MYSTERIOS DE LISBOA POR CAMILLO CASTELLO-BRANCO PORTO : Composto por J. J. G. Basto , Largo do Corpo da Guarda , nº 106 1854 PREVENÇÕES A DAR ANTES DE+A LEITURA Tentar fazer um romance é um desejo inocente . Batizá-lo com um título pomposo é um pretexto ridículo . Apanhar uma nomenclatura , estafada e velha , insculpi-la no frontispício de um livro e ficar orgulhoso de ter um padrinho original , isso , meus caros leitores , é uma patranha de que eu não sou capaz . Este romance não é meu filho , nem meu afilhado . Se eu me visse assaltado pela tentação de escrever a vida oculta de Lisboa , não era capaz de alinhavar dois capítulos com jeito . O que eu conheço de Lisboa são os relevos , que se destacam nos quadros de todas as populações , com foro de cidades e de vilas . Isso não vale a honra do romance . Recursos de imaginação , se os eu tivera , não viria consumi-los aqui numa tarefa inglória . E , sem esses recursos , pareceu-me sempre impossível escrever os mistérios de uma terra que não tem nenhuns , e , inventados , ninguém os crê . Enganei-me . É que eu não conhecia Lisboa , ou não era capaz de calcular a potência da imaginação de um homem . Cuidei que os horizontes do mundo fantástico se fechavam nos Pirenéus , e que não podia ser-se peninsular e romancista , que não podia ser-se romancista sem ter nascido Cooper ou Sue . Nunca me contristei desta persuasão . Antes eu gostava muito de ter nascido na terra dos homens verdadeiros , porque , peço me acreditem , que osromances são uma enfiada de mentiras , desde a famosa Astrêa de Urfê , até ao choramingas Jocelyn de Lamartine . Por consequência , diz o circunspecto leitor , vou-me preparando para andar à roda num sarilho de mentiras . Não , senhor . Este romance não é um romance : é um diário de sofrimentos , verídico , autêntico e justificado . Peço-lhe que leia a seguinte carta , que recebi em 24 de Agosto de 1852 : Rio de Janeiro , 29 -- Junho de 1852 Amigo , Ficas naturalmente espantado quando vires entre mãos um maço de papéis ido volumoso ! Espero , porém , que esse espanto se converta em interesse , quando souberes que tesouro possuis , sem prelúdios : Haverá um ano que aqui desembarcou um homem que não pôde passar despercebido diante de mim . Tu sabes que eu sempre fui um grande idealista . Ainda hoje não posso renegar este divino atributo , e bem vês quanto deve ser-se penoso conciliar as funções de um guarda-livros com as vaporosas intuições de um poeta ! Mas graças à violência que me imponho , sinto glória em dizer-te que terei muitos versos errados na minha coleção , mas vivo na feliz certeza de que não tenho um erro no livro do " deve-e-há-de-haver . O que segue é que sou um mau poeta , mas um honrado caixeiro . Vamos ao interessante . Como sabes que sou idealista , não terás dúvidas em acreditar que olhei para aquele homem pelo prisma da minha imaginação . Tive razões para isso , e quero que tu as saibas . Era uma figura singular entre todos os figurões que a nossa terra atira para aqui . Não era alto , nem baixo . Também não era bonito , como um galo de novela : tinha rosto magro , não só magro , escaveirado e ossudo . Os olhos fuzilavam lume , deste lume que revela maldade , umas vezes , e , outras vezes , paixões candentes e extremas . Negrejava-lhe sobre o bronze da cútis um bigode negro e arrepiado . Vestia de escuro , e nem o branco da camisa se lhe via . O pé e a mão eram extremamente pequenos , e a magreza , ou melindre das formas , estava em justa proporção com o descarnado das feições . Saltando em terra , este homem subiu os primeiros degraus do cais , parou , cruzou os braços e filou os olhos na amplitude do mar . Nesta postura , arrebatou-me ! As almas de lama hão de perguntar-me porquê . Responde-lhe tu , que tens horas de espiritualista na tua longa vida de matéria . Ao vê-lo assim absorto naquela meditação profunda , julguei que podia avizinhar-me dele e contemplá-lo de perto . Pude : nem ao menos deu fé de mim . Um preto , carregado de fardos , roçou-se por ele , deslocou-o alguns passos para o lado , mas não lhe desprendeu os olhos do horizonte . Olhei também para lá , e nada vi . Fiquei entendendo que as visões daquele homem estavam dentro na alma , e olhos da face , naquele momento , vêm tanto como os meus . Não sabes como este homem me tinha fascinado ! Eu era capaz de estar ali suspenso naquele silêncio , naquele mistério , longas horas , sem recordar-me que era caixeiro ! Passou-me , então , na memória o rápido panorama de um mundo em que vivi antes de ser um forçado guarda-livros , Lembraram-me certas mulheres , que se perderam espontaneamente fascinadas pelo simples olhar de certos homens , Perdoei-lhes no tribunal da minha consciência , porque eu , se fosse mulher , na presença daquele homem , adorava-o , perdia-me sem ouvir-lhe uma palavra que me lisonjeasse . Parece-te isto um disparate ? O que tu quiseres ; mas a verdade é esta . Esta situação durou muitos minutos , O sonâmbulo acordou ; mas , acordado , parecia ainda adormecido . Virou as costas ao mar , e foi subindo vagarosamente o cais , com os olhos no chão . E eu segui-o . Depois , parou como suspenso por uma ideia imprevista . Tornou atrás . Chamou um marujo da galera em que viera , e pediu-lhe a sua bagagem . O marujo indicou-lhe os malsins da alfândega , que deviam revistar-lhe&lhes+a . O passageiro dirigiu-se urbanamente a um desses homens , abriu os cadeados de uma mala de couro ; tomou ao alto entre ambas as mãos um pouco de fato , e retirou-se , depois de mostrar um passaporte , e eu segui-o , como se fosses tu , coma se fosse um meu irmão , que eu quisesse hospedar . Deu um cento de passos , e voltou-se para o lado como quem procurava alguém . Devo necessariamente encontrar-se com os seus olhos . Cortejou-me primeiro , e depois perguntou-me : -- Tem a bondade de dizer-me onde encontrarei uma hospedaria afastada da cidade ? -- É difícil encontrá-la -- respondi eu . -- As hospedarias aqui , como em toda a parte , são frequentadas por pessoas que têm negócios , e preferem as mais próximas ao centro do comércio . Não me respondeu com a presteza que eu queria , porque mal sabes o desejo que eu tinha de não largar aquele homem ! Forte encanto ! -- Então -- disse ele -- tem a paciência de indicar-me a primeira hospedaria ? -- A primeira é esta -- disse eu , apontando-lhe a minha casa . E o meu hóspede , nessa inteligência , cortejou-me , agradecendo-me , e oferecendo-me o seu quarto para descansar . Subimos ; e não foi sem me sorrir que o via a ele bater numa das portas , com todo o desembaraço . O meu criado parecia esperar as minhas ordens ; mas o meu hóspede adiantou-se a pedir um quarto , depressa . Entrámos numa sala , e aceitei uma cadeira que o meu hóspede me oferecia : apontei-lhe o sofá para que ele se sentasse . Primeiro sentou-se ; pouco depois , reclinou-se , e por fim deitou-se com toda a galhardia de um oriental . -- Fuma ? -- disse ele abrindo uma charuteira . -- Fumo -- e preparava-me para pedir luz ao criado , quando o meu desconhecido acendeu um pavio de cera e tornou à sua posição legitimamente turca . -- As hospedarias aqui -- disse ele -- respiram uma elegância que não se parece nada com a farrapagem dos hotéis portugueses . Eis aqui uma sala que parece o boudoir de uma viscondessa burguesa . Este dito engraçado , que qualquer de nós acompanharia de um sorriso vaidoso , disse-o ele com o charuto ao canto da boca , sem o mais leve sinal de congratular-se do seu espírito . Eu por mim sorri-me , e não achei de pronto uma resposta que lhe desse de mim a alta ideia que ele de si me tinha dado . -- É a primeira vez que vem ao Brasil ? -- perguntei eu . -- A primeira . -- Vem como viajante ? -- Não , senhor . Acho-me aqui . Essas palavras pareceram-me um belo final de um acto dos dramas de Victor Hugo . Achei muita filosofia , desta íntima filosofia da desgraça , naquelas quatro palavras . Lembrou-me o Chatterton respondendo a quem lhe perguntava a razão porque escrevia , se os seus escritos lhe não davam pão , nem consolações , Lembras-te ? Penso que era isto : " Escrevo , porque é preciso . " -- Tenciona demorar-se ? -- perguntei eu . -- Sinto não poder satisfazer a sua curiosidade . Esta resposta fez -- me corar . Olhei a fisionomia dele : era sempre a mesma fisionomia : severa e fria , triste e não sei quê de desprezadora . E continuei a sentir-me cativo daquele homem , cada vez mais misterioso . Levantei-me . Abri uma poria de um quarto , mais próximo , e indicando-lhe , disse com certo acanhamento : -- Pouco ou muito que seja o tempo que a vossa Senhoria se demore , aqui tem uma sala , aqui tem um quarto , neste imediato uma livraria , e em toda esta casa uma residência que espero considere sua , como se fosse de um seu irmão . O cavalheiro apertou-me a mão , e disse com estranha frieza : -- Espero que me conceda não aceitar o seu favor . Eu sou um hóspede incómodo , Não converso , não entretenho , e sou importuno como um velho , Retiro-me penhorado das suas atenções ... E preparava-se para sair . Fez um ligeiro esforço e quase o obriguei a sentar-se . -- Antes de sair -- disse-lhe eu -- espero que ouça as condições com que lhe ofereço hospedagem . Sou um homem só , com dois criados . Sirvo-me desta casa para comer e dormir . Vossa Senhoria viverá aqui também como homem só com dois criados . se , passados alguns dias lhe for aqui penosa a sua residência , retire-se . Não quero a sua conversa como recompensa da hospedagem . Eu também falo pouco , penso muito , e quase não posso falar nem pensar fora das minhas obrigações de guarda-livros . Aceita ? -- Aceito . E , com este laconismo , apertou-me outra vez a mão , e conservou-se na mesma postura familiar em que estivera desde o princípio . Saí da sala ; dei ordens aos criados , e fui para o escritório . A horas de jantar vim a casa . Segundo as minhas ordens , o meu hóspede já tinha jantado , se assim pode chamar-se uma chávena de café , duas colheres de marmelada , e quatro cálices de conhaque . Cumprimentei-o apenas . Vi-o profundamente triste , e soube que passara a manhã na livraria . Esperava que ele me dissesse que queria fazer sociedade comigo à mesa . Não mo disse ; e eu também não quis dizer-lhe&lhes+o . Convidei-o para , passados os dias do descanso , ser apresentado nalgumas casas . Respondeu-me que o dispensasse desse sacrifício . Reconheci todo o melindre daquela situação . Respeitei-lhe a dor como um mistério sagrado . Nunca lhe disse uma palavra que denunciasse a minha curiosidade ; não tive por isso de corar segunda vez . Passados alguns dias , disse-me que quer retirar-se para um dos arrabaldes . O meu patrão possui uma linda chacra no Botafogo . Ofereci-lhe&lhes+a -- aceitou-a . Visitei-o aí algumas vezes . Era um envelhecer que fazia dó ! Disse-me que sofri muito do peito . Aconselhei-lhe que se retirasse para Portugal , Sorriu-se , e apontou-me para as cruzes do cemitério que alvejavam através de um arvoredo . Perguntas-me tu : quem era esse homem ? Não o sabia . No fim de sete meses , achei-o com todos os sintomas de um héctico , quando as folhas começavam a cair , queimadas pelo soldo estio , lá no nosso belo Portugal . Vi-o então sorrir pela primeira vez , Travou-me o braço , e passeámos no jardim . Eis o que então lhe ouvi : -- Eu tenho sido um ingrato em não lhe dizer quem sou . -- Ingrato ! , nunca ... -- repliquei eu . -- Ingrato , sim ! O véu do mistério devia levantá-lo a mão da amizade . Mas , em recompensa de uma grande dívida , há de a mão de um cadáver levantá-lo . A febre-amarela parece querer juntar-se à minha febre negra . Se desta colisão resultar em breve a minha morte , venha Vossa Senhoria ao meu quarto , dê-se ao trabalho de ler , em horas de ócio , esses cadernos de papel que por lá estão , e poderá então dizer que o seu hóspede , silencioso em vida , conversou muito consigo do túmulo . E despediu-se . Estas poucas palavras começou-as sorrindo , e rematou-as soluçando . O tronco gigante gemeu , quando estava para cair . Caiu . A febre-amarela soprou Ãquela luz quase apagada . Vi-o nas agonias . Não pude ouvir-lhe o último adeus , porque também reclinei a cabeça num leito , que supus ser o da morte . A chave do quarto foi-me entregue por um sacerdote , à ordem do moribundo . O meu legado é esse que te remeto . No derradeiro capítulo verás a razão porque o faço . Adeus , Não te chames infeliz , Ninguém pode reputar-se desgraçado sem provocar a mão de Deus ou de Satanás , a desgraça deste homem . Teu cordial amigo F. Agora direi eu quase ao leitor , como o meu amigo me diz : No último capítulo verá a razão porque esta biografia é publicada . LIVRO PRIMEIRO Era eu um rapaz de catorze anos , e não sabia quem era ... Vivia na companhia de um padre e de uma senhora que diziam ser irmã do padre , e de vinte rapazes , que eram meus condiscípulos . Destes , algum mais cultivado em conhecimentos do mundo perguntava-me se eu era filho do padre . E eu não sabia responder-lhe . Ora este padre parecia um homem muito virtuoso ; mas nem por isso seria extraordinário eu ser seu filho . Não o ouvira eu nunca salmear na harpa cantares de contrição ; mas é rigorosamente lógico que não haja David sem harpa ? ! Muitas vezes senti o atrevido ímpeto de dizer-lhe : " Mestre ! , perguntam-se se sois meu pai ; deverei responder que não , para me deixarem ? " Nunca , porém , fiz isto , porque entendi que não me era uma das primeiras necessidades da vida saber de quem era filho . Propenso para pensamentos elevados , erguendo os olhos ao céu , via eu , muitas vezes , voar um passarinho . E dizia comigo : " Perguntem lá Ãquela criatura de Deus quem é seu pai ? Como ela corta por tão alto um espaço que é todo dela ! Que liberdade , e que independência ! O meu espírito é como aquela andorinha ! Eu tenho um mundo tão amplo para voejar como ele ! Se eu pudersubir , subir , subir até Deus , não terei encontrado meu pai ? Isto da terra parece-me uma coisa tão pequena ! ... " Seria isto uma frioleira de criança : mas eu pensava assim , e não gostava que me acordassem neste meu berço , em que eu próprio me embalava , como se assim quisesse indemnizar-me de carinhos , que nunca recebera ao pé do berço da minha infância . Quem mais vezes me inquietava nestas ociosas ilusões era o padre . Eu aborrecia o latim e a lógica e os livros e a ciência . A andorinha era o meu modelo , e a andorinha não sabia latim . " Isto de que serve " , dizia eu folheando , aborrecido , o " Tito Lívio , " será necessário devorar meia existência , consumi-la num luxo de palavrões estéreis , para no fim de tudo ficar o mesmo homem , sem ao menos ter descoberto o sexto sentido do corpo humano ? " Não afirmo que fosse textualmente assim o meu raciocínio ; mas , afora as palavras que a sociedade me ensinou , e que eu lhe não agradeço , a ideia era aquela . Mas a ideia do padre era outra . Constrangia-me a estudar e especializava-me entre os meus condiscípulos . Se o carinho fosse sintoma de paternidade , nunca eu devera inspirar suspeitas de ser filho do mestre . Eu não tinha férias , nem passeios , nem prémios , nem elogios . Era um pária , um bastardo de pai , de mestre , de todo o mundo . E , contudo , dizia-me a pobre irmã do padre , que eu era o discípulo amado do seu irmão . Explicava , ao seu modo , aquela teoria de amar , e chegava à triunfal conclusão de que , sendo a ciência o meu património , quanto mais cultivado o recebesse das mãos do mestre , mais sagrados títulos recebia para a minha gratidão . Custava-me a perceber isto ; mas , sem grande esforço de inteligência , compreendia que era pobre . Não me apaixonava por isso . A andorinha passava nua nas campinas do céu ; e adormecia à tarde , sem granjear o alimento da manhã seguinte . Estas razões , dadas assim Ãquela boa D. Antónia , faziam-na chorar . A sensível mulher chorava com qualquer coisa , e mais não conhecia ainda o mundo ... ou parecia não conhecê-lo . Mas a andorinha não remediava todas as minhas ânsias de curiosidade . Eu queria saber quem era . Grandezas não me passavam pelo pensamento , nem eu podia fantasiá-las . Sem subsídio , sem adulação , sem uma dádiva misteriosa , que me fizesse cismar num segredo de família , que tinha eu com a grandeza tão eloquente desmentida pela minha jaqueta ordinária ! ... Um baixo nascimento , com todos os acessórios da indigência , esse sim , lembrava-me muito , e cheguei até a vesti-lo de uma poesia muito triste , mas muito filha da minha índole . -- Serei filho de um sapateiro ? Serei uma coisa que este padre achou numa esquina como acharia um gato ? Serei filho de algum ladrão justiçado , que este padre acompanhou à forca ? Estas perguntas começaram a doer-me o coração ; mas quisera que me respondessem : És filho de um sapateiro ; És um enjeitado , erguido da lama pela mão da caridade ; És filho de um ladrão ; mas ... cala-te , porque ainda vive o carrasco que enforcou teu pai , e não podes usar de um apelido , que balbuciam os que passam pela praça onde a forca está de pé . Parecia-me que o filho do sapateiro podia ser um primeiro-ministro ; Que o enjeitado poderia ser um carinhoso pai ; Que o filho do ladrão poderia ser um juiz implacável para todos os ladrões ... Fatigado em penosas lutas de conjeturas , adormecia , acalentado pela benfazeja ideia de que um filho sem pai conhecido também podia ser um homem conhecido de todo o mundo . Destas altas meditações descia eu muitas vezes a coisas insignificantes . Por exemplo : os meus companheiros tinham , cada um , quatro sobrenomes , cinco sobrenomes , seis , e daí para cima . Ora eu era só João . E os meus companheiros davam uma entonação galhofeira ao meu nome . Chamavam-lhe " chato " , davam uma explicaçãoridícula a cada sílaba , e queriam até que o nome , além da forma , tivesse cor pardacenta . Estas ninharias faziam-me rir , mas era um riso que podia literalmente dizer-se " pranto " . Queixei-me , uma vez , muito em segredo ao padre , e tive em paga uma repreensão severa . Chamou-me vaidoso , orgulhoso e soberbo . Lembrou-me o pouco pano que eu tinha para cortar por largo com as tesouras do amor-próprio , juntou outras metáforas assim sentenciosas , e concluiu com alguns textos bíblicos , que me não pareceram bem aplicados . A sua doutrina estou em que era