do radioso capitalista , convidou-o a jantar , quando elle se despedia . João José disse que jantára tres horas antes , e jantaria segunda vez com tão amavel companhia . Estava inspirado ! E cumpriu a promessa . Jantou , fez muitos brindes , e o ultimo , e mais solenne que fez foi o seguinte : Á saude de quem de hoje a um anno ha de ser meu compadre , e minha comadre ! Melchior Pimenta agradeceu . D. Angelica franziu a testa , fez-se branca de cera , e levou o calix aos labios . D. Ludovina córou até ás orelhas . A leitora faça o que quizer . Eu não ri , nem córei : deu-me para chorar como uma vide , quando me contaram isto . Inventou-se uma lua para os casados . Os irracionaes teem uma lua ; essa entende-se , sabe-se o que é . Mas o aluarem-se , á força , os casados , é uma idéa ingrata á decencia , feia , e deshonesta . Uma senhora innocente que diz : " lua de mel " suja os labios , se preza a pureza n ' elles ; se , porém , sabe o que diz , se sabe o que é o favo , o mel da lua , desdenha o pudor , e despreza-se . Os noticiaristas das gazetas aforaram a phrase , sem saberem , talvez , que desaforavam as palavras . Os diarios do Porto , em 1856 , noticiaram assim um casamento : " Hontem ás nove horas da manhã , contraíram o sacramento do matrimonio o ill . mo sr.||_João_José_Dias João|_João_José_Dias José|_João_José_Dias Dias|_João_José_Dias , rico negociante que foi no Rio de Janeiro , com a ex . ma sr.ª||_D._Ludovina_da_Gloria_Pimenta D.|_D._Ludovina_da_Gloria_Pimenta Ludovina|_D._Ludovina_da_Gloria_Pimenta da|_D._Ludovina_da_Gloria_Pimenta Gloria|_D._Ludovina_da_Gloria_Pimenta Pimenta|_D._Ludovina_da_Gloria_Pimenta , filha do nosso amigo Melchior Pimenta . O sr.||_Dias Dias|_Dias deve á fortuna a escolha de uma noiva tão rica de prendas moraes como de formosura angelica . A gentil menina encontrou um honrado protector , cuja fortuna , sendo immensa , vale menos que a briosa reputação que tem . Os esposos vão passar a LUA DE MEL á sua quinta de Celorico de Basto , para onde partiram hontem de manhã acompanhados dos numerosos amigos dos ditosos consortes . Diz-se que o sr.||_Dias Dias|_Dias vae mandar construir um palacete no Porto , onde tenciona fixar a sua residencia . Damos os parabens á cidade invicta por tão valiosa acquisição . A local está redigida a primor , como lá se faz sempre nas gazetas ; mas aquella LUA DE MEL indigna-me . Se querem que haja por força uma lua para os que se casam , façamos umas poucas de luas : Lua de mel ; Lua de cicuta ; Lua de laudanum ; Lua de tartaro emetico ; Lua de mostarda ingleza ; Lua de oleo de ricino ; Lua de fel da terra ; Lua de salsa-parrilha ; Lua de raspa de veado ; Lua de jalapa ; Luas tónicas , luas antiphologisticas , luas irritantes , luas vomitas , luas drastricas , etc. Convém , de seguida , observar , que a lua não influe por egual nos dois noivos . Cada um deve ter sua , nos casos exceptuados de casamento por paixão reciproca . Tal marido é aluado em ovos molles , e sua mulher em jalapa . Tal noiva saboreia-se nos dulcissimos favos da colmeia lunar , e o homem enjoa um cozimento salobro de raspa de veado , animal que muitas vezes lhe lembra , por causa das virtudes medicinaes , e outras causas . Qual d' essas luas influiria em João José Dias , e qual em D. Ludovina da Gloria ? Eu não decido , porque sou supinamente ignorante em astrologia judiciaria . Conto os factos , e deixo as luas ao arbitrio do leitor . Fez-se o casamento , e effectivamente partiram os conjuges para Celorico de Basto . D. Angelica tambem foi . Melchior Pimenta ficou para comprar