Antonio DE ALBUQUERQUE O Marquez de a Bacalhôa -- -- mais ce que commande a ma parole , e gouverne ma pen- sée , ce n ' est pas votre conscien- ce ou la leur : c ' est la mienne ; a celui qui aime la verité d' un amou digne d' elle , qu'impor- te l ' oposition de la terre en- tière si , sur un point donné , la terre entière se trompe ou ment . BAUDELAIRE ROMANCE Editor-Y ANTONIO DE ALBUQUERQUE Imprimerie LIBERTÉ BRUXELLES 1908 Tous droits réservés Sob a luz serena da manhã de Agosto , filtrando-se vivamente por entre as espessas ramarias , o vasto quadrilongo arelvado do tennis apparece manchado de luz , como incrustações de oiro sobre esmalte verde claro . Em torno , largos bancos de mármore , alvejando contra as sebes escuras de cedros e buxos , nas extremidades , altas redes de arame vestidas de trepadeiras . No ultimo banco , dois vultos côr de rosa , com largos chapéus de palha enfeitados de myosotis , cabeças curvas , corpos unidos , têem attentamente um romance . Dois adversários , um homem e uma rapariga batem-se furiosamente n ' essa derradeira partida . Ambos vestidos de branco , cabeça ao vento , saltam agilmente sobre a relva na febre de não perderem a bola que velozmente vôa d' um para o outro lado da rêde . O silencio é apenas interrompido pela contagem dos pontos . -- Marquez ! marquez ! por um triz que não apanhou com a bola na pinha hein ! Estas palavras solta-as a pequena Mercêdes , por entre um riso claro de troça , cortadas pela respiração ofegante e perdendo um ponto . -- Vantagem , grita por sua vez o parceiro . Mercêdes porem redobra de energia , e ganha por uma bola brilhantemente arremeçada , que apanha em cheio o corpo do marquez . -- Que vergonha ! clama ella victoriosa , na pança ! Este , encolhe os hombros com indifferença e é sacudido por um rizinho brando e complacente , que lhe sacode as banhas sebacias do corpo alentado e sadio . A linguagem pittoresca da estouvada Mercêdes de Lima agrada-lhe , assim como tudo que d' ella dimana , toda a sua pessoa franzina e voluptuosa , um quasi nada canalha . -- Vamos á ultima , á dos mestres , brada Mercêdes . O marquez limpa o suor que lhe escorre sobre a fronte e põe-se novamente em posição . As bolas voam ligeiras e o jogo prosegue novamente . As duas leitoras estSo por tal forma absortas , que raramente se dignam conceder alguns segundos de attenção aos jogadores . N ' essas claras e frescas manhãs de verão , era para elle o mais são , imprevisto e alegre dos passatempos , a diária partida de tennis com Mercêdes . Esquecido de todos os seus deveres e encargos de homem politico , que aliaz detestava sinceramente , sentia-se n ' esses momentos , joven , solteiro , livre , collegial em ferias , entregando-se ao jogo de corpo e alma , e mais que tudo , ao flart . Essa creaturinha de desesete annos , com os seus grandes olhosn egros maliciosos , o fino oval do rosto moreno e setinoso , a pujança dos cabellos quasi negros , emoldurando-Ihe a cabecita ligeira e redonda , sedulo dia a dia . Mas são sobretudo os pequenos seios de Mercêdes , destacando-se erectos , contra a fina blusa de seda frouxa , que perturbam o seu olhar azul , vago e cançado de devasso incorregivel ; os finos artelhos , que uma meia de seda branca aberta calçam , e os pés longos e estreitos , no elegante sapato de camurça e borracha . Para os seus 40 annos já passados , toda essa mocidade e frescura , representava uma lisonja . Ao seu typo de loiro volumoso e nedio , apaixonava o o contraste moreno e esguio da pequena Mercêdes . Assim era que , n ' essas partidas quasi solitarias , no tennis privado do seu magnifico parque , esquecendo a marqueza , os amigos , os conselheiros avidos das migalhas da sua meza opulenta de grande senhor , se perdia voluptuosamente pela creança coquette e vaidosa , a qual parecia ter-lhe entregado sem calculo , todos os secretos thezouros da sua belleza e juventude . No ombroso recinto , tudo era quietação e mysterio . Por entre os arvoredos , cujas ramagens verdes se balouçavam lentamente , apercebia-se em baixo , no ultimo plano do horizonte , a agua do mar , intensamente azul , palhetada de oiro , cortada de quando em quando pela vela latina d' alguma embarcação fugitiva . E em volta , a perder de vista , taboleiros opulentos de relva d' um verde esmeralda , arbustos floridos , macissos polychromos de tulipas , de roseiras de lilazes , agrupamentos de acácias floridas e as extremidades esguias dos abetos e cyprestes d' um verde escuro e triste . A claridade intensa , penetra a custo por entre a espessa folhagem que debroa de luz viva . -- Ready ! ... -- Play ! ... Uma péla escapada á ráquette de Mercêdes , outra á do marquez , arremeaçada por esta traçoeiramente ao canto do taboleiro , e a ultima partida terminara por entre as piadinhas dã jogadora e os pulos difficeis do marquez que , fatigado pelo esforço , se deixara cahir sobre um banco , limpando o suor do rosto afogueado . -- Duas , duas , que ganhei ... que vergonha ! ... -- Porque eu quiz . -- Qual ! contestou Mercêdes , porque pesa muito . -- Estás cada vez peior ... uma peste ... e se não fossem estas lindas mãosinhas que adoro , mandava-te á fava . Tomara-lhe uma entre as suas , depondo n ' ella um beijo avido e prolongado . -- Olhe que vem gente , tenha cautella . Mercêdes retirara a mão precipitadamente á vista d' um importuno que n ' esse momento se aproximava . O conselheiro , que horror ! murmurou o marquez com physionomia contrahida . -- E eu raspo-me , declarou Mercêdes levantando-se , até logo . -- Na praia , sim ? ... -- Sim , e partiu correndo lançando um adeus com a ponta dos dedos ao conselheiro , que se descobrira respeitoso , saudando-a . Apesar da hora matinal , o conselheiro João Nunes dos Santos , vinha já vestido como se fora para assistir a alguma assemblêa ou reunião de responsabilidade : sobrecasaca preta e chapéu alto , o que contrastava singularmente com o elegante completo de flanella branca do marquez . -- A estas horas ! balbuciou este com enfado . -- Negocio urgente , não ha remedio . Descobrira-se cerimonioso e correcto , apertando a mão que este lhe estendera negligentemente . -- Então que ha ? -- Crise politica ... -- Ora adeus ... -- É o que lhe digo . O Barcellos declarou-me não assignaria a nomeação do Vianinha , e o Veiga recusa-se a fazer os adeantamentos que são precisos . -- Como assim ? -- Nem mais nem menos , encostaram-se á parede , e não ha quem os arranque de lá . -- E tu ? -- Eu vim logo saber o que deviamos fazer , sim o que determina . -- Que peçam a demissão , que os leve o diabo , arranja outros . Dize-lhes que sou eu que quero , que não transijo , e caso elles repontem , demitte-os . O marquez levantára- se colerico . Elle , que tudo mandava , e com tanta intelligencia preparara essa situação politica , propicia aos seus fins de ambicioso-egoista , não achava possível que dois sugeitos seus protegidos feitos ministros sem possuírem o menor valor pessoal , se revoltassem contra a sua vontade . E era sempre assim . Quanto mais insignificantes mais intransigentes . A sua immensa fortuna , o prestigio do seu grande nome fidalgo , guindára- o á posição excepcional que occupava no paiz . Em campo de purpura , cinco flôres de liz de oiro , tendo por timbre a corôa ducal , e em torno a divisa dos seus nobres avós : Avant tout Bourgogne . João Maria Honorato de Alard , filho do duque reinante de Borgonha , passara por Portugal no tempo do Conde D. Henrique , de volta da Palestina , onde combatera valorosamente os infieis em defeza da santa religião . Ajudára este principe nas suas pelejas e conquistas contra os mouros . Bemquisto na côrte , esposara uma princeza filha d' um dos reis do Algarve convertida por amor á religião christã . Recebera mais tarde como dadiva real e premio dos seus innumeros serviços , o castello da Bacalhôa , com todas as terras pertencentes ao dito condado , honras e privilegios . Fôra este grande guerreiro , o fundador e ascendente -- embora já bastante duvidoso -- do actual marquez . Condes até D. João IV e marquezes apoz a restauração . Asseverava-se porém que , D. João Manuel d'Alard , seu terceiro avô , fora um impotente averiguado , o que não impedira a marqueza , sua mulher , de dar vários representantes , machos e femeas , a seu nobre marido , admirado d' essa fecundidade tão extraordinária como imprevista , e perguntando a si próprio , com espanto , quem poderiam ser os paes d' esses robustos rebentões . O castello da Bacalhôa , fora pois theatro de proezas devassas e inadmissiveis , não havendo hortellão , feitor , ou abegão , que não partilhasse do leito hospitaleiro da nobre castellã , a qual , como boa hespanhola , se não saciava com os peralvilhos efeminados da côrte . Vê-se pois o quanto era duvidosa a origem do riquissimo e mui nobre marquez da Bacalhôa . Elle era porém o arbitro