OS FIDALGOS DE+A CASA MOURISCA CHRONICA DE+A ALDEIA POR JULIO DINIZ VOLUME I PORTO TYPOGRAPHIA DE+O JORNAL DE+O PORTO Rua Ferreira Borges, 31 1871 A tradição popular em Portugal , nos assumptos de historia patria , não se remonta além do periodo da dominação arabe nas Hespanhas . Pouco ou nada sabe o povo de celtiberos , de romanos e de wisigodos . É , porém , entre elle noção corrente que , em outros tempos , fôra este paiz habitado por mouros , e que só á força de cutiladas e de botes de lança os expulsaram os christãos para as terras da Mourama . Os vultos heroicos de reis e cavalleiros nossos , que se assignalaram nas luctas d' essa época , ainda não desappareceram das chronicas oraes , onde vivem illuminados por a mesma poetica luz das xacaras e dos romances nacionaes ; e hoje ainda , nas dansas e jogos que se celebram nos logares publicos das villas e aldeias , por occasião das principaes solemnidades do anno , apraz-se a memoria do povo de recordar os feitos d' aquelles tempos historicos por meio de simulados combates de mouros e christãos . Nos contos narrados em volta da lareira , onde nas longas noites de serão se reune a familia rustica , ou ás rapidas horas d' uma noite de estio , na soleira da porta , ao auditorio attento que segue com os olhos a lua em silenciosa carreira por um céo sem estrellas , avulta uma creação extremamente sympathica , a das mouras encantadas , princezas formosissimas que ficaram d' esses remotos tempos na peninsula , em paços invisiveis , á espera de quem lhes venha quebrar o captiveiro , soltando a palavra magica . Falla-se em diversos pontos das nossas provincias , com a seriedade que é propria a uma arreigada crença , de thesouros enterrados , que os mouros por ahi deixaram , na esperança de voltarem um dia a resgatal-os , e já não tem sido poucas as escavações emprehendidas no ávido intuito de os descobrir . Esta mesma noção historica do povo é a que dá logar a um outro frequente facto . Quando , no centro de qualquer aldeia , se eleva um palacio , um solar de familia , distincto dos edificios communs por uma qualquer particularidade architectonica mais saliente , ouvireis no sitio designal- o por o nome de Casa Mourisca , e , se não se guarda ahi memoria da sua fundação , a chronica lhe assignará infallivelmente como data a lendaria e mysteriosa época dos mouros . Era o que succedia com o solar dos senhores Negrões de Villar de Corvos , que , em tres leguas em redondo , eram por isso conhecidos pelo nome dos Fidalgos da Casa Mourisca . Não se persuada o leitor de que possuia aquelle solar feição pronunciadamente arabe , que justificasse a denominação popular , ou que mãos agarenas houvessem de feito cimentado os alicerces da casa nobre denominada assim . Ás pequenas torres quadradas , que se erguiam , coroadas de ameias , nos quatro angulos do edificio , ao desenho ogival das portas e janellas , ás estreitas setteiras abertas nos muros , e finalmente a certo ar de castello feudal , que um dos antepassados d' esta fidalga familia tentou dar aos paços de sua residencia senhoril , devêra ella a qualificação de mourisca , que persistira , apesar dos protestos da arte . Nenhum estylo architectonico fôra na construcção escrupulosamente respeitado ; o gosto e capricho do proprietario presidiram mais que tudo á traça e execução da obra ; não ha pois exigencias artisticas que me imponham a obrigação de descrevel-a miudamente . Diga-se porém a verdade ; fossem quaes fossem os defeitos de architectura , as incongruencias e absurdos d' aquella fabrica grandiosa , quem , ao dobrar a ultima curva da estrada irregular por onde se vinha á aldeia , via surgir de repente do seio de um arvoredo secular aquelle vulto escuro e sombrio , contrastando com os brancos e risonhos casaes disseminados por entre a verdura das collinas proximas , mal podia reter uma exclamação de surpreza e involuntariamente parava a contemplal- o . Ou o sol no poente lhe doirasse a fachada de granito , ou as ameias , que o coroavam , se desenhassem como negra dentadura no céo azul , alumiado pela claridade matinal , era sempre melancolico e triste o aspecto d' aquella residencia , sempre magestoso e severo . Reparando mais attentamente , outros motivos concorriam ainda para fortalecer esta primeira impressão . O tempo não se limitára a colorir o velho solar com as tintas negras da sua palheta ; derrocára- lhe aqui e além uma ameia ou um balaustre do eirado , mutilára- lhe a cruz da capella , desconjunctára- lhe a cantaria em extensos lanços de muro , abrindo-lhe intersticios , d' onde irrompia uma inutil vegetação parasita : e esta permanencia de estragos , trahindo a incuria ou a insufficiencia de meios do proprietario actual , iniciava no espirito do observador uma serie de melancolicas reflexões . E se o movesse a curiosidade a indagar na visinhança informações sobre a familia que alli habitava , as-proprias a corroborar-lhe os seus primeiros e espontaneos juizos . Os chamados Fidalgos da Casa Mourisca eram actualmente tres . D. Luiz , o pae , velho sexagenario , grave , severo , e taciturno ; Jorge e Mauricio , os seus dois filhos , robustos e esbeltos rapazes : o mais velho dos quaes , Jorge , ainda não completára vinte e tres annos . A historia d' aquella casa era a historia sabida dos ricos fidalgos da provincia , que , orgulhosos e imprevidentes , deixaram , a pouco e pouco , embaraçar as propriedades com hypothecas e contractos ruinosos , desfallecer a cultura nos campos , empobrecer os celleiros , despovoar os curraes , exhaurir a seiva da terra , transformar longas varzeas em charnecas , e desmoronarem-se as paredes das residencias e das granjas e os muros de circunscripção das quintas . Filho segundo de uma das mais nobres familias da provincia , D. Luiz fôra pelos paes destinado para a carreira diplomatica , na qual entrou apadrinhado e favorecido por os mais altos personagens da côrte . Nas primeiras capitaes da Europa , em cujas embaixadas serviu , obteve o fidalgo provinciano um grau de illustração e de tracto do mundo , um verniz social , que nunca adquiriria se , como tantos , de moço se creasse para morgado . Quando , por morte do primogenito , veio a succeder nos vinculos , D. Luiz podia considerar-se , graças á occupação dos seus primeiros annos de mocidade , como o mais instruido e civilisado proprietario da sua provincia ; e como tal effectivamente foi sempre havido pelos outros , que o tractavam com uma deferencia excepcional . Ainda depois da morte do irmão , D. Luiz , costumado ao viver da grande sociedade e á esplendida elegancia das côrtes estrangeiras , não abandonou a carreira que encetára . Secretario de embaixada em Vienna , casou alli com a filha de um fidalgo portuguez , que então residia n ' essa corte , encarregado de negocios politicos . Ao manifestarem-se em Portugal os primeiros symptomas da profunda revolução , que devia alterar a face social do paiz , D. Luiz mostrou-se logo hostil ao movimento nascente , e abandonando então o seu logar diplomatico , voltou ao reino para representar um papel importante nas scenas politicas d' essa época . Ahi tiveram origem grande parte dos desgostos domesticos , que lhe amarguraram o resto da vida . Os parentes de sua esposa abraçaram a causa liberal . D. Luiz , com toda a intolerancia partidaria , rompeu completamente as relações com elles , ferindo assim no intimo os affectos mais sanctos da pobre senhora , que sentia esmagar-se-lhe o coração entre as fortes e irreconciliaveis paixões dos que ella com igual affecto amava . O rancor faccioso foi ainda mais longe em D. Luiz . Impelliu- o á perseguição . O irmão mais novo da esposa , obedecendo ao enthusiasmo de rapaz e á vehemencia de uma convicção sincera , sustentára com a penna , e mais tarde com a espada , a causa da ideia nova , que tanto namorava os animos generosos e juvenis . Sobre a bella e arrojada cabeça d' aquelle adolescente pesaram as sombras das suspeitas e das vinganças politicas ; e D. Luiz , cego pela paixão , não duvidou em fazer-se instrumento d' ellas . Este era o irmão querido da esposa , que o fidalgo estremecia ; mas nem as supplicas , nem as lagrimas d' ella puderam abrandar a força d' aquelle rancor . O imprudente moço viu-se perseguido , prêso , processado e em quasi imminente risco de expiar , como tantos , no supplicio o crime de pensar livremente . Conseguindo , quasi por milagre , escapar á furia dos seus perseguidores , emigrou para voltar mais tarde n ' essa memoranda expedição , que principiou em Portugal a heroica iliada da nossa emancipação politica . Guerreiro tão fogoso , como o fôra publicista , o pobre rapaz não assistiu porém á victoria da sua causa . Ao raiar da aurora liberal , por que tanto anhelava , cahiu em uma das ultimas e mais disputadas refregas d' aquella sanguinolenta lucta , crivado de balas inimigas , sendo a sua ultima voz um grito de enthusiasmo pela grande ideia , em cujo martyrologio se ia inscrever o seu nome . A morte d' este enthusiasta levou o lucto e a tristeza ao solar de D. Luiz . O coração amoravel e extremoso da infeliz senhora recebeu então um golpe decisivo ; das consequencias d' aquella dôr nunca mais podia ella convalescer . A sua vida foi depois toda para luto e para lagrimas . Fez-se a paz , implantou-se no paiz a arvore da liberdade ; D. Luiz deixou então a vida da côrte e veio encerrar no canto da provincia os seus despeitos , os seus odios e os seus desalentos . Trouxe comsigo um enxame de misanthropos , a quem o sol da liberdade igualmente incommodava , e que tinham resolvido pedir á natureza conforto contra os suppostos delictos da humanidade . O solar do fidalgo transformou-se pois em asylo de muitos correligionarios , como elle desgostosos e irreconciliaveis com a nova organisação social . Instituiu-se alli uma pequena côrte na aldeia , uma especie de assembleia ou conventiculo politico , que não poucas vezes attrahiu as vistas dos liberaes desconfiados e as ameaças dos mais insoffridos . Havia alli homens de todas as condições , e alguns de illustração e sciencia . A hospitalidade do fidalgo era magnifica . D. Luiz mostrava ignorar , ou não querer saber , qual o preço por que ella lhe ficava . Indifferente a tudo , se-sêl-o tambem á ruina da sua propria casa , que apressava assim . A victoria da causa contraria ; a morte , em curtos intervallos , de tres filhos , que parecia cahirem victimas de uma sentença fatal ; o receio pela vida dos outros ; a tristeza e doença progressivas da esposa , a quem aquelles odios e luctas tinham despedaçado o coração ; às vezes uma vaga consciencia da sua situação precaria , e por ventura ainda remorsos pelas violencias , a que os odios politicos o impelliram , quebrantaram o caracter , outr'ora varonil , d' aquelle homem , que desde então começou a mostrar-se taciturno e descoroçoado . A prova evidente de que alguns remorsos tambem lhe torturavam o espirito fôra a insolita generosidade , com que recebeu e gasalhou permanentemente em sua casa um pobre soldado do exercito liberal , meio mutilado pela guerra d' esses tempos , e que tinha sido o fiel camarada do infeliz mancebo , contra quem tanto se encarniçára o odio do implacavel realista . Viera o soldado entregar á esposa do fidalgo uma medalha , ultima lembrança do irmão que lh'a enviára , quando já agonisante no campo do combate . Havia-a confiado ao camarada para que a entregasse áquella , a quem