terreno , e contractar o architecto e alveneis que deviam fazer o palacete , a toda a pressa . Os cavalheiros de Basto receberam cartão do casamento . Esta usança das familias de bem , desconhecida a João José Dias , fôra lembrança da previdente D. Angelica : o fim era relacionar sua filha com as familias mais tractaveis de Basto , para que estas visitando-a , segundo o ceremonial , a distrahissem das melancolias do noivado . Tudo lhe saíu ao pintar dos seus projectos . A fidalguia circumvizinha não desdenhou as relações do capitalista . O cartão enviado ás senhoras dizia : D. Angelica THEODORINA DE+A MESQUITA Pereira SOUSA PINTO CASTRO LEITE E LEMOS TEM A HONRA DE PARTICIPAR A V. EX.ª O CASAMENTO DE SUA FILHA A EX.MA SR.ª D. Ludovina DE+A GLORIA PIMENTA DE+A MESQUITA Pereira SOUSA PINTO CASTRO LEITE E LEMOS COM O ILL.MO SR. João JOSÉ DIAS Os appellidos heraldicos abalaram os espiritos pechosos d' aquella fidalguia de travessão que por alli enxamêa . Devia ser filha segunda de casa muito distincta a que descera até aos fabulosos milhões do João de a Chan-de-Cima : diziam-n* ' o assim os que d' aquelle modo chasqueavam o brasileiro , pouco dado com fidalgos . Consentiram algumas familias em visitar os noivos . Um dos fidalgos , esmerilhando a procedencia genealogica de D. Angelica , descobriu que um seu tio-visavô sahira da casa dos Ciprestes para ir entroncar na nobilissima familia dos Pereiras e Sousas , em Paços de Gaiôlo , d' onde era oriunda a avó de D. Angelica . Feito o descobrimento , D. Ludovina achou-se prima de tudo que faz o lustre e ornamento de Celorico , Cabeceiras , Arco , e terras de Barroso . João José Dias tambem era primo dos primos de sua mulher ; e , de si para si , ao bom do homem dava-lhe para rir-se á socapa da parentella . A lingua não se lhe ageitava a chamar primos aos fidalgos da casa dos Ciprestes , aos do Reguengo , aos da Capella , e outros que frequentavam , mais do que elle queria , a casa e o espirito attrahente da sua sogra , espanto das fidalgas analphabetas . Sem embargo , o capitalista simulava affectuosa estima aos hospedes , e contentamento com o ar festivo que sua mulher mostrava , tendo visitas . D. Ludovina pagava as visitas , passava as noites em sociedade , primava em tafularia , ensinava as primas a vestirem-se , cuidava dos seus enfeites com desvelo , e gastava com seu marido o tempo necessario para projectarem passeios , romarias , e saraus por aquellas redondezas . Annuia o conjuge , folgazão no rosto , e zangado por dentro . O bom siso dizia-lhe que sua mulher era uma creança , vezada a bailes , e ainda verde para gostar da quietação domestica . Bem via elle a innocente alegria com que Ludovina andava nos honestos brinquedos , e o desapercebimento , se não desprezo , com que ella acceitava as louvaminhas dos primos . D. Angelica entendia o que o seu genro calava ; conhecia a violencia que elle fazia ao genio e aos annos ronceiros , para andar n ' aquella lufa-lufa de visita em visita , bifurcado n ' um macho , que lhe contundia as carnes com o chouto ingrato . Receosa de que a impaciencia rebentasse em fim por algum dito menos delicado á mulher , quiz ella prevenir o desgosto de ambos , dizendo uma vez á filha : " Convém conformarmo-nos um pouco aos costumes de teu marido , Ludovina . Teu homem não foi assim educado , e os annos extranham esta transição . -- Que quer a mãe que eu faça ? " Que espaces os teus passeios e visitas , que vivas mais em tua casa , que tenhas com elle algumas horas mais de convivencia . -- Que hei de eu dizer-lhe ? ! o que has-de tu dizer-lhe ? ! ... -- Sim , mamã . Temos occasiões de estar duas horas juntos sem trocarmos tres palavras . Sou amiga d' elle ; mas não sei como hei-de mostrar-lh ' o de outro modo . Se querem que eu não receba visitas , nem vá a casa de quem me visitou , estarei em casa , contemplando os carvalhos e os castanheiros ; mas eu não creio que se possa viver assim na aldeia . Se elle ainda me não disse nada , porque ha de a minha mãe censurar-me este desabafo que eu preciso ? Eu a fugir de falar na minha situação , e a mãe a lembrar-m ' a ! Cuida que sou feliz ? Diga , mãe , está persuadida que eu devo estar extasiada de contentamento deante de meu marido ? " Não creio que te devas extasiar , mas tambem não approvo que te arrependas . Como explicas tu a consideração , o respeito com que és tractada ? Pensas que o seres casada com este homem te desmerecesse aos olhos d' esta gente , que lhe chama parente ? -- E a felicidade é isso , mãe ? ! " A felicidade não é cousa nenhuma d' esta vida , e , se alguma existe cá , é a que dá á consciencia da mulher casada o prazer de não envergonhar seu marido . -- Que palavras ! Isso que quer dizer , minha mãe ? " Não t ' as applico , Ludovina : respondi á tua pergunta . A felicidade no amor é um creancice dos quinze annos , e às vezes dos quarenta ; mas o desengano vem com todos os homens e com todas as edades . Não te persuadas que a vida te seria aqui mais risonha , por muito tempo , com um marido de tua escolha . Este homem , d' aqui a tres mezes , has-de ama ' lo como se ama um amigo . O outro , d' aqui a tres mezes , ama ' -- lo ias com o afflictivo amor da mulher que enfastia , que se vê cada vez mais aborrecida , e compara os ardores dos primeiros mezes de casada com a fria sequidão dos que traz o cansaço . Poupaste-te ao maior dos infortunios , que é esse para a mulher que não quer curar a chaga do amor a seu marido com a peçonha da infidelidade , comprehendes- me , Ludovina ? Eu não consinto que tu , sequer , recordes alguns exemplos de mulheres casadas que viste conciliadas com o despreso dos maridos , acceitando a adoração de outros , como vingança , e fazendo do crime uma necessidade . Lembra-te só d' ellas como mulheres que casaram apaixonadas , que doudejaram de alegria nos primeiros tempos , e pareciam cheias de felicidade para toda a vida . Não te recommendo paciencia , Ludovina , porque ninguem te dá causa de soffrimento ; recommendo-te juizo . Este homem ha-de merecer a tua amizade : logo que a tenha , viverás da melhor affeição , da que mais dura n ' este mundo ; terás o bem que raras vezes fica de um amor ardente . Estas e outras palavras modificaram a força motriz de D. Ludovina . Os passeios rarearam-se , os convites para reuniões foram esquecendo á mingua de estimulo e as massas amollecidas do sr.||_João_José_Dias João|_João_José_Dias José|_João_José_Dias Dias|_João_José_Dias recobraram vigor , com não menos gaudio do velho macho que as caminhadas traziam desmedrado e manhoso . Estava já a lua de mel em quarto minguante , quando os noivos , voltando para o Porto , foram hospedar-se na casa paterna , em quanto não alugavam casa provisoria , onde esperassem que o palacete se fizesse . João José Dias foi agradavelmente surprehendido em casa de seu sogro . Convidado para um baile , em que Ludovina ia ostentar preciosissimos recamos de brilhantes , que seu marido lhe déra na vespera do casamento , João José Dias ao vestir a casaca nova , que seu sogro lhe mandava ao quarto n ' uma bandeja , viu uma commenda pregada n ' ella , e sobre uma salva de prata um collar com a cruz da ordem de Christo , pendente de um vistoso laço de fita . -- Que diabo é isto ? -- disse elle ao creado no requinte do pasmo . " É um presente que faz a v. exc.