dos destinos do seu paiz . Dominando tudo , os cortezãos e os grandes dignitarios d' essa côrte decadente e sem prestigio , aviltada por mil baixezas , pocilga repugnante de intrigas e pequeninas infamias , charco onde o são morria asphyxiado , e apenas o leproso , o aleijão boiavam á superficie . Formava ministerios , desfazia-os , creava deputados , pares , titulares , monopolios , abusos e infamias . Tudo lhe convinha mediante a satisfação dos seus interesses particulares . Nada tôlo , consciente do meio em que vivia , conhecedor dos honoens e do paiz , absolutamente cortez e attrahente . Um vicio comtudo o dominava , era a mentira . Mentia por prazer , a todos e a si proprio , convencendo se até por vezes das proprias mentiras ; mentindo não só nas mais futeis bagatellas , como até nos assumptos mais sérios e graves . -- " Um bugiardo " dizia d' elle o conde di Rimini , ministro -- Italia . A insubordinação inadmissivel dos seus dois ministros , parecia-lhe pois um attentado á sua auctoridade mais que real . Levantára- se do banco , e dirigira-se para a villa acastellada , cujos torreões alvejavam por entre as folhas claras das faias e as ramarias escuras dos pinheiros , assente sobre uma collina , dominando toda a enseada . -- Vamos almoçar , são quasi horas , e deixemos a politica para depois . O conselheiro Nunes caminhava respeitosamente , tendo nos lábios um sorriso velhaco e hypocrita . -- E depois , se não quizerem haverá por certo quem os substitua . -- Hum ! Não vejo , fez o Nunes . -- Qual ? Inventa-os se os não houver . -- E a côrte ? os pares , os deputados ? -- Ora adeus . Acaso não fazem elles o que eu quero ? -- Pois sim , não digo que não , mas é que as cousas mudaram ha um tempo para cá . Os republicanos agitam-se , crescem , impacientam-se . -- Uns imbecis , sem coragem nem confiança . Não vês como elles fogem deante da municipal . Depois , o que elles querem é viver dos jornaes , da réclame ... Uma data de vaidosos , não passam d' isso , crê . Fallam , gritam , mas sem methodo , sem convicção nem fé . Não tenhas receio algum e faz o que te aconselho . Puz-te a faca e o queijo na mão , corta pois á vontade . Tira uns , põe outros , promette liberdade e vai-lhe ás costas . Precisamos ter n ' uma mão os imbecis e na outra os intelligentes . Energia é que é preciso ter mais que nunca . Não te exaltes , intruja-os serenamente e verás como vae tudo n ' um sino ... verás . N ' este momento ao fundo da aléa por onde seguiam , cuidadosamente saibrada , coberta de sombra e frescura , apontou um vulto esvelto e esguio . Caminhava para elles ligeiro , sorriso nos labios . Vestia um completo alvadio de casimira ingleza muito fina , e o jaquetão aberto punha-lhe a descoberto a camisa de seda onde se destacava bordado a branco , um F e uma corôa de conde . Apertou com effusão a mão do Marquez . -- Bella partida de tennis , já sei , murmurou . -- Jogamos trez , que ganhei . A Mercêdes está cada vez jogando peor . -- E o conselheiro , optimo ? não é assim ? -- Sem novidade , sem novidade ... O senhor Conde é que parece remoçar de dia ... para dia ... -- Lisongeiro e sempre amavel . -- Qual ! Mas ainda agora reparo na tua linda gravata Manoel . É um amor , um verdadeiro amor de gravata . O marquez sorriu satisfeito ao comprimento do amigo . A opinião d' elle em questões de moda , lisongeavam-o sempre . -- Chegou-me hontem de Londres , trouxe-a o Negrão . N ' este momento , trez vultos femininos passaram adiante correndo -- Mercêdes e as irmãs mais novas . -- Olá ! olá ! gritou-lhes o marquez . Ellas porém não pararam ; e apenas Mercêdes lhes atirou um fugitivo adeus -- Que pecegas ! disse o Conde . O conselheiro encolheu os hombros com indifferença . -- Não gosta de femeas , este , notou o marquez soltando uma gargalhada -- Nem de machos , contestou elle offendido . Achavam-se junto ao patamar da villa . Em torno da sumptuosa meza dos marquezes , coberta de flores e cristaes , onde , sobre a finissima toalha adamascada , as porcelanas azues e oiro da China , encimadas do symbolo heraldico , se casam alegremente aos tons vivos das flores raras e ao fulgor frio das pratas cinzeladas , os convivas conversavam alegremente n ' um conforto rico e bem humorado . Apenas a marqueza seguia indifferente a conversação , altiva e quasi agressiva , no meio d' essa sociedade de homens que lhe era antipathica pelo sexo . O seu busto alto , pujante , dominava-os . Vestia simplesmente e com mao gosto . Era formosa sem simpathía , O seu olhar enverdeado era mais pespicaz que intelligente , o nariz fino , ligeiramente curvo , a bocca vermelha , carnuda , sensual , os dentes fortes em ponta , dentes de carnívoro . O cabello farto , castanho claro , as sobrancelhas nitidamente desenhadas e sedosas , assim como as pestanas que por vezes lhe valiam para velar o brilho ardente do seu olhar penetrante . Um traço fundamental , que desmentia a sua alta jerarchia , -- as mãos vermelhas e gosseiras presas a um pulso d' athleta Era porem uma creatura sadia e sensual , propria para o amor e para a maternidade , capaz d' inspirar desejos e sensualidades requintadas . Pelos vitraes abertos da larga varanda-estufa , separada por um arco elegante da sala de jantar , desmaiava no horizonte longiquo , para alem dos pinheiros , dos cedros e abêtos que , em batalhão denso desciam a colina , a immensa bahia toda azul e oiro . Os lacaios empoados , vestidos de sumptuosas librés carmesi , e agaloadas a prata , as rudes mãos escondidas por luvas de linho branco , circulavam em torno á meza , servindo silenciosamente . -- Borgonha ... Chateau-Juen 1867 . -- Rheno ... Uma atmosphera embalsamada de cravos , de rosas , e lilazes , misturava-se aos perfumes quentes das iguarias saborosas e ao agreste e fresco aroma dos campos em rejuvenescimento . A marqueza ao terminar o almoço retirara-se seguida pela sua intima , a condessa da Freixosa ; creatura opulenta e formosa , cujo typo voluptuoso e indolente nos fazia sonhar com as bellezas mysteriosas d' algum harem de Granada . Todos os convivas se haviam levantado cerimoniosamente á sua sabida saudando-a profundamente , e a conversa recomeçara logo mais expansiva e franca , acerca de femeas , assumpto predilecto do marquez . -- A pequena Mercêdes é um bom pente , e tenham vocês a certeza de que gosta cá do méco . Toda a physionomia loira do marquez se cobriu de felicidade orgulhosa ao proferir estas palavras . O Conde e o conselheiro trocaram um sorriso incredulo . É que elles conheciam de longa data o seu vicio de gabarola eterno e conquistador . Possuia todas as mulheres ; nenhuma até então lhe tinha resistido . -- Quando não vão pela sympathia , vão pela maça , e quando não vão pela maça perdem-se pela minha treta . -- Letra miudinha ! -- observou o conselheiro . Riram alto . Este porém , tinha por força que partir , e se ficára para o almoço , fora pela obstinação do marquez . O automóvel , esperava-o junto ao patamar da villa . -- Que devo finalmente fazer ? Perguntou para o marquez , cujo rosto se ensombrou de tedio . -- O que já te disse . Ou acceitam ou se demittem . A politica era-lhe odiosa , enfastiava o O conselheiro por dever , ainda procurou demovel- o . Era grave a situação . Os animos andavam exaltados , havia questões de difficil resolução no parlamento , todos gritavam , envectivavam o governo , os tempos tinham mudado , os jornaes estavam cada vez mais insolentes . -- Não passas d' um arára , e a tua energia e perspicácia parecem-me já sédissas . O teu grande deffeito é não conhecel-os , acredita . Gritam , bravejam , mas não passam d' isso . Não teem quem os dirija , quem os domine . Dá-lhes umas féstinhas publicas de tempos a tempos , mostra-lhe a municipal em parada , promette-lhe reformas , augmentos de ordenados , liberdades , diz mal de mim e da côrte se preciso fôr , e verás como triumphas . São como creanças , gritam contra tudo e consolam-se com a menor insignificancia , -- Ha porém alguem perigoso , com quem precisamos ter cuidado , advertiu o Nunes com seriedade . -- E quem ? -- O coronel . -- O Alvaro ? -- Esse mesmo . -- Ora adeus . Esse inutilisa-se de repente . -- Como ? -- Como aos outros . Faz-se-lhe o mesmo que ao Neves , por exemplo . -- E dará resultado ? -- Ora se dá . É de carne e osso como todos . Além d' isso conheço-lhe um fraco . -- Qual ! fez curiosamente o conselheiro . -- As mulheres , meu caro , esse que tu não comprehendes , por isso mesmo que o não tens . Conheço uma por quem elle se deitaria a um poço sem vacillar . -- E quem é ? perguntou curioso o conde , approximando o rosto do do marquez que sorria com bonhomia . -- Chut ... isso é segredo meu ... -- Então em chegando do Porto ? -- Metto- o cá em casa , e uma vez em meu poder , nunca mais nos porá medo . Ia ganhando terreno , não ha duvida , e podia ser-nos nefasto ; assim é que , para os grandes males ... -- Grandes remedios ! rematou o conde . Óptima idéa , não acha , conselheiro ? -- Sim , não é má . Uma vez mettido cá , é um homem ao mar . A vaidade , a intriga , a calumnia e a inveja , põem-n* ' o immediatamente fora de combate . Mas se elle não acceita ? -- Ora adeus . Sempre tens ingenuidades . Já conheceste alguem a quem não seduzisse um cargo de mordomo mór , camarista , estribeiro ou mestre de salla ? Estás louco , ninguem resiste . Acaso resististe tu á vaidade de seres ministro , o primeiro do paiz , o que todo lo manda ? Não , apezar da tua independencia . Só existe uma raça de homens á parte a quem as honrarias não seduzem , e esses não crescem cá no torrão . -- Quaes ? -- Os patetas do passado , meu velho , como Racine e Molière , Shakspeare e Dante ; e os do prezente , como Tolstoy e Kropotkine , Fournier e Ibsen . O marquez soltou uma sonora gargalhada por entre a espessa fumarada do seu Aguia Imperial de dez tostões . Conhecia bem a sua terra e os seus patricios , e ninguem melhor que elle sabia tocar o complicado teclado da politica interna . Era um maravilhoso producto do seu meio , possuidor dos mesmos vicios , descrença , cynismo , cobardia e indolencias . Apenas um homem lhe ameaçara até então a tranquillidade invejavel em que vivia ; -- o coronel D. Alvaro de Luna , creatura aparte , d' uma sinceridade e coragem fóra do vulgar , cuja honradez , patriotismo e rectidão o assustaram violentamente . Habituado no meio vicioso e hypochrita em que vivia , a encontrar-se apenas com creaturas fracas , ambiciosas , d' um valor apenas aparente , sem caracter nem coragem , e a quem facilmente dominava , esse homem estranho , que parecia proceder d' um seculo remoto , apavorara-o ! Nas rapidas conversas que com elle travara , intelligente como era , logo advinhara a pureza da sua alma de bronze á qual nenhum interesse ou cubiça seria capaz de desviar uma polegada sequer do caminho que lhe traçara a sua phantasia de sonhador de balada . Advinhara n ' elle facilmente esse amor entranhado pela patria que constituia o seu grande culto de idealista guerreiro . Comprehendera , como patriota , conscio da pavorosa decadência da sua terra , do baixo nivel intelectual dos que a governavam , da suar otineirice interesseira , sordida ambição e cynismo , jurara a si próprio , ainda que á custa da propria vida , arrancar d' esse marasmo estupido e traidor em que jasia mercê dos governantes , esse povo entre o qual nascera e a quem , amava mais que a si próprio , com uma adoração romântica de lenda , inspirada por tradicções valorosas e ousadas pelos grandes vultos dos Castros , dos Albuquerques , de todos os heroes cantados por Camões , tornado assim uma espécie de vulto QuichotesGo capaz de todas as temeridades e loucuras . Era esse o homem temido pelo marquez o único capaz de pôr por terra todos os seus planos de ambicioso egoista . Chegara d'Africa , havia um mez , apoz uma campanha inolvidavel em que se cobrira de gloria . Era n ' esse momento critico o idolo do povo e do exercito , portanto um perigo para a realeza decrepita e desconceituada se contra ella um dia se voltasse . Era pois mister aniquinal- o por uma vez . O sol entrando a jorros pelas largas janellas , doirava as velhas tapecerias , as faianças raras e as baixelas de prata resplandecentes amontoadas sobre os pesados bufetes flamengos que se erguiam ao longo das paredes lateraes da vasta sala de jantar . As flores embalsamavam cada vez mais o ambiente , ao passo que desfaleciam nas taças lapidadas de crystal da Bohemia . Tinham ido para a estufa , e commodamente recostados em cadeiras de palha , saboreavam o café nas pequeninas taças de Sévres . O conselheiro tevantara-se disposto a partir . -- Voltas -- noite ? disse o marquèz . -- Sem duvida . -- Pois faz o que disse , e deixa correr o marfim . Despediu-se . Em baixo o automóvel Peugeot , estremeceu todo n ' um ruido rouco , entremeado de estalidos secos , evolucionou um momento , e partiu veloz pela longa avenida , deixando apoz nuvemsinhas cinzentas , nauseantes . O marquez debruçára- se na janella junto do Conde , seguindo com a vista a caixa amarellada da berlinda , que se sumiu em breve n ' uma volta da estrada , em direcção a Lisboa . -- Este conselheiro está cada vez mais tanso e mais ordinário . Depois , com a mania de querer tudo endireitar , éra capaz , se não fosse eu , deitar tudo a perder . Ideias tem tantas como os outros , e a unica qualidade que possuia capaz , alguma energia , essa até já a vai perdendo . Ora adeus ! e o marquez ao concluir , assobiou alegremente o toque annunciador da entrada do toiro na praça . As toiradas eram um dos seus prazere-predilectos . -- Vamos nós até á praia ? murmurou . -- É uma idéa ! A manhã está linda e deve haver muita gente , retorquiu o Conde . N ' esse momento , dois cavalleiros que se dirigiam a galope para a villa estacaram de subito debaixo da varanda . Saudaram o marquez affectuosamente e apearam-se . O mais novo , era um lindo rapaz de 14 annos , esbelto , cujo rosto se parecia extraordinariamente ao do marquez . Uma gordura precoce porém prejudicava um pouco a sua elegância . Chamava-se Luiz e era o unico herdeiro dos marqúezes . O outro era um typo grosseiro e reforçado , physionomia estupida e carregada , mirada baixa e desconfiada . Era branco e rosado , com um grande bigode loiro que quasi- lhe escondia os labios grossos e sensuaes . Irmão mais novo do marquez , o Conde do Ribatejo , vivia principalmente das liberalidades do chefe da casa , visto a insignificancia do seu património . -- D ' onde diabo vem vocês ? interrogou o marquez . -- Do tennys do Sporting . Jogámos toda a manhã com os inglezes do cruzador , e o tio vem furioso , perdeu três partidas . Soltou uma alegre risada fixando o Ribatejo que franziu os sobrolhos . -- Já almoçaram ! interrogou o marquez . -- Lá mesmo . Os officiaes tinham trazido de bordo um magnifico lunch . -- Então que vieram fazer cá ? -- Primeiro beijar-te a ti e á minha mãe , tinha saudades , depois pedir-te licença para ir jantar a bordo do Dunkan com o tio . -- E tu vaes tambem ? -- Vou com o rapaz , que remédio , respondeu o Ribatejo cerrando os olhos á claridade viva do sol . -- Pois vão e divirtam-se . Penetraram na villa . O marquez lançou uma ultima mirada admirativa ao explendor da larga paisagem e murmurou para o conde com melancholia : -- Não ha terra mais linda nem mais socegada ; deixar isto tudo , seria asneira . Agora toca a ir até á praia vêr as pêgas . Quem era o Nunes , d' onde viera ? Como a maioria dos homens que ultimamente dirigiam o Estado , o Nunes não passava d' um imbecil , um pouco mais audaz , mais casmurro e esperto do que os outros , mas egualmente mais ignorante e perverso . A sua principal caracteristica era uma vaidade ilimitada , chegando o seu disiquilibrio vaidoso a ponto de julgar-se encarregado pela Providencia , d' uma missão Messianica de regeneração e ordem . Essa vaidade deslumbrara naturalmente o seu espirito acanhado de burguez da Certã , e a passagem pela Universidade , onde fôra reputado por todos como um mediocre , ensinara-lhe a velhecaria necessaria para , apesar d' essa mediocridade , trepaz surrateiramente pela ignobil escada da politica . Uma grosseria nativa e uma avareza inqualificavel , tornavam-o antipathico á maioria dos companheiros . Essa mesma avareza , fôra a inspiradora da ardilosa manha com que mais tarde conseguira alcançar a mão d' uma riquissima herdeira , actualmente sua mulher . O seu caracter , dissemos , era perverso e digno dos seus ascendentes pelo notorio desiquilibrio , malvadez , casos morbidos de epilepsia , de loucura e crime , que de longa data os vinha marcando como um stygma do mais fatal atavismo . D ' elle se contava como certo , o ter um dia recebido a tiros de revolver a um credor , sendo notoria , a sua predilecção favorita pelas caçadas nocturnas aos gatos , nas ruas de Coimbra ao sabbado , matando-os á mocada ou fazendo-os extripar por ferozes bulldogs . Escolhia para socios d' essas digressões os companheiros mais robustos , para cometter sem perigo toda a casta de tropelias . " Noites de despotismo ! " Era a sua fraze habitual . Já no collegio denotara os peores instintos e uma sordida avareza como virtude dominante . Um dos seus passatempos favoritos , era aprisionar moscas e toureal-as barbaramente , cravando-lhes bicos de pennas em guisa de garrochas . A sua carteira de estudo era pois um vasto cemiterio das inofensivas victimas da sua barbaridade . Durante as férias , ia pelos cantos da casa remexer o lixo em busca das pontas de cigarros e charutos lançados fora pelo pae e pelas visitas , e nem os escarradores imundos escapavam ás suas buscas minuciosas . Quando de novo voltava para o collegio , trazia caixas de sabonetes replectas d' essa execravel mistura