tanto queria . D. Luiz não só permittiu que o soldado fizesse a entrega em mão propria da esposa , mas deixou-o com ella em larga conferencia , não querendo que a sua presença a reprimisse na ancia natural de saber as menores particularidades da vida e da morte do infeliz , de quem o emissario fôra companheiro inseparavel . Não se limitou a isso a tolerancia do fidalgo . Viu , sem a menor reflexão , que o mensageiro se demorava alguns dias na Casa Mourisca , e não oppôz resistencia alguma ao pedido , que a esposa mais tarde lhe fez para que o deixasse ficar alli , no logar do hortelão que fallecêra . Este facto insignificante foi de não pequena influencia nos destinos d' aquella familia . Os filhos de D. Luiz , creados no meio d' essa côrte de provincia , cresciam sob influencias que actuavam d' uma maneira contradictoria sobre os seus caracteres infantis . Não lhes faltavam mestres que os instruissem , que muitos eram os habilitados para isso nas salas do fidalgo , refugio de tantos illustres descontentes . Graças a estas especiaes condições , puderam os dois rapazes receber uma educação , difficil de conseguir em um canto tão retirado da provincia , como aquelle era . Mas , ao lado da lição dos mestres , que , juntamente com a sciencia , se esforçavam por imbuir-lhes os seus principios politicos , aos quaes se atinham como a artigos de fé , havia uma outra lição mais obscura , mas por ventura mais efficaz . Era a lição da mãe e a do veterano . A esposa de D. Luiz era uma senhora de esmeradissima educação e de um profundo bom senso . Amava o marido , mas via com pezar os excessos , a que o impelliam as suas opiniões politicas . Educada no seio de uma familia liberal , possuia sentimentos favoraveis ás ideias novas ; mas sabia guardal- os no coração , para não despertar conflictos na familia . Porém , no tracto intimo entre mãe e filhos , trahia-se muita vez essa prudente discrição , e as fidalgas crianças iam recebendo a doutrina , de que os outros lhes blasphemavam como de heresias , e naturalmente , seduzidas pela origem d' onde ella lhes vinha , abriam-lhe de melhor vontade o coração , do que aos preceitos austeros e um pouco pedantescos dos mestres . Demais , ouviam tantas vezes a mãe fallar-lhes do irmão que perdêra , dos seus sentimentos generosos , do seu nobre caracter e da sua dedicação heroica a bem da causa liberal , que elles , e o mais velho sobre tudo , costumaram-se a venerar a memoria do tio , como a de um heroe e a de um martyr e a vêl- o aureolado de um verdadeiro prestigio lendario . Para isto porém concorreu mais que outrem o hortelão . O velho soldado era uma chronica viva das batalhas e façanhas d' aquelles tempos historicos e um panegyrista ardente do seu pobre official , cujo ultimo suspiro recolhêra . As crianças sentiam-se instinctivamente attrahidas para a companhia do velho , em cujas narrações pintorescas e vivamente coloridas achavam um encanto irresistivel . Feria-lhes fundo a curiosidade a maneira por que elle fallava dos trabalhos da emigração , dos episodios do cerco do Porto , da fome , da peste e da guerra , triplice calamidade que conhecêra de perto , das batalhas em que havia entrado , da bravura do seu amo , e finalmente do Imperador , por quem o mutilado veterano professava um enthusiasmo quasi supersticioso , e a cujo vulto a sua narrativa imaginosa dava um aspecto epico e sobrenatural . As crianças não se fartavam de interrogar aquella testemunha presencial de tantos feitos heroicos . E assim eram neutralisadas as doutrinas dos pedagogos eruditos , encarregados da educação dos filhos de D. Luiz , e estes iam crescendo affeiçoados aos principios liberaes , que amavam de instincto , antes de os amarem de reflexão . Mas dias de maior provação estavam reservados para esta familia . A munificencia que o senhor da Casa Mourisca mantivera no voluntario desterro , a que se condemnou , obrigára- o a enormes e perigosos sacrificios . D. Luiz nunca propriamente se occupára da gerencia dos seus bens . Fiel aos habitos aristocraticos dos seus maiores , deixára desde muito a procuradores todos os cuidados de administração , e de quando em quando recebia d' elles a noticia de que a sua casa se estava perdendo , sem que se lembrasse de perguntar a si proprio se não seria possivel oppôr um obstaculo áquella ruina . O padre||_Januario Januario|_Januario , ou frei||_Januario_dos_Anjos Januario|_Januario_dos_Anjos dos|_Januario_dos_Anjos Anjos|_Januario_dos_Anjos , velho egresso , homem de letras gordas , que se estabelecêra commodamente n ' aquella acastellada residencia , como em casa sua , era um d' esses procuradores . Faça-se justiça ao padre , que não era de má fé , nem em proveito proprio , que elle apressava , com mão poderosa , a decadencia de D. Luiz . Mas , homem de curtas faculdades e de nenhum expediente financeiro , se obtinha capitaes para o seu constituinte , nas crises mais apertadas , era sempre sob condições de tal natureza , que deixava de cada vez mais onerada a propriedade e mais irremediavel o triste futuro d' ella . Succedeu pois o que era de esperar . Dispersou-se a côrte de D. Luiz . Por muito que fizessem os administradores da casa para a manter no costumado esplendor , cêdo principiaram a transparecer os signaes da declinação . Foi o aviso para a debandada . Uns porque delicadamente comprehenderam que a sua permanencia concorreria para augmentar as difficuldades , com que o fidalgo já luctava ; outros , porque aspiravam melhores auras , longe d' alli , em solares menos estremecidos pelo vaivem da adversidade ; é certo que todos se foram retirando , a um por um , e deixaram a familia só . Augmentou com este isolamento a taciturnidade do fidalgo . Depois veio a doença e a morte da esposa , d' aquella que lhe tinha sido tão fiel amiga , que , para lhe poupar desgostos , até escondia as lagrimas , que elle lhe fazia verter ; veio essa nova dôr atribular-lhe ainda mais a existencia . E ainda não haviam acabado as provações ! No fundo do calice estavam ainda depositadas as gotas mais amargas . D. Luiz tinha por esses tempos uma filha , mimoso legado da esposa , cuja missão consoladora continuava no mundo . Queria-lhe muito o pae ! Se não havia de querer ! O coração árido d' aquelle velho e o tenro coração d' aquella criança procuravam-se , como para um pelo outro se completarem . O velho fidalgo , concentrado e quasi rispido para com os outros filhos , se alguma vez teve nos labios sorrisos desanuviados e sinceros , foi na presença da sua Beatriz . Aquelle desgraçado coração , vazio de affectos , queimado de odios e de paixões esterilisadoras , sentia um grato refrigerio em deixar-se penetrar do suave influxo das caricias da criança , que beijava as faces rugosas do pae e lhe brincava com os cabellos prateados ; e muitas vezes , n ' esses momentos , lagrimas de desafogo dissipavam a cerração que ia na alma d' aquelle homem , que com tanta força sabia odiar . E não era só o pae que experimentava essa influencia . Jorge , que de pequeno fôra pensativo e serio , sentia-se tomar por a bondade e ternura de Beatriz . Criança ainda , tinha ella , quando a sós com o irmão , um olhar penetrante e um gesto grave como o d' elle , um espirito para communicar á vontade com o seu . Ella parecia comprehender o alcance do auxilio que poderia receber um dia d' aquelle rapaz sisudo , que a fitava , e elle sentia-se engrandecer aos proprios olhos , lembrando-se de que seria sua missão na vida proteger aquelle anjo . Mauricio , genio mais impetuoso e impaciente , dobrava tambem a vontade a um aceno da fragil e delicada creatura , em quem um estouvamento seu desafiava lagrimas . E estas lagrimas eram a unica repressão que o continham nos desvarios . Pois até n ' esta filha feriu o Senhor o pobre ancião . Criança mimosa , colheu-a um sopro da morte , ainda com o sorriso nos labios , e prostrou-a exanime no tumulo . Fez-se então devéras escuro no espirito do pae . Quando aquella pequena fada domestica desappareceu , como uma visão vaporosa em contos de magia , foi como que se todos ficassem em trevas . A vida era tão outra ! O ente que absorvia os instantes d' aquelles tres homens , a quem todos tres tributavam os seus mais puros affectos e os seus pensamentos mais constantes , desapparecêra , e elles olhavam-se assustados , meio loucos , como se de subito se lhes tivesse apagado a luz que os alumiava ; sentiam a indecisão do homem , a quem no meio da estrada fulmina inesperada cegueira . Passada a violencia da primeira dôr , em todos ficou a saudade , negra e concentrada em D. Luiz , melancolica em Jorge , expansiva e vehemente em Mauricio ; e para todos o nome de Beatriz , a recordação dos seus gestos , das suas palavras , era um talisman , cuja efficacia nunca se desmentia . A alma d' aquelle anjo assistia ainda á familia , que o chorava , e á sua mysteriosa direcção obedeciam todos , sem o perceberem . Morta aos dezeseis annos , Beatriz vivia ainda nos logares que habitava . Ha entes assim , cuja influencia posthuma lhes dá uma quasi immortalidade , á maneira da luz sideral , que continua a scintillar para nós , depois de aniquilado o fóco que a emittia . O padre||_Januario Januario|_Januario tornou-se desde então a creatura indispensavel , e a companhia exclusiva de D. Luiz , que via n ' elle o unico representante da sua antiga côrte . Acerrimo partidario do regimen absoluto , apesar de lhe não ser possivel enfeixar dois argumentos serios em defeza d' elle , o padre||_Januario Januario|_Januario passava a vida aproveitando os mais ridiculos ensejos para premissas dos seus corollarios anti-liberaes , artificio com que lisongeava as paixões do seu illustre amo e patrono , e mantinha n ' elle o fogo sagrado . O padre achava-se bem n ' aquella vida monotona , que exercia sobre si os mais notaveis effeitos analepticos . Podia dizer-se que elle dividia alli o tempo entre duas occupações exclusivas : comer e esperar com impaciencia as horas da comida . Uma unica circumstancia assombrava os dias do padre . Era a presença na Casa Mourisca do hortelão , em quem fallamos , e que mantinha com elle uma aberta hostilidade . Frei Januario exasperava-se sempre que o ouvia fallar no Imperador e no Cerco e nos Voluntarios da Rainha e na Carta , com o enthusiasmo e a emphase de um soldado d' aquelles tempos . Por vezes rompiam ambos em scenas violentas ; por vezes o capellão ia aconselhar ao fidalgo a demissão d' aquelle homem , que ameaçava infectar de liberalismo a familia inteira . D. Luiz porém , apesar de nunca fallar com o hortelão , não attendia n ' estas reclamações o padre . Conservando no seu serviço o veterano , satisfazia a um pedido da esposa , e não teria coragem para fazer o contrario . Assim perpetuavam-se os conflictos entre os dois , porque nem o procurador supportava as rudes franquezas do soldado , nem este os remoques encapotados do procurador . Tal era a situação da familia da Casa Mourisca na época em que vae procural-a a nossa narração . Já se vê quão mal assegurado andava o futuro dos dois jovens filhos de D. Luiz . A educação que elles haviam recebido não tendêra a fim algum prático . D. Luiz não podia soffrer a ideia de dar a seus filhos uma profissão . A nobre carreira das armas , que mais lhes conviria , estava-lhes fechada pelas ultimas evoluções politicas . Os descendentes dos ultra-monarchicos Negrões de Villar de Corvos não eram para se assalariarem