a melhor , mas , desta vez , o meu espírito não recebeu o grão abençoado entre os espinhos , que lá fizera nascer o desprezo dos condiscípulos e do mestre . A irmã do padre era visitada de longe em longe por duas senhoras idosas , e com elas vinha uma nova , que eu faço aqui figurar em poucas linhas , porque foi ela quem primeiro achou no meu corpo indícios de um nascimento alto . Estava eu sozinho e escondido entre as faias , que sombreavam o fundo do quintal . Vieram lá ter comigo as velhas e a nova . Esta encarou-me com interesse , e disse para D. Amónia : -- Este menino parece-me que é muito triste ! ... Eu estranhei esta mostra de atenção ; levantei-me do meu banco de pedra ; perfilei-me como um galucho e fiz-lhe a minha cortesia muito provinciana . -- E é tão bem -- criadinho ! -- disse uma das velhas , pondo-me a mão na cabeça . E outra acrescentou : -- O menino não vai , aos domingos , ver a sua família ? -- Não tenho família nenhuma -- respondi eu com um desembaraço que não parecia meu . É porque vieram encontrar-se com o pensamento que mais me dominava , e que à força de amargura me cultivara , por assim dizer , a eloquência da sensibilidade . -- Pois o menino não tem família ? -- disse a nova . Calei-me . E senti que os olhos se me arrasavam de lágrimas ; mas , neste momento , gorjeou um passarinho entre as faias , e eu senti-me consolado . Lembrou-me a andorinha . E a velha continuou : -- Dona||_Antónia Antónia|_Antónia não nos tinha dito isto ... -- É verdade ! -- disseram as outras em coro . Eu não podia dizer também mais do que ele ... É para mim um segredo , como para ele , o seu nascimento ... D. Antónia , tartamudeando , satisfez assim os primeiros assomos de curiosidade Ãs suas hóspedes , mas evitou-lhes os segundos , que deviam ser-lhe atribulados ... A rapariga , essa media-me com atenciosa reflexão , e olhava-me os pés e as mãos , como se quisesse decifrar o enigma do meu nascimento , segundo a quiromancia . E voltando-se depois para as tias , disse com vivacidade : -- Olhem que mão e que pé tão pequenino ! ... -- É verdade ! -- exclamaram as velhas , menos D. Antónia , que diligenciava distrair as suas amigas daquela análise . -- Não ! -- disse a cabalística menina -- , aposto que este menino não é de classe baixa ! -- Porquê ? -- interpelou a irmã do padre , com uma visagem de pasmo . -- Não vê aquele pé e aquela mão ! Os filhos da gentalha não vêm assim ao mundo . -- Hás de sempre falar contra a gentalha , Isabelinha ! -- redarguiu a mãe ou tia . -- Todos são filhos de Deus ; todos têm pés e mãos . -- Eu não nego isso -- disse a gentil aristocrata com menos azedume -- , mas o que eu sei é que conheço uma pessoa de bem pelos pés , e vou jurar se quem vai dentro de uma carruagem puxada a quatro é filho de um alfaiate , contanto que leve a mão à vista na portinhola . -- Isso parece-me de mais ! -- retorquiu a tia com a melhor boa-fé . E eu , não sei porquê , simpatizava com o orgulho da tal Isabelinha . Gostava de ouvi-la , e quisera que ela encontrasse em mim alguns indícios mais da minha fidalguia . Se isto é miséria , perdoem-na a uma criança que , antes de aspirar a ter nascido por detrás de um reposteiro heráldico , já se contentava com ter um pai sapateiro , ou justiçado por ladrão . A família retirou-se . E eu fiquei reparando muito no meu pé e na minha mão . As andorinhas , desde este dia , voaram desapercebidas para mim . Desci a vista do céu para as coisas deste mundo . A vaidade começou a materializar-me . Parecia-me repugnante e baixa a comparação de um homem com um pássaro . Enquanto me não disseram que o pé e a mão delicada eram condições de um nascimento ilustre , imaginei-me filho de sapateiro , de soldado raso e de aguadeiro . Depois , nunca mais . Aquela Isabelinha dourou-me a imaginação , engrandeceu-me o espírito e enturgeceu-me de uma vaidade que eu já não podia esconder aos meus condiscípulos . Foi péssima a ocasião em que eles vieram chasquear-me o nome de " chato " e " pardo " ! Nesse dia , em que eu lamentava a baixeza do meu nome , e chegara a convencer-me de que João era um nome ignóbil , um nome de carreteiro e de gaiato , vieram eles insultar-me na minha solidão . O mais desabusado , e também o mais comprido em sobrenomes heroicos , cruzou os braços em postura dramática , diante de mim , e disse com um sorriso de escárnio : -- João ! João ! João ! , três vezes João ! Porque te não crismas , infeliz ? ! Os teus condiscípulos lamentam o infortúnio de contarem no seu grémio um companheiro chamado João ! Lava-lhes esta afronta , se podes ! Encarei primeiro com desprezo este orador ; depois respondi com presença de espírito e azedume : -- Não me admirava que rapazes da minha idade viessem zombar do meu nome ; mas o senhor , que tem vinte e dois anos , é coisa que me faz mais compaixão que zanga ! Porque não aproveita melhor o seu tempo , tirando significados e amigando-se com o Virgílio , seu inimigo cruel ? Esquece-se que foi reprovado em latim no ano passado , e que há de sê-lo no ano que vem , se gastar o seu tempo a compor discursos para fazer rir os meus condiscípulos à minha custa ? Esta resposta irritou o meu adulto companheiro , muito mais porque os meus condiscípulos , que tinham vindo para se rirem de mim , riram-se dele . Com os olhos a fuzilarem raiva , chegou-se ao pé de mim , e puxou-me uma orelha desapiedadamente . A dor senti-a forte , mas a dor moral , a vergonha , não me pungia menos . Conheci então , pela primeira vez , o desejo da vingança . A primeira coisa que estava ao pé de mim era um vaso pequeno com um cato eriçado e espinhoso como um cedeiro . Dei-lhe com ele na cara . E devia ser insofrível a dor que lhe fez , porque o taludo gracejador levou as mãos à cara e não fez contra mim o mais ligeiro movimento . Os condiscípulos ficaram pasmados e silenciosos . Eu passei por entre eles com um pueril orgulho de uma ação legitimamente nobre , e recolhi-me ao meu quarto a recapitular o primeiro capítulo da minha Mada . Não me deixaram só muitos minutos . D. Antónia , colérica e descomposta , entrou de repente . O que eu coligi do seu grasnido foi que uma tremenda justiça ia ser feita em mim , logo que o padre recolhesse . Arrefecidos os calores do meu gentil esforço , comecei a ter medo do mestre . Parece que o coração se me despegava , quando soavam passos na vizinhança do meu quarto . Invoquei todos os recursos da resignação para suavizar o castigo , que me atormentava em perspetiva . Imaginei-me com um braço quebrado , com uma gorilha ao pescoço , com oito dias de pão e água , com o ódio do padre eternamente irritado contra mim . Quis transigir evangelicamente com todas estas torturas , mas não houve nada que diminuísse a sezão do medo . Senti febre ! O susto parece que não me pisava os ossos , e macerava as carnes . Era uma doença indefinível aquela minha ! O que eu sei é que caí sobre a minha cama , alquebrado e esvaído , como se uma catapulta me atirasse para ali . Não sei o tempo que decorreu desde que me deitei até que abri os olhos do entendimento para conhecer o padre , e a irmã , e o cirurgião da casa . Pensei que sonhava . O cirurgião punha-me a mão na testa e apalpava-me o pulso . O padre olhava-me com ar de bondade . E D. Antónia pregava os olhos , com ansiedade , na cara do cirurgião . -- Então que tens , João ? -- perguntou o mestre em tom amigável . -- Não sei , senhor padre-mestre -- respondi eu , mentindo como convinha . -- Bateram-te ? -- disse ele . E eu calei-me , porque não sabia se era conveniente dizer a verdade . -- Bateram-te , João ? -- replicou o mestre , descendo a voz à nota baixa da severidade . -- Quase nada -- respondi eu , naturalmente a tremer uma segunda sezão . E o facultativo , que tinha debaixo dos dedos as pulsações do meu sangue , reconheceu a influência patológica que tinham em mim as perguntas do padre . E , por isso , fez-lhe um gesto de silêncio , a que o padre obedeceu prontamente . Retiraram-se ambos , deixando-me só com D. Antónia . Esta pobre senhora tinha o coração de um anjo . Devota e caritativa com os pobres de pão , não o era menos com os mendigos de consolações . Comigo foi quase sempre boa . Até mesmo quando o padre me condenava a comer só pão , vinha ela , como a pomba dos eremitas do deserto , trazer-me carne . O que ela não queria era que eu falasse em pai ou mãe ; por isso que a Providência do Senhor não enjeitava os filhos , e adotava como seus os que na terra se chamavam enjeitados : razão dela . No pouco tempo que ela esteve comigo no quarto , rezou sempre ajoelhada a uma imagem de S.