de tabaco , vendendo-o depois por bom preço aos condiscipulos mais viciosos . Era impossivel arrancar-lhe o menor credito ou diminuição nos preços . Aparentava perante os padres a mais fervorosa piedade pela religião , sendo presidente dos Filhos de Maria confrade do Coração de Jesus e esbirro secreto dos perfeitos . Assim foi crescendo em hypocrisia , falta de franqueza e deslealdade que mais tarde deviam marcar profundamente o seu caracter como politico . Era bem um fructo amadurecido e saboroso das estufas jesuiticas . A sua elevação ao poder como presidente do conselho , devera-a exclusivamente á intriga , á sua rabulice de orador hypocrita e á protecção da Companhia de Jesus que não cessára de o aproveitar , servida por elle mysteriosamente nos seus complicados assumptos : primeiro como advogado , mais tarde como deputado e prezentemente como ministro omnipotente . Nunca nos seus discursos violentos e epilépticos , esquecera de citar a Divina Providencia , inspiradora dos seus actos e machinações politicas : -- Ad gloria Deum majora -- a cabalistica divisa jesuitica . Com velhacaria provocára na Camara a discussão das sommas enormes illegalmente entregues ao marquez da Bacalhôa , apavorando assim o gordo senhor que immediatamente o chamára ao seu palácio . Era essa a occasião por elle esperada anciosamente . Contra as invectivas iracundas do patrão , respondeu elle desculpando se com manha , mas frisando admiravelmente a situação e acabando por convencel- o de que só elle poderia ser o poderoso pára-raios contra essa formidável tempestade ameaçadora da realeza . Fôra um pretexto para expulsar da camará os deputados republicanos , amordaçar a imprensa , dissolver -- caso fosse necessário -- a própria camara e proclamar a dictadura . Dentro d' ella , tudo era possivel . Consolidava-se o poder real , justificavam-se os adeantamentos , e fazia-se mais até , augmentava-se a lista civil , visto provar-se que as sommas adiantadas haviam sido fornecidas pela insuficiência dos rendimentos regios . Depois , podia aterrorisar-se os mais brigões e convictos á pranchada e a tiro . Para que servia a municipal e a policia ? O exercito amordaçava-se com o augmento de soldo , conquistava-se com meia duzia de visitas régias aos quarteis , tudo correria no futuro como um marfim , veria . O marquez , muito intelligente , bem percebera a ratoeira armada pelo finorio ministro , mas não podendo já recuar , e desejando mais dinheiro , deu-lhe n ' esse dia plenos poderes , promettendo assignar tudo . Jogava talvez o seu futuro , mas que lhe importava se era rico , tinha alguns mil contos no banco de Londres ! ... Era para tentar , a partida . Absorvia por completo o poder e receberia mais dinheiro . Conhecia bem o povo portuguez , indolente e manso por temperamento , prompto sempre a aguentar todos os vexames e impostos . Os partidos monarchicos da opposição não os temia ; eram antipathicos ao paiz , sabia-os desprestigiados e sem a menor energia . Quanto aos republicanos , esses gastavam o tempo em comicios , não tendo nem armas , nem dinheiro , nem dirigentes . O partido podia alastrar , engrandecer , unificar-se mesmo ; mas sem uma cabeça solida e de acção , nada poderia fazer . Ora essa não apparecera por emquanto nem parecia manifestar-se n ' um praso curto . Entregou-se pois cegamente nas mãos do Nunes . Era no fundo um mediocre , um ignorante , aningindo como tantos outros pela intriga as auras do poder . Para bem avaliar a sua capacidade intellectual , bastava citar dois ditos de S.||_Ex.a Ex.a|_Ex.a . For occasião d' um leilão feito n ' um dos palácios herdados pela mulher no estrangeiro , mandaram-lhe offerecer por um quadro assignado André dei Sarto uma somma de alguns mil francos . -- Vende immediatamente , vende já o quadrinho em que me fallas assignado por um tal André , respondera elle ao administrador encarregado a liquidação . O outro fôra por occasião d' um pedido de dinheiro para reparações de edificios históricos e protecção á arte nacional . -- Mas para que precisamos nós de arte ? Nada , não dou vintem , o dinheiro é-me preciso para o exercito e para eleições . Quanto ao phisico do Nunes estava em justo parallelo com o moral . Côr biliosa , maxilas salientes , figura angulosa e dura , beiços carnudos de negro , cabellos asperos e indomaveis assim como a espessa bigodeira . Um todo vulgar , antipathico pela grosseria das maneiras e pelo desagradavel timbre da voz e da pronuncia acentuadamente provinciana , vicio que nem o melodioso e correcto acentuar coimbrão conseguira modificar . Junte-se a um tronco esguio e curvo , uma cabeça de degenerado , oblonga e chata , com depressões acentuadas nos parietaes , lembrando um d' esses seixos achatados que se encontram á beira dos rios , e daremos por completo o retrato do actual senhor -- Portugal . Assim fôra fabricado o conselheiro Nunes dos Santos presidente do conselho de S. M. e futuro dictador . Sob o vasto toldo , em frente ao mar , o grupo elegante da Enseada , conversava animadamente . Sombrinhas -- côres vivas dormiam sobre a areia por entre as cadeiras de palhinha e os bancos de praia . Creanças de pernas nuas entravam no mar soltando gritos agudos , outras em maillots vistosos precipitavara-se denodadamente á agua , de cabeça para baixo , mãos erguidas em oração , fazendo oscilar os pequenos barcos de pesca , d' onde se recolhiam apoz o mergulho , para logo se arrojarem de novo . Janotas vestidos de claro , gravatas vistosas fluctuantes , sapatos de lona e bonet de pala , misturavam-se aos grupos das senhoras em cata de flarts . Achava-se alli , n ' esse á- vontade incomparavel das praias , todo o vicio elegante , vaidoso e snob da linda e vasta Enseada Azul ; e se á primeira vista parecia reinar entre os frequentadores da praia uma geral promiscuidade , era um completo engano . Havia profundas separações ; barreiras vedando o acesso aos desconhecidos e aos posydonios . Havia o grupo de Cascaes , o mais aristocrativo e talvez por isso o mais livre e descarado , o do Estoril , o do Monte e dos adventicios a quem ninguem conhecia . E todos elles se criticavam mutuamente sem piedade , se despedaçavam , se abandalhavam em cada nova manhã um pouco mais . Toda essa furia de malidicencia calumniosa , contrastava singularmente com a pureza da atmosphera , com o mar infinitamentel impido , transparente , e com a tranquillidade dos montes longinquos cobertos de arvoredo frondoso . Essas lindas boccas proprias para beijar , profanavam-se ignominiosamente ao perpassar dos palavrões em calão , com que affectavam uma nova elegancia , uma nova moda . Algumas , com carinhas de marquezas de Trianon , de braços nús , torneados e alvos , pulsos e mãos infantis , arrepiavam pela sua conversação banal e ordinaria . Falavam de tudo e tudo discutiam , desde as cocotes conhecidas , amantes d' este ou d' aquelle , até aos secretos adulterios do seu conhecimento ; por dinheiro ou sensualidade , senobismo ou indifferença . -- A quem escolherá o Luna , perguntava a espirituosa Rachel de Sousa , a peior de todas as linguas femeninas de Cascaes . -- A ti , provavelmente , respondeu-lhe a linda condessa de Sylves , a mais estonteante morena da sociedade , cujos olhos tinham causado suicídios . -- Não me parece . Sou muito magra para elle , pois segundo me consta , gosta só de coisas solidas e magestosas . te-ha com certeza , minha querida , pois tu és o que elles dizem , um bom pente . Soaram alegres gargalhadas em torno , o dito agradára . -- Esta Rachel está cada vez peor , exclamou a Mercêdes de Lima , está uma peste . -- Com que os homens se envenenam , segundo diz o Silveirinha , accudiu a condessa . -- Serei o que vocês quizerem , é-me indifferente , tenho as costas largas apesar de magra ; mas voltemos ao que agora mais nos interessa , ao gajo da situação " -- Qual gajo ? -- Ora qual ? o coronel , o heroe , o terror dos negros , dos politicos e das mulheres . -- Sempre é certo elle ter chegado ? -- Hontem á noite , indo logo para a villa Esmeralda . -- Então decerto não tarda ahi . O marquez não falta , não é verdade Mercêdes ? -- E que sei eu ? Acaso mando n ' elle . Mercêdes corára muito , respondendo desabridamente á velhaca interrogação de Rachel . Ninguém ignorava a marcada predilecção do Bacalhôa por ella , e a vaidosa acceitação com que com recebia os galanteios do opulento senhor . A Rachel porém não se intimidou por tão pouco . -- Faz-te sonsinha , anda , que tens graça , proseguiu ella ; isso era bom para outras mas não para nós , tuas amigas , e que sabemos perfeitamente tudo o que por ahi se faz . Olha , quem te deve estimar muito e tratar-te com o maior carinho , sei eu ... -- Quem ? -- Que pergunta minha rica , o Luna , o qual na sua qualidade de adorador ideal da marqueza deve desejar certamente alguem para entreter o marquez ... És a peor