em defeza dos principios e das instituições que abalaram os velhos thronos , firmados no direito divino . Nobre era tambem a carreira ecclesiastica , que muitos dos seus antepassados haviam trilhado , apoiados no baculo episcopal ; mas se D. Luiz estava persuadido de que já não havia religião n ' este territorio de antigos crentes ? e se frei||_Januario Januario|_Januario teimava , ensinado pelo mallogro de longas pretenções ás honras de umas meias vermelhas , que só se adiantava nas phalanges do clero quem fosse pedreiro livre ! Assim pois os jovens descendentes do velho realista passavam o tempo cavalgando e caçando nas immediações , e fruindo em sancto ocio uma vida , cujos espinhos todos procuravam occultar-lhes . Caminhavam por estrada de rosas para um fundo precipicio , d' onde lhes desviavam as vistas . Deve porém dizer-se que não caminhavam ambos igualmente desprevenidos ; porque de criança era diverso o caracter dos dois , e de dia para dia mais a differença se pronunciava . Jorge , na infancia como na juventude , fôra sempre grave e reflectido . Nos brinquedos tomava para si o desempenho de um papel serio . Era o pae , o mestre , o commandante , o medico , o padre , tudo aquillo que o obrigasse a um porte sisudo e a uma gravidade de homem . Adolescente , nunca as raparigas do logar lhe ouviram uma phrase atrevida ; era sempre uma saudação affectuosa , casta e quasi paternal a que lhes dirigia , ainda quando as encontrasse a sós nas veredas mais solitarias das devezas ou pinheiraes . Ellas habituaram-se áquella juvenil seriedade , saudavam-n* ' o como a um velho , fallavam d' elle com acatamento , certas de encontrarem n ' aquelle silencioso rapaz um protector na occasião precisa , mas nunca um namorado . E comtudo a figura esbelta de Jorge , a varonil e intelligente expressão d' aquelle rosto bem desenhado e um certo fulgor no olhar , que denunciava energia de caracter , obrigavam a desviar-se para o vêr mais de um olhar feminino , quando elle passava com um livro debaixo do braço ou a cavallo pelos caminhos do campo . As pessoas da indole de Jorge impoem uma especie de estranho temor ás mulheres , que se afastam d' ellas como de um ser mysterioso , d' onde lhes podem vir perigos desconhecidos . Mauricio , pelo contrario , mal podia dizer de que idade encetára o seu primeiro amor . Com os brinquedos pueris misturára já uns arremedos de galanteio e mais o competente cortejo de arrufos e de ciumes . Desde então nunca lhe andou o coração devoluto , ainda que tambem nunca tão tomado e absorvido por amores , que o fizesse passar por qualquer belleza feminina , sem uma lisonja e sem um sorriso . Era popularissimo entre as raparigas da aldeia ; todas o conheciam , e elle a todas designava por os nomes . A todas não , que para as feias tinha uma memoria ingrata . Além d' isso Jorge gastava muito do seu tempo na leitura . Era bem provida a livraria da casa . A educação esmerada da mãe e bom gosto litterario tinham enriquecido a bibliotheca dos melhores modelos da litteratura nacional e da estrangeira . Ahi encontraram os dois rapazes farto alimento para a sua curiosidade . Jorge lia tambem furtivamente os poucos livros , espolio do tio fallecido , os quaes o hortelão guardára como reliquia , furtando-os ao auto de fé a que os condemnaria inevitavelmente a indignação do fidalgo e do padre . N ' esses livros aprendeu Jorge a pensar , a comprehender o alcance de certas ideias e de certas instituições , e a fazer a justiça devida a muitos preconceitos , que lhe haviam imposto como dogmas . A um espirito d' estes , educado em observar e reflectir , não podiam passar por muito tempo desapercebidos os numerosos symptomas da decadencia que apresentava a Casa Mourisca . Assim , por vezes vinha-lhe ao espirito uma secreta apprehensão pelo seu precario futuro . Mauricio , imaginação mais forte , natureza mais ardente , caracter mais frivolo e voluvel , vivia a sua vida de joven fidalgo de provincia ; deixava-se ir na corrente dos seus amores faceis , dos seus prazeres e das suas dissipações , allucinado por os sonhos e chimeras de uma fertil fantasia , e não profundava os olhos até o seio obscuro das realidades . A sua leitura era exclusiva de romancistas e poetas . Imaginação nimiamente inquieta , razão por indolencia inactiva , não via , nem quereria vêr , o espectro , que às vezes apparecia aos olhos do irmão . Uma circumstancia havia , a que mais que a outras devia Jorge a apparição d' esse espectro , que , á semelhança da sombra do rei da Dinamarca , em Hamlet , ia exercendo uma funda influencia no animo do adolescente . Esta circumstancia não era só para elle manifesta . Ao viajante , que já suppozemos parado a contemplar o vulto denegrido da Casa Mourisca , não passaria ella tambem desapercebida . Na raiz da collina fronteira áquella , onde o solar dos fidalgos erguia as suas torres ameiadas , assentava o mais risonho e prospero casal dos arredores . Era uma completa casa rustica , conhecida por aquelles sitios pelo nome , que por excellencia se lhe dera , da Herdade . O contraste entre a Herdade e o velho solar era perfeito . Ella graciosa e alvejante , elle severo e sombrio ; de um lado todos os signaes de actualidade , de vida , de trabalho , da industria que tudo aproveita , que não dorme , que não descança ; a economia , a previdencia , o futuro : do outro , o passado , a tradição esteril , o silencio , a incuria , o desperdicio , a ruina : a cada pedra que o tempo derrubava do palacio , correspondia uma que se assentava na Herdade para alicerces de novas construcções ; aqui desmoronava-se um pavilhão , alli levantava-se um celleiro , uma azenha , um lagar ; aos velhos carvalhos , ás heras vigorosas , aos avelludados musgos , aos lichens multicores , severas galas , com que se adornava a casa nobre , oppunha a Herdade os pomares productivos , as ondulantes searas , os prados verdes , as vinhas ferteis e proximo de casa , os canteiros de rosas e balsaminas , onde volteavam incessantes as abelhas das colmeias proximas . Nas amplas cavallariças do palacio , onde outr'ora relinchavam duzias de cavallos das mais apuradas raças , ainda batiam com impaciencia no lagedo dois velhos exemplares de bom sangue , cujo sacrificio a economia não exigira ainda ; nas mais modestas cavallariças do casal , duas eguas robustas , promptas para o serviço , e domaveis por uma criança , preparavam-se em fartas mangedouras para frequentes e longas excursões ; e ao entardecer abriam-se os curraes a numerosas cabeças de gado , cujos mugidos chegavam até o alto da Casa Mourisca , onde o velho fidalgo muita vez os escutava , pensativo e melancolico . Este contraste , que apontamos , era a circumstancia que evocava no espirito de Jorge o espectro que o entristecia . O dono da Herdade fôra pobre , servira como criado na casa dos fidalgos , passára depois a rendeiro de um pequeno casal , mais tarde arrendára uma fazenda maior ; chegando emfim a ser proprietario , tornára- se em pouco tempo possuidor de extensos bens , e era já o chefe d' uma familia numerosa e talvez o primeiro agricultor d' aquelle circulo . Porque prosperava a Herdade , e porque declinava o palacio ? Se de tão pouco se chegára a tanto , como se podia cahir de tanto em tão pouco ? Taes eram , em summa , as vagas reflexões que se assenhoreavam do espirito de Jorge , quando das janellas do seu quarto , em uma das torres do palacio , ou do alto de alguma eminencia , observava a animação , a vida da propriedade do seu antigo criado , e voltava depois os olhos para o vulto silencioso e como adormecido do velho paço dos seus maiores . Por uma manhã de setembro , limpida e serena , como às vezes são na nossa terra as manhãs do outomno , Jorge sahiu a pé , a passear pelos campos . Errou ao acaso por bouças e tapadas , seguiu a estreita vereda a custo cedida ao transito pela sôfrega cultura nas terras marginaes do pequeno rio da aldeia . Depois , subindo a uma eminencia , parou a contemplar do alto o aspecto do feracissimo valle , que suavemente se lhe abatia aos pés , e no fundo do qual se erguia , d' entre veigas e pomares , a Herdade , de que já fallamos . Jorge sentou-se sobre uma d' essas enormes moles de granito , que se encontram com frequencia em certos logares da provincia , soltas pelos montes , como se fossem roladas para alli em remotas eras por mãos de fundibularios gigantes , empenhados em encarniçada lucta . Os olhos dirigiram-se-lhe instinctivamente para a Herdade , onde se fixaram , como se com força irresistivel os attrahisse o espectaculo que via . Era a época de mais intensa vida nas granjas . Os cereaes , cobrindo as eiras , lourejavam aos raios desanuviados do sol ; carros , a vergarem sob o fardo das colheitas , transpunham lentos as portas patentes do quinteiro , chiando estridorosamente ; apinhavam-se além em montes as cannas e o folhelho de milho , restos de recentes descamisadas ; longas series de mêdas elevavam-se mais longe , á maneira de tendas em um arraial de campanha ; juntas de bois , já livres do jugo , repousavam das fadigas d' aquelles dias de azafama , ruminando em socego ; os moços da lavoura iam e vinham , atarefados em diversos misteres ; e de tudo isto erguia-se um clamor de trabalho , que o socego dos campos e a serenidade do dia deixavam chegar distincto até o alto da collina . O dono da Herdade , o antigo criado da Casa Mourisca , presidia áquellas tarefas , e em volta d' elle moviam-se , saltavam e riam duas ou tres robustas crianças , com quem brincava um formidavel rafeiro . E era esta a scena que Jorge contemplava , e que em tão profundas meditações parecia absorvêl- o . De repente distrahiu-o o som dos passos de alguem que se aproximava d' aquelle mesmo logar , em que tão desapercebidamente lhe ia correndo a manhã . Voltando-se , viu seu irmão Mauricio , que em traje rigoroso e competentes petrechos de caça , e com a esmerada elegancia e apuro , que lhe eram habituaes , subia a collina , precedido de dois ou tres cães de boa raça , que de longe descobriram Jorge e correram para elle , afagando-o , com latidos e cabriolas . Mauricio , assim avisado e conduzido pelos cães , veio ter com o irmão , exclamando jovialmente á distancia de alguns passos : -- Em flagrante delicto de meditação poetica , o snr. Jorge ! Bravo ! Já não desespero de te vêr um dia fazer versos . Jorge respondeu , encolhendo os hombros : -- Quem se senta no alto de um monte , depois de subir toda a encosta d' elle sem parar , póde fazêl- o simplesmente com o prosaico intento de tomar fôlego . Se isto fosse symptoma de poesia , então ... -- Pois sim , mas já isso de subir o monte com as mãos vazias , como estás , sem uma espingarda que revele um razoavel fim no passeio , é um symptoma importante . Quem é que se dá ao incommodo de uma ascensão d' essas , quando o gozo da perspectiva que espera encontrar lhe não compensa as fadigas ? E quem tem d' essas compensações senão os poetas , que são os unicos que sabem ce qu'on entend sur la montagne ? E , a recitar os primeiros versos da poesia alludida , sentava-se ao lado do irmão , pousava a espingarda , e descobrindo a cabeça , sacudia aos ventos os formosos e bastos cabellos castanhos , objecto de muitos cuidados seus . Os cães andavam inquietos a farejar por entre as urzes e as tojeiras do monte . Interrompendo de subito a recitação , Mauricio proseguiu : -- Mas que teima a tua em te mostrares