||_João_Baptista João|_João_Baptista Baptista|_João_Baptista , advogado das enfermidades da cabeça . De vez em quando perguntava-me se a cabeça me doía , e , com efeito , não era só dor , era um vesúvio que eu tinha ali a ferver e a oscilar-me nos olhos como as entranhas de uma explosão . E D. Antónia rezava ainda , quando entraram o padre e o cirurgião . O padre vinha triste , e fitava-me com extraordinária meiguice . O cirurgião trazia não sei que cataplasmas , que me embrulhou nos pés . Parece que ambos me estudavam cuidadosamente o meu menor movimento de olhos , e reparei que o facultativo me estava continuamente observando as orelhas . Enquanto , muito depois , não soube que as oscilações das orelhas eram sintomas de inflamação de cérebro , cuidei que me estavam procurando os estragos do orelhão que sofrera . Não pude demorar-me muito nestas suposições , porque caí numa sonolência profunda . O que eu sofria era uma congestão cerebral , se devemos acreditar o cirurgião , que a explicou cientificamente como consequência do medo . Tive alguns dias dos quais não tenho lembrança alguma . Passei-os , creio eu , no delírio e nos espasmos , que caracterizam esta doença . Passado este intervalo de vida , que me esqueceu talvez , porque se confundia com a insensibilidade do moribundo , lembro-me que vi ao pé do meu leito , uma senhora . Era de noite , porque no quarto havia luzes . Quem ali estava era ela sozinha . Parecia-me uma figura das minhas visões da febre . Duvidei muito tempo se aquele vulto era uma realidade ; e duvidava com os olhos fixos nos olhos dela , que ainda agora os vejo rasgados e negros . Era alta e não me pareceu nova , nem formosa . Vestia uma capa escura , e tinha um lenço preto na cabeça , posto.com o desalinho de uma criada de servir . Por baixo deste lenço , viam-se as curvas das tranças do cabelo desatadas . E não posso com verdade dizer mais nada daquela figura . Lembro-me que lhe ouvi algumas palavras , que não seriam muito diversas deste pequeno diálogo , que tivemos . -- Joãozinho , como se sente ? -- Dói-me a cabeça , e os olhos , e o corpo todo . Quem é a senhora ? -- Sou uma sua amiga ... sou uma amiga da irmã do seu mestre . -- E como se chama ? Eu nunca a vi nesta casa ! -- É porque tenho estado fora de Lisboa , há muito tempo . -- Tenho sede -- disse eu como quem suplicava uma gota de água . -- Tenha paciência ... o menino tem febre , e não pode beber água . -- Dê-me uma gota de água , senão eu morro . -- Não dou , porque morre , se a bebe . E a sede devorava-me . Vi aos pés da cama um jarro com flores . Lembrou-me que havia água naquele jarro . Fiz um esforço de desesperado . Saltei fora da cama ; mas este meu saltar foi cair em cheio no chão . Aquela senhora soltou um grito . Lançou-me , com ânsia , os braços para erguer-me ; e não pôde . Correu à porta ; bateu com aflição , e , quando a porta se abriu , vi que ela se rebuçou no capote , deixando apenas meio rosto à vista do padre e da irmã , que entraram . Levantado pelos braços robustos do mestre , fiquei prostrado na cama . Pedi água atribuladamente , e deram-me alguma coisa , que me iludiu a sede . E retiraram-se , depois , menos a misteriosa senhora . Notei que entre o padre e ela não se trocaram duas palavras . D. Antónia apenas lhe disse , quando se retirou : -- Faltam cinco minutos . E a minha incógnita enfermeira veio sentar-se à cabeceira da minha cama . -- O menino é muito impaciente -- me disse ela com afago maternal , -- E se morresse ? -- Quem me dera morrer ... -- Porquê ? -- Eu não sei de que serve a vida quando se sofre tanto ! -- E o menino sofre ? -- Muito . -- Porque está doente , não é assim ? -- E quando tenho saúde . -- Pois que lhe falta ? Não tem que comer , e que vestir ? -- Eu não tenho andado nu , nem morrido de fome : mas isso não me fazia sofrer a mim . -- Pois que queria o menino ter ? -- Pai . Houve um silêncio de alguns minutos . -- Mas este padre não lhe tem servido de pai ? -- Não é meu pai , creio eu . -- Decerto não . -- Decerto não ? -- exclamei eu com precipitação . -- Então sabe quem é meu pai ? -- Não sei , menino ; mas conheço que este bom padre e Dona||_Antónia Antónia|_Antónia são muito seus amigos . Não é ela tão carinhosa ? -- Não é minha mãe ... Deu-se o mesmo silêncio de há pouco ; mas desta vez percebi que aquela senhora levava um lenço aos olhos . E pegando-me na mão , senti um beijo , e depois uma lágrima . Tudo isto parecia-me extraordinário ! A minha cabeça estava muito débil para estas comoções : perturbou-se-me , e senti-me tomado de um sono , que era sempre a minha salvação nas agonias do desmaio . Ouvi ainda bater à porta . Senti ainda um beijo , muitos beijos e muitas lágrimas . E depois aquela mulher fugindo-me como a bela imagem de um sonho . E com ela , fugiu-me o alento , porque desfaleci . Alta noite , D. Antónia afastava-me dos olhos os cabelos ensopados em suor . A boa senhora velava-me com estremecimento de mãe , porque deve ser assim , como ela era , a mãe ao pé do seu filho , varado de dores . -- E aquela senhora ? -- perguntei eu . -- Foi para sua casa . -- Quem era ela ? -- Uma amiga minha . -- E minha , não é verdade ? -- É verdade , meu filho ... parece que é muito sua amiga . -- Como se chama ? -- É Maria . -- É só Maria ? -- Não é tão bonito nome ? Não é assim que se chama a Mãe||_de|_Deus de||_de|_Deus Deus|_de|_Deus ? -- Também o precursor de Jesus Cristo se chamava João , e o seu discípulo amado também era João , e , contudo , dizem que o meu nome é feio ! -- Não é , não , meu menino . Deixe estar que lhe não tomam a fazer pirraça os condiscípulos com o seu nome . -- Então a tal senhora chamava-se Dona||_Maria Maria|_Maria , na verdade ? A hesitação de D. Antónia era uma espécie de repreensão à sua mentira ; mas esta observação , que faço hoje , não a fiz então , porque nem ao menos imaginava em sonhos o valor do nome daquela mulher . -- Tomara eu tornar a vê-la ! ... -- disse eu com profunda saudade por ela . -- Há de tomar a vê-la , mas peça a Deus Nosso Senhor que lhe dê saúde . O padre entrou nesta ocasião , e disse à irmã : -- Não sabe que o pequeno está proibido de falar ? Caímos todos em profundo silêncio . A minha congestão cerebral fizera crise ; mas a convalescença era morosa e arriscada . Padre Dinis animava-me ao seu modo . Os carinhos dele eram como a indiferença de muita gente , eu confesso , porém , que as cuidadosas precauções , em que punha o meu restabelecimento , eram persuasivas e depunham muito a favor da sua alma boa . Algumas vezes perguntei pela suposta D. Maria : D. Antónia , nas suas respostas , era sempre misteriosa com ela . Dizia-me , umas vezes , que era muito ocupada , e não podia visitá-la com frequência . Contradizia-se , outras vezes , dizendo que tinha vindo saber de mim , quando a febre me não deixava vê-la . D. Antónia era verdadeira sempre , e só um grande embaraço poderia obrigá-la a uma inocente mentira . Dera-se o caso neste segredo , que eu devera adivinhar , se nos meus catorze anos de então se incluíssem quinze dias da sociedade de hoje . Ergui-me do meu leito , onde padecera três meses , e onde por mais de uma vez , me fora proferida sentença de morte pelo cirurgião . Infelizmente asprevisões da medicina não podiam competir com os desígnios da Providência . Vivi quando devera morrer . E , contudo , a minha posição era já outra na pequena sociedade que eu conhecia . Deu-se-me um fato novo , deu-se-me uma nova liberdade , uma nova consideração , e até um novo quarto . O que era isto ? Não mo dizia D. Antónia , a quem eu o perguntava com infantil idiotismo . Não mo dizia o padre , que nem sequer me permitia a ousadia de perguntar-lhe&lhes+o . Os meus condiscípulos , esses pareciam esquecidos do meu infeliz nome ; e o outro , que me puxara a orelha , fora expulso do colégio , alguns dias depois da nossa funesta luta . Comecei a saborear os livros , que tão amargos me tinham sido . Adquiri o hábito de estudar espontâneo e cuidadoso . Senti-me feliz de uma alegria , que não sabia dizer . E comecei a ver no mundo alguma coisa , que me persuadia do grande bem que a vida era . Esta minha transformação deu nos olhos do padre , que se esmerava em apurar-me o gosto da ciência . Vi-o alegrar-se com a minha alegria ; mas nem uma palavra lhe ouvi que me explicasse a causa remota da minha transformação . Fechado no meu quarto , estudava eu , alta noite , quando bateram à porta . Abri . Entrou uma mulher encapotada . Fechando a porta , mal entrou , o mantocaiu-lhe dos ombros e eu senti-me comprimido ao seio dela por um abraço impetuoso . Era a mulher daquela noite da febre . Bem a conheci . Aqueles olhos negros e luminosos eram os dela . Eram suas aquelas faces pálidas e magras . Não podia ser de outra daquele talhe de formas melindrosas , e ao mesmo tempo robustas de um vigor nervoso , que parece , nalgumas organizações , o galvanismo de um cadáver . Comigo nos braços , a linguagem dela eram lágrimas . Palavras , se as tinha , expiravam-lhe nos lábios em suspiros . O mistério aclarava-se . O coração bateu-me uma pulsação nova . Rasgou-se-me no entendimento uma nuvem escura . Senti um calafrio estranho , um abalo de inspiração , um impulso íntimo , que me fazia ajoelhar Ãquela mulher . E não pude vencer-me . Curvaram-se-me os joelhos ; e neste lance de adoração extática , ouvi uma palavra : " Meu ... " , e quando instintivamente colava os lábios na mão daquele mulher , a frase saiu completa dos lábios dela ... " Meu filho ! " Não me peçam explicações do que então senti . O silêncio de então , não podem hoje as palavras decifrá-lo . Foi um enlevo que mata a expressão , e indemniza com lágrimas o sentimento . A aparição