lingua d' este mundo , safa ; na tua bocca tudo é perverso e imperfeito . -- Qual , minha filha , eu não sou má lingua , enganas-te , repito apenas o que dizem e vejo muitas cousas que os mais não vêem , alem d' isso assiste-me o direito da represália , dizem as ultimas de mim e eu faço o mesmo dos outros , aguentem-se . Pergunta á Condessa , á Maria , á Sarah , a todas , se eu menti ha pouco quando disse que o Luna arrasta a aza á marqueza e que o marquez , anda embeiçado por ti . Pergunta , pergunta . -- Lá isso é verdade , confirmaram todas . -- Depois , continuou a implacavel Rachel , nós as casadas somos as mais criticadas . A vocês , raparigas , tudo se lhes perdõa , são tudo creancices : a ti e á tua amiga Freixosa , que ainda outro dia foi caçada na tapada com o Bacalhoasito , um sonso peor do que ella e do que a própria mãe . E emquanto a nós nos chamam tudo quanto ha , vocês continuam sempre a serem as semi-virgens , quem tudo se desculpa e perdoa . Olha o que dizem da Condessa , de mim e da Maria . A essa , até já lhe dão por amante ao sujo e asqueroso Abrahão . -- Nogento , talvez , mas que tem massa como milho . É como o teu Silveirinha a quem attribuem mil vicios ; dizem só gostar de homens e entretanto não o largas . Tem automovel , carroagens , e dá-te lindas prendas , como o colar do Leitão , que todas nós conhecemos . Olha , minha querida , quem tem telhados de vidro ... O melhor é não falar ! A pequena Mercêdes calou-se offegante , nervosa , o lindo olhar inflamado , fito na Rachel , cuja figura impassivel de magra viciosa , a fitava zombeteira e sem cólera . -- Tens razão , todas nós temos culpas no cartório e se as temos é porque servimos para alguma coisa , não acham ? A condessa de Sylves concordou n ' um gesto indifferente e Maria de Sousa sorriu enygmaticamente compondo os bandós d' um negro admiravel . Toda de branco , côr da sua preferencia , parecia uma vestal grega resuscitada . A attenção de todas foi n ' esse momento atrahida para um enorme vapor navegando em direcção ao norte , para um rumo desconhecido . Cortava magestosamente a agua coroado de fumo . Sobre o convez distinguiam-se vultos de passageiros saudando com os lenços . Ao passar junto do yacht Mary Fany , pertencente ao marquez , os dois navios trocaram uma saudação . -- Que bom é viajar , seguir por esse mundo fora para terras mysteriosas . Quando vejo partir qualquer vapôr fico triste , desejava ir n ' elle , fugir d' esta maçada , exclamou Maria de Lima com o olhar cravado no oceano . -- Tambem eu ... -- E eu ... Concordaram todas em que o viajar era o melhor dos prazeres . -- Mas porque não pedes tu ao Abrahao um yacht . Elle é immensamente rico e facilmente poderia dar-te um , observou maldosamente Rachel . -- Seria melhor que o pedisses a esse que ahi vem , retorquiu a Sousa com desdem . Voltarara-se todas . O Silveirinha avançava para ellas , muito esguio , muito elegante , com o impertinente monoculo ao canto do olho , o rosto glabro e vicioso de degenerado cynico . Assentou-se entre ellas familiarmente , beliscando umas , beijando os dedos a outras , com uma confiança femenina por todas acceite tacitamente . Muito intelligente , riquissimo , sem sombra de hypocrisia a mascarar-lhe os vicios , natureza artistica e sensivel , todas as mulheres lhe eram familiares , precisas e egualmente indiffentes . Apreciava-as como bibelots , desdenhando-as para o vicio . Sentia porém uma preferencia especial , uma sensualidade estranha , pela magreza falsa de Rachel , por essa compleição de ephebo egual á sua , e sobre tudo pelo vicioso do seu temperamento . Fôra ella a primeira e unica amante para quem abria prodigamente a bolsa e dispensara alguma voluptuosidade . Fôra d' ella só apreciava os homens . -- Estão na má lingua habitual e na historiasinha depravada , não é assim ? Vamos , continuem , que eu prometto ajudal-as . Qual era o assumpto ? interrogou fitando-as . -- O Luna , respondeu Rachel . -- Não tarda ahi com o marquez e com o Alva . Encontrei-os ha meia hora no Estoril , de auto . -- E que dizem d' elle ? -- Ora o que dizem ? Tudo o que vocês sabem . O Nunes guerreando a sua volta para Africa , instigado pelo Sagres da marinha , e os marquezes a quererem mettel- o no paço , creio que por temor . -- E elle acceitará ? -- Que remedio . Alem d' isso , dizem estar doido pela marqueza e vocês bem sabem como é difficil resistir-lhe . -- Mas é que o Luna é d' outra tempera , não se parece com os outros homens . Se quizesse , aposto que atiraria com o Nunes para o diabo , e ficaria elle governando . -- Para isso querida condessa , seria preciso , primeiro , que o marquez quizesse , segundo que a marqueza o não conquistasse , e finalmente , que o Luna não fosse um monarchico ferrenho , mais realista que o próprio rei . De tudo elle será capaz menos d' uma traição , e o revoltar-se contra o Nunes n ' este momento , seria appoiar os republicanos e combater o seu ideal monarchico . -- Safa ! como estás politico , exclamou Rachel por entre uma gargalhada . -- Repito o que ouço e faço depois os meus considerandos , é natural . -- Olha os teus amigos alem . Chama-os para o cavaco e deixa-te de cantigas , O Silveirinha ao erguer-se sentira um peso desacostumado nas algibeiras . Mercêdes e a irmã tinham-se divertido a encher-lhe os beiços d' areia . Então começou a despejal-os atirando-lhes com punhados ao rosto por entre gritinhos de susto e pulos desordenados . Á entrada da praia , appareciam os vultos dos seus inseparaveis companheiros de passeios e orgias clandestinas ; o José Assis e o Nuno Cabedo . Chamou-os n ' um largo aceno de mão . Elles vieram logo . Eram dois janotinhas ridiculos , completamente barbeados como elle , e com ademanes femeninos e voz macia . As senhoras receberam-os alegremente . Gostavam muito d' elles pela exaggerada delicadeza e pelas piadinhas e historietas que , contavam a respeito de toda a gente . Trajavam de claro e traziam como o Silveirinha bonets de pala . Assentaram-se na areia , muito junto ás saias , em posição de gatinhos mimosos . -- Vimos o Coronel com o marquez na Explanada , e o Luiz Bacalhôa disse-nos : que o pae ia dar um garden-party ainda esta semana , em honra do Luna . Já toda a gente falava na festa , seria o acontecimento da estação . ate o corpo diplomatico seria convidado e os officiaes dos couraçados inglezes . Mas a Rachel exigiu pormenores , queria saber tudo . O que dizia o Negrão agora com essa intimidade do Luna com a marqueza , sim o que dizia . -- Ora adeus , minha amiga , respondeu logo o Nuno Cabedo que se fazia passar por intimo do celebre diplomata . O querido Negrão é um typo que nada teme , nem se importa com cousa alguma , e em mulheres ninguém tem sorte como elle . -- E tem-o provado bem , não ha duvida trepando sempre á custa d' ellas , observou a condessa maliciosamente . -- Então já vêem se tenho ou não razão , e é por isso que eu affirmo , elle nada receiar . Alem d' isso , está certissimo da marqueza , que parece de ninguém gostar a não ser d' elle . Flarteia com um ou com outro , não o nego , mas sempre por qualquer motivo ou fim . Lembram-se do Neves , d' esse pobre diabo de quem hoje já ninguém falla e foi n ' uma dado momento o heroe da terra . -- Esboçou um gesto vago . -- A marqueza enlouqueceu-o e prendeu-o de tal forma , que o pobre diabo perdeu todos os fumos de revolucionario que trouxera de fora , tornando-se n ' uma especie de marquez de Lafayete , naufragado . Ora com o Luna talvez venha a succeder o mesmo . Demais temos o Nunes a intrigal- o , e se elle por cá fica é homem ao mar . O Negrão porem é o unico que ha de escapar sempre são e salvo de toda a intrigalhada . É o mais finorio de todos , creiam , apesar de ser egualmente o mais insignificante . Nasceu n ' um sino . Veste como um caixeiro e passa por elegante ; sendo quasi mulato julgam-o branco : calculem vocês a força do homem . E o Silveirinha proseguiu maliciosamente com voz melifula : E ainda ha mais ; reputam-o com talento , um Talleyrand , e o homemsinho até hoje que me conste , não escreveu senão cartas de amor e só teve habilidade para conquistar mulheres . E achas pouco ? acudiu impetuosamente Rachel . Pelo contrario , acho muito , tanto mais que eu não daria um só passo fosse por qual fosse . Acho-as a vocês todas d' uma banalidade horripilante . Atrevido ! disse-lhe ella dando-lhe uma bofetada . Elle susteve-lhe a mão rindo muito e mordeu-lhe no pulso , devagarinho . Grande maluco ! E Rachel soltou um gritinho fugindo-lhe . Ouviu-se porem n ' esse momento o som rouco e intermitente d' uma corneta de automovel . Todos se levantaram para vêr . Ahi vem o marquez , é o seu automóvel . Era efectivamente o magnifico Fiat de 60 cavallos do Bacalhôa , que acabava de parar na estrada , em frente á praia . Então deu-se um grande reboliço em todos os diversos