Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA M. PINHEIRO CHAGAS A LENDA DE+A MEIA-NOITE 2.a edição LISBOA Parceria A. M. PEREIRA -- Livraria editora Rua Augusta, 50, 52 e 54 1906 N ' um dos sitios mais pittorescos da Beira-Baixa , n ' essa montanha vestida de verdura , onde se recosta Alpedrinha , e que domina o verdejante valle do Fundão , ergue-se uma casa ampla e antiga , de cuja varanda , extensa varanda de madeira , em cujos beiraes vem as andorinhas fazer os seus ninhos , se descortina a extensa paisagem , onde alvejam Val de Prazeres e outras villas e aldeias que matizam , com as suas casas brancas , o verde do arvoredo , e que tem como panno de fundo a imponente massa da serra da Estrella , coroada com as suas neves eternas . A casa não tem formosuras architectonicas , nem aspecto de palacio ; é apenas um edificio vasto , cercado de dependencias rusticas , tendo defronte do portão as cavallariças , casas de habitação dos criados , etc. , que , desenrolando se em semi circulo , fecham um terreiro que dá ao edificio campestre uma especie de pateo de entrada . A parte mais caracteristica da residencia é a extensa varanda de madeira , tão usada na provincia , onde nas tardes de estio se respira a viração da serra , onde nas manhãs de inverno se toma alegremente a restea do sol . Fica isolada a habitação que a largos traços descrevemos . Pegada com a fachada principal está o muro , onde se abre o portão da quinta . Esta é assombreada pelo magnifico arvoredo , que viça , com incrivel vigor , n ' esse torrão privilegiado conhecido na provincia pelo nome de cova da Beira . Para um lado a pouca distancia fica Alpedrinha , a pittoresca villa com as suas casas penduradas entre verduras da encosta da montanha , para outro lado a estrada desce até ao Fundão . Por toda a parte verdura , arvores , aguas , o ar purissimo das serras , os rumores mysteriosos das solidões . É encantadora a situação d' aquelle formoso eremiterio . No outono e no inverno a paisagem toma uns tons mais carregados e lugubres . A montanha assume um certo ar de grandeza . Nos soutos espessos dos castanheiros passa o furacão silvando com furia ; a trovoada vae-se repercutindo de echo em echo pelas concavidades dos valles , e os relampagos illuminam , com a sua luz sinistra , o arvoredo que se estorce nos braços doidos do vendaval . Nos amplos salões d' esses edificios isolados ouvem-se rumores sinistros , e sons mysteriosos , e o vento , fazendo ranger os pilares da varanda , entôa a musica triste das lendas populares . É exactamente no outono que nós conduzimos o leitor á casa da Fragosa , como por lá se chama ao sitio em que ella fica . Os viscondes da Fragosa , que alli moram , tinham convidado alguns amigos seus para irem caçar nas suas terras , de fórma que estavam reunidas bastantes pessoas no grande salão da residencia , junto da brazeira , no momento em que convidamos o leitor para entrar tambem e aproveitar o calor benefico do lume . É já noite ; a tarde estivera sobre-maneira ventosa e fria , de fórma que os convidados , reunidos na varanda , para assistirem a um d' esses esplendidos occasos do sol , que são tão frequentes no outono , tiveram que retirar e fechar-se em casa , deixando o vento gemer lá fóra , estorcendo os ramos do arvoredo . Accendeu-se a brazeira , e , esquecendo-se o frio e o vento , entrou-se n ' uma palestra tão animada , como se se estivesse n ' uma sala de Lisboa , a dois passos do Theatro Italiano , e sentindo-se , a rodarem nas ruas , as carruagens da cidade . O salão era vasto e simples , mobilado á antiga . Nas paredes alguns velhos quadros sombrios ; pesadas cadeiras , de pés torneados , forradas de coiro lavrado , dispostas em circulo , em torno de uma mesa de pau santo , ornava apenas um canto da sala immensa . N ' esse canto , onde se agrupavam a familia e os convidados , havia uma profusa illuminação . O resto da sala ficava perdido na sombra . De vez em quando surgiam d' esse fundo escuro os criados que vinham fazer algum serviço . O toque da campainha não parecia que os chamava , parecia que os evocava . Saíam de subito da penumbra , como se surgissem do chão . O aspecto da casa era , portanto , o mais legendario que podia imaginar-se . A conversação prolongára- se ainda depois do chá ! Um medico , que residia em Alpedrinha , para onde viera , não exercer a clinica , mas tratar da sua propria saude , arruinada , em proveito da saude dos outros , homem de espirito fino e amavel , fôra quem sustentára principalmente a palestra , ajudado por um sr.||_Lucio_Valença Lucio|_Lucio_Valença Valença|_Lucio_Valença , escriptor de certa aura , e caçador intrepido , e por uma filha dos viscondes , gentil menina , sympathica , alegre e desembaraçada , que , apesar de ter vivido sempre em Castello-Branco , e de ter ido apenas uma ou duas vezes a Lisboa , não tinha nenhum dos acanhamentos tradicionaes das provincianas de romance . A pouco e pouco , porém , esmorecera a conversação : pausas cada vez mais amiudadas cortavam a palestra , e o medico já tirára o relogio para vêr se não íam sendo horas de retirada . Mas o visconde da Fragosa estava agarrado , com o commendador Madureira , e alguns visinhos de campo , a um impertinente boston , e em vista d' isso ninguem ousava ser o primeiro a tocar a recolher . N ' estes silencios ouvia-se distinctamente o rugir do vento na serra , e os seus gemidos e silvos nos corredores da casa . -- Meu Deus ! que tristeza de noite ! disse de subito uma joven senhora , de notavel formosura , extraordinariamente pallida , mas com umas opulentas tranças negras , e uns olhos negros tambem , grandes , rasgados , que lhe illuminavam com estranho fulgor o rosto de alabastro . O vento geme com uns sons tão lugubres , que nos parece ouvir as queixas dos phantasmas . É uma noite de lenda allemã ! -- Para isso , acudiu o doutor Macedo , falta a chuva , a trovoada , a neve e muitos outros accessorios germanicos . O vento só não basta . -- V. ex.a gosta de lendas , sr.a||_D._Isaura D.|_D._Isaura Isaura|_D._Isaura ? perguntou inclinando-se para ella um elegante moço do Fundão , em quem pareciam ter produzido uma impressão profunda os olhos negros e a romantica pallidez da filha do commendador Madureira . -- Se gosto de lendas ! respondeu a pallida menina . Ah ! de certo , adoro-as , mas gosto de as lêr em Lisboa , no meu gabinete e á luz do sol . -- Sem mise-en-scene não prestam , observou com toda a gravidade o doutor Macedo . -- A que chama mise-en-scene , doutor ? perguntou Isaura . -- O Lucio que lh'o explique , minha senhora ; não quero invadir os seus dominios . -- Oh ! meu Deus , acudiu o escriptor , não é difficil de adivinhar . O doutor entende que as lendas devem ser lidas e apreciadas á noite , no meio do silencio geral , quando se está sósinho , n ' um velho castello de Anna Radcliffe , cheio de alçapões e de subterraneos , quando o vento geme lugubremente nos corredores , e faz oscillar a luz da vela que illumina a nossa solitaria vigilia . Creio que o doutor , acudiu Lucio voltando-se rindo para elle , dispensa que a vela esteja n ' um craneo , em vez de estar n ' um castiçal , e que haja um cemiterio por baixo da janella . -- Dispenso ... dispenso ... acudiu o doutor com a mesma imperturbavel gravidade , quero dizer ... não julgo indispensaveis esses accessorios , mas não posso negar que augmentavam de um modo notabilissimo o effeito phantastico da narrativa legendaria . -- Meu Deus ! exclamou a pallida Isaura . Fazem-me morrer de susto com essas historias pavorosas . Hoje com toda a certeza não durmo . Que idéa ! É necessario que não tenham a minima dóse de sensibilidade para assim estarem zombeteando a respeito de coisas , que me produziriam uma impressão tamanha , que os meus nervos de certo não resistiriam . Estou já toda tremula ! -- Mas , minha senhora , exclamou o doutor Macedo , as lendas são como os ananazes . Ha os nascidos ao ar livre , na sua terra propria , e ha- os desabrochados artificialmente com o calor da estufa . N ' um velho solar provinciano , ao som lugubre do vento nos corredores , n ' uma noite de inverno sulcada de relampagos , nasce a lenda tão naturalmente como o ananaz no Brazil . N ' uma sala de Lisboa , forrada de espelhos , ornada de macios sophás , entre os rumores meridianos da rua , a luz clara e alegre do sol , a lenda não póde ter mais sabor do que um ananaz de estufa . -- Jesus , meu Deus , exclamou D. Isaura , percebo isso perfeitamente , e bem sei que o phantastico só póde produzir toda a impressão de que é susceptivel no scenario que o doutor descreve : mas é que levado a esse ponto , o phantastico produziria no meu espirito um funesto effeito . Matava-me ou enlouquecia-me ! Ah ! tornou ella , eu adoro o ideal , mas o ideal póde tambem partir as cordas da minha alma . -- Tomo o partido de Isaura , disse não sem alguma ironia a filha dos viscondes -- Fragosa , linda menina de cabellos castanhos claros e olhos azues , de um azul tão vivo que produziam às vezes a sensação de olhos negros , como se fossem aquelles reflexos azulados da aza negra do corvo ; tomo o partido de Isaura . Os senhores estão fallando ahi como creaturas vulgares incapazes de sentirem profundamente as grandes commoções . Para as almas privilegiadas os grandes prazeres da imaginação muitas vezes são tambem o martyrio . São as Ophelias , as Marias -- Noronha , as creaturas ideaes cujos corpos são apenas , como o da irmã do bispo Myriel nos Misérables , de Victor Hugo , pretextos para conservarem no mundo almas de anjos . -- E cuidas que não ha na terra esses entes , cujas expressões mais sublimes foram encontradas por tres grandes poetas que acabas de citar , Garrett , Shakespeare e Victor Hugo ? acudiu vivamente o enthusiasta de Isaura , que sentira o leve epigramma , que o seu idolo não comprehendêra . -- Não cuido tal , Henrique . A prova de que os ha é que Isaura é um d' esses entes . -- Por quem és , Leonor ... acudiu Isaura com uns certos ares de modestia , que ainda mais desesperaram o seu apaixonado . -- É assim , tornou Leonor . Tu , Isaura , sentes que se partiriam as cordas da tua alma , se quizesses lêr á noite n ' um quarto de uma velha casa provinciana uma historia de phantasmas . Morrias se te achasses sósinha á noite n ' uma sala de lugubre aspecto . Porque ? Porque tens a imaginação exaltada , a sensibilidade nervosa das Ophelias e das Marias -- Noronha ! -- E não admirava , acudiu Henrique Osorio que assim se chamava o moço do Fundão , não admirava , sr.a||_D._Isaura D.|_D._Isaura Isaura|_D._Isaura , que v. ex.a tivesse medo de estar sósinha n ' um castello de Anna Radcliffe . Nem todas podem ter a imaginação calma , o prosaico bom senso , a fria intrepidez de Leonor . A marqueza da Lusacia , de que falla Victor Hugo n ' um dos seus poemas , preferia perder a soberania do seu marquezado a ir passar a noite sósinha , como o ordenava o costume tradicional , no castello de seus avós ... -- Logo encontrou quem a acompanhasse , interrompeu Leonor ironicamente . -- E não seria só ella . -- Isaura , ouviste ? acudiu Leonor rindo com tal ou qual amargura , se quizeres passar alguma noite n ' um castello legendario , como a marqueza da Lusacia , já tens trovador que te acompanhe , ao bater da meia-noite , e que te cante : Si tu veux , faisons un rêve , Montons sur deux palefrois , Tu m ' emmènes , je t ' enlève . L'oiseau chante dans les bois . Isaura sorriu-se sem comprehender bem a lucta que em torno d' ella se travava ; Henrique Osorio calou-se . Leonor , um pouco arrependida de ter mostrado um tal ou qual azedume , voltou-se para sua mãe que resonava recostada na sua poltrona , e , chamando-a , disse-lhe algumas palavras em voz baixa , convidando-a a que lembrasse a seu pae que eram horas de pôr um termo ao boston . O doutor levára a mão aos labios para cumprimir um bocejo , e Lucio Valença , sorrindo-se , contemplava a esplendida formosura de Isaura , e êsses olhos que Deus fizera tão formosos , e que não reflectiam comtudo senão as preoccupações pueris da mulher da moda , e da lisbonense frivola . No meio d' este silencio ouviu-se o vento bramir com mais força , para depois gemer com mais tristeza , parecendo que se estabelecia um dialogo entre os espiritos atmosphericos , e que aos rugidos ameaçadores de um demonio respondiam as queixas plangentes de um ente fraco e debil . De subito ouviu-se ao longe , ao longe , vibrar uma badalada no sino de S.