improvisa da mãe a um filho , que sente pulsar no seu um coração cuja existência ignorava -- uma surpresa assim traz consigo um terror santo , que deve a preexistência do homem na presença de Deus . Quis balbuciar a palavra " mãe " e senti-me embaraçado : não sei se era pejo , se perturbação , se alegria ! Não pude . -- Não me dizes nada , meu filho ? -- murmurou minha mãe , como se receasse ser ouvida . E levantando-se da penosa posição em que me tinha abraçado , sentou-se numa cadeira , apertou-me ao seio , e encostou ao meu ombro a sua face , que queimava . -- Lembras-te de me teres visto ? -- disse ela sorrindo e chorando . -- Lembro-me todos os instantes ; nunca mais pude esquecer nem as suas palavras , nem as suas feições . -- E só me viste uma vez ? -- Uma só ; mas sei que esteve ao pé de mim . -- Que sentes agora no teu coração , meu filho ? -- Não sei o que sinto : lembra-me que tinha assim uns sonhos quando estava doente . -- Podes ser amigo de ... podes ser meu amigo ? -- Amigo de ... -- da tua mãe ? Eu parecia delirar na sofreguidão dos seus beijos . Lembra-me que no rosto dela havia um movimento , uma vibração de gestos , que parecia o acesso de uma demência . Eu sentia correr-lhe por todo o corpo umatremura que me assustava , porque eu não sabia o que é a mulher , quando , abraçada a um ente que julgava perdido , pode exclamar : " Este é meu filho ! " -- Eu preciso ouvir-te ! -- disse ela com apaixonada energia -- , preciso que fales , pronuncies o meu nome muita vez ... Parece que duvidas que eu seja tua mãe ? O coração não te diz que o sou ? Responde , meu filho ! ... Eu balbuciava sons inarticulados . Era um acanhamento invencível ; um pejo que me incendiava as faces ; uma coação indefinida , semelhante a outra , e essa única , sentida na minha vida ! O coração dizia-me que ela era minha mãe ; e os lábios convulsos e indecisos parece que recusavam proferir um nome que lá não fora escrito , na infância , pelos lábios matemos . Com os olhos fixos no regaço da minha mãe , e com uma espécie de ressentimento , que o meu silêncio simulava , dir-se-ia-que era um filho repreendendo o desamor dessa mãe , que o abandonara criancinha , e viera procurá-lo adulto para lhe dizer : " Tenho direito ao teu amor , aos teus carinhos , e ao teu respeito , porque te dei a existência . " Mas um tal pensamento , uma tal vingança não era própria da minha idade , nem que o fosse , bradaria mais alto o grito filial , a exclamação represada , longo tempo , no coração escurecido pela orfandade . E , contudo , minha mãe julgou que o meu silêncio era um queixume . Viu na minha suposta inércia uma acusação providencial , um castigo do céu cujo instrumento era a minha inocência . E chorava com a aflição . Lia-se-lhe a tormenta do espírito na face atribulada . Lembra-me que era sublime de agonia aquela mulher , relutando com o remorso , e encarando-me espavorida , como se eu fosse uma larva ! Era então que os olhos lhe cintilavam daquele brilho sinistro de demência . As faces pareciam aradas por um hálito de fogo , que as ressequira . Os lábios estremeciam-lhe de crispações nervosas ; e os cabelos , humedecidos pelo suor da testa , lançava-os em desalinho desesperado para trás das orelhas . Não sei que a expressão do ódio se manifeste mais rancorosa do que então era na minha mãe a expressão do amor ! Mas não era essa a comoção que , naquele transe , lhe dava ao aspeto um colorido medonho . Enquanto os lábios dela me beijavam em fervente comoção , a víbora do ódio mordia-lhe o seio , e derramava-lhe um veneno diabólico nas artérias . Esse ódio era uma sezão , uma síncope , um acesso de hidrofobia , que fazia daquela infeliz uma possessa ! Não me peçam já a história deste ódio , o quadro lúgubre deste tipo excecional nas amarguras . É cedo ainda ; porque as lágrimas são o continuado viver de algumas vidas , e , se não fossem relevadas uma a uma , a biografia dessas existências seria monótona e fria . Até para as lágrimas é preciso o método ... Eu tentava despertar minha mãe daquela espécie de sonambulismo despedaçador ; mas o ataque já não cedia aos meus acanhados esforços , tinha de passar por algumas crises , debater-se em convulsões impetuosas , enfraquecer-se em tremuras espasmódicas e terminar pela mortal atonia dos músculos . Felizmente a cadeira , em que ela se sentara , estava próxima do meu leito . A minha mãe , desmaiada , pendeu a cabeça sobre a cama . Limpei-lhe da face um suor frio . Julguei-a morta . E , quando esta dilacerante suspeita me entrou no coração , corri à porta , abria-a , chamei D. Antónia , e pedi-lhe com as mãos erguidas que mandasse chamar um médico para a minha mãe . A pobre senhora , atordoada com o estado assustador da sua visita , correu a chamar o irmão . O padre , menos alvoroçado , mas com terror visível nas feições , tomou o pulso da desmaiada e estremeceu . Pegou num espelho , colocou-lhe&lhes+o sobre os lábios , observou-o e , vendo-o embaciado , exclamou com desafogo : -- Está viva ! E ouviu-se então um sinal na porta , e uma voz de fora que dizia : -- Já passou um quarto de hora . Neste momento , minha mãe abriu os olhos . Sentou-se . Contemplou-nos . Fez um gesto de retirar D. Antónia , que a tinha nos braços : e D. Amónia ia retirar-se , quando o padre repetiu as palavras , que pareciam tê-la acordado : -- Já passou um quarto de hora . -- Já ! -- exclamou minha mãe . E tomando a capa do chão , sem ao menos se despedir de mim , desapareceu , como se fugisse à desonra daquele quarto . E em seguida , ouvi o rodar rápido de uma sege . O segredo do meu nascimento parecia-me escurecer-se cada vez mais , não obstante me ser fácil conjeturar a classe a que pertencia . Minha mãe é que estava sendo para mim um insondável segredo . Aquele frenesi , aquela desesperação , aquele sobressalto pareciam-me inexplicáveis ! Durante a rápida entrevista , que tivemos , tais coisas vi , que , recordando-as , depois sozinho , cheguei a lembrar-me se o que eu vira seria um ataque de loucura ! D. Antónia , a quem eu revelava as minhas infantis suspeitas , não me tirava dúvidas . A sua linguagem era sempre retraída e indecisa : parece que tremia de pronunciar a palavra " mãe " ; e por mais instantes súplicas , que lhe fiz , não adiantou nada ao que eu sabia . O padre não me falava em nada . Ouvia-me , com mais afabilidade , mas era sempre o mesmo rosto frio , e a mesma austeridade de mestre . A meditação absorvia-me as horas de estudo , e o padre não queria que eu meditasse . Ampliou-me as lições , obrigou-me a raciocinar , em ciência , e tentou assim abstrair-me das meditações estéreis da minha vida enigmática . Decorreram meses , e não vi minha mãe , nem tive quem me falasse dela . Cheguei a sofrer uma dorida saudade daquela mulher . Refletia-se no meu coração a imagem que sempre vira : soava-me em sonhos o eco das suas palavras ; sentia nas faces o calor dos seus beijos , e a impressão estranha das suas lágrimas . Este idealismo converteu-se em amor profundo . Senti que era filho daquela mulher , porque mo dizia a voz profética da alma , a convicção íntima de uma faculdade que tem o coração , e não carece dos sentidos externos para funcionar . E a não ser filho , eu deveria deste ideal passar à violenta paixão de amante . A não poder chamar-lhe " mãe " deveria chamar-lhe " esposa " . Eu não sabia então que estes dois sentimentos preenchem as mais imperiosas condições do amor ; mas adivinhei-os como hoje os sei , depois que vinte anos de experiência mo fizeram saber . Há verdades no mundo , que se veem , em toda a sua luz , ou pelos olhos puros da candura , ou pelos da experiência . O mestre ordenou-me um dia que me vestisse para passear com ele . Admirou-me esta ordem , porque o dia era letivo , e ao domingo nunca se dera uma semelhante atenção para comigo . Saímos , e andámos muito . O padre não me deu uma palavra quando atravessámos a maior parte da cidade . Reparei , num letreiro de uma rua quase deserta , e li CAMPOLIDE . Andámos ainda muito ; atravessámos uma azinhaga , perdemos a vista de Lisboa por algum tempo , enquantocaminhávamos encostados ao muro de uma quinta : e ao cabo desse muro estava um palacete sombrio , triste , e quase escondido entre as copas das faias , dos chorões , e dos ciprestes . Ao lado desse palacete o terraço formava uma curva por um banco de pedra . O padre sentou-se e mandou-me sentar aí . -- Gosta deste sítio , João ? -- perguntou o padre . -- Gosto muito ; tornara eu aqui viver . -- Porquê ? -- Não sei porquê : acho isto tão triste ... E o padre sorriu-se . As janelas , exceto uma , estavam fechadas , como se a casa não tivesse moradores . Essa mesma que não estava de todo fechada apenas tinha meia porta aberta . Reparei que o padre olhava muito para aquela janela . Acompanhei-o nesta curiosidade muitas vezes . Havia mais de uma hora , que aí estávamos , quando , através da vidraça , divisei um vulto . O padre fez uma ligeira saudação à pessoa , que aparecia , e disse-me que estivesse de pé com o boné na mão . Vi que a pessoa da janela fazia um sinal . O padre mandou-me sentar e cobrir . O vulto deixou cair a dobra da capa que