grupos que se achavam espalhados pelo areal . Cahiram bancos , cadeiras , as senhoras empunharam as sombrinhas vistosas e todos os olhares convergiram para os recem-chegados . Apenas as gaivotas singrando pelo espaço azul , continuaram indiferentes nas suas evoluções curvelineas . O marquez caminhava pela praia sorridente , charuto enorme entre os dentes , seguido pelo Conde de Alba e pelo coronel D. Alvaro de Luna . Por toda a parte , á sua passagem , se vê em dorsos humilhantemente curvados , sorrisos falsos de adulação , e escutam-se palavras lisongeiras , cumprimentos refalsados e hipocritas a que elle corresponde com indiferente altivez . Todos os do grupo de Cascaes , homens e senhoras , se haviam precipitado ao seu encontro , e excepto o Silveirinha e Rachel , os quaes apoz o haverem saudado de longe trocavam de novo impressões . -- Já reparaste em como todos esses imbecis são d' um servilismo enjoativo , disse Rachel . A sua observação era justa , pois nunca a inferioridade , a humilhação , o pouco sentimento da dignidade propria , se mostrara tão evidente . Devia ser bem inferior e miserável , toda essa sociedade , abdicando tão facilmente os seus sentimentos de orgulho e independencia , deante d' esse grotesco e balofo symbolo do preconceito e do poder . -- Aposto , disse o Silveira , que , se Moliére passasse por aqui descalço , ou Shakspeare mal vestido , ninguém daria sequer por elles . Ao contrario , veneram o Bacalhôa e teem medo do Nunes . Sucia de cretinos . -- O que te digo é que sendo eu uma creatura viciosa , tendo amantes e ausência de preconceitos , me sinto mil vezes mais nobre e digna do que todas essas anciosas em lhe venderem sorrisos . A Mercedes , a condessa e Maria , todas emfim que o rodeiam , o adulam e lhe pertencem . Eu cá era-me impossível entregar-me assim gosto ou não gosto bem o sabes . Quando sinto desejo , entrego-me , fora d' isso , odeio e não me vendo . Digo-te isto a ti por te saber uma creatura intelligente e aparte , distanciada de todos esses idiotas . Pareces-te commigo . -- Até nos vicios , carissima . Riram alto , contentes por se comprehenderem . -- Sim , até n ' isso , dizes bem , pois tens a impudencia e a audacia de atirares com o que és á cara dos outros . Entretanto , fizera-se um circulo e do marquez que se sentara na praia . Rodeavam-o as Limas , a condessa de Sylves a linda Sarah e outras do grupo , disputando todas á vez as suas palavras e olhares . -- Vocês estão todas pecegas , esta manhã , fresquinhas e apetitosas como fructos , dizia elle . Todas sorriram lisonjeadas , ao banal cumprimento . -- E tu , meu diabrete , continuou dirigindo-se a Mercêdes , porque faltaste hoje ao tennis ? Pregaste-me um bom lapin , não ha duvida . -- A culpa não foi minha , foi da mamã a quem tive de acompanhar a Cintra . -- E que foram lá fazer de madrugada ! -- Vêr meu pae que está doente ha alguns dias . -- Ah ! não sabia . Tirou uma fumaça ao havano . Vamos ter festa depois de amanhã , proseguiu , e lá as espero a todas , ouviram . Levantou-se dirigindo-se para um grupo de homens que conversavam cora o coronel . Este , fazia sensação . Alto , esguio , olhar melancholico , contrastando singularmente com o rosto audaz cortado por uma enorme cicatriz , cingido na farda elegante de cavallaria , o dolman constelado de insignias honrosas . -- Em Outubro iremos caçar para a Bacalhôa , disse-lhe o marquez , e quero ver se matas tão bem perdizes como negros . -- Farei pelo melhor , retorquiu o coronel inclinando-se . -- Pergunta aqui ao Alva , o destroço que eu fiz n ' ellas a epocha passada . Não errei uma , alem dos tiros duplos . Só n ' uma manhã matei dezeseis . Presentemente é o unico tiro que me interessa , a perdiz . -- E ás pêgas ? ajuntou ironicamente o Alva , a quem eram permittidas certas familiaridades . -- Essas , respondeu o marquez rindo , costume caçal- as a bordo do meu barco , alem . Apontou para o Mary-Frany , balouçando-se sobre o mar como um grande cysne , doirado pelo sol . -- Effectivamente é mais commodo , fez o coronel . O marquez aproximara-se d' elle e quasi ao ouvido disse-lhe : -- Ves aquella creaturinha magra , vestida de azul , viciosa como um gaiato , atrevida e perversa , indicava-lhe a Rachel . -- A Rachel d' Oliveira ? -- Sim , essa mesma , pois fica sabendo que já foi a bordo assim como a Silves e a maioria das que vês por ahi . O coronel fez uma careta de espanto e perguntou . -- E não receia que se saiba , o invectivem , possam censural- o . -- Qual ! São todas umas croias , acredita , o que ellas querem é massa e empregos para os maridos , ou para os irmãos , quando solteiras . Soltou uma gargalhada cynica . O coronel contemplou-o com espanto e o Alva fez-lhe um signal enygmatico de longe . -- Ahi chegam o Negrão e o almirante inglez , advertiu . -- Que estopada ! Confesso não me ser nada agradavel este almoço em Cintra , declarou o marquez . O Negrão vinha radiante , caminhando por entre sorrisos e cumprimentos . Vestia um completo de casimira azul aos quadrados , e sobre a camiza de peito mole , côr de anil , ondulava uma gravata branca de foulard presa por um travessão de pérolas . Parecia um mulato claro recentemente chegado do Brazil , com a sua casquette de bordo branca , com pala amarella . A seu lado caminhava o almirante inglez , muito alto e secco , vestido de flanella branca . Saudaram o marquez que se acercara risonho e amavel . O automovel aguardava-os para seguirem para Cintra onde um almoço intimo e á vontade , seria servido no magnifico palacio dos Bacalhôas . Dirijiram-se immediatamente para a estrada seguidos por um numeroso grupo . A Rachel junto do Silveirinha mirava-os por o enorme binoculo d' este . -- Que feio é o almirante observou ella , e o Negrão como esta manha vera preto e como tem a mania das cousas claras . -- É que em Londres apreciam o negro , é já cousa conhecida . Assim realça mais a sua coloração de mestiço . -- Será ? -- E quem o não é em Portugal . Quando se não descende de preto vem-se de mouro , eis a razão do baixo nivel intellectual do nosso povo . Só agora é que o portuguez começa a embranquecer . Rachel soltou uma gargalhada ruidosa . Até na maneira de rir se conhecia a sua franqueza e independencia . -- Sabes que mais ... murmurou . -- o que é ? -- Estou-me a lembrar de que se o Luna me quizesse , me entregaria a elle sem hesitação , voluptuosamente , como talvez nunca me dei . Tem um typo soberbo , masculo e energico ; deve saber amar , esse homem . -- Estás cada vez mais doida . -- Vê , e diz-me se concordas ou não commigo . -- Sim , não é mau typo para mulheres , eu , porém , para mim preferia o Negrão . -- Sujo ! ... O automóvel partira com ruido e a praia despovoava-se . -- Olha que typos , observou o Silveirinha á passagem de dois passeantes que os haviam saudado . Rachel sorriu com desprezo . O conhecido Abel das Fayas agarrado ao braço do nababo Villa Flor , fallava-lhe por entre um sorriso mole , obsequioso e attento . -- Então , meu caro barão , sempre vae ávante a nossa combinaçãosinha ? perguntou ancioso . O nababo , porem respondeu-lhe bruscamente . Estava de mau humor n ' essa manhã : Nada por emquanto havia resolvido , tinha a estudar primeiro a questão , amadurecel-a depois no cerebro . Alem d' isso era preciso ver os terrenos e preparar o caminho para a especulação . O Abel não se deu por vencido , amontoando explicações . -- Mas você bem sabe de que eu sou capaz , já teve a prova d' isso , lembra-se da concessão em Angola arrancada ao marquez por mim . Creia você que o meu logar de confiança , e a amizade que elle me dispensa , fazem-me valer mais do que muitos pensam . O Villa Flor , concedeu-lhe um gesto de assentimento , promeilendo-lhe -- não descuidaria o negocio . -- São dois verdadeiros typos d' arrivistes caracterisados , continuou o Silveidnha , especuladores , usurarios , sem pudor de especie alguma , tendo apenas por mira o interesse . O Fayas , servindo-se dos favores e con trada . . os outros , são d' uma cobardia burgueza que me exaspera . Rachel retorqui-lhe com malicia : -- Emendaste a mão a tempo não há duvida . Levantaram-se . A praia achava-se quasi deserta e sobrea a transparente bahia , o sol a prumo , punha manchas de oiro fulvo . As gaivotas , escuras e alvas , continuavam evolucionando indifferentes no espaço , ou se precipitavam velozmente sobre as aguas , e um rancho apenas de creanças se agitava ainda sobre a areia molhada , fugindo ás ondas , entre gritinhos alegres e gargalhadas claras . O yacht branco e doirado , balouçava-se adormecido , e todo o panorama cegava , tão intensamente fulgia á luz quente e incomparável d' um sol meridional . No explendido atelier da marqueza , envolto n ' uma luz sabiamente introduzida pelas janellas velladas por stores amortecedores da crua claridade , esta , em frente ao ligeiro cavalete de