||_Martinho_de_Alpedrinha Martinho|_Martinho_de_Alpedrinha de|_Martinho_de_Alpedrinha Alpedrinha|_Martinho_de_Alpedrinha . O vento soprava d' aquelle lado , e trazia nas suas azas as lugubres vibrações do bronze . Ouviu-se em profundo silencio uma , duas , tres ... doze badaladas . -- Meia-noite ! disse naturalmente o doutor , quebrando o silencio em que todos estavam , porque todos tinham estado contando as horas . Mas a voz do doutor tambem tomára involuntariamente como que uma sinistra entoação . D. Isaura soltou um grito . -- Jesus ! disse ella . -- Que tem , minha senhora ? perguntou Henrique sollicito e afflicto . -- Meu Deus ! exclamou Isaura , é que me aterraram com as suas loucas historias , é que me puzeram n ' um estado incrivel de sobre-excitação nervosa . Meia-noite ! vê ? Meia-noite é a hora dos phantasmas , é a hora das apparições ! E esta sala é tão lugubre , e este silencio é tão agoireiro ! -- Minha senhora , exclamou o doutor Macedo alegremente , v. ex.a suppõe por acaso que nós sejamos phantasmas , e que estejamos quasi a dissipar-nos em fumo como quaesquer entes mal-creados do mundo sobrenatural ? V. ex.a está no meio d' um batalhão de gente viva capaz de affrontar dois subterraneos de Anna Radcliffe , tres conventos de Lewis , reforçados ainda pelos mil e um phantasmas de Alexandre Dumas . -- Oh ! tornou Isaura toda tremula , mas é que a meia-noite soou de um modo tão lugubre ... E nós a esta hora ainda a p -- Oh ! tornou Isaura toda tremula , mas é que a meia-noite soou de um modo tão lugubre ... E nós a esta hora ainda a pé ... -- V. ex.a deita-se mais cedo em Lisboa ? perguntou o doutor . -- Não , mas ... -- Mas é que a meia-noite só aterra os que lhe dão ímportancia . É uma hora covarde e manhosa , que , se vê a alegria do baile , as salas illuminadas , as danças caprichosas e revoluteadoras , entra pacatamente como outra hora qualquer , até com mais risos e mais alegrias , accendendo mais o fogo das walsas , cumprimentando para todos os lados amavelmente . Se vê o estudioso debruçado sobre os livros , indifferente e sereno , entra timidamente , nos bicos dos pés , e abafa até as suas proprias vibrações ; se encontra n ' um serão de familia a conversação alegre , o bule de chá em cima da mesa , as cartas do boston para um lado , um livro para outro , bate á porta discretamente , e annuncia que é tempo de se recolher cada qual para o seu leito . Ora agora , se encontra gente que espera com susto , que está prompta a desmaiar apenas ouvir a primeira badalada que a annuncia , então eil-a que toma uns ares pavorosos , engrossa a voz , faz entrada solemne , espalha em torno de si o terror e o assombro . Fóra com semelhante fanfarrão ! É necessario darmos-lhe uma lição mestra ! Peço a palavra para um requerimento . -- Hein ? disse lá da mesa do jogo o visconde da Fragosa , que aspirava á deputação . -- Está concedida , visconde ? disse o doutor , rindo . -- Mas que diz você ? tornou o visconde muito espantado dos risos com que os interlocutores do Macedo acolhiam a sua idéa . -- Bem ! Passo adiante . Requeiro que para todos os effeitos seja abolida a meia-noite . -- Approvado por unanimidade e mais um que é o visconde , tornou , rindo , Lucio Valença . Agora queira o sr. deputado apresentar uma proposta indicando o modo pratico de se levar a effeito essa medida importante . -- Proponho , tornou o doutor com gravidade comica , que de ámanhã em diante affrontemos a meia-noite rosto a rosto , e lhe torçamos o pescoço . -- Mas o meio ? o meio ? o meio pratico ? bradaram Lucio e Leonor . -- O meio é o seguinte : O mau tempo ameaça prolongar-se , e nós ou não podemos caçar , ou não podemos prolongar a caça por todo o dia , sob pena de estoirarmos ahi de frio por essa serra . Portanto á noite estamos frescos e descançados , e podemos protrahir o serão . Proponho que organisemos um Decameron para zombarmos da meia-noite , como os narradores de Bocaccio zombaram da peste de Florença . Cada um de nós , que se sentir para isso com forças , se compromette a compôr uma historia phantastica , uma lenda , um conto maravilhoso que será lido aqui ao bater da meia-noite . D ' essa fórma affrontamos face a face a terrivel inimiga do repouso da sr.a||_D._Isaura D.|_D._Isaura Isaura|_D._Isaura , e , se ella ainda ousar fazer uso dos seus sortilegios , com+nós se ha de haver ! -- Apoiado ! apoiado ! bradaram todos menos D. Isaura , que soltou um grito , exclamando : -- Isso é horrivel ! -- Não , minha senhora , é uma receita , é um remedio heroico , é um banho russo . Vou-lhe combater os seus nervos . -- Mate-me , doutor ! -- Qual historia , minha senhora ! Mato a meia-noite ! Verá como depressa a moda acceita a minha idéa . D ' aqui a pouco tempo não se falla em Lisboa n ' outra coisa , e a lenda da meia-noite será o anti-espasmodico mais empregado . A idéa de que effectivamente em Lisboa d' ahi a pouco tempo se não fallaria n ' outra coisa foi o que decidiu D. Isaura . Ao mesmo tempo terminára a partida do voltarete , e um dos jogadores , homem já de cabellos grisalhos , vivo , espirituoso , illustrado , que no tempo do romantismo commettera alguns peccados litterarios , exclamou alegremente : -- Acceitam-me para companheiro ! Eu ainda sirvo para uma montaria aos lobos , vamos a vêr se tambem presto para uma montaria á meia-noite . -- É acceito com mil vontades , sr.||_Roberto_Soares Roberto|_Roberto_Soares Soares|_Roberto_Soares . Eu já o conheço como robusto campeão , e assento-lhe praça com enthusiasmo . Agora cabe-me designar o serviço . Henrique Osorio , você é quem rompe o fogo . Henrique inclinou-se em silencio relanceando um ardente olhar á pallida Isaura . -- Meia-noite e meia-hora ! disse o doutor tirando o relogio . Saudemos , meus senhores , a ultima meia-noite que passa , e vamo-nos deitar . Todos se riram , e um borborinho alegre encheu d' ahi a pouco os corredores da habitação . Ainda por algum tempo se sentiu o rumor de portas que se abriam e fechavam , de passos que se perdiam ao longe , de vozes que se despediam . Depois caiu tudo em silencio , e só se pôde ouvir o vento que continuou toda a noite a gemer lugubremente as suas monotonas queixas . A previsão do doutor realisou-se . O tempo continuou mau , e aggravou-se ainda com a chuva que principiava a cair em torrentes . A noite seguinte passou-se alegremente . Quando , porém , um relogio de parede , que fôra posto na sala , indicou onze e meia , Isaura fez-se ainda mais pallida do que era , e houve no auditorio uns taes ou quaes signaes de commoção . -- A postos , meus senhores ! exclamou o doutor alegremente . Firmeza , companheiros ! Do alto d' aquelle relogio trinta minutos vos contemplam . Houve de novo entrain , risos e enthusiasmo . N ' isto o sino de S.||_Martinho Martinho|_Martinho deu a primeira badalada da meia-noite . Soava ainda mais lugubremente do que na vespera . Solta no meio dos loucos rumores do vendaval , a vibração do bronze parecia uma nota perdida de agonia e de desespero . -- Henrique ! disse o doutor . Vamos ! Estás um pouco pallido ? É a commoção do auctor e não a da meia-noite , juro-o aos deuses immortaes . Vá ! inflexão lugubre , voz cavernosa , gesto sombrio ! Henrique desenrolou um manuscripto , e , no meio da attenção geral , leu o seguinte : JULIETA CONTO PHANTASTICO Eram onze horas da noite , e estava-se tomando chá em casa do meu amigo Frederico B * * , em Bemfica . Havia uma roda d' intimos ; a conversa estava animada e o meu amigo , a quem a alegria e o entrain dos convidados deixavam mais liberdade no cumprimento dos seus deveres de dono da casa , aproveitava-se d' isso para contemplar extasiado sua linda mulher , com quem casára havia pouco tempo , e que do seu lado lhe sorria tambem com a meiguice e ternura da mulher que ama devéras . A conversa animára- se tanto , que se ia transformando em algazarra . Discutia-se acaloradamente a questão da existencia das almas do outro mundo , com grande desprazer d' um jornalista que por força queria conduzir ao bom caminho aquelles discutidores extraviados , propondo que se tratasse da bondade do ministerio , deixando de parte essas tolices , que não serviam para nada . Mas ninguem lhe prestava attenção , o que fez com que elle desesperado fosse lêr pela centesima vez um artigo seu publicado n ' um jornal que estava em cima de uma das mezas da sala . Essa producção do seu engenho , que o jornalista relia com tanto enthusiasmo merecia indubitavelmente tão paterna sollicitude , porque elle e o revisor da imprensa tinham sido os seus unicos leitores . Mas o auctor tantas vezes o tinha lido , e tal admiração professava pelo seu proprio talento , que podéra dizer , sem receio de ser taxado de mentiroso -- " que o seu artigo tinha feito tal impressão , que lhe constava ter havido uma pessoa que o relia a miudo , e sempre com enthusiasmo crescente , honra de que se podiam gabar poucos artigos politicos da imprensa portugueza . " -- Concluamos , bradava entretanto um medico materialista por dever de profissão , onde collocam os senhores esse agente mysterioso a que dão o nome de espirito , teimando em appellidar assim pomposamente o mechanismo material , que a morte paralysa ? Quando esse relojoeiro sombrio , que se chama tempo , quebra com mão despiedosa as rodas complicadas do nosso systema vital , onde se refugia esse ente inutil , esse ser impalpavel a que os senhores espiritualistas querem dar as redeas do governo d' este barro quebradiço , que constitue o homem ? E durante a vida quaes são os laços invisiveis , que prendem o escravo ao senhor , o corpo material e fragil á alma etherea e immortal ? Tremendo absurdo , utopia talvez respeitavel , sublime tolice pela qual se tem sacrificado innumeras gerações ! Ah ! mas sobretudo , é doido devéras quem imagina que essa invenção impossivel , resultado das aspirações da humanidade para a existencia eterna , possa vir aos cemiterios animar os restos putrefactos dos reis da creação ; quem tal suppõe , não sentiu nunca debaixo do escalpello anatomico o cadaver inerte e despresivel , nem póde avaliar com a vista infallivel da sciencia o nada immenso das vaidades humanas ! -- Fóra com o materialista , bradou um rapaz enthusiasta ; sabes tu , meu caro doutor , que a primeira vaidade humana cujo nada immenso tu devias avaliar , é a vaidade da sciencia ? Que sabes tu , presumpçoso Hippocrates , que tens de recuar vencido perante o primeiro obstaculosinho , que a natureza caprichosa queira oppôr á vista infallivel , como tu dizes , do saber dos homens ? E és tu que andas perdido no meio da confusão dos systemas medicos a procurar no labyrintho scientifico o fio conductor que te está sempre a escapar das mãos , és tu que pretendes entrar com passo firme no insondavel labyrintho da eternidade ? ... Espera , continuou elle vendo entrar um mancebo muito pallido , que foi apertar a mão de Frederico , e comprimentar a dona da casa , queres-te convencer ? Pois ahi tens tu um homem vivo , que teve relações directas com um phantasma . -- Roberto , assenta-te ahi , e conta-nos immediatamente a historia do teu espectro , se v. ex.as não se oppõem a isso ainda assim , continuou elle , voltando-se para as senhoras presentes , que tinham escutado a discussão metaphysica , com ligeiros signaes de aborrecimento . Propôr a senhoras uma historia de phantasmas é despertar-lhes a attenção , é fazer-lhes passar nas veias o estremecimento do enthusiasmo . Não sei porque , esses entes frageis , pallidos ou rosados , de olhos negros ou azues , alegres ou melancolicos , esses entes femininos encantadores e timidos adoram tudo o que os faz tremer , e recreiam-se sobre tudo com essas historias terriveis , em que o leitor estupefacto encontra um punhal ao voltar de cada pagina , um ladrão á esquina de cada periodo , um phantasma pelo menos em cada capitulo . Por isso a parte feminina da assembléa acolheu a proposta com enthusiasmo : e a mim e aos outros homens , que estavam presentes , não desagradou a idéa de ouvir uma historia terrivel , em petit comité , no pino da meia noite , tendo de voltar depois para casa por aquelles caminhos desertos dos arredores de Lisboa ; a mim sobretudo , que tinha de passar pelas casas arruinadas de Campolide , sorria a idéa de ir com a imaginação povoada de phantasmas , que poderia distribuir á vontade pelos recantos d' essa paisagem tão magestosa , quando a lua envolve os paredões solitarios na branca mortalha da sua luz , em quanto ao longe se desenha sobranceiro entre os campos verdejantes o perfil grandioso do aqueducto sombrio . Roberto , devemos dizel- o para honra sua , não se fez rogado , comprimentou silenciosamente a assembléa , e começou pouco mais ou menos n ' estes termo Roberto , devemos dizel- o para honra sua , não se fez rogado , comprimentou silenciosamente a assembléa , e começou pouco mais ou menos n ' estes termos : " Cantava-se em Lisboa pela segunda ou terceira vez o Baile de mascaras . Era uma noite de delirio no theatro de S. Carlos . Franschini , o cantor sublime , fazia tremer de enthusiasmo a platéa inteira , e a voz portentosa de madame||_Lotti Lotti|_Lotti despenhava sobre o publico palpitante torrentes de melodia e de sentimento . O personagem de Amelia , interpretado como então o foi , deixava de ser um typo creado pela imaginação do poeta para se transformar , animado pelo Prometheo do genio , n ' um ente real , cujos sentimentos traduzidos em suspiros de harmonia , iam arrancar os soluços dos peitos dos espectadores . Era o poema da paixão , com todas as suas peripecias , mas da paixão verdadeira , da paixão que geme e rasga os seios da alma , da paixão que verte lagrimas , de cujas feridas brota o sangue , e não d' essa paixão ficticia , cuja expressão convencional anima só a mascara , que a artista desafivella apenas desce o panno . Eu , perdido n ' um canto da platéa , escutava , como escuto sempre quando vou ao theatro lyrico . N ' isso devo confessar-lhes que tenho idéas um pouco originaes . O panno , que sóbe lentamente no principio da opera , descerra para os outros espectadores meia duzia de taboas rodeadas por bastidores de lona , onde uns poucos de artistas vão cantar umas poucas de arias para divertimento do publico . Para mim é como que uma janella encantada que se abre por onde eu me arrojo para os espaços azues do ideal . Os outros analysam com toda a paciencia a instrumentação e o canto , investigam se foram executadas as leis do contraponto , e depois de satisfeitos applaudem compassadamente para não rasgarem as luvas , voltam-se bocejando , e comprimentam a senhora condessa de * * , ou a senhora baroneza de * * , cuja chronica escandalosa vão contar immediatamente ao seu visinho da esquerda . Mas eu não . A minha alma , que illumina o fogo do enthusiasmo , não póde ficar na terra , quando sente passar no espaço o sopro da harmonia , da casta filha do céo . Desapparece o theatro , desapparecem os espectadores , desapparece a ficção . Arrastada no manto de fogo do ideal , a minha alma sente , enleva-se , palpita , geme , pranteia , soluça com Macbeth o grito do remorso , suspira com Desdémona a canção da saudade , gorgeia com Helena o hymno da desposada , escuta com Rosina a meiga serenata , sólta com Lucrecia o rugido da envenenadora , e volta depois á terra , deixando-me ficar pallido , extasiado , porque entrevi em sonhos a deslumbrante claridade de um mundo desconhecido . Tinha começado o segundo acto , e eu seguia cheia de um vago terror a scena lugubre do principio . As notas da aria de Amelia soavam-me aos ouvidos como dobres de finados , e quando a Lotti soltou aquelle grito de pavor , que vibrava sonoro e plangente pelo theatro , fazendo estremecer os espectadores , eu levantei-me pallido , convulso , e senti correr-me pela raiz dos cabellos o halito de fogo de uma mysteriosa commoção . O meu visinho olhou para mim espantado ; sentei-me , deixei cahir a cabeça entre as mãos , e scismei . -- Ó ideal , dizia eu , quando poderei finalmente sorver a longos tragos o teu nectar precioso na cinzelada taça da phantasia ? " Ó virgem dos meus sonhos , ó anjo das azas de ouro , quando poderá a minha alma , abraçando-se comtigo nas regiões celestes , aspirar a plenos pulmões a balsamica aragem da poesia ? ... o que és tu , ente mysterioso , que assim bafejas o espirito dos grandes poetas , e lhes vaes murmurar , em noites de inspiração , os segredos sublimes que o vulgo profano admira , mas não comprehende ? " Oh ! quaes serão as visões d' estes homens portentosos , e nas suas noites de febre , de delirio e de insomnia , em que mysticos amores te enlaças tu com elles , ó ideal sublime , ó ideal inspirador ? E emtanto nós , os desherdados , bebemos com um riso alvar a agua insipida e lodosa dos prazeres do mundo , e caminhamos n ' esta planicie monotona da vida , olhando com terror para o Sinai chammejante , onde campeiam , cercados da divina aureola , os harmoniosos prophetas , os validos da inspiração ! " Não posso ; falta-me o ar no recinto estreito da vida social ; a prosa d' este mundo opprime-me o coração . A minha alma está sequiosa de amor , e este apparece-me sempre escoltado pelas conveniencias , trazendo sobre o rosto formoso a mascara ridicula dos interesses materiaes , ou a mascara odiosa do capricho sensual . Amor ! amor ! mas um amor como o teu , ó casta e pura Amelia , como o teu , ó Julieta , ó noiva gentil de Romeu e da sepultura , quero um d' esses amores sublimes , e , se elle não se encontra na terra , surge dos tumulos , ó pallida virgem por quem eu anhelo , e mostra-me ao menos n ' um relampago as mysteriosas alegrias da eternidade ! " N ' isto levantei a cabeça , e os meus olhos involuntariamente fixaram-se n ' um camarote , que ficava pouco distante do logar que eu occupava na platéa . Uma senhora de belleza maravilhosa estava sósinha n ' esse camarote , e encarava-me com uma attenção extraordinaria . Não sei porque gelou-se-me o sangue nas veias , e fiquei extatico a contemplar aquella esplendida formosura . Raras vezes tenho encontrado um rosto assim ! A correcção das linhas , a pureza dos contornos , a magestade do perfil deixavam na sombra os mais perfeitos modelos da antiga estatuaria . Praxíteles quebraria desesperado as estatuas e o cinzel , se lhe fosse dado contemplar as inflexões suaves , a perfeição das fórmas d' aquella viva esculptura . Se algum defeito se lhe poderia notar , era a rigidez marmorea da physionomia . Via-se que nem tristezas nem alegrias seriam capazes de alterar a regularidade do semblante , que só parecia ter vida nos olhos , que eram lindos a mais não ser , e d' onde emanavam raios magneticos e deslumbrantes , que enlouqueciam quem se atrevesse a encaral- os . Aquelle rosto assemelhava-se a uma urna de marmore , em cima da qual se tivesse collocado uma lampada de luz fascinadora . Era um fragmento de gêlo dourado levemente pelos reflexos de um vulcão , mas essa physionomia tinha um não sei que de mysterioso e sombrio , que me impressionou profundamente . Olhei para o relogio . Os ponteiros marcavam no mostrador meia-noite em ponto . No theatro os conjurados cantavam o côro das gargalhadas , e repetiam rindo o estribilho : Sem poder explicar a mim mesmo a fascinação irresistivel , que me impellia tão imperiosamente á contemplação d' aquelle formoso semblante , nunca mais desviei a vista do camarote . E ella , oh ! ella olhava-me com uma meiguice de enlouquecer . Estava toda vestida de negro , e isso ainda mais contribuia para fazer realçar a alvura da sua tez . Trajava elegantissimamente , mas com uma singeleza , que me encantou , a mim , que procuro quasi sempre o bom gosto na simplicidade . Só ella occupava o camarote ! Sósinha ! Quem poderia ser ? Tão nova , tão formosa , e só ! Oh ! meu Deus ! seria ella uma d' essas mulheres sem pudor , que arrastam por toda a parte o manto de seda da ignominia , que foram apanhar da lama , onde deixaram em troca o candido véo da innocencia ? Impossivel ! O seu porte modesto , a simplicidade do seu trajo eram um protesto vivo contra o descaro , e orgulhoso cynismo d' essas Messalinas venaes . Mas só ! Quem sabe ? Talvez a pessoa que a acompanhava , estivesse escondida na sombra do camarote ; talvez tivesse saído . Tudo podia ser , mas a suspeita é que não podia manchar nem por momentos a luz serena d' aquelle rosto angelical . E eu olhava-a deslumbrado ; e uma transformação estranha se operava em mim . Parecia-me que as luzes do theatro iam esmorecendo a pouco e pouco até se reduzirem á claridade sinistra das lampadas sepulchraes , o palco e a platéa confundiam-se n ' um vasto cemiterio , onde o vento da noite fazia ondular a copa dos cyprestes , por entre cujos ramos passavam os raios da lua , da pallida scismadora , da solitaria amiga das sepulturas . E ella , ella , a formosa desconhecida , vinha dizer-me com o seu olhar tão triste : -- Queres o meu amor , ó pobre escravo d' um corpo material , ó doido , que aspiras ao infinito sem pensares que tens os pés embaraçados na immunda vasa d' esse oceano de desespero , que se chama a vida ? Oh ! não queiras conhecer os segredos dos tumulos , porque tu , meu louro poeta , voltavas ao mundo de cabellos brancos , se tocasses um só minuto com os labios na taça inebriante dos amores da eternidade ! -- Oh ! que me importa a vida , respondia eu na allucinação febril , se em troca d' esses dias de prosa me posso arrojar um instante só aos espaços infinítos das sublimes commoções ! A minha alma é como a aguia , que se arroja ás regiões das nuvens , affrontando a tempestade , e cae depois na terra fulminada pelo raio , que altiva foi provocar . Que me importa a mim a morte , a condemnação eterna , se podér sorver nos teus labios voluptuosidades desconhecidas , e lêr nos teus olhos o poema sublime do amor , que eu phantasio ? A visão desapparecia ; mas no palco a voz seductora d' Oscar , o elegante pagem , vinha murmurar-me aos ouvidos : Pieno d' amor Mi balza il cor ; Me+a pur discreto Serba il segreto . E no olhar da minha formosa desconhecida lia-se em letras de fogo a mesma confissão inebriante : Pieno d' amor Mi balza il cor . Tinha acabado a opera . Levantei-me e saí . Fiz um esforço sobre mim , não querendo olhar para o camarote fatal . A pessoa que o occupára durante a noite produzira em mim uma impressão tal que cheguei a ter medo ... medo da influencia pasmosa que ella ía tomando sobre o meu pobre coração . Oh ! fatalidade ! Quando cheguei ao corredor , o primeiro vulto , que passou por diante de mim , foi o vulto elegante e nobre da gentil desconhecida . Ia só ! Tive como que uma vertigem , quando ella , ao passar , me lançou um d' esses olhares que endoidecem o homem de rasão mais fria , que lançam no inferno o mais virtuoso santo do paraizo . Não tive forças para luctar contra a fascinação irresistivel d' esse olhar . Se elle tinha sobre mim a influencia magnetica do olhar de José Balsamo sobre a pobre Lorenza ideada por Alexandre Dumas ! Debalde a pobre italiana se torcia desesperada debaixo d' aquelle jugo oppressor , debalde oppunha toda a força da sua vontade e do seu odio á tenacidade diabolica do terrivel magnetisador , debalde resistia com todo o ardor da sua devoção , com todo o vigor da sua alma virginal áquelle poder incomprehensivel , mas horrendamente verdadeiro ; tinha de recuar diante d' esse olhar , como diante d' uma espada chammejante , até caír oppressa e desesperada aos pés de José Balsamo . Então esse corpo quebrado pela resistencia , reclinava-se nos braços da voluptuosidade , e a voz que ia terrivel a bradar : " Odeio-te " , terminava supplicante a balbuciar : " Adoro-te " . Ao vêl-a , disse eu commigo mesmo : " Não quero , não quero ceder a esse imperio inexplicavel . " E minutos depois , surprehendia-me a seguil-a apressadamente pelas ruas de Lisboa . Ha occasiões em que nos vêmos obrigados a acreditar em forças sobrenaturaes que nos attrahem e nos repellem , é quando a nossa vontade se aniquila , e quando as leis da nossa organisação são violentamente revogadas por um despotismo estranho . Submetto esta reflexão á consideração dos illustres materialistas que me escutam ! A desculpa que eu dei a mim mesmo , quando apesar de todos os meus protestos me surprehendi a seguir a senhora de negro , foi a desculpa da curiosidade . Com effeito , dizia eu commigo , tirando philosophicamente baforadas de fumo do charuto que acabára de accender no momento em que passou por diante de mim a formosa desconhecida ; o que ha mais natural ? Encontro uma linda mulher em S. Carlos , linda como poucas , e original a mais não poder ser . Vejo-a no camarote sósinha , e torno a vêl-a , saíndo a pé , e ainda só . Não tenho nada que fazer , e por conseguinte sigo-a . É naturalismo . E a voz da consciencia murmurava-me ao ouvido : -- É o brilho da chamma tentadora , ó doida borboleta , é o olhar fascinador da serpente , ó ave descuidosa . -- Ora adeus , respondia a voz da minha apparente philosophia , prejuizo , superstição , fanatismo , como dizia o tenente||_Boutraix Boutraix|_Boutraix de um dos romances de Carlos Nodier . Vou offerecer-lhe o meu braço . A senhora que eu seguia caminhava lentamente a quinze passos adiante de mim , quando muito . Passava ella então defronte da egreja dos Martyres . Puz o chapéu ao lado com modos conquistadores , colloquei o charuto ao canto da bocca , e accelerei o passo . Apesar d' isso , e apesar da minha bella não alterar por fórma alguma o seu andamento , não diminuia , pelo menos sensivelmente , a distancia que nos separava . O vulto elegante da senhora de negro , ao passar por diante dos candieiros de gaz , revelava-se em toda a sua riqueza de fórmas , em toda a magestade do seu porte airoso . Havia uma suprema distincção no seu modo de andar , mas apesar d' isso havia um não sei quê de mysterioso n ' aquelle mover de estatua , lento e inteiriçado , que fazia uma impressão pouco agradavel . Chegámos assim á rua Nova do Carmo ; ella voltou para baixo ; eu segui-a . A distancia conservava-se a mesma . Mas , como ia diminuindo o numero das pessoas que caminhavam para aquelles sitios , saindo , como nós , de S. Carlos , eu tomei uma resolução definitiva , e comecei a dar grandes passadas para apanhar finalmente aquella mulher que me fugia incessantemente como esse caçador das lendas do norte , que foge sempre , sem perder um palmo de terreno , mas sem poder tambem desapparecer , á sua matilha infernal . Nem assim pude diminuir a distancia que me separava d' esse vulto extraordinario . E o vulto parecia escorregar magestoso e sombrio , sem que a bulha dos seus passos acordasse um só echo nas ruas solitarias . Chegámos ao Rocio . Eu começava a estar suado . Despi , sem affrouxar o passo , o paletot que me incommodava , e pulo aos hombros . Depois dei a andar com dobrada rapidez . A senhora de negro caminhou pelo Rocio na direcção do Passeio . Chegámos ao largo de Camões . Nem uma pollegada diminuira a distancia que mediava entre nós . E o vulto parecia escorregar magestoso e sombrio , sem que a bulha dos seus passos acordasse um só echo nas ruas solitarias . Eu apertava as mãos na cabeça , porque sentia uma torrente de fogo a inundar-me o cerebro , e a rasão a abandonar-me . A noite era sombria , e no estado em que estava pareceu-me sinistro devéras o aspecto d' essa massa do Passeio Publico , envolto n ' um manto de trevas . A quinze passos adiante de mim caminhava sempre elegante e distincto o vulto negro da minha gentil desconhecida . Perdi a cabeça e deitei a correr , litteralmente a correr , atraz d' ella . A bulha da corrida produzia um som lugubre , e fazia-me estremecer de vez em quando . O suor escorria-me em fio pela cara abaixo . Saimos da rua Oriental do Passeio , entrámos na calçada do Salitre , chegámos á esquina da travessa do Moreira , e eu não conquistára um palmo de terreno . E o vulto parecia escorregar magestoso e sombrio , sem que a bulha dos seus passos acordasse um só echo nas ruas solitarias . Quando ali chegámos , a desconhecida entrou resolutamente na travessa , e eu parei . Sentia o coração palpitar-me com violencia , e ... tive medo , confesso o . Era tão extraordinario o que me estava succedendo , que este sentimento , devem confessal- o , era um pouco desculpavel . Comtudo venci a timidez passageira , e entrei resolutamente n ' essa rua tão deserta . Quando a minha desconhecida chegou ao pé de uma casa isolada no meio da travessa , parou , voltou-se para mim , e bradou com uma voz melodiosissima : -- Ámanhã á meia-noite , debaixo d' esta janella . Eu estaquei attonito de surpreza . Descrever-lhes a lucta que se travou no meu espirito , quando voltando para casa me fui sentar á mesa de trabalho , e comecei a reflectir fria e pausadamente na aventura nocturna , seria contar-lhes a historia longa e fastidiosa do combate da rasão com as minhas tendencias para o sobrenatural . lhes-hei , resumindo , que sem attender a outra coisa que não fosse a seducção inexplicavel , que me attraía para esse ente incomprehensivel , fui no dia seguinte á meia-noite ao rendez-vous aprazado . Soava não sei em que relogio a ultima badalada da meia-noite , quando se abriu a janella , e appareceu ante os meus olhos deslumbrados o formoso rosto da gentil desconhecida . Balbuciei phrases sem sentido , mas a lingua pegou-se-me ao céo da bocca , e não pude dizer uma palavra que se entendesse . -- Porque me seguiu hontem ? perguntou ella com uma voz melodiosa e triste , como o gemer da brisa nos cyprestes . -- Porque a amo . -- Sabe quem eu sou ? -- Que me importa ! Quem vae perguntar ao anjo que nos afaga em sonho o nome com que o distinguem nas phalanges celestiaes ? -- E ama-me ? -- Mais do que a vida ! -- Só ? ! Que poder incrivel tinha aquella mulher sobre mim ? Não sei ; sei que lhe respondi com o olhar inflammado : -- Mais do que Deus ! -- Não estranha o mysterio em que me envolvo ? -- Não sei . Este amor é uma paixão fatal . Virgem ou devassa , candida ou profanada , anjo ou demonio , amo-a cegamente , sem me importar com o passado nem com o futuro , desejando só ter o presente meu , só meu . Este amor é para mim um vinho que embriaga , e se no fundo da taça encontrar veneno , que importa ? morrerei abençoando as horas da embriaguez . Isto é uma loucura , bem sei , mas se podesse conhecer a atonia moral em que o meu espirito tem existido ! Se soubesse como eu anhelo por estas commoções extraordinarias , que devoram n ' um minuto a existencia de um homem ! Já vê quão pouco exigente eu sou ; não me negue um raio d' essa aureola d' amor que lhe circunda a fronte . Essa luz tenuissima transformal-a-hei em chamma esplendida , que ha de illuminar as trevas do meu viver prosaico . -- Acceito o seu amor , se essas palavras não o exageram . Não queira penetrar no mysterio que me envolve . Quando fôr necessario , eu mesma o rasgarei , e confie em mim , ha de encontrar-me digna do seu amor . Entretanto creia e espere . Adeus . -- Já ? -- Não me posso demorar nem um minuto . -- Oh ! mas diga-me uma palavra consoladora . Este amor immenso não encontrou echo no seu coração ? -- Amo-o . -- Mas com um amor semelhante ao meu , inebriante , immenso ? -- Immenso ... como a eternidade . E fechou a janella , deixando-me ficar extatico e cada vez mais espantado da estranheza dos seus modos . Assim continuou todas as noites aquelle amor excentrico . Todas as noites eu tomava a firme resolução de não tornar lá , e sempre as badaladas da meia-noite me surprehendiam na travessa do Moreira , por baixo da janella fatal . No tempo em que me succedeu esta aventura , tratavam meus paes do meu casamento com uma menina rica , que não desgostava de mim , e por quem eu , não sentindo amor , não sentia tambem antipathia . Era ella uma menina capaz de inspirar uma affeição fraternal , mas nunca uma paixão a um espirito arrebatado como este meu . Era bonita , mas um typo vulgar , horrivelmente vulgar . A pobre menina não tinha culpa d' isso . Demais a mais era o que se podia chamar um acerto : dote soffrivel , excellentes qualidades de mulher e de dona de casa . Creio que juntava a isso tudo o fazer marmelada perfeitamente . Não sendo muito guloso , não era eu o mais proprio para poder apreciar dignamente esta prenda , que a distinguia . Nunca mais appareci em casa d' ella , desde a noite de S. Carlos . Um dia passei occasionalmente por lá , e vi-a com os olhos vermelhos de chorar . Comprimentei-a , ella correspondeu me tristemente , e retirou-se da janella . -- Ora adeus , disse eu comigo mesmo , foi deitar assucar nos marmelos . Talvez ali esteja um coração ! accrescentei eu no monologo mental . Não creio , continuei , o coração desarranja as cassarolas , e incommoda-a no varrer da casa . Foram estas idéas falsas que me perderam , meus senhores ; idéas d' um espirito extravagante que procurou sempre em regiões inaccessiveis a felicidade , que nunca pude encontrar , e que talvez caminhasse ao meu lado sem eu dar por isso . O meu espirito talvez fosse como o Rouvière de uma comedia de Feuillet , que , depois de ter percorrido o mundo em todos os sentidos , fica espantado de encontrar a felicidade sentada ao canto da lareira de uma familia burgueza n ' uma aldeola do seu paiz natal . Chamava-se Julieta a heroina do meu romance de amor . Até o nome era de fazer enlouquecer um enthusiasta como eu . Essa aureola de poesia e de encanto com que Shakespeare circumdou a fronte da pallida italiana , parecia atravez das edades vir doirar com um reflexo luminoso a fronte gentil da Julieta , que eu adorava . Foi a unica informação a seu respeito que d' ella obtive . Tudo o mais ficava para mim envolvido n ' um mysterio que eu não tentava penetrar . Uma noite a nossa conversação foi tomando a pouco e pouco um caracter mais ardente e languido . Palavras de amor entrecortadas , suspiros involuntarios vindo interromper o dialogo , longos silencios durante os quaes eu sentia o palpitar apressado do meu coração , em quanto via a imagem seductora de Julieta desenhar-se na janella illuminada caprichosamente pelo fulgor da lua , tudo isto despertava em mim uma voluptuosidade deliciosa , mas que me magoava . Uma vez , em quanto ella ficava perdida n ' essa vaga contemplação da lua e da noite perfumada , eu involuntariamente approximei-me da parede da casa , e ajudando-me com as grades da janella do pavimento das lojas , pude trepar até ao parapeito da janella , e de repente , sem que ella parecesse reparar na ousadia do meu procedimento , imprimi-lhe nos labios um beijo de fogo . Os labios d' ella estavam frios como os de uma estatua . Olhou para mim com olhar meigo e recuou . Entrei no quarto e cahi-lhe aos pés , balbuciando : -- Julieta , amo-te ! E cobri-lhe as mãos de beijos devoradores . Ella olhava para mim com uma expressão indefinivel . Não podia dizer se era ternura , se ardor , se frieza , o que esse olhar continha ; sei sómente que quanto mais ella me encarava , mais eu me sentia enlouquecer . -- Vem , meu amante , murmurou Julieta passando-me o braço á roda do pescoço , e arrastando-me com meiguice para uma porta entre-aberta , vem ! sobre o lilaz florido do meu jardim embalsamado descanta o rouxinol as suas trovas de amores ! é tudo mysterio n ' esta hora encantadora ! Vem ! Abriu-se a porta e nós entramos n ' um jardim esplendido . Era na hora mysteriosa em que das urnas das flôres se expandem na atmosphera thesouros de aroma e de languidez , e em que o homem absorto julga escutar vagamente na esplendida immensidade a longiqua harmonia das espheras . Na hora em que o rouxinol espalha sobre a terra as perolas do seu canto , e em que a natureza escuta embevecida o hymno mavioso do seu interprete sublime . Porque n ' essa hora dormem as paixões terrenas , e o mundo parece envolver-se por momentos no manto da sua virgindade , afim que Deus possa reconhecer a sua feitura , desfigurada pelo agitar convulso do verme pretencioso que se chama o homem . E o Omnipotente immovel no throno da sua grandeza , revê-se silencioso no espelho da Creação . Oh ! como a lua desenrola graciosamente o seu manto luminoso sobre as alamedas desertas do esplendido jardim ! Como os seus raios se baloiçam mollemente no berço fluctuante da folhagem ! Como se miram descuidosos no crystal das fontes ! E as estatuas primorosas dos deuses do paganismo , parecem espreitar complacentes os mysterios da voluptuosidade que se vão abrigar nos caramanchões floridos ! E emtanto as acacias que lhes assombreiam os vultos immoveis , inundam com a chuva perfumada das flôres vermelhas as pregas ondeantes da sua roupagem marmorea ! E eu e Julieta caminhavamos silenciosos por entre os alegretes , e a voz do rouxinol da balseira despertava no meu coração um rouxinol desconhecido que me fallava de amor e de ternura . Inclinei-me para ella e beijei-a ! E parecia-me que sentia ao tocar-lhe nos labios as azas brancas do anjo da pureza que davam áquella fronte limpida um resplendor celestial . Por um sentimento involuntario troquei o meu annel pelo annel de Julieta . Julguei que Deus santificava o nosso amor , e nos contemplava com indulgencia ! X Mas quando ergui os olhos , erriçaram-se-me os cabellos de terror , e correu-me pelas veias um calafrio . Fugiu-me a luz dos olhos , e o sangue refluiu ao coração . Desappareceram os floridos canteiros , emmudeceu o rouxinol suave , sumiram-se as estatuas , fugiram as acacias . Estendem-se a perder de vista as ruas sombrias de um cemiterio , de um lado e de outro avultam as pedras brancas das sepulturas . O vento da noite faz ondear os cyprestes funerarios , e o pallido clarão da lua vem beijar melancolico as cruzes tumulares . O grito sinistro do mocho só de vez em quando perturba a paz dos mortos ; por entre a relva dos sepulchros fulgura a lugubre phosphorescencia dos cemiterios . É tudo silencio em roda , mas ao longe começa a sentir-se um vago rumor , que parece o longiquo ruido de um exercito marchando . E uma aragem de terror parece esvoaçar por entre os tumulos , dando vida ás loisas e voz ao cyprestal . Lugubres clarões abraçam as cruzes das campas , e as figuras de pedra que guardam , sentinellas inanimadas , o somno dos finados , agitam-se convulsamente ao sopro de fogo d' aquella procella desconhecida . A sineta da ermida vibrou no meio do silencio ; tres vezes echoou na immensidade aquelle som terrivel . E eu senti os cabellos erriçarem-se-me , e um suor gelado me inundava a testa . Então um côro de vozes cavas e profundas entoou lugubremente o Dies irae , o hymno da colera de Deus . E logo uma longa procissão de phantasmas brancos começou a desfilar por diante de mim n ' um silencio aterrador . Depois deram-se as mãos e formaram em torno de mim uma dança de espectros . E eu sentia os cabellos erriçarem-se-me , e um suor gelado me inundava a testa . Depois um dos vultos brancos destacou-se do grupo e avançou para mim . E eu quiz recuar , mas os pés estavam pregados no terreno , e uma força invencivel me domava . O passo do phantasma não produzia ruido algum , mas eu sentia-o vibrar no fundo do coração . Vinha envolto no longo manto sepulchral , e ornava-lhe a fronte a grinalda virginal das rosas brancas . Reconheci as pallidas feições de Julieta , da minha noiva de ha pouco . -- Vae consumar-se o lugubre noivado , disse-me ella sorrindo ; vem , meu pallido amante , vem inebriar-te com as mysticas voluptuosidades das sepulturas . O mocho cantará o nosso epithalamio , e no cruzeiro do cemiterio serão as danças dos finados o nosso baile nupcial . Olha para a mysteriosa alcova , como nos sorri de dentro da loisa entreaberta a alva mortalha do nosso leito de noivado ! E eu olhei e vi abrir-se a garganta pavorosa de um sepulchro , e senti que a mão de Julieta me arrastava invencivelmente . Echoavam nas lugubres alamedas as gargalhadas dos finados , o mocho soltava o seu grito funebre , e a lua entornava sobre as campas a sua luz tão pallida . E eu senti os cabellos erriçarem-se-me de terror , e um suor gelado me inundava a testa . Não