ª o sr.||_Melchior Melchior|_Melchior . -- Diz-lhe que venha cá , e pega lá para cigarros -- dizendo isto , o commendador lançou á salva ... sete centos e vinte . Não vos assombre este lance dadivoso de grandeza . Em successos de menor estimulo á munificencia , sei de outros arrojos de liberalidade , que desbancam João José Dias . Ahi vão de passagem dois exemplos : Um visconde , opulento pelos dons de uma bestial fortuna que o ama como a cousa sua , compra um quarto de bilhete da loteria hespanhola . O rapaz que , á custa de muito teimar , lh'o vendera , vae dar-lhe a nova de que a cautela fôra premiada com quatro mil duros . O visconde manda esperar o alviçareiro moço e traz-lhe umas calças de cutim sem fundilhos . Outro , na passagem do rio Douro , escorrega do barco para a corrente , e mergulha ; passados instantes , emerge á tona d' agua resfolegando , e pedindo soccorro . Travam-no os braços robustos do barqueiro que , em risco de morte , consegue salva ' lo , Vae leva ' -- lo á familia , mandam-no* esperar á porta da rua , e recebe , como salvador d' uma vida cara aos seus , uma vida que os jornaes pranteariam com tarjas da grossura de um dedo , e vinhetas das mais funebres da typographia , recebe , finalmente , setecentos e vinte em cobre . Isto é publico e notorio ; mas não estava em chronica . Receio maguar a modestia dos generosos cavalheiros , por isso resalvo os nomes . Na quinta edição d' este livro , havidos os consentimentos respectivos , serão postos em estampa , para inveja de miseraveis sovinas , e estimulo á profusão da presente raça . O commendador não era fona . Esse caínho feito não desluz os bizarros presentes que fazia á esposa e aos sogros . Ludovina era o primor da casquilhice , e do mais rico em gosto e droga . Para cada baile , para cada exposição do theatro lyrico , um vestido não visto , só comparavel aos que trajára antes , e inferiores aos que trazia depois . Os leões sertanejos , estes cinco ou seis pataratas , senhores de uma gloria tão productiva , que faz lembrar a dos dominios da corôa portugueza na Ethiopia , Arabia e Persia , os leões honorificos do Porto , se assestavam pertinazes os oculos na peregrina esposa do commendador , o mais que conseguiam era realisar o anexim nacional : " -- viam-na por um oculo . " João José Dias envesgava o olho de soslaio por sobre as feras ; e , a meu ver , seria elle homem bastante para realisar , já não com um , mas com todos , a fabula do leão espinotado pelo orelhudo . O commendador tinha em sua mulher inteira confiança , nada lhe alterava o conceito bem merecido ; todavia era accessivel ao ciume sem causa . Nos bailes , andava o pobre homem sempre assustado . Não tinha socego , nem póro que não estilasse o suor da apoquentação . As affabilidades mais triviaes e innocentes da cortezia , um sorriso de Ludovina ao par dançante que a deliciava com ensosso palavrorio , o menor gesto de attenção a que a delicadeza obrigava a festejada dama , isso era um adstringente doloroso que apertava as entranhas do commendador . N ' um d' esses bailes , em que João José Dias emagreceu duas polegadas na circumferencia , appareceu Ricardo de Sá , que nunca mais vira Ludovina desde a vespera da sua derrota . Audacioso até ao desatino , teve a petulancia de aprumar-se diante de Ludovina , com a luneta insultante . A filha de D. Angelica pediu o braço a uma amiga e saíu d' aquella para outra sala . O commendador não fôra extranho ao acto , e seguiu-a com disfarce . Ricardo , brincando com os berloques do relogio , e tregeitando o habitual sorriso do homem tragico de romance , seguiu de longe as duas amigas , simulou um encontro casual , estacou diante d' ellas , e montou a luneta . D. Ludovina rodou sobre o calcanhar e voltou-lhe as costas . Á cabeça do commendador subiu um repuxo de sangue , e os lobulos das orelhas fizeram-se-lhe escarlates como ginjas . D. Angelica , que espiava o successo da sala proxima , acercou-se de Ricardo de Sá , fitou-o com fulminante soberania , e disse-lhe a meia voz : -- O senhor é um miseravel tolo , que incommoda . Se se estima alguma cousa , não me obrigue a encarregar o boleeiro de minha filha de responder ás suas provocações . -- Mude de sexo como Theresias , e falle-me depois -- disse Ricardo , dando á perna direita o costumado repuxão dos elegantes . O commendador veio ao encontro de D. Angelica , e disse-lhe : -- " Aquelle sujeito com quem a senhora falou agora , não é um homem que eu encontrei em sua casa a primeira vez que lá fui ? -- Que diabo anda elle a prantar-se diante de Ludovina ? -- Já reparei n ' essa acção repetida . Eu lhe conto , dê um passeio comigo -- E tomando-lhe o braço , D. Angelica continuou : -- Este homem foi uma afeição innocente de minha filha , e é hoje um ente desprezivel para ella e para mim . -- Escreviam cartas um ao outro ? -- interrompeu o commendador , bufando . -- Escreviam , sim ... -- Porque me não disse isso a senhora ? ! -- Porque não merecia a pena dizer-lh ' o . Que é escreverem-se cartas ? -- Não é pouco , acho eu ... E como acabou isso ? -- Acabou , dizendo eu a esse homem que não voltasse a minha casa . -- E que quer elle agora ? -- Vingar-se da unica maneira que póde : affligir minha filha ... Ella ahi vem ... não falemos n ' isto . D. Ludovina disse affectuosamente ao marido : -- Vamos embora ? eu estou incommodada . -- Vamos , disse a mãe . -- N ' esse caso , vou chamar a carruagem ; esperem um pouco , que eu venho já -- disse o commendador . As senhoras foram esperar na sala menos concorrida . D. Ludovina arquejava em ancias , e falava aceleradamente a sua mãe . Entretanto , João José Dias entrou na sala onde se dançava , e viu na porta fronteira Ricardo de Sá encostado , com a luneta em acção , e o cotovello direito apoiado na mão esquerda . Foi ao pé d' elle e disse-lhe : -- O senhor sabe quem eu sou ? -- Creio que já o vi em alguma parte . -- Faz favor de vir aqui que lhe quero fallar . Ricardo seguiu-o machinalmente , atravessou um corredor , e parou n ' um patamar deserto : -- Eu sou o marido d' aquella senhora que vocemecê insultou lá dentro . -- Essa é muito boa ! Eu não insultei senhora alguma ! -- Se insultou ou não , sei eu . Fique-lhe de aviso que a sr.ª||_Ludovina Ludovina|_Ludovina tem um marido de quarenta e tantos annos , isso é verdade , mas capaz de pegar n ' uma orelha dos pandilhas como vocemecê , e dar-lhe com a cabeça n ' uma esquina , tem percebido ? O commendador desceu as escadas , e Ricardo de Sá , estupefacto e aturdido , atravessou o corredor , e entrou nas salas . Pouco depois , entravam na carruagem D. Ludovina e sua mãe . O commendador não lhes disse palavra com referencia ao desforço solenne que tirára do bacharel . Isto , se eu o não contasse , era cousa que morria ignorada porque o auctor embrionario do SECULO PERANTE A SCIENCIA nunca a diria . Esta inquietação damnificou a vida menos má do commendador , e o socego , apparentemente feliz , de Ludovina . A paz existia ; era , porém , como