madeira clara e setinosa , trabalha attentamente aguarellando um trecho do palácio de Cintra . Tem na frente alguns azulejos arabes que lhe servem de modelo . Pendendo das paredes cobertas por um estofo claro , alguns quadros da eschola franceza , dois Rose Bonheur , uma magnifica paysagem de Corôt , uma cabeça de creança de Jean Paul Lorrin . Sobre outro cavalete , a um canto do atelier , um lindo quadro de Ramalho representa um interior minhoto -- dois velhos entretidos a ler , emquanto uma rapariga viva e robusta , a neta naturalmente , troca um beijo com o namorado á porta da rua , abrigado por uma parreira . Sobre um precioso movel de boule , alveja graciosamente uma figurinha de Teixeira Lopes . Alguns contadores da India e duas vitrines contendo bibelots preciosos , sobre os quaes se ostentam em jarrões de Saxe , rosas e lyrios , adornam o vasto gabinete , cujo sobrado em parquet , desapparece sob tapetes da Persia e d' Arrayollos . Chaises-longues e plians , cobertos do mesmo estofo sedoso das paredes , convidam ao recolhimento , emquanto duas magnificas estantes e pau preto , Renascença , d' um complicado trabalho , replectas de livros luxuosamente encadernados , attestara a predileção litterária da marqueza . Esta , levanta-se de quando em quando , recua , volta para junto do quadro e lança uma nova mancha sobre a alvura do papel retesado pela lisa prancha de madeira . Envolve-a um ligeiro peignoir mauve , amplo , fluctuante , cingido á cintura por um cordão doirado . As mangas perdidas põe-lhe a descoberto os braços alvos e torneados , e a garganta livre e bem lançada , possue essa carnação incomparavel das mulheres do norte . O atelier é o seu santuário predilecto ; alli medita , lê , repousa , nas horas ardentes da canicula , ou negligentemente recostada na ampla chaise-longue , em frente á larga janella , contempla a vasta enseada banhada da luz rubra do sol nas explendidas tardes de agosto . Uma ligeira pancada na porta chama-lhe a attenção . -- Entre , diz . A porta abre-se , deixando passar um velho creado de cabellos brancos , correctamente vestido de negro , casaca , calção e meia de seda . -- Ah ! é você , João , quer alguma coisa ? -- S.||_Ex.a Ex.a|_Ex.a manda perguntar á sr.a marqueza se o pode receber . -- Diga-lhe que sim , que o fico esperando . Pousa os pinceis , dirige-se para defronte d' um magnifico espelho de Veneza e compõe os cabellos . Em seguida , reclina-se negligentemente na chaise-longue , esperando . A porta abre-se novamente dando passagem ao marquez , que a cerra sem ruido -- Trabalhava ? pergunta elle examinando como conhecedor a aguarella começada . Faz progressos , marqueza ; a mancha dos azulejos produz um bello effeito e a perspectiva das arcadas é magnifica . -- Isso são favores , amabilidades da sua parte ... Mas diga-me antes a que devo a honra da sua visita matinal ... -- É bem simples . Venho falar-lhe d' um amigo nosso a quem desejo ser util e para o qual preciso do seu appoio , disse elle beijando-lhe galantemente a mão . -- Pode contar desde já com toda a minha boa vontade , embora ella me pareça de pouca valia deante do seu simples empenho , que tudo representa . -- Engana-se , minha querida , e muitas vezes nós os homens , por mais poderosos que sejamos , não logramos conseguir o que facil se toma a uma mulher de espirito como a marqueza . Ora o pobre coronel precisa de si . -- O coronel ? Como ! Pois é d' elle que se tracta ? fez a marqueza com espanto . -- D ' elle mesmo . A politica tomou-o á sua conta e envolve-o nas suas malhas miudas e traiçoeiras . Torna se pois problematica a sua volta para Africa . -- E porquê ? -- Porque o Nunes se oppõe tenazmente ao seu regresso nas condições passadas , isto é , com os amplos poderes que o ultimo ministerio lhe concedeu , e todos nós approvamos . -- E qual a razão ! Acaso não cumpriu elle com a maior intelligencia , honestidade e valor a sua missão , já por acaso alguém o egualou em coragem e fidelidade , iremos pagar agora com uma falta de confiança tudo que lhe devemos ? -- Não por certo , e é isso justamente o que aqui me traz . O Nunes apresentou-me esta manhã argumentos contra os quaes não podemos luctar . A altivez do coronel feriu profundamente o ministro , quasi o tratou de imbecil e declarou-lhe terminantemente nunca despeitaria a sua opinião dentro das questões do seu governo . Em Africa mandava elle e não os ignorantes que se propunham governar de dentro d' uma secretaria , regiões para elles desconhecidas e acerca das quaes não tinham a menor noção . -- Mas elle tinha razão ! affirmou a marqueza com violencia . -- Toda , não discuto , o que não obsta a elle ter comettido uma falta contra a disciplina , grave e punivel . Depois tratou todos os empregados do ministério de grate-papier e militares de papelão . Confesso-lhe aqui para nós , que não pude deixar de rir e concordar absolutamente com a opinião d' elle . Mas as cousas não se levam assim a ferro e fogo , levam-se com diplomacia , e o coronel perdeu a partida . -- Mas não pode o marquez impôr-se ao Nunes , e appoiar o coronel como deve . -- Isso minha cara marqueza é ura verdadeiro impossivel . A nossa missão é aturar , contemporisar e encher os nossos corações de egoísmo e até muitas vezes de crueldade . Entre a inimizade do Nunes e o desgosto do coronel não podemos hezitar . O marquez sentara-se n ' um tamborete de veludo aos pés da marqueza , a qual amarrota nervosamente entre os dedos o pequeno lenço de renda . Por um intervallo do store escapa-se um vivo fio de luz que vem beijar docemente a pequena figurinha de marmore erguida sobre o contador um perfume suave a rosas e lyrios embalsamam o ambiente . -- Combater o Nunes é-me impossivel , e só demitindo-o poderia salvar o coronel . -- Mas que tem esse homem de extraordinario , esse louco sem mérito , nem cultura nem educação , para assim o dominar , a si , que tão bem se sabe desfazer de todos os importunos . -- Apenas duas cartas cuja publicação seria para nós a ruina completa e uma queda fatal . Ora a marqueza sabe demais os poucos escrúpulos do Nunes , a sua vaidade immensa e facilidade com que muda de ideias e de politica . Amanhã , fora do poder , seria o nosso mais acerrimo inimigo e o mais feroz dos republicanos . -- Mas como as adquiriu elle , e de que tratam ? -- Não sei como as obteve ; o que lhe posso dizer é que ellas se referem largamente a essa desgraçada historia dos adeantamentos levantada na Camara propositadamente por elle , para me ter seguro . A marqueza levantara-se inquieta , nervosa . Ao seu caracter altivo repugnava-lhe essa forçada humilhação perante um personagem odioso como o Nunes . -- E o que quer que eu faça , diga ? Lembre-se que eu em nada sou culpada das suas imprudências , nem da sua total indifferença perante tudo quanto é serio e digno de attenção . -- Nem eu , pois tudo isto vem de longe , de muito longe . Se tudo começa a desmoronar-se , não é razão para nós ficarmos de braços crusados á espera da derrocada . Precisamos do Nunes , não ha remédio senão aguental- o ; quanto ao coronel , é preciso mettel- o no paço , dar-lhe um cargo correspondente ao seu mérito . Conseguiremos assim doirar-lhe a pilula , e tel- o para sempre do nosso lado . Lembre-se de que os heroes militares são sempre perigosos por mais dedicados que sejam . Recorde Saldanha entre nós e Lafayette em França . Ninguem melhor que a marqueza o saberá convencer e consolar . Dou-lhe carta branca , entrego-lh ' o . Ella olhou-o com desprezo , elle porém continuou sorrindo , examinando attentamente a aguarella . -- Tem um bello um bello talento , minha amiga , um bello talento ! Ella não lhe respondeu entregue a uma profunda meditação , com o rosto contrahido encostado ás mãos . N ' esse momento um formoso relógio antigo , de madeira , executou um pequeno minueto Luiz XV . Então como que despertou , levantandose . -- Já onze horas , disse ... -- E eu deixo-a minha querida , esta tarde verá o coronel e rogo-lhe se não esqueça de o convencer . A proposito , tornou elle já da porta , e voltando-se outra vez , o dinheiro que me pediu para os jesuítas do Varatojo , e Campolide , e para os seus padres -- S. Luiz já o mandei entregar em seu nome ; lembro-lhe porem seja d' ora avante menos pródiga com a egreja , pois creio Roma mais rica que nós ; alem d' isso o Nunes que é um homem de economias crueis , seria capaz de falar na Camara d' essas somas já bastante avultadas como falou nos adeantamentos . A marqueza accusa-me dos meus egoismos e indifferenças , eu porem sou mais generoso , respeito-lhe as suas estravagancias fanaticas embora ellas me não agradem . Até logo . Sahiu sem esperar resposta como que paralysada no meio do aposento com o olhar transtornado por uma colera impotente . Quem assim a visse n ' aquelle momento , não conheceria de certo n ' esse rosto desfigurado