frio ante estas magnificencias ! Que escrupulos póde haver em declarar isto tudo admiravel ? Repara como é bem talhado aquelle córte além , no monte ; parece feito de proposito para deixar vêr no plano posterior aquella povoação distante , que não sei que nome tem . E alli o campanario , com a sua alameda ? Quem teria a feliz inspiração de o assentar tão bem ? Onde é que elle ficaria melhor ? Parece que andou um gosto de artista a dirigir estas coisas . E acrescentou , suspirando : -- Ai , na aldeia o scenario bem está , pouco tem que se lhe diga ; mas os actores e a comedia que aqui se representa é que são de uma insipidez ! Os instinctos urbanos de Mauricio , cuja indole mal se accommodava á simplicidade campesina , e o fazia suspirar pela vida das capitaes , arrancavam-lhe frequentemente d' estas exclamações . Jorge , que escutára o irmão sob uma meia distracção e sem desviar os olhos da Herdade , replicou-lhe sorrindo : -- Ha quasi uma hora que estou aqui , e posso jurar-te que não tinha notado uma só d' essas particularidades da paisagem que descreves . -- Gostas mais da contemplação em globo . Até isso é de poeta . Analysar minuciosamente as impressões recebidas não é o seu forte . -- Enganas-te ainda ; não era tambem o conjuncto da paisagem que eu observava ; mas um ponto limitado d' ella , muito limitado . -- Qual era então ? -- Olha alli para baixo ; a Herdade de Thomé , aquella azafama , aquella gente toda a trabalhar , a vida que alli vae ! -- Ora adeus ! -- exclamou Mauricio -- é justamente o que me não roubaria um momento de attenção . Não te estou a dizer que para mim o que ha de insupportavel no campo é a gente que o habita , a vida que n ' elle se passa ? Faz pena vêr que especie de contempladores tem a natureza para estas maravilhas . A indifferença com que estes selvagens encaram tudo isto ! Repara , vê aquelle labrego passar lá em baixo na ponte ; olha lá se elle desvia a cabeça para algum dos lados , ou se pára um momento para gozar do bello espectaculo que d' alli observa . Olha para aquillo ! Selvagem ! Pergunta ao Thomé ou a toda essa gente que lá anda em baixo a trabalhar quantas vezes admiraram as bellezas de uma noite de luar , vista do alto do oiteiro pequeno , ou se o pôr do sol lhes produz alguma sensação na alma , a não ser a lembrança de que vão sendo horas da ceia . Jorge sorria ao ouvir o irmão , e tornou placidamente : -- Que homem este ! A poesia precisa de ter quem a entenda e quem a faça ; e olha que nem sempre os que a entendem a fazem , nem os que a fazem a entendem . Esta pobre gente do campo é uma parte integrante d' elle ; não o contemplam , completam-n* ' o . Que querias tu ? Gostavas talvez mais de que em vez d' essa gente indifferente , que trabalha , estivessem por ahi os montes , os valles e as ribeiras povoados de poetas contempladores como tu ? Deves confessar que seria um campo bem ridiculo esse . Se eu até , para que te diga a verdade , estou persuadido de que não encontraria encantos nos logares muito visitados , que ha por as quatro partes do mundo , onde , a cada momento , apreciadores inglezes , francezes , russos e allemães passeiam , soltando exclamações polyglotas , e onde o nosso enthusiasmo nos é prescripto a paginas tantas do GUIA DE+O VIAJANTE . O que torna os lavradores poeticos é a inconsciencia com que elles o são . -- Vistos de longe . Pelo menos concorda n ' isto ; vistos de longe , e de muito longe . -- Vistos de longe , sim , que duvida ? como tudo o mais . Ao perto tambem muitos d' esses prados são pantanos mal cheirosos , que infectam , e mexe-se uma miryada de insectos repugnantes n ' essa verdura que tanto admiras . Dize-me uma coisa , Mauricio , parece-te que o nosso velho solar prejudica a belleza d' esta paisagem ? -- Se prejudica ? Ora essa ! Adorna-a . Olha que bem que elle sahe d' aquelle fundo que lhe fazem os castanheiros ! -- Muito bem , e comtudo , visto de perto , ha lá tristes e prosaicas realidades -- observou Jorge , suspirando . Ao olhar de estranheza , com que , ao ouvir-lhe estas palavras , o irmão o fitou , Jorge correspondeu , dizendo : -- Sim , Mauricio , triste e prosaica realidade para quem o olhar de perto . Ha nada mais triste do que aquelles campos invadidos pelas ortigas , que nós lá temos , do que aquelles pomares mal tractados , e aquelles celleiros em ruinas ? Quererás encontrar poesia na nossa pobreza , Mauricio ? -- Pobreza ? ! -- Pobreza , sim ; pois que nome lhe queres dar ? Olha , compara o aspecto d' essa casa branca de um andar , que ahi fica em baixo , com o do nosso paço acastellado , a actividade d' aquelles homens com a somnolencia chronica do nosso capellão ; compara ainda , Mauricio , compara a desafogada alegria de Thomé com a tristeza sem conforto do nosso pae . Mauricio curvou a cabeça , e uma como sombra de tristeza parou-lhe algum tempo na fronte , habitualmente desanuviada . Dir-se-ia-que pela primeira vez o vulto descarnado da realidade se lhe apresentava aos olhos , até então fascinados pelo fulgor de lisongeiras illusões . Mas , depois de breves instantes de silencio , respondeu ao irmão : -- Pois bem , será como dizes . Creio até que seja essa a verdade . A riqueza está alli , a pobreza do nosso lado ; porém a poesia ... oh ! essa deixa-nol-a ficar , que bem sabes que não é ella a habitual companheira da opulencia . -- Da opulencia ociosa , egoista e inutil , de certo que não ; mas da opulencia activa , benefica , que semeia , que transmitte a vida em volta de si , da opulencia que fomenta o trabalho , que cultiva os terrenos maninhos , que fertilisa a terra esteril , que sustenta , que educa e civilisa o povo , oh ! d' essa é a poesia companheira tambem . Se o castello arruinado tem poesia bastante para fazer correr lagrimas de saudade ; a granja , activa e prospera , tem-n* ' a de sobra para as provocar de enthusiasmo e de fé no futuro . Mauricio ficou outra vez silencioso ; depois , como se pretendesse sacudir de si as ideias negras evocadas pelas palavras do irmão , exclamou erguendo-se e com affectado estouvamento : -- Estás enganado , Jorge , o que reina alli em baixo não é a poesia , é ... é ... é a economia . A poesia não assiste ao edificio que se levanta , mas ao que se arruina ; gosta mais dos musgos , do que da cal ; do lado do passado é que a encontras , melancolica , que é o ar que lhe convém . E ella tem razão ; o futuro tem muita vida para precisar do prestigio poetico . A poesia dos utilitarios ! Com o que tu me vens ! Não sei quem foi que ha tempos me disse ter lido uma noticia curiosa a respeito da Inglaterra . Parece que o espirito industrial e economico d' aquella gente vae por lá destruindo as florestas , as matas , as sebes vivas , o que emmudecerá dentro em pouco os córos das aves ; os rebanhos , que d' antes pastavam pelas campinas verdes , hoje já prosaicamente se vão engordando nos estabulos ! Que mais falta ? A voz dos camponezes , as cantigas e as musicas ruraes hão de calar-se ao ruido do ranger das machinas e do silvo do vapor . Admiravel ! Em vez do fumo alvo e tenue das choças ficará o céo coberto de fumo negro e espesso do carvão de pedra . Que modelo de aldeia o que nos vem da Inglaterra ! Na verdade ! que poesia ! -- No que tu me vens fallar ! Na Inglaterra agricola ! -- acudiu Jorge -- Mas antes lá é que bem se comprehende a poesia da vida rural , que até a nobreza a não despreza . Sempre ouvi dizer que os senhores das terras e os rendeiros fraternisam e auxiliam-se mutuamente , e que os trabalhos do anno succedem-se entre festas e solemnidades populares , lucrando todos , trabalhando todos , e enriquecendo cada vez mais a terra . Deves confessar que ha mais poesia nos dominios senhoris dos lords -- Inglaterra , que dirigem por si mesmos as suas vastas emprezas agricolas , do que nos pardieiros em ruinas dos nossos morgados , em cujas velhas salas dormem os proprietarios o somno da ignorancia , da inutilidade e da devassidão . -- Não o nego , mas ... na nossa casa , naquella triste Casa Mourisca , ha um quê de poesia , de poesia elegiaca , se assim quizeres . Essa de que fallas será a poesia das georgicas ; mas a da elegia deixa-m ' a ficar . -- O peior , Mauricio , é que um dia virá talvez em que o tremendo prosaismo da completa miseria dissipará esse tenue perfume que dizes . -- Safa ! Estás hoje com uns humores de Cassandra , Jorge ! Deixa lá ; lembra-te de que se diz que nas nossas propriedades ha um thesouro escondido desde o tempo dos mouros , e que um dia alguem de nossa familia o achará , ficando fabulosamente rico . Que essa esperança dissipe o humor negro que tens . Vamos , vem d' ahi . Pega n ' esta espingarda e vae caçar . É bom para dissipar visões . -- Não estou hoje para caçar . -- Então vaes reatar aqui o fio das tuas cogitações ? -- Não , vou reatal- o acolá . -- Vaes á Herdade ? ! -- Vou . -- Fazer o quê ? -- Vêr de mais perto aquella poesia , ou aquella prosa , como quizeres . -- Sabes que o pae não gosta que lidemos muito de perto com o Thomé ? -- Sei . É um preconceito . Elle não o saberá . -- Um preconceito ! Bom ! Estás hoje muito philosopho . Adeus , Jorge ; espero vêr-te ao jantar de melhor aspecto . -- Adeus , Mauricio . E os dois irmãos separaram-se . Mauricio , precedido pelos cães , seguiu em direcção dos montes , cantando . Jorge desceu a collina e caminhou para a Herdade . Thomé da Povoa era o typo mais completo de fazendeiro , que póde desejar-se . " Alma sã em corpo são " : esta phrase do poeta é a que descreve melhor o homem ; no physico , a força e a saude em pessoa ; no moral , a honradez e a alegria . Emquanto houvesse alguem que trabalhasse em casa , não descançava elle . Delicias do somno de madrugada , attractivos das sestas , a tudo resistia com nunca desmentida coragem . Na abastança conservava os costumes laboriosos de tempos mais arduos . Tudo lhe corria pelas mãos , a tudo superintendia . Antes de almoçar já elle havia passado revista á Herdade toda . No decurso do dia montava a cavallo e lá ia inspeccionar uma ou outra propriedade mais distante , que não deixava entregue á discrição dos caseiros . Uma ou duas vezes no mez estendia as suas excursões até o Porto , chamado por negocios relativos á lavoura . Franco , lizo de contas , pontual nos pagamentos , cavalheiro nos contractos , não se lhe limitava o credito á circumscripção da sua aldeia , estendia-se até á cidade , onde o seu nome era melhor garantia em certas transacções , do que o de muitos faustosos negociantes . Em familia , perfeitamente patriarchal , estremecia a mulher e os filhos ; e a lembrança de que para elles trabalhava , illudia-lhe as fadigas e os desalentos . Quando Jorge se dirigiu á Herdade , presidia ainda Thomé aos diversos trabalhos , em que a sua gente andava occupada n ' aquella manhã . Não havia alli braços quietos , nem movimentos inuteis . N ' aquellas casas o trabalho não distingue sexo nem idade . Todos desde a infancia se familiarisam com elle . Dá-se o mesmo que se dá com o tracto dos bois ; sómente na cidade é que estes possantes e bondosos animaes mettem medo ás mulheres e ás crianças ; na aldeia umas e outras os afagam e dirigem . Assim pois trabalhava-se , fallava-se , ria-se e cantava-se com alma nas eiras e quinteiros da Herdade . E Thomé , centro d' aquelle movimento , lançando os olhos a tudo , dirigindo a todos a palavra e a todos prestando o auxilio do seu braço robusto ; e da porta da casa , assistindo tambem áquella scena rural , a boa e sancta mulher do fazendeiro , a socia fiel nos seus prazeres e penas , sustentando ao collo o ultimo dos seus filhos , emquanto que os mais crescidos jogavam as escondidas por entre aquella gente azafamada . -- Olha lá esse carro que não está bem seguro , ó Manoel . Vê lá se me arranjas ainda hoje por aqui alguma desgraça ... Ó meu maluco , não reparas que me vaes semeando as espigas pelo chão ? Salta , apanha-me tudo isso , que eu não quero nada desperdiçado ... Está quieto , João , vae para casa , agora não se brinca no quinteiro . Sahe-me de ao pé dos bois , menino ! Ai que tu ... Ó Luiza , olha se mandas dar uma pinga áquelles homens Que quer você , tio ? Cubra-se , ponha o seu chapéo . Ai , vem por causa de muro que cahiu ? Olhe , tenha paciencia , volte cá ámanhã . Hoje não posso olhar por isso ... Ó Chico Engeitado , que diabo estás tu fazendo , pateta ? Deixa-me estar essas pipas . Vae-me recolher aquelle milho que eu te disse ; corre ... O moleiro já veio ? Pois as azenhas já moem , e o homem não tem desculpas que dê pela demora ... Ó Manoel , arreda esse carro mais para o meio , senão não póde entrar o outro , homem de Deus ! Disseram ao Luiz que visse como estava o milho da baixa do rio ? Que m ' o não vá cortar antes do tempo . Eu sempre quero lá ir primeiro ; elle não apodrece na terra . Ó mulher , chama para lá esses pequenos , que podem aleijar-se por aqui . Vae , Joãosinho , vae para casa e leva o mano . Olha , queres uma espiga assada ? Ó Chico , escolhe ahi duas espigas para os pequenos . Que demonio anda aquelle cão a fazer atraz das gallinhas ? Aqui já , atrevido ! Vá , vá , rapazes ! Vocês n ' esse andar não acabam hoje . Dá cá um ensinho , que eu vou arredando este folhelho . No meio d' este fogo cerrado de ordens , de conselhos e de observações foi Thomé da Povoa interrompido pela voz da mulher , que exclamou : -- Ai , ó Thomé , olha quem alli está ! O fazendeiro voltou-se e deu com os olhos em Jorge , que do portão do quinteiro viera , cumprindo o que tinha dito ao irmão , contemplar o mesmo espectaculo , que tanto o havia attrahido ao observal- o da collina . Era raro que os filhos de D. Luiz visitassem a Herdade . O velho fidalgo ainda se não costumára á prosperidade do homem que fôra seu criado . A granja era como que uma censura pungente á sua imprevidencia ; era uma lição muda que elle recebia a todos os momentos , que o humilhava no seu orgulho e pungia-lhe o coração de remorsos . Thomé não se mostrava soberbo nem insolente , antes conservava por a familia da Casa Mourisca , e principalmente por D. Luiz , certa deferencia e respeito , que se ressentiam ainda da passada posição do fazendeiro em casa do fidalgo . Este porém procurára o primeiro pretexto para interromper as relações com Thomé . Uma questão de aguas , occasionada por a abertura de uma mina em terrenos da Herdade , serviu-lhe para o intento . D. Luiz , sempre indifferente a litigios d' essa ordem , mostrou-se então muito cioso de seus hypotheticos direitos , e , não obstante a nenhuma animosidade que houve da parte do lavrador , desde essa época nunca mais conviveu com elle . Jorge e Mauricio , que costumavam frequentar a casa do homem que os trouxera ao collo e que lhes queria devéras , receberam ordem para não voltarem lá . Thomé da Povoa sentiu-se com este proceder , que não tinha merecido ; mas possuia bastante finura para perceber a verdadeira causa da irritação do fidalgo ; por isso limitou-se a encolher os hombros , dizendo para a mulher : -- Então que queres tu que eu lhe faça ? assim nasceu , e assim ha de morrer . Eis a razão porque a presença de Jorge o surprendeu ; mas , sem dar signaes de estranheza , caminhou para elle com as mãos estendidas e o rosto aberto em risos da mais cordial hospitalidade . -- Entre , snr. Jorge , entre . Isto por aqui está tudo uma desordem , mas emfim é casa de lavrador , e em setembro não ha maneira de a ter asseada . Ó Luiza , manda para aqui uma cadeira ... ou deixa estar , é melhor entrar lá para dentro . -- Não , Thomé , eu prefiro ficar aqui . E não se incommode . Olhe , já estou sentado . -- Ora ! n ' um carro ! Isso é que não . Nada , não tem geito . Luiza , manda então a cadeira , manda . Quer beber alguma coisa , snr. Jorge ? -- Agradecido , Thomé ; não tenho sêde . Appeteceu-me vir vêr de perto esta lida , que por aqui vae , e que estive observando , perto de uma hora , alli de cima : por isso desci . -- Ora essa ! Pois bem vindo seja , que sempre me dá alegria ver aquelles meninos , que conheci tão pequerruchos como estes . E apontava para as crianças que , agarradas ás pernas do pae , olhavam com grandes olhos para Jorge . -- São todos seus ? -- perguntou Jorge , afagando-as e sentando uma nos joelhos . -- E aquelle que a mãe traz ao collo e a pequena que está na cidade . -- Ai , sim , a Bertha . Deve estar uma senhora ? -- Está crescidita , está . Mas vamos , tome alguma coisa . Olhe que o meu vinho é puro e não faz mal de qualidade alguma . Aquillo é sumo de uva e nada mais . -- Obrigado , obrigado ; mas não bebo agora . Peço-lhe que continue com o seu trabalho , sem se importar commigo . Para isso é que vim . -- Ai , isto está a acabar . Vae no meio dia -- acrescentou olhando para o sol -- d' aqui a nada vae esta gente jantar e ... Para onde levas tu esse carro , ó desalmado ? Perdoe-me , snr. Jorge , mas estes diabos ... Eu attendo-o já . E , sem poder conter-se , collocou-se elle proprio á frente dos bois , e encaminhou o carro na direcção conveniente . -- Vocês juraram dar-me cabo dos limoeiros . Olhe que tenho tido limões este anno , que é uma coisa por maior , snr. Jorge -- disse elle , regressando ao seu posto com um enorme limão , que mostrava com orgulho . Luiza voltou com uma cadeira para offerecer a Jorge . -- Como está crescido e fero -- dizia ella , olhando-o com curiosidade e complacencia -- e o mano como vae ? Vi-o ha dias passar a cavallo alli na ponte do Giestal . Pareceu-me bom . -- E como está seu pae , snr. Jorge ? -- perguntou Thomé gravemente . Jorge ia respondendo a estas perguntas e seguindo o movimento dos criados da lavoura , a quem de quando em quando Thomé dava ordens e fazia recommendações , que entremeiava na conversa , sem perder o fio d' esta . Luiza , com o filho ao collo , não abandonou tambem a scena , senão quando o sino da igreja parochial bateu as tres badaladas que recordam aos fieis a oração do meio dia . O trabalho na eira e no quinteiro suspendeu-se como por encanto . Os homens descobriram-se a fazer uma curta reza , no fim da qual a mulher de Thomé , depois de dar aos presentes as boas tardes , disse , seguindo o caminho de casa : -- Venham jantar . Todos obedeceram immediatamente á agradavel ordem , e em pouco tempo ficou só e silenciosa a scena , havia pouco tão ruidosa e animada . -- São horas do seu jantar , Thomé -- disse Jorge , levantando-se para sahir . -- Depois d' esta gente acabar , é que eu principio . A Luiza não póde attender a todos a um tempo . Deixe-se o menino estar . Eu não lhe offereço do meu jantar , porque não é feito para si ; mas se quizer dar uma volta por os campos emquanto elles jantam ... -- Se lhe não causar incommodo ... -- Nenhum ; até preciso de ir vêr o que elles hoje trabalharam no poço que mandei abrir lá em baixo . E empurrando a porta , que dava para as outras partes do casal , Thomé obrigou Jorge a passar adiante e seguiu-o logo depois . E de caminho ia-lhe commentando tudo que viam ; narrou como alporcára uns pecegueiros , o resultado que tirára do enxoframento das vinhas , a quantidade de fructa que o laranjal lhe produzira , quanto despendêra na construcção do lagar , as difficuldades que encontrou na abertura da nora , o que fizera pouco productiva aquelle anno a cultura do trigo , os cuidados que lhe mereceram os meloaes , e mil outras coisas relativas ao amanho das suas terras , das quaes nem um só palmo se poderia encontrar , onde as plantas nocivas usurpassem o logar das proveitosas . Jorge escutou-o com uma attenção e interesse , que estavam causando grande estranheza a Thomé , pouco acostumado a vêr as pessoas da categoria de Jorge , e da idade d' elle ainda menos , interrogarem-n* ' o com tanta curiosidade e ouvirem-n* ' o com tanta sisudez sobre objectos de lavoura . E as perguntas do joven fidalgo não eram vagas e ociosas , como essas que por condescendencia se fazem , para lisongear a vaidade natural de um proprietario . Havia n ' ellas uma precisão , uma minuciosidade ; acompanhavam-n* ' as reflexões tão acertadas , duvidas tão racionaes , que Thomé não podia illudir-se , e via bem que o descendente dos nobres Negrões de Villar de Corvos o interrogava com desejo de saber . Esta convicção enthusiasmava Thomé , que proseguia com ardor as suas informações . Jorge quiz saber aproximadamente o custeio necessario para manter uma propriedade como aquella no ponto de cultura em que estava , e o capital exigido para a elevar a esse grau de florescencia . Thomé era forte na especialidade dos orçamentos ; por isso deu com a melhor vontade a Jorge as informações que este lhe pedia . A final Jorge , depois de um mais longo intervallo de silencio , que terminou com um suspiro , disse , como a medo , e desviando a cabeça , a fingir-se entretido no exame da roda hydraulica de uma nora : -- E porque será que só os campos que nos pertencem estão cheios de ortigas e saramagos , Thomé ? Thomé da Povoa voltou-se de repente para Jorge , e fitou n ' elle um olhar penetrante . Porque o fazendeiro tinha às vezes um certo olhar , que ia até o fundo do pensamento de uma pessoa . -- Quer que lhe diga porque é , snr. Jorge ? -- perguntou elle logo depois , com um tom de voz serio e quasi triste . -- Quero , sim . -- É porque o dono d' elles é o snr. D. Luiz Negrão de Villar de Corvos , o fidalgo da Casa Mourisca , como por aqui lhe chamamos todos . Jorge olhou interrogadoramente para Thomé , que continuou : -- É pela mesma razão porque chove nas salas do morgado do Penedo e porque seus primos do Cruzeiro perderam o anno passado todo o Casal de Mattoso . Se eu tivesse agora vagar para contar-lhe a minha vida , desde que sahi aos vinte e dois annos de sua casa , snr. Jorge , até hoje , o menino não me perguntava depois porque os seus campos estão cheios de serralha e de saramagos . Trabalhei muito , snr. Jorge , não é só com agua que se regam estas terras para as ter no ponto em que as vê ; é com o suor do rosto de um homem . É preciso que o dono vigie por ellas , sem confiar em ninguem , como um pae vigia pela educação dos filhos . Ora ahi está . As bençãos de um padre capellão não dão adubo ás terras -- acrescentou Thomé com um sorriso epigrammatico a commentar a allusão , que não escapára a Jorge . -- Mas como se explica isto , Thomé ? -- continuou Jorge com a docilidade de um discipulo -- os meus avós nunca se occuparam muito com a lavoura ; passaram a vida quasi toda na côrte e nas embaixadas , e raras vezes visitaram as suas terras , onde só vinham para caçar , e comtudo a nossa casa era então uma das mais ricas da provincia , e hoje ... -- Isso lá ... Olhe , snr. Jorge , se elles se não occuparam dos seus bens e não sentiram o mal , é porque tinham ainda muito que perder . Quem hoje o está pagando é seu pae e amanhã serão os meninos . Isto é como uma pessoa robusta que leva vida extravagante . Emquanto é nova e tem muitas