pude resistir , passou-me uma nuvem de sangue por diante dos olhos e cahi desmaiado ! Roberto parou um momento como se se sentisse opprimir pela recordação terrivel d' essa noite . -- Pouco mais lhes posso dizer , meus senhores , sei apenas que no dia seguinte acordei no meu leito , e que estive sériamente doente . Apenas me restabeleci corri á travessa do Moreira . Da casa de Julieta nem signaes ! Tudo desapparecera . Julguei que fôra victima de uma allucinação , mas ainda hoje se me representam tanto ao vivo as scenas , a que assisti , que não posso admittir a possibilidade d' essa hypothese . D ' ahi por diante nunca mais tive felicidade ! Em pouco tempo gosei e padeci muito . As fibras da minha alma sujeitas a uma fortissima tensão quebraram-se , e hoje vivo n ' uma incrivel atonia . A senhora , com quem minha familia me queria vêr casado , desposou um homem menos imaginoso do que eu , que a estremece , e a quem ella estima . Tem dois filhos , que são a alegria da casa e o enlevo dos paes . A minha imaginação desregrada deixou-me isolado no mundo . Roberto calou-se . Todos nós ficamos silenciosos , impressionados por essa lugubre historia . Mas Frederico abraçando sua mulher , e dando-lhe um beijo na testa , disse para Roberto : -- As aspirações da alma têm um limite , que não podem ultrapassar . No céo da felicidade ha espheras inaccessiveis onde a natureza humana desmaia , prostrada pela vertigem . Na familia , meu amigo , resume-se a suprema ventura . É prosaica unicamente para os que a não comprehendem . N ' esses amores ideaes chega o homem a pontos , em que para me servir das phrases do sceptico Musset : Où le vertige prend , où l ' air devient le feu , Et l ' homme doit mourir où commence le Dieu . Quando Henrique Osorio acabou de lêr o seu improvisado romance , applaudiram-n* ' o fervorosamente os seus indulgentes ouvintes . Só Isaura bocejava de um modo notavel . Henrique mordeu os labios um pouco raivoso , e , inclinando-se para ella , disse-lhe ironicamente : -- A nossa idéa foi soberba , minha senhora ; se não cura dos terrores , que sentem as pessoas nervosas , ao menos concilia-lhes o somno que affugenta os phantasmas . -- Ah ! não , sr.||_Henrique_Osorio Henrique|_Henrique_Osorio Osorio|_Henrique_Osorio , respondeu Isaura ; a sua idéa acho-a cada vez peior . Vejam se é admissivel fallar-se aqui em cemiterios á uma hora da noite . Eu , se estou assim mais tranquilla é porque a Leonor me prometteu que dormia no meu quarto . -- É contra os regulamentos , bradou o doutor Macedo . A sr.a||_D._Isaura D.|_D._Isaura Isaura|_D._Isaura está illudindo a receita . -- Meu Deus , doutor ! exclamou Leonor alegremente . Os regulamentos cumprem-se assim de um modo feroz . Não vê que eu vou passar a noite com uma mulher pallida ? Depois de ouvir o romance de Henrique , deve confessar que é necessario ser-se heroina ! -- É verdade , exclamou Isaura , o sr.||_Osorio Osorio|_Osorio tratou bem as pallidas ! No seu entender mulher pallida só póde ser mulher desenterrada . Muito agradecida . -- Mas , minha senhora ... balbuciou Henrique . -- Aquillo são reminiscencias de Lisboa , Isaura , exclamou Leonor , rindo . Quiz-se vingar de alguma pallida que o magoou . -- És maldosa , Leonor , murmurou Henrique ao ouvido da sua amiga de infancia . -- É para te ensinar a fazer declarações mais habeis , disse-lhe Leonor tambem ao ouvido . Isaura levantára- se para ir ter com seu pae . -- Então o meu romance é uma declaração ? tornou Henrique . -- O teu romance é uma loucura . Estás engraçado com as tuas idealisações constantes . Queres mulheres sobre-naturaes , entes phantasticos , damas brancas de Avenel ! Se achas que é lisongeiro para uma mulher perder a sua realidade para agradar ao homem que diz amal-a , morrer primeiro para ser depois desposada por elle em fórma espectral , como no Noivado do Sepulchro , de Soares de Passos ... E a maliciosa rapariga recitou , zombeteando : E ao som dos pios do cantor funerio , E á luz da lua de sinistro alvor , Junto ao cruzeiro sepulchral mysterio Foi celebrado de infeliz amor ! -- Então , menina ! exclamou Isaura , lá de longe . Olha que eu não vou sósinha para o quarto . -- Ahi vou , querida , ahi vou ! E Leonor , deitando a Henrique um olhar malicioso , foi ter com a sua amiga . -- Então , sr.||_Roberto_Soares Roberto|_Roberto_Soares Soares|_Roberto_Soares , disse o doutor Macedo emquanto pegava no castiçal para se dirigir para o seu quarto , porque , n ' essa noite de temporal , nem os visinhos tinham podido recolher a suas casas ; então , sr.||_Roberto_Soares Roberto|_Roberto_Soares Soares|_Roberto_Soares , a sua composição caminha ? Olhe que é ámanhã a sua vez . -- Que lhe hei de eu fazer ? Cá me vou apressando , tanto quanto posso . Metti-me em boa , não ha duvida . Já não estou para estas folias . O viver da provincia enferruja . Ámanhã os rapazes vão rir-se de mim . -- Veremos isso ! redarguiu Henrique Osorio , sorrindo amigavelmente . Eu preparo uma pateada . Roberto Soares affastou-se , rindo , e o doutor Macedo , accendendo um charuto , disse para Henrique Osorio : -- Sabe o que lhe digo , Henrique ? Você é uma creança . Anda todo enlevado na pallidez e nos terrores nervosos de Isaura , que é uma tola com bonitos olhos , e não repara que ha por estas serranias uma rapariga , uma perola , que se fina por você . -- Por mim ? ! Quem me faz essa honra ? exclamou Henrique , fazendo se córado . -- Quem tem olhos para vêr , veja ; quem tem ouvidos para ouvir , oiça ; e quem tem somno para dormir , durma ; respondeu gravemente o doutor Macedo . Boas noites . E partiu , deixando ficar Henrique pasmado . Este demorou-se por alguns instantes a ouvir o temporal que rugia com violencia , e a contemplar com tristeza o sitio onde estivera sentada Isaura . Depois , soltando um suspiro , saíu da sala . Devo dizer que no dia seguinte as impressões foram muito menos profundas que na vespera . A noite estava mais socegada ; caçára- se pela manhã . Estivera bonito o dia , cortado apenas por alguns chuveiros . Comtudo , quando deu a meia-noite , correu um frémito por todos os ouvintes . Estabeleceu-se um profundo silencio , mas a figura amavel de Roberto Soares não era para inspirar terrores legendarios , e foi no meio de uma attenção tranquilla , até um pouco risonha , que o jornalista aposentado começou a sua leitura . A VISÃO DE+O PRECIPICIO O meu romance annuncia-se de um modo terrivel . Começa por uma tempestade . Estou obrigado moralmente a apresentar alçapões , subterraneos , e donzellas perseguidas . Se não invento por ahi uns quatro assassinios , estou perdido no conceito de certos leitores ! Tenham paciencia os amadores das Nodoas de sangue e dos Amantes infelizes ou as victimas de uma paixão , mas d' esta vez hão de contentar-se com um romance bem morigerado , cujos heroes , todos elles pessoas honestas , não hão de incommodar , em quanto durar o enredo , nem as partes de policia , nem os regedores de parochia , nem os jovens advogados , nem as columnas dos jornaes destinadas pelos noticiaristas aos acontecimentos tragicos do paiz . Feita esta declaração , vou introduzir os meus leitores ... n ' um lagar de azeite , por uma noite tempestuosa de dezembro , quando o vendaval açoita rijamente os pinheiraes frementes , e os relampagos illuminam com pallido fulgor as campinas inundadas pelas chuvas copiosas de uma noite de invernia . Recresce o temporal . As levadas de agua , engrossadas com as chuvas , resvalam pelos penedos , despenham se , espadanam , fazem scintillar á luz do raio doidejantes borbotões de espuma , e arrastam na carreira vertiginosa as arvores desarreigadas pela força irresistivel do furacão ! N ' estas noites , o aspecto ridente dos campos , que a primavera orna com todas as galas da vegetação , transforma-se completamente . Parece-nos impossivel que o regato , que havia pouco se espreguiçava voluptuosamente sobre as campinas esmaltadas , seja agora a torrente impetuosa que arranca , n ' um accesso de furor , as arvores que se miravam descuidosas na sua limpida corrente . A mim agrada-me o quadro medonho das furias da invernia ! Contemplo com delicias a physionomia terrivelmente phantastica das planicies e dos bosques , onde paira , batendo as azas chammejantes , o sinistro archanjo da tempestade ! São estes os episodios grandiosos do poema da natureza ! São estas as paginas sublimes do livro da creação ! Era uma quinta solitaria nos arredores de Santarem ; a casa dos morgados campeiava orgulhosa e insulada no meio dos campos cultivados , e lá mais ao longe alvejavam as modestas casinhas do logarejo que se debruçava curiosamente sobre as aguas do riacho , mirando n ' esse espelho crystallino o seu humilde aspecto , e contemplando depois , á socapa as pompas quasi feudaes do solar dos descendentes d' algum valentão das Indias . Como os gloriosos representantes d' essa familia aristocratica , deixando a quinta só , estão comendo em Lisboa os seus rendimentos , escusamos de lhes bater á porta , e , se vos parece , vamos immediatamente ao lagar de azeite , que não fica muito longe . A entrada é franca , e a vista da fornalha , sobre a qual está collocada a caldeira , e onde arde um mólho de lenha , produzindo um bom fogo , claro e crepitante , tenta devéras o pobre homem , que , todo ensopado , contempla o lume da fogueira , tão consolador e attrahente em noites de frio e chuva . Entrámos em boa occasião ; o lagar está em plena actividade . Os clarões indecisos da lareira illuminam um quadro pittoresco e original . Aqui o engenho de agua gira produzindo um som monotono , que , no meio dos rugidos da tempestade , similha o resmungar de velha feiticeira por entre os córos dos archanjos rebeldes em noite de congresso infernal , e , girando sem cessar , tritura conscienciosamente a azeitona submettida á sua implacavel pressão . Além as varas , subindo e descendo com toda a regularidade , obrigam a azeitona , já triturada e estendida nas ceiras , a distillar o seu oleo precioso . Mas não se resumem n ' estes os trabalhos do lagar . Quem reconhecerá o azeite n ' esse liquido negro que vae acolher-se silenciosamente na enorme vasilha de barro , a que nos lagares se dá o nome de tarefa ? Trata-se de o purificar ; vamos ás abluções . O liquido negro é assaltado repentinamente por um diluvio de agua a ferver , proveniente da caldeira , que opéra a decomposição com toda a rapidez . Pelo inferno , communicação subterranea que conduz a um vallo distante , escoa-se a agua negra , que vae terminar ao longe a sua existencia ignorada , e o azeite , livre finalmente da macula original , apparece em toda a sua limpidez , em todo o seu brilho , em todo o seu esplendor . No centro da casa terrea , o sr.||_Manuel_dos_Reis Manuel|_Manuel_dos_Reis dos|_Manuel_dos_Reis Reis|_Manuel_dos_Reis , mestre-lagareiro , chefe das operações , e supremo dictador n ' esta solemne occasião , vigia attentamente as multiplicadas operações do lagar , em quanto o sr.||_João_Moedor João|_João_Moedor Moedor|_João_Moedor ( assim chamado por causa das importantes funcções que ali exercia ) , contempla satisfeito o andamento do engenho de agua , confiado aos seus cuidados . Os adjunctos d' estes dois chefes , sentados á roda da fogueira , alguns camponezes de fóra , que tinham vindo para o " cavaco " , e que a tempestade tinha accommettido , os quaes em pé encostados ao cajado ficavam no segundo plano , e dois rapazes de Lisboa a quem a cortezia aldeã tinha concedido o logar de honra , eram as restantes figuras d' este quadro . Os dois lisbonenses merecem uma descripção especial . Chamava-se o primeiro José Augusto de Albuquerque . Alto e elegante , pallido , d' esta pallidez ardente , que é quasi sempre symptoma de uma imaginação exaltada , revelava no fulgor desusado dos olhos , scintillantes como dois diamantes negros , o ardor d' aquella organisação sympathica , que devia ser ou a de um grande poeta , ou a de um grande doido , se estas duas idéas não são synonymas , segundo a opinião de muita gente . As olheiras fortemente accentuadas , e que pareciam crestadas pela ardente irradiação das pupillas , acabavam de dar a esta physionomia um cunho original , romantico emfim , tranchons le mont , porque devo confessar que o meu heroe tem todas as apparencias de um typo de romance , apesar de ser tão verdadeiro como ... o orçamento portuguez . O companheiro de José Augusto formava com elle um perfeito contraste . Se as centelhas de intelligencia , que se escapavam dos olhos negros de José Augusto , revelavam uma organisação em que o espirito predominava , em que l ' âme dominava la bête , para me servir da classificação de Xavier de Maistre , a luz fria e sem expressão , que brilhava nos olhos azues do seu companheiro , dava a conhecer a beatifica indifferença do adorador da materia . N ' um a estatua delicada e quasi feminil denunciava a fina constituição de uma natureza naturalmente aristocratica ; no outro a obesidade das fórmas dava idéa do Sancho Pança de Cervantes , ainda que a alta estatura mostrasse que esta nova edição do governador da Barataria era feita n ' outro formato . N ' aquelle os movimentos altivos da cabeça , o modo enthusiastico com que atirava para traz as ondas lustrosas da sua negra cabelleira , indicavam bem as aspirações elevadas de um coração a trasbordar de poesia e de generosidade ; n ' este os gestos pacatos , e as suissas loiras que flanqueavam serenamente uma cara de lua cheia , mostravam o genio bonacheirão do homem que não pensa senão no modo de conservar sempre , em bom estado , a sua economia animal , satisfazendo as reclamações incessantes de um estomago insaciavel . O primeiro era , como disse , José Augusto de Albuquerque , rapaz com alguns vintens , que viajava para se divertir . O segundo era o sr.