lhe escondia meio rosto , e eu conheci minha mãe . Apenas recebi esta surpresa , não pude conter-me , e disse com sobressalto " é a minha mãe ! " O mestre mandou-me calar . Não podia despregar os olhos da face dela . Acenava-me , sorria , limpava os olhos , e fazia não sei que sinais ao padre , a que ele respondia afirmativamente . Vi que a minha mãe , de instante para instante , desaparecia como quem procura segurar-se de alguma surpresa . Pareceu-me mais cadavérica . Em redor dos olhos negrejavam-lhe as nódoas do sofrimento , como se as carnes ali tivessem sido maceradas . Pedi ao padre que me deixasse lá ir . O padre , sorrindo , fez-lhe sinal a ela do meu pedido . Vi-a também sorrir ; mas que mortal amargura naquele sorriso , naquela expressão irónica da desgraça ! Passaram alguns minutos . A minha mãe afastou-se e voltou precipitadamente , dizendo-nos adeus . O mestre tirou o chapéu , fez que enxugava o suor da testa e disse-me que não olhasse para lá . Mas não pude obedecer-lhe . A vidraça , que a minha mãe não ousara abrir , foi de repente aberta com estrondo . Olhei , quase violentado ; e vi um homem de figura assustadora , que nos olhava com a vista colérica . O padre olhou também por um momento , e ficou-se na postura em que estava , simulando a mais bem fingida indiferença , e não me proibiu que olhasse para aquele homem , porque assim talvez julgou que nos tomaríamos menos suspeitos . Mas os seus reparos no padre pareciam aumentar de interesse . Não sei o que tinha a vista de tal homem , que me incutia terror ! Morto estava eu por me retirar dali , quando ele com a voz imperiosa , e a testa franzida , nos disse : -- Querem daí alguma coisa ? -- Não , senhor -- disse o padre . -- O que nós quisemos foi descansar um instante ; mas , se somos importunos , retiramos . O mestre levantou-se , e o homem , retirando-se , fechou a janela , e nós seguimos o caminho por onde viéramos . Na noite deste dia , tive eu o seguinte diálogo com o padre : -- Pouco posso , por enquanto , adiantar-lhe sobre o seu nascimento ... -- Mas ... pouco que seja ... -- Sabe que aquela senhora é sua mãe ... -- Sim ; mas quem é aquela senhora ? -- Não tem necessidade de o saber nem de o perguntar . É uma pessoa que lhe deu a existência e a educação . -- e o meu pai era aquele homem que apareceu na janela ? -- Não . O seu pai já não vive . -- E aquele homem não é meu parente ? -- Não é seu parente : é marido da sua mãe . -- O marido da minha mãe ! ... Mas é meu inimigo , não é verdade ? -- Porque pergunta se é seu inimigo ? -- Porque não sabe que eu existo . -- Sabe que existe ... mas ... não me faça mais perguntas , que eu não lhe respondo . Mais cedo que eu e o menino quereríamos , saberá tudo . Este diálogo foi interrompido por D. Antónia , que entrou no meu quarto entregando uma carta ao irmão . O padre leu , meditou , pareceu lutar em desejos opostos , e por fim , retirando-se , disse-me : -- Quero dar-lhe alguns traços da vida amargurada da sua mãe . Eles aqui estão escritos por ela ... Leia esta carta e peça a Deus que se compadeça de quem a escreveu . A carta escrita a lápis , dizia assim : O conde suspeitou . Falou-me da perturbação em que você ficara quando o vira . Quis arrancar-me o segredo dessas duas pessoas , Fez-me algumas perguntas com o punhal sobre o coração . Vi-lhe os olhos injetados de sangue , e cuidei que me matava . Ofereci-me , como sempre , ao sacrifício , pedindo-lhe de joelhos a morte . Cuspiu-me no rosto quando eu estava nesta humilde postura , Saiu como furioso em procura de você ; era tarde , felizmente , para encontrá-lo . Deu ordens aos criados para indagarem de você alguma coisa . Será uma diligência baldada . Não torne a sair com o pequeno . Foi uma imprudência minha . Parece-me que seria privada da luz outros oito anos ! Deus me tire deste mundo , por piedade ! Tenho tentações de matar este verdugo . Ajude-me a morrer com resignação . Duas linhas suas , ou do meu filho , sejam-me doces na hora da morte , sejam a minha recompensa , a minha coroa deste longo martírio . Adeus . Abrace meu filho , sim ? Adeus . A. A dor parece que me elevou o espírito para o extremo refúgio dos desgraçados ! Caí de joelhos e , com as mãos erguidas , pedi a Deus compaixão para a minha mãe . A minha alma cobriu-se de um véu de tristeza perpétua no momento em que li a carta da minha mãe . já não quero , como Job , datar a minha desgraça desde o ventre materno . Verdadeiramente infeliz , sei que o fui desde que conheci uma mulher que me chamava filho , mas uma mulher cujo infortúnio obrigava o padre a chorar , e justificava de mais essas lágrimas com a carta que eu acabava de ler . Todas as manhãs , a pretexto de saudar o mestre , perguntava pela minha mãe ; e , durante três meses , não obtive notícia boa nem má . O padre não tivera mais inteligência com a desgraçada ; e respondia que não se admirava disso , porque não seria novo deixar de tê-la oito anos . E eu recordava-me do que fora escrito pela minha mãe , a respeito desses oito anos em que não vira a luz . Este suplício parecia-me impossível ; e por mais que eu pedisse ao padre a causa deste castigo bárbaro , respondia-me que não podia exceder as ordens da minha mãe , a respeito da sua vida . D. Antónia pouco mais fingia saber que eu . O segredo parecia todo do sacerdote , e o sacerdote era um livro de sete selos , que só poderia ser aberto pela mão de um cadáver , como ele me disse , julgando curar-me com veneno a ferida que pedia bálsamo . Para que viera aquele anjo limpar-me as lágrimas da orfandade ? Para substituir a estas as mais amargas de um filho , que tem aconsciência das torturas misteriosas da sua mãe sem poder acudir-lhe , sem poder suavizar-lhe&lhes+as com a esperança de um futuro melhor ! Eu comecei muito cedo a recolher o meu espírito em dolorosas meditações , impróprias da minha idade . Não soube o que era viço da infância , nem ideal de venturas sonhadas nessa quadra de inocentes desejos . A realidade em mim começou comigo , porque não há poesias nos pesares , nem elevações extáticas para o céu , quando se pisam espinhos onde deveram desabrochar-nos flores . E , portanto , eu não podia distrair os meus cuidados do viver aflitivo da minha mãe . A tristeza tomara-se uma doença , que eu sentia enervar-me a vida e exaurir-me de alentos para esperar-lhe remédio . Há dores silenciosas , que nos incutem respeito , quando o que as sofre nos não pede compaixão para elas ; a minha dor era assim . No fim de três meses , soube que a minha mãe vivia ; mas poucas linhas revelam que vida era a sua . O padre leu-me este bilhete , porque as palavras que continha não devia eu sabê-las todas : Este homem suspeitou do criado Bernardo , e despediu-o . Fiquei privada desse bom criado , que era a minha esperança , e que tanto me custara a movê- lo no meu favor . Não tenho podido achar um meio de lhe escrever . Estas mesmas linhas escrevo-as a tremer , porque não sei se irão cair na mão do conde . Este bárbaro inventa caprichos de maldade para flagelar-me . Sinto-lhe um desejo diabólico da minha morte . Não se decide a matar-me ! ... Será umacobardia ? Será o prazer de ver-me penar ? e o meu filho ? Fala-lhe de mim ? Tenho-o tão impresso na imaginação ! ... Se eu não sentisse este amor de mãe , que me abrasa o coração , bastaria o reflexo do amor , da saudade ... oh meu Deus ! ... da saudade de um anjo , que foi deste mundo , legando-me a herança de lágrimas , que em breve legarei ao nosso infeliz filho ! Senhor||_padre|_Dinis padre||_padre|_Dinis Dinis|_padre|_Dinis , por caridade não poupe carinhos a esse menino ! Seja-lhe pai pelo amor , pela religião , pela piedade e pelo bom coração que Deus lhe deu . O padre , -- terminando a leitura incompleta deste bilhete , abraçou-me com extraordinária efusão , e chorou comigo . No dia seguinte disse-me D. Antónia que um criado de farda me procurava ; mas que sem licença do seu irmão não consentia que eu lhe falasse . O criado instava que não era pessoa suspeita ; mas a tímida senhora não podia transgredir os preceitos do seu irmão . Ora o padre estava fora de casa , e não era certa a hora em que recolhia . Quando vi entretida D. Antónia corri para o criado , que não conheci . Perguntou-me o meu nome , porque ele também me não conhecia . Certificou-se de mim , perguntando-me se eu estava certo de ter sido procurado por uma senhora que se dizia minha mãe . Esta pergunta fez-me vacilar na resposta , porque não sei como imaginei que aquele homem era um enviado do algoz da minha mãe . O criado , vendo-me em embaraços nada semelhantes à decisão com que viera falar-lhe , disse-me que não receasse dizer a verdade , porque ele era o confidente da minha mãe no tempo em que ela viera ver-me . E , de repente , lembrou-me o escrito que ouvira ler um dia antes , e o nome do criado que a minha mãe lamentava ter perdido . -- Como se chama ? -- lhe disse eu . -- Bernardo . -- Ah ! , então decerto é meu amigo ! ... E tomando-me nos braços , onde eu me lançara com alegria , o pobre homem apertava-me , e soluçava não sei que palavras , que bem se via que vinham do coração . -- O filho da minha