forças , não dá por as que perde e julga que nada lhe faz mal , mas chega lá a um certo ponto e de repente acha-se fraca e então é que considera o damno que fez a si mesma e aos filhos que gerou . Entende o que eu digo ? -- Entendo , Thomé , entendo , e creio que é essa a verdade . Além de que -- proseguiu Jorge pensativo -- n ' aquelles tempos , as classes privilegiadas podiam entregar-se sem receio a uma vida de incuria e de dissipação , porque os privilegios velavam por ellas e remediavam-lhes os desvarios ; adormeceram n ' essa confiança e não sentiram que tinham mudado as condições sociaes , e agora ao acordarem ... Jorge , que dissera estas palavras mais para si do que para o seu interlocutor , interrompeu-as subitamente , e apontando para a Casa Mourisca , que d' alli se avistava , exclamou quasi com desespero : -- E não será ainda possivel sustentar aquella casa na sua quéda ? Thomé da Povoa sorriu com uma expressão de intelligencia . -- Entregue-a ás mãos de um lavrador , de um homem de trabalho , que possa dispôr d' alguns capitaes para os primeiros tempos , e verá . -- Principiaria por deitar abaixo aquellas paredes velhas e aquellas arvores -- observou Jorge , olhando com tristeza para o seu meio arruinado solar e para os bosques seculares que o rodeavam . -- Talvez deitasse -- disse Thomé -- póde bem ser que o fizesse , porque lá amor a essas coisas não teem elles , não . Mas não seria necessario . Eu , que tambem lhes tenho affeição , áquelle arvoredo e áquellas paredes negras , porque alli passei um tempo ... mau era elle de certo ... mas emfim ... sempre tinha vinte annos ... , eu , que me não atreveria a deitar-lhe o machado ... ainda me aventurava a pôr aquillo no pé em que esteve . Jorge não pôde tirar ás suas palavras um ligeiro tom de amargura e quasi de ironia , quando , depois d' esta resposta de Thomé , exclamou voltando-se para a Casa Mourisca : -- Espera pois , casa de meus paes , que a nossa miseria nos expulse dos teus tectos e te abra as portas á familia de um lavrador abastado , para vêres reparados os teus muros , e cultivados esses campos maninhos ; assim Deus dê a esse homem um pouco de amor ás coisas velhas , para te não destruir na reforma . Thomé , que percebeu a occulta expressão d' estas palavras , replicou com dignidade : -- Porque não ha de antes dizer , snr. Jorge : Espera , casa de meus paes , que Deus inspire um dos teus donos , para que olhe por seus proprios olhos para os teus achaques e os cure por suas mãos ? -- Os remedios são caros na botica , Thomé . Os pobres vêem às vezes morrer um doente , porque não podem comprar a droga que o salvaria . -- Senhor||_Jorge Jorge|_Jorge -- acudiu Thomé com um ar quasi solemne -- resolva-se devéras a ser homem , deixe-se de viver como vivem e teem vivido os seus , queira do coração fazer-se economico , trabalhador e vigilante , livre-se da praga dos seus mordomos e procuradores , deixe o padre dizer missas , mal ou bem , conforme puder , porque isso é lá com Deus e elle , faça tudo isto e os capitaes não lhe faltarão . O homem que principiou a ganhal- os n ' aquella casa será um dos que não porá duvida em empregal-os , até onde chegarem , para a sustentar e não deixar cahir ; e onde não chegarem os capitaes , chegará o credito . -- É uma esmola que me offerece , Thomé ? -- perguntou Jorge , mas sem o menor signal de irritação . -- Não , snr. Jorge , não é . Nem o menino m ' a aceitava , nem eu poderia fazêl- a , sem prejudicar meus filhos . Não é uma esmola , é um emprestimo , menos perigoso do que os arranjados pelo padre capellão . Não é vergonha um emprestimo , quando se faz em condições de poder por elle alliviar-se um homem de dividas mais pesadas e de credores mal intencionados , e resgatar e melhorar a propriedade . Ha muito que a sua casa vive d' isso , mas a taes portas tem ido bater e tão mau uso tem feito do pouco e caro que obtinha que , em vez de se salvar , cada vez se perdia mais . Não fica mal um emprestimo , snr. Jorge , quando se procura satisfazer com lealdade os compromissos que se ajustaram . Então não vê que até os governos pedem emprestado ? -- Mas quando , como no meu caso , não ha garantias a offerecer , o emprestimo é bem parecido com a esmola , deve confessar . -- Não ha garantias ? Quem foi que lhe disse isso ? E a sua probidade ? ... Sabe que mais ? Eu sempre lhe vou contar a minha historia e verá depois se tenho razão no que digo . E Thomé de a Povoa , conduzindo Jorge para a sombra da ramada que toldava a nora , na roda da qual se sentaram ambos , principiou : -- Quando sahi da casa de seu pae , por esta vontade , às vezes bem doida , que a gente tem de trabalhar por sua conta , empreguei algum dinheirito , que juntára , em arrendar um casebre e uma horta , da qual , lidando do romper do dia até á noite , tirava quando muito o preciso para não morrer de fome . O menino sabe aquella nesga de campo , que eu tenho ao pé dos açudes e o palheirito que fica ao lado ? -- Bem sei . -- Pois foi essa a minha primeira casa . A Luiza , com quem por esse tempo casei , trabalhava tanto como eu , e assim iamos vivendo , sabe Deus como , mas pagando pontualmente o nosso aluguel e sem ficar a dever nada na tenda . O meu senhorio era um homem muito rico e muito de bem . Deus lhe falle n ' alma ! O menino ha de ter ouvido fallar d' elle : era o doutor||_Menezes Menezes|_Menezes , pessoa de muito saber e que tinha sido da relação do Porto . -- Ainda tenho uma ideia de o vêr . -- Não havia melhor senhorio ; nada exigente com os caseiros e até sempre prompto a ajudal-os . Um anno veio uma sequeira , que matou toda a novidade . Foi uma coisa de fazer dó . Nem gota de agua , as fontes sêcas , as levadas enxutas , os moinhos parados , e os lavradores a agarrarem as mãos na cabeça e a pedir a Deus misericordia ! A coisa foi de maneira que , chegado o tempo de pagar a renda , poucos tinham com que a pagar . -- Succedeu-lhe o mesmo a si ? Está visto . -- A mim ? ! eu nada colhi n ' esse anno ; mas de maneira nenhuma queria faltar ao ajustado com o senhorio . Fui-me ao escaninho da caixa , tirei para fóra uns cruzados novos que , a muito custo , puzera de lado para o caso de uma doença ; mas não era coisa que chegasse . Como ha de ser , como não ha de ser , eis que a minha Luiza , que sempre foi boa companheira , me diz : " Não te afflijas , homem ; ahi vão as minhas arrecadas , pega " , e atirou-m ' as para cima dos cruzados . Lá me custava o servir-me das arrecadas da rapariga , que era a unica riqueza que ella tinha ; mas não houve outro remedio . Pul- as em penhor , e com o dinheiro que me deram completei o aluguer , e no dia marcado apresentei-me em casa do doutor||_Menezes Menezes|_Menezes . -- E elle ? -- Parece-me que ainda o estou a vêr no seu quarto de estudo , com as pernas embrulhadas em uma manta e olhando-me por cima dos oculos : " Então o que o traz por cá , Thomé ? " " Eu , snr. doutor , venho para o que v. s.ª sabe . " " Ah ! sim , estamos no S. Miguel . O anno pelos modos foi mau . " " Ora se foi ! mas emfim vamo-nos conformando com a vontade do Senhor . Outro virá melhor . " E fui-me chegando para a banca e tirei do bolso o dinheiro , que me puz a contar e a encastellar . O homem estava calado a vêr aquillo . Quando cheguei ao fim olhou para mim d' uma certa maneira e disse-me : " Então está ahi tudo ? " Está , sim senhor , v. s.ª não viu ? " E você quer-me dar tanta coisa ? " D ' esta vez fui eu que me puz a olhar para elle admirado . " Então não é este o preço ajustado no arrendamento ? " " É celebre , disse o snr. doutor abanando a cabeça , é o primeiro rendeiro que me paga tão prompto este anno e sem pedir que lhe perdoe alguma coisa , vista a escassez da estação . Onde foi você buscar esse dinheiro , ó Thomé ? Você é o mais pobre dos meus caseiros e eu lá vi o estado do seu campo . " Eu não tive remedio senão contar-lhe tudo . Elle nem me deixou acabar . " Leve isso d' aqui , homem , e desempenhe as arrecadas da sua mulher . Eu não sou nenhum vampiro para sugar o sangue do meu proximo . " -- Bella alma ! -- exclamou Jorge commovido pela narração . Thomé continuou : -- " Em todo o caso -- disse-me d' ahi a pouco o snr. doutor -- você fez hoje um grande negocio sem o saber . Você é trabalhador , que isso tenho eu visto por a maneira porque me traz bem aproveitado o campito que lhe aluguei . Mas , para tirar partido dos seus bons desejos , faltava-lhe o capital e hoje arranjou-o . -- Que queria elle dizer n ' isso ? -- Foi o que eu lhe perguntei . " Arranjou-o sim , senhor , respondeu elle , porque arranjou credito , que vale por um capital enorme . O que você fez , mostra-me o de que é capaz . Appareça ámanhã por aqui , porque temos que tractar . " -- E que lhe queria elle ? -- perguntou Jorge , cada vez mais attento . -- No dia seguinte fui procural- o , sem imaginar o que fosse que elle tinha para dizer-me . Mal me viu , exclamou logo : " Ora venha cá , Thomé , sente-se aqui , porque temos um contracto a fazer . " E , obrigando-me a sentar ao lado d' elle , continuou : " Vocemecê vae assignar- me um escripto de arrendamento da minha propriedade das Barrocas . " Ora faça ideia o menino de como eu fiquei , assim que tal ouvi . Conhece a quinta das Barrocas ? aquillo é um condado , se póde dizer . Como havia eu de arrendal-a , Sancto Deus ! Elle , conhecendo o meu espanto , acudiu logo : " Não lhe pareça isso uma coisa por ahi além . Nós ajustamos a renda e você vae tomar conta d' aquillo . A quinta está bem educada e nutrida , e estou certo de que não o deixará ficar mal no fim do anno . " " Mas , disse-lhe eu , v. s.ª bem vê que uma peça d' aquellas precisa de braços para ser bem trabalhada , de braços e de certas despezas . " Mas , homem , torna-me elle , quem lhe diz menos d' isso ? Olhe lá que eu a deixe ao desamparo , para você m ' a entregar no estado em que por ahi em geral os caseiros as entregam aos senhorios . Mas é bem feito , que elles tambem fazem uns arrendamentos taes , que os caseiros morreriam esfomeados , se não esfomeassem a terra . -- Mas esse homem era um grande philosopho ! -- observou Jorge . -- " Vá você para lá -- continuou elle -- tracte-me bem d' aquillo , e os capitaes precisos para instrumentos , gado , adubos , jornaleiros e algumas obras , eu lh'os adiantarei . Você é trabalhador , a terra é boa , ia apostar que ambos havemos de lucrar . -- E o Thomé foi ? -- Fui , e foi o principio da minha felicidade . A terra era abençoada ! e depois , alli nada faltava para a fazer produzir . Creia o snr. Jorge que o dinheiro tambem nasce como a semente . O dinheiro , enterrado assim na terra , produz dinheiro , senhor . Eu lá o vi , que quanto mais se gastava com a terra , mais ella produzia . Foi lá que eu aprendi a ser lavrador . Muito devi aos conselhos d' aquelle homem . " Anda para diante Thomé , dizia-me elle . Se queres que o cavallo te não deite a terra e te leve a longa jornada , dá-lhe bem de comer ; a ração de aveia que lhe furtares da mangedoura é a que mais cara te sahe . " Mais tarde , quando eu , com a ajuda de Deus , já ia , além de pagar as minhas dividas a pouco e pouco , juntando algum peculio no canto da caixa , foi elle que me disse : " Não abafes o dinheiro , Thomé . põe-n* ' o ao ar para elle se não estragar ; tudo quer ar n ' este mundo . " E ahi me animei eu , ao principio com mêdo , que fui perdendo depois , a dar emprego ás minhas