||_John_Williams John|_John_Williams Williams|_John_Williams , inglez ingenuo e bem morigerado , que aguentava uma boa dóse de garrafas de vinho sem vacillar , que bebia exactamente o que ganhava n ' um escriptorio de negociante , e que , apaixonado por viagens , como todo o bom inglez deve ser , tinha pedido licença de um mez para acompanhar o seu amigo José Augusto n ' uma excursão á Extremadura . No momento em que entrámos , reinava um profundo silencio . Lá fóra os rios , que a chuva fazia ferver em cachão , resaltavam sobre os rochedos com um estampido formidavel ; as rajadas da ventania , batendo com furor de encontro á porta , faziam-n* ' a ranger , e abriam-n* ' a de vez em quando , arrojando torrentes de chuva para dentro do lagar . A voz da procella ora se assimilhava aos rugidos blasphemos do anjo das trevas , ora , plangente e soturna , imitava os gemidos das almas penadas , que vagueiam na terra pedindo aos vivos orações . O trovão , ribombando no espaço , dominava , de vez em quando , com a sua voz magestosa , o pavoroso ruido da tempestade . Havia harmonias sublimes n ' aquella desharmonia apparente ; era selvatica mas grandiosa a immensa orchestra do temporal . -- Santa Barbara nos acuda , murmurou devotamente o sr.||_Manuel_dos_Reis Manuel|_Manuel_dos_Reis dos|_Manuel_dos_Reis Reis|_Manuel_dos_Reis , tirando o seu barrete azul , já bastante azeitado , no momento em que um trovão formidavel fazia benzer todos os circumstantes -- S.||_Jeronymo Jeronymo|_Jeronymo te afaste , ruim trovoada , de todo o povoado onde haja almas christãs . -- Amen , resmungou em côro a companha aldeã . -- E temos a chuva pegada , que não ha que esperar senão uma noite de agua . O vento puxa por ella que é um regalo , tornou o mestre-lagareiro , quando o terror produzido pelo trovão se dissipou um pouco mais . Ah ! meu fidalgo , v. s.a querer metter-se a caminho por uma noite d' estas é mesmo tentar a Deus ! -- Deixal- o , tornou o interpellado , que era o nosso amigo José Augusto de Albuquerque , sabe você , sr.||_Manuel_dos_Reis Manuel|_Manuel_dos_Reis dos|_Manuel_dos_Reis Reis|_Manuel_dos_Reis , que eu gósto de noites assim ? Que diabo ! quando atravesso a galope a clareira de um bosque inundado pela chuva , e que vejo , á luz do relampago , as arvores nuas de folhas estenderem-me os braços descarnados , e formarem em torno de mim , guiadas pelo furacão , danças phantasticas e extravagantes , imagino vêr as danças da meia-noite , travadas pelos espectros nos cruzeiros dos cemiterios , e , lembrando-me dos contos lindissimos que a minha ama me contava quando eu era pequeno , chego a acreditar na sua realidade , e acho prazer n ' aquillo . Então que quer ? -- Arreda ! -- bradou o João Moedor , coçando a cabeça e fazendo ao mesmo tempo um gesto de susto , sempre v. ex.a diz coisas que fazem arripiar os cabellos á gente . Gostar v. s.a de vêr dançar as aventesmas as suas danças malditas , como o meu compadre viu com os seus proprios olhos na noite de S.||_Bartholomeu Bartholomeu|_Bartholomeu , em que anda o diabo solto , como vocemecê ha de saber . Safa ! Era capaz de seguir o phantasma do Açude até ao seu esconderijo infernal . -- O phantasma do Açude ! o que é isso , o que é isso , ó sr.||_João João|_João ? -- perguntou José Augusto com a maior curiosidade . -- Historias da vida , meu fidalgo , retrocou o sr.||_Manuel_dos_Reis Manuel|_Manuel_dos_Reis dos|_Manuel_dos_Reis Reis|_Manuel_dos_Reis , é este diabo do João Moedor que não sabe fazer outra coisa senão contar contos da carochinha . Bom estavas tu , meu rapaz , para mestre-lagareiro ! Andas com a cabeça a rasão de juros a pensar lá n ' essas maniversias , deixavas ir o azeite pelo inferno abaixo , e nunca eras capaz de pôr o espicho a tempo e a horas . Sempre estás um massador ! -- E é verdade , sôr||_Manuel_dos_Reis Manuel|_Manuel_dos_Reis dos|_Manuel_dos_Reis Reis|_Manuel_dos_Reis . Este João Moedor não faz senão moer a paciencia á gente , tornou um camponez que estava ao pé da porta , encostado com toda a denguice ao seu varapau . Todos se riram do calembourg aldeão , e o sr.||_João_Moedor João|_João_Moedor Moedor|_João_Moedor esteve algum tempo sem poder fallar no meio dos motejos e das risadas da turba campesina . Finalmente : -- Leva rumor ! -- bradou elle . Com que então , sô||_Zé_do_Moinho Zé|_Zé_do_Moinho do|_Zé_do_Moinho Moinho|_Zé_do_Moinho , acha você que eu môo a paciencia á gente , hein ! Você não acredita n ' estas coisas , apesar de eu ter visto muita vez sua tia andar por cima da folha , e correr por cima das latadas para ir ter com seu compadre||_Berzabum Berzabum|_Berzabum ! E ainda não estou muito certo se não é você , sô cara de não sei que diga , que anda a horas mortas a cumprir o seu fado , feito burro , por esse mundo de Christo , como fazia seu avô que foi lobis-homem , segundo diz a gente antiga cá da terra . A victoria ficou d' esta vez ao novo campeador . Os motejos dirigiram-se todos para o sr.||_Zé_do_Moinho Zé|_Zé_do_Moinho do|_Zé_do_Moinho Moinho|_Zé_do_Moinho , que quiz replicar enfurecido , mas que se viu obrigado a metter a viola no sacco , e a ficar de cabeça baixa a um canto . O triumphador havia pouco era agora humilhado . Sic transit gloria mundi ! -- Conte lá a historia , ó sr.||_João João|_João , que aqui tem você um ouvinte que não é capaz de duvidar da veracidade das suas palavras -- tornou José Augusto com a curiosidade a revelar-se-lhe nas feições . -- Tem v. s.a muita rasão , meu fidalgo , retrocou o João Moedor com modos de triumpho , e com perdão de vocemecê , sôr||_Manuel_dos_Reis Manuel|_Manuel_dos_Reis dos|_Manuel_dos_Reis Reis|_Manuel_dos_Reis , sempre lhe direi que a historia do phantasma do Açude não é conto da carochinha . Em noites assim de temporal , quando o rio engrossado pela cheia , ceifa os pinheiros mais taludos como eu ceifaria uma espiga de trigo no tempo da monda , não é cá o rapaz que se atreve a passar ao pé do Açude , sem se benzer quatro vezes , e sem fechar os olhos para não vêr a melancolica D. Branca . E não é só a mim que isso acontece ; o mais pimpão do sitio tremia , como varas verdes , se se visse obrigado a passar a estas horas por aquelle sitio amaldiçoado , a não ser o come-bichos , que vendeu a alma ao diabo . Deus me perdôe se minto ; mas o maldito tem mesmo cara de condemnado . E conheço eu alguns que se fazem muito valentes quando estão bem acompanhados , e que não eram capazes de passar sósinhos por ao pé do Açude , nem que lhes dessem todos os thesouros encantados do imperador da Moirama . Esta ultima allusão ia evidentemente com sobre-escripto para o Zé do Moinho ; a resposta d' este ( se por acaso elle tencionava responder ) , foi abafada pelas acclamações dos restantes , que applaudiram o orador , bradando em côro : -- Tem rasão ! É uma heresia duvidar d' estas coisas ! O João fallou bem . Tem uma linguinha de oiro , este moedor ! O distincto orador comprimentou modestamente os seus amigos politicos pela ovação que fizeram ao seu estiradissimo discurso , e que impacientou apenas o Zé do Moinho , que era da opposição , José Augusto de Albuquerque , que estava desejoso de conhecer a lenda , e o leitor , que talvez nem esteja para a ouvir . -- Vamos á historia , vamos á historia , bradou José Augusto , todos lhe prestamos attenção , e acreditamos em tudo quanto você disser , como os mahometanos na missão do seu propheta . Ninguem comprehendeu a comparação : por conseguinte todos ficaram fazendo uma elevadissima idéa da erudição de José Augusto . João Moedor piscou os olhos , e bradou com enthusiasmo : -- Fallou que nem um livro . Pois então já que tanto aperta , lá vae a historia . Todos se chegaram uns para os outros , e João Moedor começou no meio de um silencio solemne a sua narração . Chegado a este ponto , Roberto Soares interrompeu-se , e , levantando os oculos , disse para os seus ouvintes : -- Não me responsabiliso pela verdade do modo de dizer . José Augusto , que tinha o desagradavel sestro de fazer estylo , quando me contou a historia , transfigurou completamente a expressão do narrador da aldeia . Comtudo asseverava-me elle que o estylo do camponez tinha uma certa elevação . -- Siga , siga , acudiu o doutor Macedo . José Augusto é o seu Jedediah Cleishbotham , já vêmos . Era moda no seu tempo , como as epigraphes . Roberto Soares riu-se e continuou da seguinte maneira : Ha de haver um par de annos , muito antes do terremoto , e talvez antes que tivessem nascido os paes dos nossos bisavós , governavam os moiros a maior parte da nossa terra abençoada . Segundo eu ouvi contar ao nosso padre prior , que Deus haja , dava-se e recebia-se muita lançada antes que a bandeira de Christo fluctuasse triumphante nas ameias das fortalezas . Cada palmo de terra conquistado aos cães dos sarracenos era regado por muito sangue , e muitos cadaveres dos nossos antepassados adubaram a terra , antes que os seus descendentes podessem fazer em paz a semeadura e a colheita . Era mau tempo aquelle . Mas Deus e Santiago eram por nós , e os esquadrões cerrados dos cavalleiros de Christo levaram sempre de vencida as hostes aguerridas dos perros amaldiçoados . Como dizia o padre prior , os pergaminhos d' esses fidalgos , que por ahi andam tão orgulhosos da sua inutilidade , foram sellados com o sangue de seus antepassados nos campos de batalha , em que se comprou bem cara a independencia portugueza . Deshonrado seria para todo o sempre o fidalgo portuguez que não envergasse as armas ao sair da infancia , e não luctasse incessante a favor dos opprimidos até cair no campo da batalha amortalhado na sua armadura de ferro . Repousem em paz nas campas os ossos d' esses valentes . -- O João Moedor sempre tem uma cachimonia de truz , resmungou á parte o Manuel dos Reis ; onde elle vae buscar tudo isto ! -- O que elle é , é um papagaio , murmurou o Zé do Moinho , não faz mais do que repetir tim tim por tim tim o que ouviu ao nosso antigo padre prior . -- N ' esse tempo , continuou o João Moedor sem reparar na interrupção , viviam aqui n ' este sitio dois fidalgos velhos , que , depois de terem ganho muitas cicatrizes , e creado muitos cabellos brancos no seu luctar incessante contra o poder da Moirama , tinham vindo descançar na paz dos seus castellos das lides gloriosas em que haviam dispendido a sua existencia inteira . Não porque lhes faltassem valor e bons desejos ; mas a edade tudo gasta , e os corpos alquebrados dos bons cavalleiros já vergavam ao peso da armadura , e a voz implacavel da velhice advertiu-os que cedessem o logar a novos e mais vigorosos campeões . Penduraram na sala de armas dos seus castellos as valentes espadas , e , sentados ao canto da lareira , esqueciam o peso dos annos com as gratas recordações das suas façanhas d' outr ' ora . Ao mais velho dos dois ; Inigo Paes , concedêra o céo um filho ; Raymundo se chamava elle . Era a delicia do bom velho rever no esbelto mancebo a risonha imagem da sua mocidade . Vendo-o crescer em annos , em vigor e em destreza , consolava-se o valente cavalleiro , esperando que Raymundo não deshonraria , nas fileiras portuguezas , o nome venerando que elle proprio tinha conquistado . Esperava com anciedade que seu filho completasse os dezoito annos para lhe cingir a espada , afivellar-lhe o arnez , e dizer-lhe , apontando lhe o campo da batalha : " Vae , é esse o caminho da gloria " E tinha rasão em se gloriar de ter um filho assim . Ninguem meneava com mais garbo e destreza um cavallo fogoso , ninguem manejava com mais vigor o pesado montante , ninguem mostrava mais ardor guerreiro , quando o pae , sentado no salão do castello , contava aos rapazes , anciosos de aventuras , os feitos de armas dos velhos campeadores . E se Raymundo dava esperanças de ser um rude lidador , nem por isso deixava de ser o mais gentil mancebo d' estas cercanias . Alto e elegante , se os seus olhos negros quizessem fallar de amor , não havia dama que se não rendesse , nem coração feminino que escutasse insensivel os seus protestos enamorados . mais de uma altiva castellã apparecia na varanda do seu solar para vêr o elegante Raymundo correr a cavallo por essas campinas . Mas que importavam ao filho de Inigo Paes todas as castellãs do mundo se tinha o coração já preso , e se Branca , a ingenua Branca , lhe conquistára o affecto , e accendera nos seus olhos a chamma ardente do primeiro amor ? Branca era filha do companheiro de armas de Inigo