a serenidade presagiosa de trovoada . O marido recebia os convites para bailes , e queimava , á surrelfa , as cartas . Ludovina admirava o esquecimento , sem aventurar uma pergunta . Estes rebuços são a desgraça das familias , e o rastilho de polvora que espera uma faisca . Ao theatro iam raras vezes . O commendador adoecendo quasi sempre no dia da recita , supportou no estomago muitas papas de linhaça , sem precisão . O seu achaque postiço era uma inflammação intestinal . D. Angelica censurava o procedimento do genro ; mas calava-se , para não dar anso á filha de romper em queixumes , que abafava com a esperança de melhor vida , ou desafogava em carpir-se sósinha . Melchior Pimenta achava que tudo ia bem , e dava-lhe mais cuidado a esperançosa apparição de um neto que a irritação de entranhas do capitalista . Acabára- se o palacete , e fez-se a mudança . O commendador não convidava os sogros para viverem com elle . Ludovina , reagindo contra a tyrannia simulada disse que não saía da casa onde nascera , sem levar seus paes . João José acreditou na resolução , e disfarçou o intento , dizendo que nunca tivera outro . Ludovina queixava-se á mãe da reclusão em que vivia cheia de aborrecimento e tedio ; perguntava se era aquella a felicidade que dava o dinheiro ; dizia que a pobreza e o ar livre eram preferiveis ao goso de cincoenta vestidos que se traçavam no guarda roupa , e da luxuosa mobilia que ninguem admirava . D. Angelica , já aborrecida tambem , prometteu á filha entender-se com o genro , e muda ' lo por meios suaves . -- Que motivo ha , snr. commendador -- disse D. Angelica -- para se encerrar n ' esta casa , cortando as suas relações com a sociedade que tão bem o tratava ? " Eu vivo assim melhor . -- Viverá ! ... não creio . O senhor , quando estivemos em Celorico , divertia-se nas sociedades , e já no Porto parece que folgava de que o vissem com sua mulher em toda a parte ... " Estou velho para andar a perder as noites . Esta minha inflammação de entranhas não me deixa . A saude está em primeiro logar . -- Tem razão ; mas n ' este mundo só se vive bem , sacrificando-se a gente uma á outra . O senhor é casado com uma menina habituada aos innocentes prazeres da sociedade , e eu , se me dá licença , lhe-hei que não consentiria um casamento entre genios tão contrarios , se previsse o que está acontecendo . " Então que é ? -- É que minha filha não póde assim viver contente . " Agora não ! ella não se queixa : a senhora é que toma as dôres por ella . -- Não se queixa porque é muito delicada , muito soberba , ou uma sancta . O peor será quando ella se queixar ... Isto assim vae mal , sr.||_Dias Dias|_Dias ; mude de vida , confie em sua mulher que é um anjo de virtude , incapaz de offender a sua dignidade . " Não duvido ; mas estou melhor assim , e ella tambem não está mal , acho eu . Quem casa vive para seu marido , e para os filhos , se os tem . Isso de andar de bailarico em bailarico é bom para as raparigas solteiras que andam á pesca de marido . Até parece mal uma mulher casada a saltarilhar com um homem que lhe pega pela cinta , e anda alli com a cara ao pé da d' ella . Nada de bailes , sr.ª||_D._Angelica D.|_D._Angelica Angelica|_D._Angelica . Minha mulher , se quer passear tem ahi uma carruagem e eu estou prompto a acompanha ' -- la para toda a parte . -- Pois bem , não se frequentem os bailes , mas conservem-se as relações da nossa casa . Ludovina tem amigas , que extranham muito a vida encarcerada que ella passa . Porque não ha-de sua mulher visitar e receber as visitas de suas amigas ? " E isso de que livra ? Isto de mulheres umas com as outras não dizem cousa boa . O melhor é cada um em sua casa . -- Que razão essa tão ... tão singular ! " A final de contas , sr.