economias ; e era um gosto vêr como ellas augmentavam . Passados annos eram taes , que já eu pensava em comprar umas terras , que era cá o meu sonho . Foi elle ainda quem me tirou isso da cabeça . " Não tenhas pressa de ser proprietario , prégava- me elle , olha que os lucros que vaes ter , gastando todo o teu dinheiro em comprar qualquer leira de terra , não correspondem ao gostinho de te chamares dono d' ella . Não te afogues em pouca agua . Se comprares um cavallo e ficares sem cinco reis para o sustento d' elle , vê lá que negociarrão ; pois as terras tambem comem e tu bem o deves saber . " E o caso é que me convenceu e nem pensei mais n ' isso . -- Mas a final sempre comprou ? -- Quando elle mesmo m ' o disse . Foi á praça esta granja , que não era ainda o que é hoje . " Vê agora se ficas com aquillo " , disse-me o snr. doutor . A propriedade era de valor e eu não queria empregar na compra todo o meu capital . O snr. doutor ajudou-me mais uma vez , e a propriedade passou para as minhas mãos . Então trabalhei mais do que nunca . Todo o meu empenho era remir depressa a minha divida , porque , emquanto o não fizesse , parecia-me que não podia chamar ainda meu a isto . Deus ajudou-me com annos felizes e com boas colheitas , e como continuava com o arrendamento das Barrocas e depois com este negocio de gado , pude , mais cêdo do que esperava , pagar a minha ultima prestação e remir a divida . Chegando a este ponto da sua narrativa , animou-se a physionomia de Thomé da Povoa de um clarão de enthusiasmo e com as faces córadas e os olhos radiantes proseguiu , suspirando com desafogo . -- Que dia aquelle , snr. Jorge ! Eu nem lhe sei dizer o que sentia em mim ! Eu sei lá ? ! Quando voltei da casa do doutor , com o escripto da quitação no bolso , vinha a tremer , pulava-me no peito o coração como o de uma criança ; abri surrateiramente aquella porta da quinta , e sósinho , como um ladrão , sem que ninguem me visse , entrei aqui . Digo-lhe que estava quasi louco . Até fallei alto ; lembra-me bem de que disse ao vêr-me cá dentro : Isto é meu ! E depois que sabia que era meu , parecia-me outra coisa tudo isto . Meu ! eu não me fartava de repetir esta palavra ! Meu ! Estas arvores eram minhas , estas fontes eram minhas , até estes passaros , que por ahi cantavam , eram meus , porque emfim vinham fazer ninho e cantar no que me pertencia . Vae rir-se , se eu lhe disser o que fiz . Eu abracei estas arvores , eu bati palmadas n ' estes muros , lavei-me n ' esses tanques todos , bebi agua d' essas fontes , deitei-me á sombra d' essas arvores , eu cantei , eu saltei , eu chorei , e a final ... quer que lhe diga ? Não tive mão em mim que não ajoelhasse para beijar esta terra ! beijei , sim , beijei esta terra , que eu ganhára á custa de muito trabalho , de muito suor e de nenhuma vileza . Tinha orgulho , e tenho-o , em me lembrar de que tudo isto me viera de eu ser honrado e amigo de cumprir a minha palavra . Eu não me recordo de ter um contentamento assim na minha vida , a não ser no dia em que estreitei nos braços a Luiza , e que tambem pela primeira vez lhe chamei minha mulher . Era quasi a mesma coisa ; este era o meu segundo casamento . D ' ahi em diante foi que eu soube o que é ter amor á terra . Desde a sementeira á colheita era um cuidado incessante com o campo . Ver crescer as plantas , para mim causava-me tanto prazer como vêr o crescer dos filhos ; cada novo rebento era como que um nascimento em casa . Media o quanto iam crescendo as arvores que plantava e trazia contados os fructos dos pomares . Aquillo nos primeiros tempos foi uma loucura . Aqui tem a minha vida . Deus ajudou-me , e d' ahi por diante tudo me tem corrido bem . Já vê , snr. Jorge , que quem deve o que é a ter sido honesto , não póde recusar o seu pouco auxilio a um rapaz de brios e de probidade como é o menino . Jorge estendeu a mão a Thomé , dizendo-lhe sensibilisado : -- Fez-me bem ouvil- o , Thomé . A sua vida é um exemplo , é uma lição , e n ' ella procurarei aprender . Eu tambem sinto os mesmos desejos de remir a rninha ultima divida para depois chamar meu ao que me pertence . E n ' esse dia eu tambem abraçaria com enthusiasmo aquellas velhas arvores , e ajoelharia para beijar a terra , que os meus antepassados me deixaram . Mas não sei se a empreza estará ao alcance das minhas forças . -- Está . Eu lhe digo . Ha aqui só uma difficuldade a vencer . Empregue toda a sua força para esse fim , porque se tracta do bem de sua casa , do seu futuro e da sua dignidade . É preciso que o pae lhe dê licença para o menino administrar a casa e que o padre capellão se contente com dizer missas , porque depois ... -- Ainda quando vencesse essa difficuldade , que é grande , Thomé , porque meu pae ainda vê em mim uma criança , surgiria outra . De si nunca meu pae ... Thomé da Povoa não o deixou concluir . -- Eu sei , mas o snr. D. Luiz não se mette por miudo nos negocios da casa , desde que tem um procurador encarregado d' elles . Consiga que elle ponha em si a confiança que tão mal emprega no padre , e eu lhe prometto que o mais se fará . Eu não exijo mais garantias para o meu dinheiro , do que um escripto seu , snr. Jorge . Demais , como a sua experiencia é pouca , eu , se m ' o permittir , guial- o-hei nos primeiros tempos . Como seu pae não gosta de que o menino venha por aqui , virá sem que elle o saiba . Os serões de inverno são longos , nós conversaremos algumas noites . Jorge disse finalmente com resolução : -- Aceito , Thomé . Fallarei a meu pae . O dever de salvar a minha casa da ruina me dará coragem . Aceito , porque tenho fé em que me não será impossivel pagar-lhe mais tarde a divida que contrahir . -- E eu tenho fé em que ha de ainda haver dias alegres e de festa n ' aquella triste casa . Não é verdade que se diz que ha lá um thesouro escondido ? Pois cave na terra , que o ha de encontrar . A voz de Luiza , ao longe , annunciou n ' este momento ao marido que o jantar esperava por elle . Jorge sahiu d' alli com o coração palpitando de esperanças e de commoção , que lhe estava já causando a ideia da entrevista que precisava de ter com o pae . Thomé jantou com o appetite de quem tinha feito uma boa acção e realisado uma ideia , com que havia muito tempo lhe lidava o cerebro . A mulher achou-o mais fallador do que de costume ; e depois de jantar voltou para a eira , cantando . Era feliz n ' aquelle momento a sua alma generosa . Em uma das espaçosas salas da Casa Mourisca , alumiada por tres rasgadas janellas ogivaes e mobilada ainda com certa opulencia , vestigios do esplendor passado , esperavam a hora de jantar o velho fidalgo e o seu capellão-procurador frei||_Januario_dos_Anjos Januario|_Januario_dos_Anjos dos|_Januario_dos_Anjos Anjos|_Januario_dos_Anjos . Não foi rigoroso o emprego no plural do verbo da ultima oração . Frei Januario era quem esperava , porque essa era tambem a principal occupação dos seus dias . Os gozos do paladar mal lhe compensavam as amarguras d' estas longas expectações . Eram ellas talvez que não o deixavam medrar na proporção dos alimentos consumidos , porque frei||_Januario Januario|_Januario era magro . O mysterio physiologico d' esta magreza ainda não era para se devassar de prompto . D. Luiz lia as folhas absolutistas , que lhe mandavam da capital e do Porto , e dava assim em alimento ao seu odio contra as instituições liberaes um dos fructos mais saborosos d' ellas -- a liberdade de imprensa -- ; fructo , em que os seus correligionarios mordem com demasiada complacencia , apesar de ser para elles fructo prohibido . De quando em quando D. Luiz interrompia a leitura com uma phrase de approvação ao artigo que lia ou de censura a qualquer medida promovida pelo governo , que nunca tinha razão . Frei Januario secundava , com toda a força do seu obscuro credo politico , as reflexões de s . exc.ª , e requintava na intensidade dos anathemas , com que eram fulminados os homens da época . Mas , solta a phrase que o caso pedia , e as competentes exclamações , voltava o padre a consultar o relogio , a abrir a bôca , a suspirar ; dava dois ou tres passeios na sala e terminava por ir inspeccionar a cozinha . Os intervallos das refeições eram para elle seculos ! -- Humh ! -- disse D. Luiz n ' aquella manhã , poisando a folha , como enojado com o que lêra -- Lá foi concedido um subsidio para a construcção do lanço de estrada de Valle-escuro ! -- Fartos sejam elles de estradas ! -- acudiu logo frei||_Januario Januario|_Januario -- Para esta gente a moralidade e a ventura de um paiz consiste em ter estradas e diligencias , e acabou-se . Olhem lá se elles levantam sequer uma igreja ? Isso sim ! O dinheiro do clero sabem elles roubar ! E que pena não terão por não deitarem a baixo os templos que por ahi ainda ha ! Mas atraz do tempo tempo vem . Vontade não lhes falta . Não sei se foi esta ultima phrase que recordou ao padre que tambem a elle não faltava vontade ... de comer . O certo é que , mudando de tom , acrescentou : -- Querem vêr que o Bernardino se esqueceu hoje do jantar ? Isto são quasi duas horas , e eu não ouço tugir nem mugir na cozinha ! Nada , aqui anda coisa . Com licença , eu vou vêr e volto já . E frei||_Januario Januario|_Januario sahiu da sala para ir pela vigesima vez á cozinha , que elle suspeitava abandonada pela incuria do cozinheiro , estando pois a familia toda ameaçada com a tremenda catastrophe d' uma retardação do jantar . D. Luiz pegou de novo nas folhas e deixou-se ficar lendo até á volta do padre , que entrou indignado . -- Eu que dizia ? ! Posto á taramela com o hortelão , sem se lembrar do jantar ? Olhem se eu lá não ia ! Não que dizem que uma pessoa póde descançar nos criados . Ha de poder ! São uma corja ! E , v. exc.ª não quer crêr , aquelle excommungado d' aquelle hortelão ha de ser a ruina d' esta casa . Foi uma imprudencia da parte do snr. D. Luiz metter em casa um libertino d' aquelles , mação nos ossos e no sangue . Foi um passo muito errado ... Aquillo é um pessimo exemplo para os outros . Sabe v. exc.ª em que elle estava fallando ? Na cantiga do costume . No desembarque do Mindello . Quando eu cheguei ainda lhe ouvi dizer que eram sete mil e quinhentos bravos que vieram pôr fóra da cidade os oitenta mil lobos que andavam lá , e coisas assim . E o cozinheiro a dar-lhe ouvidos , e o leitão a queimar-se e a sôpa a pegar-se no fundo da panella , que logo me cheirou a esturro . É preciso que v. ex.