Paes ; grande desconsolação tivera elle , vendo-se viuvo em edade avançada , sem ter um filho a quem podesse transmittir a sua herança de gloria . Muitas vezes , ao vêr a filha a doidejar na varzea , como gentil borboleta esvoaçando por entre flôres , se lhe enrugava a fronte , e duas lagrimas de tristeza deslisavam pelas faces crestadas do velho soldado . Mas a sombra ligeira , que lhe annuviava o gesto , dissipava-se promptamente com as caricias affaveis da gentil donzella . Quem poderia resistir á influencia d' aquelle anjo de candura , loiro e rosado , como as imagens seductoras dos cherubins que cercam a Virgem||_Nossa_Senhora Nossa|_Nossa_Senhora Senhora|_Nossa_Senhora na pintura do altar-mór da freguezia ! Branca e Raymundo conheciam-se e amavam-se desde creanças . Juntos tinham crescido , juntos tinham doidejado n ' estas campinas , e , sem que nunca a palavra amor fosse pronunciada , tinham apesar d' isso consagrado um ao outro um affecto que a edade fôra desenvolvendo . E era um par galante a mais não poder ser . Quando Branca , fatigada de correr atraz de uma borboleta , vinha , com as faces vermelhas como duas rosas , os olhos a brilharem de alegria infantil e as loiras tranças fluctuando em ondas doiradas sobre os seus hombros de neve , refugiar-se nos braços de Raymundo , e encostar o rosto encantador nas faces levemente morenas do gentil fidalguinho , todos os que os viam paravam extasiados , e faziam votos pela felicidade d' aquelles anjos de innocencia e de candura . Chegou finalmente o dia em que Raymundo completava dezoito annos , e em que , para não desmentir as gloriosas tradições da sua raça , devia cingir a espada , e ir aos campos de batalha pagar á patria e á santa religião dos nossos paes o tributo de sangue , que devia ser pago por todos os que se prezavam de christãos fieis , e portuguezes leaes . No dia fixado para a partida de Raymundo , encontraram-se os dois namorados no sitio do Açude . É um sitio medonho , como v. s.a ha de saber ; um pinhal sombrio , que vae terminar á beira de um precipicio , no fundo do qual o rio faz mugir , espadanando nos rochedos as suas aguas turvas e espumantes . Mas n ' esse dia o sol estava brilhante , e dava a esse quadro medonho o mais ridente aspecto . Os pinheiros , illuminados pelos raios de um sol de agosto , pareciam frechas doiradas que mão occulta arrojava ao céo limpido e azul de um bonito dia de verão . Cada gotinha de agua parecia um espelho que reflectia a imagem brilhante do sol de Portugal , e o rio scintillante e espumoso parecia arrastar na corrente palhetas de oiro e prata . Gorgeiavam os passaros na floresta , e tudo dizia contentamento , quando os corações de Branca e Raymundo sómente sentiam tristeza e desesperação . Branca vinha triste , triste como a rôla namorada que vê fugir para longes terras o escolhido do seu coração , e pallida como a açucena batida pelo vendaval . Mas que bem que lhe ficava aquella pallidez , e como a alvura da face realçava a côr negra das roupas que vestira em signal de luto e de saudade ! O brilho dos olhos , empanado pelo pranto que tinha derramado , parecia ainda mais suave e meigo , e os loiros cabellos , caindo-lhe ao desdem sobre o pescoço deslumbrante de brancura , faziam-n* ' a assimilhar á imagem da Virgem que está pendurada na sala do presbyterio , e que o senhor padre prior dizia ser copiada de um quadro pintado por um italiano chamado Raphael . Chegou , e ajoelhou aos pés de um crucifixo , que então existia n ' aquelle sitio ; porque n ' esses tempos de fé viva , a imagem do Crucificado apparecia em toda a parte para acolher em seu seio misericordioso as orações dos fieis . O sol tinha surgido havia pouco do Oriente , e a oração da candida virgem , pura como a rosa que abre o seio ao primeiro alvor da madrugada , foi , perfume singelo , de fé e de innocencia , conduzida pela brisa aos pés do throno do Senhor . Quando se levantou viu Raymundo em pé diante d' ella , de cabeça descoberta , pallido e mal podendo conter as lagrimas que lhe bailavam nos olhos . -- Raymundo , disse ella desatando a chorar , e escondendo a cabeça no peito do mancebo , não me deixes ! -- Não posso , Branca , tornou elle , apertando-a ao peito com anciedade ; o que pensariam de mim o rei , os ricos homens e os villões , se preso nos teus braços me esquecesse do que devo a mim , ao rei e a Deus ? Era um nome deshonrado o nome de teu esposo , Branca , e não m ' o podias acceitar . A espada de meu pae , que outr'ora brilhou ao sol das batalhas com deslumbrante fulgor , não póde jazer inerte a um canto do meu solar , em quanto as achas de armas dos meus compatriotas escrevem nas paginas de pedra , das fortalezas moiriscas , a historia sanguinolenta da ressurreição dos godos . Bem vês , Branca , é um penoso dever ; mas devo cumpril- o . -- E o nosso amor , Raymundo ! -- balbuciou a donzella , afogada em lagrimas . -- Oh ! cala-te , Branca , não vês que me despedaças o coração ? Queres que eu perca o animo , queres que o puro azul dos teus olhos me faça esquecer que existe outro céo , outra ventura que não seja o teu amor , outro dever que não seja o adorar-te ? Não , Branca , não ordenes a minha deshonra ; a tua imagem seductora será a estrella que me ha de guiar no caminho da gloria . Quaes serão as façanhas para mim impossiveis , pensando que o teu sorriso será a recompensa do meu valor , e que será a tua mãosinha branca e mimosa que me ha de limpar na fronte o suor dos combates e das luctas sanguinolentas ? -- Mas quem sabe , Raymundo , tornou Branca , erguendo para elle os olhos radiantes , ainda humedecidos das lagrimas que derramára ; quem sabe se n ' esses paizes longiquos não encontrarás alguma formosa dama cujos encantos te farão depressa olvidar a imagem da triste Branca , que dizes ter gravada no coração ? Oh ! meu Deus , que horrivel idéa ! Se tu me esquecesses ... -- Que fazias , Branca ? -- Morria ! -- tornou ella com resolução . Raymundo apertou-lhe a mão e levou-a ao p Raymundo apertou-lhe a mão e levou-a ao pé do crucifixo . Alli , erguendo os olhos para o rosto divino do Christo crucificado , bradou com voz solemne e altiva : -- Juro diante de Deus que morreu pregado na cruz para remir os homens do peccado original , juro guardar-te sempre fé inteira e immutavel , como te juraria se um sacerdote nos abençoasse ao pé do altar . És minha esposa diante de Christo . Cáia sobre mim a vingança do céo se atraiçoar o meu juramento . -- Oh ! obrigada , Raymundo , obrigada , clamou a donzella , lançando-se com immenso ardor nos braços do mancebo e derramando copiosas lagrimas ; tambem eu juro amar-te sempre , meu Raymundo , amar-te com inalteravel constancia , não viver senão com a tua imagem , não pensar senão em ti , meu unico amor . E agora parte , accrescentou ella , erguendo-se com inesperada resolução , vae conquistar um nome glorioso ; a benção de Deus vae comtigo , porque os nossos anjos da guarda , abraçados e de joelhos ao pé do throno do Senhor , rogarão a Deus que proteja os esposos , cuja união foi abençoada pelo Crucificado , saudada pelos canticos da alvorada , perfumada pelos thuribulos das flôres , illuminada pelos raios do sol nascente ! Raymundo apertou-a ao peito com enthusiasmo ; deu-lhe na fronte , com timidez , um beijo , e montando n ' um cavallo que o esperava a pouca distancia , seguro por um pagem , partiu , dizendo com ardor : -- Adeus , minha gentil esposa ! -- Adeus , meu adorado esposo ! Estas palavras pronunciára-as ella , caindo ajoelhada aos pés da cruz . O perfume das flôres , o canto dos passarinhos , o rumorejar das folhas , a luz pura e serena do sol , tudo parecia abençoar o seu amor . Unicamente no momento da despedida , uma nuvem ligeira passou por diante do astro do dia e offuscou-lhe um pouco o brilho . Ai ! Branca , timida Branca , nos momentos de felicidade uma ligeira nuvem é indicio temeroso de tempestade ! " Passaram-se mezes e mezes -- continuou o João ; veiu o outono desfolhar as arvores , e estender sobre a terra o seu manto de tristezas ; depois o inverno gelado agrupou as familias ao canto da lareira ; voltou a primavera sacudindo sobre os campos o seu regaço cheio de flôres e verduras , voltaram as longas tardes do estio , e o sol ardente de agosto veiu de novo doirar os pinheiros que ensombravam a cruz do precipicio ; e nem a triste Branca recebia noticias do seu noivo , nem Inigo Paes a podia consolar com outras novas , que não fossem as que , logo pouco depois da partida de Raymundo , tinham sido trazidas por um fidalgo que voltava das terras do Algarve . Contava elle que vira n ' uma renhida escaramuça o filho de Inigo Paes estreiar-se no arduo mister do lidador d' aquellas eras . A estreia fôra digna do nome honrado de seu pae . Contava o fidalgo que o tinha visto arrojar-se aos moiros com valor sobrehumano , e abrir com a acha de armas um largo e sanguinolento sulco nas fileiras mahometanas . Quando , no fim da escaramuça , Raymundo Paes passou de viseira levantada junto dos prisioneiros , estes , vendo o rosto delicado , o buço que lhe assombreava levemente o labio superior , e a belleza quasi feminil do mancebo , não queriam acreditar que fosse o mesmo que praticára prodigios de valor , e ante o qual as cimitarras moiriscas voavam em lascas , decepadas pelo montante que parecia manejado pelo braço de robusto montanhez . Estas noticias encheram de orgulho o coração paternal do velho guerreiro . A Branca não succedia o mesmo . As façanhas que enthusiasmavam Inigo Paes , faziam receiar á gentil donzella que Raymundo , arrastado pelo seu ardor juvenil , fosse encontrar a morte no gume afiado de um alfange mahometano . Assim correram os mezes , e as rosas do rosto de Branca desbotavam , desbotavam até se trocarem nos lyrios que a desesperança ia fazendo brotar nas faces da donzella . E Raymundo ? Valente cavalleiro , não ha proezas que absolvam um perjuro , nem as indulgencias , concedidas pelo santo padre aos defensores da fé , são sufficientes para arredar de cima da cabeça do sacrilego o raio fulminado pela mão do Omnipotente . Raymundo Paes , Raymundo Paes , que demonio fatal te arrojou aos pés da cruz , e te dictou o terrivel juramento , que havias de esquecer tão cedo ? Ai ! cavalleiro , ainda o vento do outono não desfolhou a verde grinalda que enramava a cruz do precipicio , e já o vento da inconstancia fez murchar o candido affecto que floria em teu peito , e que juráras conservar tão puro e tão sem mancha , como era pura e immaculada a imagem d' aquella que t ' o inspirou . Ai ! Branca , timida rôla , que , escondida na espessura , a sós com as tuas tristezas , pranteias a ausencia do ingrato que te esqueceu , mal sabes tu que , em quanto fitas o olhar melancholico na lua pallida como o anjo da saudade , e pareces perguntar-lhe mudamente se o teu olhar se cruza no espaço com o olhar saudoso do teu gentil campeão , elle , o perfido , o perjuro , o sacrilego , esquece nos braços de outra o teu amor de virgem , o teu modesto encanto , as tuas graças infantís . Durante os primeiros tempos , as meigas recordações do seu amor de creança arderam dentro d' elle tão vivas e tão serenas , como arde viva e serena a lampada do altar no recinto sagrado da egreja christã ; se uma tentação má lhe surgia no animo , e lhe mostrava á luz de um relampago infernal mundos desconhecidos de prazer vertiginoso , era logo repellida pelo saudoso mancebo , que conservava o coração perfumado de innocencia , como sanctuario florido , onde o christão abriga devotamente a imagem da Mãe||_do|_Salvador do||_do|_Salvador Salvador|_do|_Salvador . Era por uma noite sombria , calada e mysteriosa , noite propria como nenhuma outra para emboscadas e ardis de guerra . N ' essa noite , n ' um alcaçar moirisco , situado em terras do Algarve , dormiam socegados os perros descridos , confiados na vigilancia das atalaias , e certos que os rudes batalhadores de Christo , vencidos do cansaço , concederiam involuntariamente treguas aos filhos de Mafoma . Os almogavares , voltando das suas excursões , não tinham trazido novas de movimento algum no exercito christão . Dormiam as almenaras no cimo das montanhas , e a atalaia , vigiando no alto da torre , não estremecêra vendo uma pluma de fogo accender-se de repente , e , ondulando nos ares , dar signal da apparição dos nazarenos . Quão enganados estavam , e essa serpente de ferro , que se enrosca ás muralhas da fortaleza , vae acordal-os inesperadamente do seu somno voluptuoso ! De repente o grito de S.