querida senhora ! -- exclamava ele . -- O filho daquela santa , que vai deste mundo tão pesada de dores ! -- Então sabe a vida da minha mãe ? -- perguntei eu com ansiedade . -- Diga , diga , tudo o que souber ! ... porque eu tenho chorado muito ... sei que ela é muito desgraçada ; mas nem ela nem o padre , nem Dona||_Antónia Antónia|_Antónia me dizem a causa dos seus sofrimentos . -- A causa dos seus sofrimentos ... -- disse ele , limpando a face , onde as lágrimas corriam copiosamente . -- Pois o menino não sabe a causa dos sofrimentos daquela pobre senhora condessa ? -- Condessa ... -- exclamei eu -- , pois minha mãe é condessa ! ... Ah ! ... sim , sim ... já sei porque é condessa ... E lembrou-me então o começo da primeira carta que vira escrita ao padre . Lá falava-se de um conde , mas a minha educação , tão fora dos usos mais triviais da sociedade , não me disse logo que a minha mãe era forçosamente condessa por ser a vítima , a mulher , ou a escrava desse conde . -- A sua mãe , não há dúvida , é a senhora condessa de Santa Bárbara , por ser casada com esse homem , que não tem em todo o mundo quem se meça com ele em maldade . É um tigre , menino ! , aquele homem é o que se pode ser ! Deus o livre a Vossa Excelência de lhe ver os olhos quando o sangue lhe sobe a eles ! -- Eu já o vi , e tive-lhe medo ! -- Bem no dizia eu ! Não que ele , realmente , é um homem que Deus mandou a este mundo para castigo da humanidade . Eu sofri-o dois anos , porque , se não fosse eu , sua mãezinha morria de sede alguma vezes ... -- Morria de sede ! -- exclamei eu , quando comecei a ver por mais longe os limites de um verdadeiro infortúnio . -- Mas porquê ? Minha mãe que mal fazia a esse homem ? -- Nenhum ... pelo contrário , parecia que lhe andava ali sempre de joelhos a adivinhar-lhes as vontades . -- Mas ele sem mais nem menos ... -- A falar-lhe a verdade , meu fidalguinho , eu não sei contar-lhe a história tal qual , porque lá em casa ninguém sabia porque sua mãezinha era tão martirizada ; mas , pelos modos , a causa principal de tudo aquilo era ... o menino . -- Eu ! , pois que mal fazia eu a esse homem ? -- Isso são outras coisas , que eu , ainda que as sei , não lhe&lhes+as quero dizer , porque o menino é muito novo , e não mas entende . Lá virá tempo em que tudo se saiba . -- Mas diga-me , Bernardo , vossemecê conheceu meu pai ? -- Nada , não conheci . -- Mas sabe quem ele era ? -- Também não , nem perguntei a ninguém por isso , porque não era da minha competência . -- Mas eu já sei que ele morreu ... -- Morreria ; mas que eu saiba não . Quem pode dizer-lhe tudo é cá o senhor padre , que sabe a vida da senhora||_Condessa Condessa|_Condessa desde que a vossa Excelência nasceu . -- Desde que eu nasci ? -- Pois então ! O menino creio que está aqui desde que nasceu , ou pelo menos quem tem tratado sempre da sua educação é cá o senhor padre-mestre . -- Mas eu ainda há pouco tempo sei que tenho mãe . -- Isso não admira , porque sua mãezinha esteve oito anos fechada sem ver sol nem lua ... -- Porquê ? -- Enquanto a mim é porque disseram ao senhor conde que a senhora condessa tinha um filho . Isto é , eu não afirmo , mas parece-me que a sua mãezinha uma vez , estando em delírio , disse uma coisa que era isto , ou que se parecia com isto ... Neste momento , contra os meu desejos , apareceu o padre . Pedi a Bernardo que não dissesse o que me tinha dito . O padre tratou-o afavelmente ; louvou-lhe a preocupação de vir ver-me , e eu instei-lhe ternamente que viesse todos os dias , se pudesse . Eu era verdadeiramente amigo deste Bernardo , que vinha falar-me da minha mãe , uma vez cada semana ; mas em vão eu tentava a sua prudência , pedindo-lhe circunstâncias mais claras do passado da sua ama , da sua santa , como ele a intitulava . Padre Dinis tinha-o talvez prevenido , impondo-lhe o silêncio por condição , sem a qual não lhe permitiria falar comigo . Uma vez -- era em Agosto de 1832 -- justamente no dia em que eu fazia anos , apareceu Bernardo , a suar por todos os poros , e a rir por todas as feições , e a abraçar-me com toda a veemência de uma alegria expansiva . O que ele me queria dizer parecia que não lhe passava da garganta . O homem ria e chorava , e era todo ele uma vibração de contentamento ! -- Que é isso , Bernardo , diga-me porque está tão alegre ! -- Deixe-me abraçá-lo , que é um abraço que lhe manda sua mãe ... -- Pois falou com a minha mãe ? Ela quer ver-me ? já não está fechada no quarto ? -- Está no quarto , mas é porque ainda está doente ; não quer expor-se ao ar porque deseja viver agora ... -- Pois que se passa ? ... Diga Bernardo ... o tal homem teve pena dela ? -- O tal homem ... qual pena nem meia pena ... Aquilo não é bichinho dessas coisas ... É porque o senhor||_Dom_Miguel Dom|_Dom_Miguel Miguel|_Dom_Miguel foi para o Minho , e quis que o conde o acompanhasse . -- Que felicidade ! ... E não tomará tão , cedo ? -- Quem sabe ! ... Anda para lá a guerra dos malhados com os realistas , e se viesse uma bala ... Deus me perdoe ... que o partisse ... Olhe que não se perdia nenhum macho de cem moedas ... -- Mas olhe , eu agora posso ir sem medo a casa da minha mãe ? Ela mandou-me ir ? ... Eu vou dizer ao padre que vou ... sim ? -- Tenha lá mão , fidalgo , por agora não vai a coisa assim . A sua mãezinha mandou-me procurar à casa onde eu estava , e apenas me disseram que ela me chamava outra vez para escudeiro , aquilo foi um fogo visto , corri a quatro pés ao quarto da minha santa Condessa , e pouco me faltou para me pôr de joelhos a agradecer-lhe o lembrar-se do pobre velho , que aposto eu se há um pai que ame uma filha mais do que eu a ela , e depois dela o meu querido fidalguinho , que há de ainda ser muito feliz , e muito amigo do seu Bernardo , não há de ? -- Hei de , hei de ... mas ... A minha mãe ... eu queria vê-la ... Se lá não está o homem que aterra a gente com os olhos ... -- Há de ir , sim , senhor ; mas deixe-me agora falar primeiro com a sua mãe , porque o conde ainda ontem partiu e quem sabe se lhe dá algum ataque de bexiga que o faz tomar para trás ? Com prudência tudo se fará ... Adeus , meu menino , dê este recado ao senhor||_padre|_Dinis padre||_padre|_Dinis Dinis|_padre|_Dinis da minha parte , e diga-lhe que as coisas correm às mil maravilhas ; ponto É que o Diabo tome debaixo da sua proteção aquele algoz da sua mãezinha e meu , porque , a falar a verdade , ainda não lhe disse a vossa Excelência que aquele malvado dava-me bofetão e pontapé de criar bicho , só porque eu estava pronto a socorrer a senhora condessa ! Má raios o partam , Deus me perdoe ... Então , adeusinho . Eu cá tornarei breve ; haja gáudio , e viva o senhor||_Dom_Pedro Dom|_Dom_Pedro Pedro|_Dom_Pedro , que teve a habilidade de fazer sair de cá o senhor||_Dom_Miguel Dom|_Dom_Miguel Miguel|_Dom_Miguel e o senhor||_Dom_Conde Dom|_Dom_Conde Conde|_Dom_Conde , que , se não é isto , nem o Diabo o tirava de casa . Bernardo retirou-se murmurando uma ladainha de pragas ao conde . Eu , tão alegre como ele , corri ao quarto do padre , e dando-lhe a nova que deveria , enquanto a mim , alegrá-lo , quase lhe não fez impressão nenhuma . Padre Dinis disse-me que esperava as ordens da minha mãe , e acrescentou que nunca me deixasse deslumbrar cegamente por uma esperança que só tinha em si , como verdade , os nossos bons desejos . E , com esta sentença , mandou-me retirar , porque tinha que fazer e que pensar . E retirei-me triste . O homem desgraçado duvida tanto das lisonjas da esperança que , se não encontra amigos que o ajudem a fantasiar formosas realidades , descoroçoa das suas previsões , descrê de si , e recai no seu habitual desalento . Procurei D. Antónia , e achei-a chorando . Pedi-lhe a razão das suas amarguras , e a boa senhora redobrou de choro , proferindo , entre soluços , uma tal ou qual profecia do abatimento em que ela teria de ver a religião , se Deus , pela sua misericórdia infinita , a não chamasse a si . No dia seguinte , Bernardo entregou uma carta ao padre||_Dinis Dinis|_Dinis , e , na tarde desse mesmo dia , recebi a boa nova de que veria à noite a minha mãe na sua própria casa . Doudejei de alegria ; mas não sei fazer entender aos outros como era aquele meu contentamento ! Parece que o meu sorriso era violento . Faltava em mim uma certa expansão íntima e luminosa de que me falam os felizes da terra , e que eu não experimentei ainda , nem já agora tenho a louca vaidade de esperar . Às nove horas da noite estávamos , eu e o mestre , sentados no banco de pedra fronteiro à casa do conde de Santa Bárbara . Pouco depois , Bernardo conduziu-nos por um portal de quinta , e fez-nos** entrar por uma cocheira , onde vi seges desmanteladas , arreios , e um não sei o quê de ruínas , que falavam de uma passada grandeza . Subimos daí a um corredor , que nos conduziu a um salão . Neste vasto recinto havia um lampião , que derramava pelas paredes pardacentas sombras fantásticas , à maneira de vultos encapotados , que davam ao lugar uma solenidade misteriosa . Bernardo mandou-nos sentar , e saiu . Padre Dinis , apenas sentado , continuou no seu íntimo recolhimento espiritual . Reparei