ª dê as providencias , quando não ... D. Luiz , tomando menos a peito do que o capellão os destinos do jantar e da sôpa , e fiel ao habito de nunca fallar , nem em mal nem em bem , do hortelão , não respondeu e proseguiu a leitura das folhas . D ' ahi a pouco referiu ao padre a noticia que tinha lido do desastre succedido a uma diligencia ao passar em uma ponte que na occasião abatêra , resultando muitas victimas . A indignação do padre exaltou-se . -- Pois se esta gente que nos governa deixa as estradas e pontes em um abandono d' esses ! Vejam que tempos os nossos ! e que governos que não se importam com as vidas dos cidadãos ! Em que paiz do mundo se vêem estradas assim arruinadas como as nossas ? São os bens que nos trouxeram os homens da Carta ! Isto é bonito ! E o padre||_Januario Januario|_Januario continuou ainda por algum tempo a condemnar , pelo crime de desleixo e de falta de protecção á viação publica , os mesmos governos que , momentos antes , accusára de conceder para esse fim subsidios e de lhe dar importancia demasiada . A politica de frei||_Januario Januario|_Januario é vulgar na nossa terra . D. Luiz , tendo concluido a leitura da folha , pôl- a de lado e resumiu a serie de pensamentos que essa leitura lhe suggerira , na seguinte e contrahida synthese : -- Isto vae cada vez melhor , frei||_Januario Januario|_Januario . -- Isto vae bonito , não tem duvida nenhuma -- secundou o padre . -- O peior é o futuro -- tornou o fidalgo , assombrado . -- Ai , o futuro ha de ser fresco ! -- repetiu o procurador , fungando uma pitada . -- Emfim , quem viver verá aonde isto vae parar , onde nos leva esta torrente . -- E não é preciso viver muito . Mais dia menos dia temos ahi os hespanhoes , ou então passamos a ser inglezes . Não ha que vêr ; da maneira por que vão as coisas ... -- Ai , pobre Portugal ! -- exclamou melancolicamente D. Luiz . -- Que vaes á vela -- concluiu o padre . -- Desde que puzeram a cabeça á roda a esta gente com liberalismos ... ficou tudo transtornado . Agora todos mandam , todos fallam , e não ha quem governe . Isto de não haver um que governe ... Estes patetas não se desenganam de que um paiz é como uma casa . Ora deixem á vontade os criados em uma cozinha , sem ninguem que os vigie , e verão o que vae ! esperem por o jantar , que hão de achar-se servidos ! O simile fôra suggerido a frei||_Januario Januario|_Januario pela sua constante preoccupação . -- O que me custa é lembrar-me de que meus filhos teem de viver n ' esta sociedade assim organisada . Quem sabe a sorte que lhes está reservada , aos pobres rapazes ! -- disse o fidalgo , suspirando com escuras apprehensões sobre a posição precaria da familia . -- Os filhos de v. exc.ª não devem transigir em caso algum com estes homens ! -- exclamou com vehemencia o padre -- É não fazer como a sobrinha de v. exc.ª , a snr.ª D. Gabriella , que já é baroneza das feitas por elles . Quando se é fidalgo é preciso ser fidalgo . -- É bem negro o futuro que espera as casas como a nossa , e sabe Deus se em parte preparado por nós -- insistia o fidalgo . -- Tambem peccamos . -- Pois é uma triste verdade , mas isso não é razão para que os que nasceram n ' essas casas se abaixem diante dos que nem sabem aonde nasceram . Deixe v. exc.ª medrar quanto quizer o Thomé da Herdade , que no fim de tudo sempre ha de mostrar que andou descalço em criança e que foi levar a beber o gado d' esta casa . Ha certas coisas que não dá o dinheiro . -- O Thomé da Herdade ! -- repetiu D. Luiz com amargura -- Esse é que prospéra , os tempos estão para elle . Quem viu e quem vê aquillo ! -- Então que quer ? Inda mais havemos de ver . E então não sabe v. ex.ª que o homem mandou educar a filha na cidade , como se fosse a filha de alguem ? -- A Bertha ? -- Sim , a que é afilhada de v. exc.ª Com que fim faz aquelle toleirão uma coisa d' essas ? Veja a parlapatice d' aquelle homem . Não repara na posição falsa em que colloca a rapariga . Metteu- se-lhe talvez na cabeça que ainda a casava com algum fidalgo ! Póde ser . Veja v. exc.ª se ella serve para algum dos seus filhos . D. Luiz sorriu , encolhendo os hombros . -- Ora para que precisa a mulher de um lavrador , que é a final o que ella tem de ser , das prendas e da educação que o pae lhe mandou dar ? Não me dirá v. exc.ª ? -- Todos hoje teem aspirações a subir -- reflectiu D. Luiz com ironia . -- A maré sóbe . -- Eu bem sei o que é que dá causa a estas tolerias . Tudo isto vem da barulhada que estes liberalões fizeram na sociedade . Tudo está remexido e ninguem se entende . O sapateiro que nos vem tomar medida de umas botas parece um visconde . Onde isso é bonito , segundo dizem , é em Lisboa . Hoje todos por lá tem excellencia ! N ' estes sediços commentarios sobre o estado do seculo deixaram-se ficar os dois por muito tempo , desafogando assim a sua má vontade contra as instituições modernas . O padre||_Januario Januario|_Januario porém não perdia com isto a ideia do jantar , e de quando em quando voltava os olhos para o relogio , cujos lentos ponteiros não correspondiam nunca á impaciencia dos seus desejos . Emfim deu uma hora e frei||_Januario Januario|_Januario ergueu-se instinctivamente para ir vêr se o jantar estava servido . Passado pouco tempo tocava a sineta , tão grata aos ouvidos do reverendo . Vibraram pelos desertos aposentos e extensos corredores da Casa Mourisca aquelles sons , que em felizes tempos punham em movimento uma numerosa e esplendida côrte , que os ventos da adversidade tinham dispersado . D. Luiz entrou na sala do jantar , onde com impaciencia o aguardava já o capellão . Aquella grande sala vazia , aquella extensa mesa , apenas servida com quatro talheres , fallava tanto do esplendor passado e da decadencia presente , que poucos logares havia na casa que deixassem no fidalgo mais melancolicas impressões . Nunca se lhe anuviava tanto o coração como ao sentar-se á cabeceira da mesa , em torno da qual outr'ora vira rostos conhecidos e amigos , hoje tão solitaria e abandonada . D. Luiz , reparando que o escudeiro principiava a servir , perguntou , apontando para os logares dos filhos , que ainda estavam de vago . -- Então os senhores não ouviram a sineta ? -- Os senhores ainda não vieram . -- Nem Jorge ? -- perguntou D. Luiz , como se estranhasse menos a ausencia de Mauricio . -- Nem um , nem outro . -- O snr. D. Mauricio -- observou o padre , que temia um adiamento do jantar -- sahiu para a caça ; quando virá elle agora ? E dizendo isto , fazia signal ao criado para que servisse o fidalgo . -- E Jorge ? -- insistiu o pae . -- O snr. D. Jorge ... esse não sei ... talvez esteja ahi por alguma parte . O fidalgo , evidentemente contrariado com a ausencia dos filhos , que ainda mais augmentava a solidão d' aquella sala , resignou-se a principiar a jantar sem elles . O jantar correu em silencio . O humor negro de um dos commensaes e o appetite do outro não davam azo ao dialogo . Estava o padre deliciando-se com uma farta posta de assado e o competente accessorio de massas , quando Jorge entrou na sala . D. Luiz não lhe dirigiu a palavra , nem sequer um olhar . Jorge formulou uma vaga desculpa , que o pae interrompeu com um gesto a mandal- o sentar ; e , passados momentos , levantou-se elle e sahiu silencioso . Frei Januario , tendo já satisfeito as primeiras e mais urgentes exigencias do seu estomago , achou-se disposto a continuar o dialogo . Por isso , ao encetar a sobremesa , dirigiu por comprazer a palavra a Jorge : -- Com que vem do seu passeio , hein ? A manhã estava bem bonita . E então o que viu por esses campos ? -- Muito trabalho , snr. frei||_Januario Januario|_Januario , muita vida rural -- respondeu Jorge . -- Sim , agora é o tempo das colheitas . Anda por ahi tudo azafamado . -- Mas porque é , snr. frei||_Januario Januario|_Januario , que nos campos da nossa casa não vejo o movimento dos outros ? A imprevista interpellação do adolescente ia entalando o padre . -- Causou-me sensação isto hoje -- proseguiu Jorge . -- Quem subir ao alto do outeiro da Faia , por exemplo , e olhar de lá , em roda de si , para o valle , póde marcar as propriedades da nossa casa ; onde vir um campo quasi maninho , um muro a cahir , umas paredes negras , um aspecto de cemiterio , tenha a certeza de que nos pertencem esses bens . -- Não é tanto assim ... É verdade que ... meu rico filho , que quer ? depois que os homens do liberalismo tomaram conta d' este paiz , as coisas mudaram . Quem não está por o que elles querem ... -- Não vejo em que elles influam para isto , snr. frei||_Januario Januario|_Januario . Quem nos impede de fazer o que os outros fazem ? de cultivar os nossos campos ? de pôr homens a trabalhar n ' essas terras incultas ? -- O que os outros fazem , diz elle ! Os outros ... os outros ... e quem são os outros ? Uns miseraveis que eu conheci de pé descalço , a limpar os cavallos e a cavar nos campos d' esta casa . -- Tanto mais para admirar e para louvar o esforço que os tirou d' essa posição humilde e os elevou áquella , que hoje occupam . -- Olhem que grande milagre ! Homens que não devem respeito a si mesmos , para quem todo o trabalho está bem , como não hão de enriquecer ? Ora essa é muito boa ! -- E os que devem respeito a si mesmos estão pois condemnados á miseria ? -- Á miseria ... á miseria ! ... Que palavra ! Ora para o que lhe deu hoje ! Foi febre que se lhe pegou ? Se ella anda por ahi tão accêsa ! O menino ainda é muito criança para pensar n ' estas coisas . Coma e beba e ... As faces de Jorge tingiram-se de um rubor intenso , e redarguiu com energia e irritação : -- Não sou criança , frei||_Januario Januario|_Januario ; acredite que o não sou . Tenho mais de vinte annos e estou resolvido a ser homem . Córo da minha ociosidade , quando vejo que sómente as nossas terras fazem vergonha á actividade d' este povo . Tenho annos para viver , deveres de honra a cumprir , um nome para conservar sem mancha , e quero saber que futuro me preparam os gerentes da nossa casa , quero desviar a tempo de mim a tremenda responsabilidade de ser na minha familia talvez o primeiro a faltar um dia aos seus compromissos . É por isso que fallei e que desejo que me responda , snr. frei||_Januario Januario|_Januario . -- Ai , menino , menino ; isso não é seu ! Ahi anda doutrina liberal . Eu cheiro-a a distancia de legoas . Então quando o senhor seu pae me honra com a sua confiança , é acaso justo , é acaso bonito que eu seja suspeitado e interrogado por uma criança , que ainda nada sabe do mundo ? -- E quando hei de aprender ? Querem-me estupido , como esses morgados que por ahi se arruinam ? -- Mas que quer o snr. Jorge a final ? Então não sabe que desde que os lavradores se fizeram fidalgos , ninguem lucta com elles ? O dinheiro está de lá ; para lá vão os trabalhadores , senhor . Ora é boa ! Eu acho graça a certa gente ! -- O dinheiro está de lá ! Mas como conseguiram elles enriquecer ? Pois não diz que eram uns miseraveis ? -- Ah ! então quer principiar como elles principiaram , cavando com uma enxada todo o dia e furtando á bôca para juntar ao canto da caixa com o fim de comprar uns bois ? etc. etc. Veja se quer . -- Não principiavamos de tão longe como elles , escusavamos de tantos sacrificios . Bastava que olhassemos com attenção para o muito que temos ainda , e que tentassemos desenredar , a pouco e pouco , esta meiada , que nos enleia e que nos ha de afogar a todos . -- Ora é boa ! E então o que É que eu faço , o que é que estou fazendo ha quasi trinta e oito annos em que o snr. D. Luiz me distingue com a sua confiança ? Mas a coisa não é tão facil , como lhe parece . É boa ! -- Mas quaes são os seus planos , padre||_Januario Januario|_Januario , qual é o seu systema de administração ? -- Os meus planos ? ! ... Ora essa ! ... Então que planos quer que sejam os meus ? Systema de administração ! ... isso é phrase de côrtes ... Humh ! tenho entendido ... É o que eu digo ... Ó snr. Jorge , ora falle-me a verdade , ahi andam ideias de liberalismo . Com quem fallou esta manhã ? ora diga . -- Venham d' onde vierem as ideias . A origem pouco importa , a questão é que ellas sejam boas . Eu não tracto de liberaes nem de absolutistas agora . Vejo que a minha casa se perde , vejo cahirem os muros e nunca se repararem ; vejo campos e campos sem a menor cultura , encontro em tudo quanto nos pertence profundos signaes de decadencia , e quero saber a grandeza do mal que nos opprime .