ª||_D._Angelica D.|_D._Angelica Angelica|_D._Angelica , eu estou em minha casa , e entendo que faço bem . Não se lucra nada em apparecer . O mundo está uma pouca vergonha . Eu já sei como está o Porto , e como se vive por ahi . Não quero que minha mulher ande nas bôcas do mundo . Se Ludovina não fosse ao baile , onde lhe appareceu o tal namorado que ella teve , não tinhamos todos a zanga com que sahimos de lá . Em casa , em casa é onde se está melhor . -- Eu não me responsabiliso pelas consequencias , sr.||_Dias Dias|_Dias . Ludovina tem brios e pundonor ; se ella desconfia que v. s.ª a encerra em casa , por suspeitar da lealdade d' ella , teremos grandes desordens e não terei poder para accomoda ' -- las . " Eu não desconfio de minha mulher ; se não vou aos bailes , é porque não quero que os outros desconfiem , e acabou-se . O dialogo ficou aqui ; mas ha ahi duas linhas que fazem honra á intelligencia equivoca de João José . Merecem ter segunda edição de versaletes : EU NÃO DESCONFIO DE MINHA MULHER ; SE NÃO VOU AOS BAILES É PORQUE NÃO QUERO QUE OS OUTROS DESCONFIEM . Isto é uma grande idéa , das quatro idéas grandes que apparecem em cada seculo , e que , por engano , entrou na cabeça inhospita do commendador . Pesem bem o quilate das duas linhas , que me ministrou João José , e verão que as melhores d' este livro são ellas . O marido , que me está lendo , se tem cincoenta annos , e espreita os vinte de sua mulher , através do vidro embaciado que a experiencia lhe vendeu caro , não deve já agora perder a esperança de dizer , no auge do seu ciume , alguma cousa que possa ler-se em lettra redonda . A indignação fazia os versos de Juvenal ; porque não ha de o ciume fazer as prosas toleraveis dos maridos ? A idéa de João José , se fosse minha , ninguem me aturava a vaidade . Rogo aos escriptores contemporaneos , e aos futuros sabios , alinhavadores de remendos alheios , que se escreverem a seguinte maxima : Ha maridos que não desconfiam das mulheres ; mas não vão aos bailes para que os outros não desconfiem ; escrevam por baixo -- O commendador João JOSÉ DIAS . As pessoas que melhores idéas engendraram , não teem sido as mais felizes . O commendador pertence ao martyrologio dos grandes pensadores . Os fados , os estupidos fados hão de castiga ' -- lo por essas poucas palavras com que elle arranjou um nicho , pôdre de barato , no templo da memoria . O castigo começa . Ludovina disse um dia a sua mãe : -- Estou casada ha treze mezes , e sinto-me velha . Até aqui obedeci como creança , a minha mãe , a meu pae , e a esse homem , que entrou na nossa familia com certa auctoridade que me intimidava . Eu fui sempre docil , docil até á pusillanimidade . Se a violencia não fosse tamanha , este homem que chamam meu marido , teria feito a escravidão da minha alma para sempre . Assim não póde ser . Sinto-me outra ; perdi os costumes de creança ; envelheceram-me com os desgostos continuos , e por isso hão de soffrer-me agora emancipada . -- Que vem tudo isso a dizer , Ludovina ? -- Que quero a minha liberdade , que hei de passar por cima da oppressão á custa de tudo . -- Ludovina ! que linguagem é essa ? -- É a da desesperação , e da justiça . Não pratiquei sombra de mau acto , por onde mereça este amargo viver que me dão . Quero saber porque vivo apartada das minhas amigas , e dos recreios , d' onde a minha reputação saíu sempre sem mancha . -- A quem o perguntas , a