que nas paredes estavam quadros pendentes ; aproximei-me , e apenas divisei traços de vultos humanos . Não pude calar a curiosidade , e perguntei ao padre que quadros eram aqueles . -- São retratos -- respondeu ele , sem levantar a cabeça da postura meditativa em que a tinha . Contei os retratos , e vi que eram seis . Tomei a examiná-los um a um , e não pude penetrar além do vulto . Um , porém , prendia-me a atenção mais que os outros , por isso que o bruxulear da lâmpada projetava às vezes um relâmpago fugitivo por sobre a escuridade da moldura . E nesse instantâneo clarão sobressaíam feições , e essas feições pareciam-me de mulher , e essa mulher queria eu por força que fosse minha mãe . E , dando à voz toda a inflexão do carinho , perguntei ao padre se aquele retrato era da minha mãe . -- É -- respondeu ele , e atou de novo o fio da sua medição , quebrado um instante . Tomava eu para a minha deliciosa investigação , quando Bernardo nos chamou . O padre segui-o , e eu , conduzido pela mão , entrei no quarto da minha mãe . Estava ela deitada num canapé , com um tremó à cabeceira , e o cotovelo esquerdo apoiado sobre o tremó . A luz que lhe iluminava o rosto era tão escassa , que eu mal a distingui , quando entrei . Minha mãe apertou a mão do padre , e susteve-se nela querendo sentar-se ; e não podendo conseguis-lo , sozinha , disse-me que lhe amparasse a cintura para poder erguer-se . E , depois que se sentara , ficou abraçada em mim , com a face pousada sobre o meu ombro . Senti-lhe as pulsações velozes do coração , e a lavareda em que parecia abrasar-se-lhe o rosto . De instante a instante , humedecia os beiços , num copo de água , que eu sustinha na mão direita . De improviso rebentaram-me as lágrimas dos olhos . -- Que tens , meu querido filho ? -- murmurava-me minha mãe , limpando-me a face com o seu lenço . -- Que tens ? Não podes estar aqui feliz ao pé da tua mãe ? Coitadinho ! Como vais tão depressa provando o teu manjar de toda a vida ! ... São as lágrimas precursoras ... Estas últimas palavras disse-as a minha mãe a padre||_Dinis Dinis|_Dinis , que nos contemplava com as mãos enlaçadas sobre o peito procurando nas sombras , talvez , esconder o testemunho das suas lágrimas . -- Joãozinho -- disse o padre -- , fale com a sua mãe ... diga-lhe que tem sofrido muito com ela ... Não tenha só eloquência de filho quando fala comigo ... mostre a sua mãe que é um homem perfeito em sofrimento . -- Não preciso que ele mo diga , eu bem o sei ... -- atalhou minha mãe . -- Eu bem o sei , porque ele é meu filho e já está senhor da herança ... de uma alma , que subindo ao céu , devia deixar na deste menino as dores , que são da terra ... Joãozinho ... tens quinze anos ... não deves chorar como criança ... Conversa comigo ... sim ? E eu sorri-me com violência ; mas não sei que dominação moral exerceram sobre mim , naquele instante , os meus quinze anos ! Olhei-me com altivez , e parece que repreendi em mim a criança que devera ser um homem ao pé de uma mulher que pedia proteção ! -- Eu não choro , minha mãe ... chorei um momento , mas ninguém pode dizer ao coração que o chorar é uma vergonha , não é assim ? E minha mãe respondeu-me com um beijo , e logo , encarando o padre , sorriu-se com um ar de espontânea alegria , que eu nunca lhe tinha visto . -- E não foi bem romântica a resposta , senhor||_padre|_Dinis padre||_padre|_Dinis Dinis|_padre|_Dinis ? -- disse ela . -- Eu já não me admiro -- respondeu o padre . -- Não lhe pareceu ouvi-lo ... diga ... não eram assim as suas respostas ? -- As respostas de quem ? -- perguntei eu . -- Digo ? -- interpelou minha mãe , com os olhos fixos no padre . -- Porque não ! -- respondeu ele . -- Queres saber -- disse minha mãe -- com quem te pareces nas tuas respostas , meu filho ? Não adivinhas sem que to digam ? Não te falta na vida um ente que , deixando-te no mundo , havia deixar-te de si alguma lembrança ? -- Meu pai ? -- exclamei eu com energia e comoção . -- Sim , sim , sim , teu pai -- bradou minha mãe , apertando-me freneticamente ao seio , e estremecendo toda ela na convulsão de uma febre . Esta situação , demorada de mais para o seu debilitamento , prostrou-a , obrigando-a a deitar-se sem me largar a face da posição em que a tinha . O padre , pensando que eu , assim reclinado sobre a face dela , devia incomodá-la , quis desenlaçar-me , e não pôde conseguis-lo . Minha mãe não chorava . Árida nas faces , e abrasada nos lábios , parece que um vulcão íntimo lhe queimara aquela parte do coração onde o anjo dos alívios deve ter depositado as lágrimas . Esta penosa situação , para todos nós , durou assim alguns minutos . O desalento da minha mãe sobressaltou-me muito . O padre , porque sabia que doença era a dela , não deu sinal de perturbar-se , e ajudou a sustentar o colo da pobre senhora numa altura em que a respiração lhe fosse menos penosa . As faces passaram-lhe de um pálido cadavérico ao vivo rosado de uma saúde vigorosa ; mas aquele escarlate , destacando-se do rosto como duas romãs , carregava o azul-escuro das sombras , que lhe desciam das órbitas . E depois , minha mãe , estremecendo e levando a mão ao seio , como se o coração estremecesse com ela , denunciou por gestos que tinha ali uma grande dor . Sentou-se , sem precisar do nosso auxílio ; pousou a testa na mão esquerda ; comprimiu o coração com a direita , e esteve alguns minutos nesta postura , que eu e o padre contemplávamos sem dizer uma palavra . Por fim , atacou-a uma tosse para a qual pareciam extintas as forças da minha mãe . Que ela era dolorosa e violenta , denunciavam-no as contorçõesdo corpo e o sangue que lhe saía Ãs golfadas sobre um lenço que a minha mãe colocava na boca , como se quisesse esconder-nos aqueles indícios de uma vida a extinguir-se . Reparando na minha inquietação , a desgraçada , como a luz que bruxuleia nos seus últimos clarões , sorria-se com a graça de um anjo , e com alegria de um mártir . -- Não é nada , meu filho ! -- dizia ela . -- Vive-se assim muitos anos , quando se tem um grande espírito para sofrer . Deixa morrer o corpo , meu filho , que a alma é imortal , como o amor de mãe . Terás de viver longe de mim pela vida , mas hás de entrar no meu seio pela morte . As pessoas desgraçadas devem terminar aqui ... Do túmulo para dentro não está uma pouca de cinza fria : lá é que começa a vida dos que se sentiram viver no inferno variado de mil tormentos ... neste inferno do mundo , em que a esperança da morte é o paraíso dos infelizes ... Não é isto assim , senhor||_padre|_Dinis padre||_padre|_Dinis Dinis|_padre|_Dinis ? -- Fala como inspirada , senhora||_Condessa Condessa|_Condessa -- respondeu o padre -- , e não pode assim falar-se sem pressentir o prémio que Deus promete aos que choram ... -- Ai ! -- murmurou minha mãe -- , aos que choram ! ... E que lágrimas , senhor||_padre|_Dinis padre||_padre|_Dinis Dinis|_padre|_Dinis ! , e com que resignação ! ... Sempre é muito forte a mulher quando luta com os padecimentos ! O que eu tenho sofrido há doze anos , aqui , neste quarto , com aquela porta fechada , com aquela janela pregada , comesta lâmpada acesa noite e dia ! ... Tantas vezes ajoelhei pedindo ao Senhor o fim dos meus trabalhos ! ... E não era vã a minha oração ... O que Deus me dava era coragem para futuros martírios ; era resignação para esquecer-me dos passados ... mas esperança ... no mundo ... nenhuma , meu filho , nenhuma o Senhor me dava , nem ainda a de encontrar-te um dia ... E , contudo , aqui estás tu nos meus braços ! ... não és tu meu filho ! ... -- Sim , sim , minha querida mãe ... -- Pois que mais quero eu ? Fui ouvida , fui atendida por Deus ! ... Na hora das supremas angústias , antes de cerrar as pálpebras para sempre , quis Deus que eu te visse ! Agora ... que os meus olhos se fechem , porque não tenho mais que ver , nem o coração tem outros sonhos que devam realizar-se aqui ... Um sinto eu , acordada e dormindo ... um sonho , mais que um sonho , uma ansiedade do infinito , em cujo seio devo encontrar o anjo da minha juventude , das minhas alegrias e dos meus tormentos ... Queres tu vê-lo também , meu caro filho ? , queres um dia ver o meu anjo , o tesouro da tua mãe , a estrela que lhe deu a luz na infância , que lhe mostrou o céu na terra , e que um dia se escondeu aos meus olhos , porque fora iluminar o sacrário do Altíssimo ? -- Quem é , minha mãe ? ... Quem é ? -- Quem é ? , perguntas tu ... É uma saudade , é uma imagem que se não palpa , e eu sinto-a vibrar-me em todo o corpo como sinto os teus lábios nos meus ... É uma imagem que me não fala a linguagem dos homens , e eu ouço-anoite e dia ... ouço-lhe um hino de felicidade , quando eu choro ... e deixo de chorar , porque esta alegria do meu anjo é um grito de coragem ao meu espírito , que desfalece . Ainda não sabes quem é o anjo da tua mãe ? E eu ouvi-lhe aquelas palavras quase ininteligíveis pela expressão e pela ideia . Eram novas para mim aquelas pinturas , que eu não tivera tempo de encontrar nos livros onde se acham escritas as histórias das paixões , nos romances onde a gente vive todas as situações da sociedade sem ter passado por nenhuma .