||_Thiago Thiago|_Thiago é ávante ! echôa nas barbacans do alcaçar , e as sentinellas , caindo apunhaladas sem terem tempo de soltar um grito , pagam com a vida a sua indolencia descuidosa . Que scena de confusão no meio das trevas ! Os gemidos dos moribundos , os gritos das mulheres , as blasphemias dos guerreiros surprehendidos cruzam-se com os gritos de victoria dos cavalleiros portuguezes . Apenas de quando em quando um ou outro arabe mais destemido arranca da cimitarra , e faz brotar centelhas instantaneas , cruzando-a com o pesado montante christão . Não tem quartel os vencidos ; os vencedores sequiosos de sangue transformam n ' aquelle momento o valor do guerreiro na ferocidade do assassino . Eras de barbaridade ! Já vão longe , felizmente . Raymundo vae entre elles . Embriagado pela carnificina , descarregava ás mãos ambas a acha de armas sobre os que pretendiam fugir á sorte de seus irmãos . De repente um vulto feminino roja-se-lhe aos pés , suspende-lhe o braço já levantado para descarregar o golpe , e com uma voz melodiosa como o sussurrar da brisa nos ramos do salgueiro , murmura em portuguez : Perdão ! A lua , que até ahi se conservára escondida entre nuvens , desembaraçou-se afinal do seu manto sombrio , e veiu acariciar com os raios da luz serena as faces tostadas da arabe gentil . Nunca Raymundo vira um rosto tão diabolicamente tentador ! Eram uns labios onde se viam arfar promessas voluptuosas de beijos delirantes . Eram uns olhos negros , onde brilhavam as chammas do desejo , as labaredas infernaes da tentação ! Eram as tranças negras fluctuando sobre o collo nú , que a brisa beijava com delirio , roubando-lhes perfumes inebriantes , que vinham enlouquecer o ingenuo amador da casta Branca . E elle sentiu a febre do desejo a vir escaldar-lhe o sangue , sentiu uma ignota anciedade vir opprimir-lhe o peito . Era o terrivel despertar dos sentidos n ' um rapaz de dezoito annos . Eram as tentações da voluptuosidade , eram as commoções do prazer sensual , era um demonio desconhecido que lhe vinha murmurar ao ouvido os vagos encantos de mysteriosos amores . Raymundo sentiu o perigo , e quiz afastar-se d' elle . Repelliu-a , e , invocando a imagem de Branca , quiz fugir da tentação fatal ; mas a moira , enroscando-se a elle , como a serpente se enrosca ao corpo do homem fascinado pelo poder invencivel do seu olhar , murmurou : -- Não me deixes , nazareno . Os teus olhos são negros como noite sem estrellas ; mas são transparentes como o espelho das aguas . Porque havias tu de ser cruel como a hyena do deserto , se és bello e magestoso como o leão das selvas ? Olha , sou tão nova ! Ainda a amendoeira não floriu vinte vezes , desde que minha mãe me apertou pela primeira vez ao seio palpitante . Salva-me , salva-me e serei a tua escrava . te-hei de joelhos como a meu senhor e amo , te-hei a armadura , adivinharei os teus caprichos , e te-hei como adoro o propheta de Medina . Ouves ? Filho dos christãos , salva-me , salva-me ! -- Deixa-me , tentação do demonio , bradava Raymundo com voz balbuciante ; deixa-me , anjo das trevas ; deixa-me , enviada de Satanaz . -- Não , tornou a amaldiçoada , approximando os labios vermelhos como a flôr de romanzeira dos labios de Raymundo . Sou bella , e amo-te ! Sou tua , e tu és todo meu , porque te vejo torcer desesperado nos braços de fogo do prazer . Amas-me , e eu ... sou tua . -- Amo-te , amo-te , bradou Raymundo , caindo oppresso aos pés da musulmana . Ai ! Branca , timida Branca , chora o teu amor profanado ! N ' esse momento fatal o anjo da guarda do teu amante velou com as mãos o rosto celestial , que as lagrimas inundavam , e foi , suspenso n ' um raio da lua , prostrar-se aos pés do throno do Omnipotente ! Entrado na senda da perdição , não havia poder humano que salvasse Raymundo da condemnação eterna . Tinha vendido a sua alma por um beijo de fogo , e trocára o paraizo pelo inferno da voluptuosidade . Profanado o terrivel juramento , o que havia de sagrado para Raymundo ? o que importava a honra de cavalleiro a quem prostituira a santa crença de seus paes ? Apagára- se a candida estrella que o guiava nas trevas da existencia , e a luz , que o fascinava , scintillava nos olhos negros de Zoraida , a gentil amaldiçoada . Se tinha reflexos infernaes , tinha tambem o esplendor prestigioso da tentação sensual . Desde essa noite ninguem mais soube d' elle . Diziam que renegára , e que , enlaçado nos braços da musulmana , fechára os olhos á luz do christianismo , e se arrojára ao abysmo infernal , onde ha o fogo eterno e o eterno ranger de dentes . Foram estas as noticias que Branca recebêra , no dia em que fazia um anno que Raymundo a deixára . Não disse palavra ao receber a nova fatal . Saiu e caminhou pallida , hirta e vagarosa como estatua adormecida n ' um tumulo , que , obedecendo a feitiço desconhecido , se erguesse do seu leito de pedra , e se dirigisse muda para o sitio aonde a chamava a attracção mysteriosa . Os aldeãos , que a encontravam , paravam para a saudar . Mas ella nem os ouvia , nem parecia vêl-os . Costumados á amabilidade da fidalguinha , ficavam os coitados boquiabertos , ao vêrem a desusada distracção . Mas , se lhe reparavam nas feições demudadas , vendo a pallidez de marmore , os labios brancos e entre-abertos , os olhos fixos e esgazeados , benziam-se devotamente , e murmuravam que era mau olhado que tinham dado á menina do castello . Assim caminhou até chegar ao sitio do Açude . Ajoelhou junto da cruz , e um aldeão , que a seguia de longe , viu-a rezar muito tempo , e abraçar os pés do Crucificado . Depois , chegou á beira do precipicio , e sem hesitação , sem fraqueza , despenhou-se no abysmo . O corpo gentil ennovelou-se nos ares , e foi despedaçar-se nas pedras da cascata , espirrando ondas de sangue que tingiram de purpura o manto de espuma que envolvia as rochas . As aguas do rio abriram-se para tragar o cadaver , e depois continuaram indolentes a correr , e a murmurar o seu eterno cantico , como se não se tivesse escripto alli o epilogo de um drama desventurado . O aldeão , que vira de longe a scena fatal , sem poder obstar ao seu inesperado desenlace , fugiu dando um grito de horror , e foi contar ao castello o que presenceára . Quem perdeu alguma vez , de modo tão terrivel , um ente estremecido , avalie a dôr do triste pae de Branca . Eu não a sei narrar . Sente-a o coração , mas os labios se a exprimil-a . Veiu depois gente do castello , e tiraram do fundo do precipicio o cadaver horrivelmente desfigurado da gentil donzella . Enterraram os restos d' aquella pobre martyr aos pés do Crucificado , que ouvira a sua ultima prece , e a quem pedira talvez perdão do crime que ia commetter . Plantaram ao pé da cruz roseiras e madresilvas , cujo perfume suavissimo ia levar ao longe a ultima recordação da que tivera na terra a corôa da innocencia , e tinha agora nos céos a palma do martyrio . " -- Pobre rapariguinha , interrompeu o mestre lagareiro com mostras de penalisado , dar cabo de si por causa d' aquelle patife ! -- Então que quer vossemecê , sô||_Manoel_dos_Reis Manoel|_Manoel_dos_Reis dos|_Manoel_dos_Reis Reis|_Manoel_dos_Reis , coisas que acontecem , tornou o narrador , ninguem póde fugir á boa ou má sina , que Deus lhe deu . Era aquella a sorte de Branca , havia de cumpril-a . -- Vamos á historia , vamos á historia , bradou José Augusto , com enthusiasmo ! Que fez Raymundo ? o que aconteceu a Zoraida ? Quero saber quem é por fim de contas o phantasma do Açude . " Raymundo , meu fidalgo , não via senão Zoraida n ' este mundo . Um capricho d' ella valia mais do que um mandado de Deus . Christão tripudiou com a infame sobre a cruz despedaçada do Redemptor ; cavalleiro , quebrou a espada de seu pae para que esse espelho de honra não lhe reflectisse constantemente toda a hediondez do seu crime , fidalgo e portuguez , salpicou de lama o brazão de seus maiores , e abandonou a defeza da patria , quando ella reclamava o auxilio de todos os seus filhos . Aqui está o que se póde chamar um amor de perdição ! Uma noite chovia agua se Deus a dava , o vento fazia tremer as casas , e curvava até ao chão os pinheiros agigantados ! A trovoada estalava com medonho estampido , os relampagos cingiam a terra com o seu cinto de chammas , e os raios vinham de vez em quando , lascando as rochas , transformar as arvores em archotes colossaes . O temporal era como nunca se tinha visto n ' esta terra , nem nunca mais se tornou a vêr , porque todos dizem que a procella d' aquella noite era obra de Satanaz . No Açude principalmente era medonho o aspecto da tormenta . O rio furioso arrojava borbotões de espuma , que se cruzavam com os raios , que vinham lamber as rochas com as suas linguas de fogo . Deus me perdôe , mas o temporal de hoje tem algumas parecenças com a tempestade d' essa noite infernal . Quer-me parecer que tambem hoje anda fazendo das suas o inimigo do genero humano . " Um calafrio de horror correu pela assembléa . Todos se chegaram mais para o pé do lume , e olharam uns para os outros benzendo-se silenciosamente ao passo que lá fóra gemia o vento com voz soturna na porta carunchosa do lagar . " N ' essa mesma noite Raymundo e Zoraida atravessavam a cavallo o pinheiral que termina no Açude . A reprovada de Deus folgava com noites tempestuosas , e nunca se sentia tão bem como quando os raios lhe illuminavam a estrada , e o trovão respondia magestoso á sua voz blasphema . -- Olha a cruz do nazareno , bradou Zoraida quando chegaram á cruz do precipicio ; não vês , Raymundo , como a chuva açoita irreverente o rosto do martyr do Calvario ! Porque não transforma elle os raios , que fulminam a cruz abandonada , em cimitarras de fogo que façam rolar a seus pés a cabeça da condemnada , da filha de Mahomet ? E ella ria , -- ria com umas gargalhadas estridentes , que vibravam sinistras dominando os ruidos da tempestade , e que , repercutidas pelos echos do abysmo , tinham um não sei quê de infernal . Raymundo estremeceu . -- Não zombes d' esta cruz , respondeu elle com modo sombrio ; quando eu era innocente -- e suspirou -- vinha aqui ajoelhar muita vez . Não zombes d' esta cruz , peço-t ' o . Zoraida fitou por muito tempo n ' elle o seu olhar aveludado , fascinante , diabolico e tentador . Era incomprehensivel a magia d' esse olhar , e mais incomprehensivel ainda o dominio que exercia no moço cavalleiro . Dir-se-ia-que dois sentimentos oppostos combatiam no coração de Raymundo : de um lado a repugnancia , a rebellião da vontade , do coração , do espirito contra aquelle demonio oppressor ; do outro lado uma attracção irresistivel , fatal , que o arrastava a seu pesar , e o prostrava aos pés da musulmana . Venceu o anjo mau . Raymundo curvou-se sobre o pescoço do cavallo , ebrio de amor ou de desejos fitou um olhar frenetico nos olhos de Zoraida , e quando ella , com um sorriso de escarneo , se approximou da cruz , e cuspiu no rosto do Crucificado ! ... elle , vencido pelo demonio , imitou-a , rindo com um riso convulso e doloroso , que fazia horror . " -- Jesus ! -- bradaram os circumstantes . O vento abriu a porta do lagar , e á luz de um relampago viu-se o campo devastado pelo vendaval e inundado pela chuva ; um trovão medonho fez benzer todos , e emmudecer o narrador . Chegaram-se mais ao lume , e olharam uns para os outros . Estavam todos pallidos e tremulos . -- Aconteceu exactamente o mesmo que aconteceu agora , continuou o João Moedor com a voz a tremer-lhe um pouco ; a luz de um relampago deixou vêr uma loisa aos pés da cruz , e o nome de Branca inscripto sobre a pedra . Um trovão formidavel ribombou sobre a cabeça dos dois amaldiçoados , e a campa estalou como se fosse de vidro . O phantasma de Branca , involto em candidas roupas , e com a fronte cingida de rosas virginaes , ergueu-se da sepultura , fazendo recuar Raymundo horrorisado . Este quiz desviar a vista , e o phantasma seguiu o movimento dos seus olhos ; quiz tapar o rosto com as mãos , e as mãos fizeram-se-lhe transparentes , deixando vêr ainda a imagem da donzella serena como uma santa , triste como uma martyr , impassivel como o destino . Quiz enterrar os acicates nos ilhaes do cavallo , e o cavallo esvaiu-se como fumo , adelgaçando-se , e escapando-lhe por entre os joelhos , como um pedaço de neve que o sol derrete nas montanhas . Raymundo deu um grito de horror , e estacou petrificado . Então voltou os olhos para Zoraida , e ficou aterrado da transformação da sua amante . O rosto , cuja belleza o fascinára , fizera-se negro , mais negro do que o carvão . Scintillavam os olhos como duas brazas , e nos labios volteava-lhe um sorriso de ironia . O braço assetinado que beijára tanto , estendia-se para elle terrivel e ameaçador . Raymundo , por um esforço supremo de vontade , recuou dois passos , mas o braço estendeu-se , estendeu-se , tornou-se desmesurado e apertou-lhe o pescoço , queimando como se fôra uma tenaz ardente . -- Não me foges , bradou ella com voz rouca , te-me a tua alma , renegado . Segue-me , segue-me . Pertences-me . Vem , que o inferno celebra hoje o nosso noivado . Os raios são os fachos do hymeneu , e Lucifer o sacerdote . Vem , é este o leito nupcial . E , arrastando-o com uma força irresistivel , precipitou-se com elle no abysmo . Um clarão avermelhado illuminou as aguas da torrente , que exhalaram um cheiro nauseabundo de enxofre . Mas o phantasma de Branca ficára ajoelhado aos pés da cruz , implorando o perdão do condemnado . No rosto de Christo , suavemente illuminado , resplandecia um vago arraiar precursor da aurora da misericordia . Apenas Zoraida desappareceu , desfez se o encanto . Serenou a tempestade , e a brisa perfumada da noite veiu timida brincar nas rosas do tumulo de Branca .