mim ? -- Sim , á mãe , ao pae , e depois pergunta ' -- lo hei ao dono d' esta casa , ao dono dos meus vestidos e dos meus braceletes . Se este me disser que a minha liberdade é o preço d' essas cousas , deixo-lh ' as , e peço a meu pae a subsistencia que me dava d' antes . Se m ' a negarem , Deus me inspirará o destino que me convém . Isto ha de decidir-se hoje . Ninguem soffria tanto tempo , por amor proprio , ou pela virtude da paciencia . -- Tens direito a interrogar teu marido , Ludovina ; mas sê prudente ; vence-o com razões moderadas , por não dizer humildes . -- E se elle , por maldade ou por ignorancia , suspeitar da pureza das minhas intenções ? -- Fala-lhe como deve falar uma senhora , e confundi ' lo has . Veiu o commendador cortar o colloquio . Nunca tão achamboada e trombuda se mostrára a lerda physionomia do personagem . N ' essa occasião , o achaque intestinal era veridico , segundo o testemunho do semblante . Era o ideal da fealdade , então , o sr.||_Dias Dias|_Dias ! D. Angelica , instada por um gesto da filha , deixára- os sós . -- É a primeira vez -- disse Ludovina , sentada n ' uma cadeira de braços estofada , com a formosa face encostada á palma da mão direita , e uma perna sobre a outra balouçando-se , deixando ver o pé de fada , através do rendilhado da saia que a velava . -- É a primeira vez que falo a meu marido como se deve falar a um marido . Até aqui tratei-o como se trata um amigo que se respeita , um tio , um pae d' esses com quem se não tem muita confiança . O snr. Dias abriu a bôca para entender melhor . D. Ludovina proseguiu : -- Poucas filhas ha tão respeitadoras como eu lhe tenho sido na qualidade de mulher . Tudo que ha n ' esta casa , snr. Dias , seu tem sido , como seria , se eu aqui não fosse mais que uma pessoa extranha , sujeita á sua generosidade . A sua vontade é o movel das minhas acções . Em quanto o senhor me concedeu a liberdade honesta , que meus paes me concediam , acceitei-a , sem lh'a agradecer , porque achei isso tão natural como absurdo e impossivel o contrario . Logo que o senhor , sem me explicar a causa da sua mudança , de repente me afastou da sociedade , como se faz ás pessoas incapazes de viverem n ' ella , acceitei tambem , sem me queixar , o captiveiro , e supportei-o seis mezes como uma mulher culpada que expia a culpa com a paciencia muda . O snr. Dias , sem saber o que fez , expoz sua mulher aos commentarios offensivos que a sociedade ha de ter feito á minha ausencia repentina . Deu um escandalo , sem necessidade de evitar outro . Disse á sociedade que não tinha bastante confiança em mim para me levar onde ha o bom e o mau . " Estás enganada , menina , eu não disse isso a ninguem -- interrompeu o commendador , que andou ás aranhas muito tempo antes que traduzisse para vulgar o estylo sentencioso da filha e discipula de D. Angela . -- Não o disse com a palavra ; mas disse-o com as acções . Privando-me de ir aos bailes , de frequentar o theatro , de receber as minhas amigas de collegio , e as relações de minha familia , o que diria a sociedade ? " Lá o que ella quizer , menina ... -- O que ella quizer , não , snr. Dias ! Não consinto que se façam de mim conjecturas desairosas . Requeiro que o senhor me explique o motivo d' esta separação injusta a que me fórça . " Não te zangues , Ludovina ... Foi tua mãe que te metteu na cabeça essas palavras ? Bem diz lá o ditado : " Livra-te da sogra , que eu te livrarei do diabo . " -- Respeite minha mãe , senhor ! Eu não falo pela bôca de minha mãe ; o meu silencio até hoje não era estupidez nem insensibilidade :