e duro , a placida e attrahente physionomia da aristocratica marqueza da Bacalhôa . Correu junto do espelho e cravou o olhar no aço polido , contemplando-se . Espantada talvez com a propria imagem , recuou levando as mãos aos olhos e conservando-os fechados por alguns instantes . Quando os abriu de novo , sorriu . A placidez habitual voltara de novo ; e encolhendo os hombros com indifferença , deixou o atelier n ' um ruido abafado de sedas roçando-se contra os tapetes . A figurinha de marmore toda debroada de luz , parecia sorrir ao beijo doirado do sol . O Garden-party offerecido pelos marquezes de Bacalhôa em honra do coronel D. Alvaro de Luna , reunira no vasto parque que contornava a villa Esmeralda , a mais escolhida sociedade da Enseada Azul . Uma larga clareira abrigada do sol por macissos de loureiros , rosas e cedros , servia de salão de baile . Separado apenas por uma alea frondosa estendia-se o vasto taboleiro do tennys , junto do qual se erguia um pavilhão vistoso , onde os criados serviam constantemente champagne frapé , gelados , refrescos e toda a casta de guloseimas . Por toda a parte se viam numerosos grupos conversando , rindo , sentados ou em pé , n ' uma animação sem tréguas de ditos espirituosos , cáusticos , imbecis ou banaes . As toilettes claras , elegantes e ligeiras das senhoras , esmaltavam graciosamente as vastas pelouses relvosas , dando a impressão d' uma tella colorida de Goia , sob um céu resplandecente e limpido . As fardas brancas guarnecidas de oiro dos officiaes inglezes , encareciam o quadro , quebrando a monotonia dos trajes banaes e demasiado correctos dos elegantes da capital . A um angulo da clareira , o marquez conversava animadamente rodeado por íntimos , escutando attentamente as suas habituaes historias : proezas de caça ou arrojos heroicos de campino n ' alguma ferra . Como charuto a um canto dos labios , corado e sadio , a obesa figura apertada n ' um colete branco sobre o qual se abria um amplo frak alvadio , gesticulava de manso ao falar . De quando em quando , ao narrar alguma passagem peccando por exaggero inverosimil , lançava para o conde d' Alva , ou para qualquer dos amigos que o rodeavam , um olhar furtivo de cumplicidade . Fôra um tiro duplo a duas gazelas , cahindo fulminadas na carreira á certeira pontaria da sua carabina ; uma pega de cara a um toiro desembolado , ou uma vertiginosa correria á cabeça d' alguma manada de gado bravo tresmalhado . Lances de força , prodigios de habilidade sportiva . Elles , servis , dependentes da sua bolsa franca e recheiada , confirmavam com convicção todas as façanhas , embora scientes de que ellas apenas se realisavam na fertil imaginação do embusteiro marquez . Os inglezes , correctos e polidos , soltavam alguns haos ! admirativos , sem bem comprehenderem a estranha mania d' esse grande senhor , tendo por divertimentos phantasias tão adversas á sua posição , e gerarchia e responsabilidades . Por deferencia , deixavam-o discursar sem uma interrogação . Em breve se cançou a verve algarvia do marquez , affastando-se repentinamente era direcção d' um grupo de raparigas onde os olhos vivos da pequena Mercêdes o estavam de ha muito chamando . O coronel Luna , era agora a victima dos inglezes , crivado de perguntas acerca das suas campanhas em Africa , da guerra do Transwal , dos mais varios assumptos referentes ás colonias . E para um sagaz observador não passaria desapercebido a attitude diferente , de interesse e deferência , por elles dispensado ao famoso coronel . Não era o simples respeito marcado apenas perante a alta cathegoria do personagem , como a attitude anterior tomada em face do marquez , mas sim o interesse , a admiração , e o vivo prazer em agora ouvirem discutir assumptos que tanto os interessava , por um homem d' um valor incontestável . O seu nome apreciado e discutido em Inglaterra , tomara-o d' elles logo um conhecido , e o próprio almirante offerecera-lhe já a bordo um sumptuoso banquete , realisado na vespera . A ordem do dia era pois o coronel , a quem todos disputavam com afan por snobismo ; a novidade sensasional , a sua entrada próxima para a corte , amargamente verberada pelos amigos , e appoiada apenas pela banal camarilha , no desejo maldoso de o verem em breve tropeçar na intriga sordida dos corredores e ante-camaras reaes , perdendo assim o prestigio e a independencia . Dizia-se porem á bocca pequena , que a bella marqueza da Bacalhôa fora a unica pessoa capaz de dominar a vontade de ferro do coronel , que até então se negara terminantemente a servir de adorno palaciano . Já outra energia identica se perdera n ' esse meio de rendas brocadas e mentiras , ao murmurio de boccas voluptuosas e das vãs honrarias e lisonjas . O Conselheiro Sebastião Neves , governador geral , poeta , escriptor , politico , homem d' uma grande energia e probidade , aviltara-se como por encanto , na tepida atmosphera do paço . Haviam bastado uns olhos voluptuosos de mulher para triumpharem de todos as suas resoluções de homem valido e impeccavel . Vagueava agora por essa côrte , despresado , e sem prestigio , com a sua pena gloriosa de outr'ora , incapaz de novas luctas jornalisticas , obcecado por uma paixão impossivel que o volvera em imbecil . Ninguem como elle sondára tão angustiosa e profundamente os sordidos manejos tramados presentemente na sombra contra o coronel , ninguem como elle os adivinhara hora a hora , dia a dia . Arrastava-se o coronel para a inacção , para o servilismo cortezão , baixo e criminoso , como annos atraz o haviam egualmente arrastado e perdido . Ao astuto marquez não convinham homens de valor e energia , caracteres rectos e probos , intelligencias claras e livres . A esses , temia-os a sua mediocridade , egoismo e orgulho de inferior . Seriam para elle mais que um estorvo , um perigo . Por isso os atrahia a si para mais facilmente os escravisar e envillecer . Se as honras os não seduziam , restava o amor e a intriga habilmente urdida . O coronel ao encontrar-se em Lisboa novamente com o Neves , reconhecera subitamente n ' elle , toda uma transformação evidente . Depois , mil historias e versões que corriam a seu respeito , haviam-lhe desvendado o resto -- as causas d' uma tal mudança , tão incomprehensivel como evidente : A sua paixão infeliz pela marqueza , motivo primordial do seu rebaixamento moral e perda completa de energia ; o seu afastamento da politica activa , trocada por uma indifferença completa , uma apathia constante a respeito de tudo que não fosse o seu culto amoroso por esse impossível . Sabia Luna tudo isto , e longe de o desprezar , lamentava-o profundamente . No dia em que de mais perto conhecera a marqueza , tivera como que uma visão sinistra do seu poder , comprehendendo facilmente como o encanto poderoso de uma mulher , poderá dominar por completo um temperamento nervoso , artístico e romântico , como o de Sebastião Neves . Elle mesmo se sentia arrastado mysteriosamente para ella , e embora luctasse heroicamente contra essa fatal corrente de sympathia , a apercebesse perigosa e nociva , capaz de dominar a sua energia altiva de luctador , continuava sendo inconscientemente ganho por ella dia a dia . Talvez se julgasse assaz forte para poder resistir-lhe , ou que um sentimento de vaidade o dominasse em face das evidentes demonstrações de distincção e apreço que ella lhe dispensava . Sebastião Neves parecia agora evital- o , contrariado naturalmente pelas suas amiudadas visitas á villa . Com a vinda do Luna , aureolado de fama , heroe do momento , ficara elle como que n ' um plano inferior de indiferença e esquecimento . A marqueza avançava graciosamente pelo braço do duque de Alvor , para o grupo dos officiaes inglezes . Ao aproximar-se , chamou o coronel com um aceno de mão . Este acercou-se respeitoso . -- Convide em meu nome o almirante e os outros officiaes para tomarem um copo de Champagne ; O coronel conduzil- os- ha , não é assim ? Fixara-o longamente , esboçando o seu melhor , sorriso Luna inclinou-se com respeito , e voltou para junto dos officiaes aos quaes transmittiu as ordens da marqueza . A orchestra quasi invisível , n ' um minusculo corêto coberto de glicinias , executava n ' esse momento uma valsa , e numerosos pares evolucionavam já em torno do recinto reservado á dansa . Rodeando a clareira , e precedidos pelo Luna , dirigiram-se todos para o pavilhão armado em bufete , onde os donos da casa os aguardavam rodeados de altos personagens . O almirante brindou aos marquezes e a Portugal , saudação retribuida pelo marquez , brindando pelo rei||_Eduardo Eduardo|_Eduardo e pela marinha ingleza . Soaram alguns hourras euthusiasticos , e os jogadores de tennys abandonaram por um momento a partida para virem espreitar os inglezes . A condessa de a Freixosa approximara- se do coronel . -- Então já decidido ? perguntou-lhe . Expira amanhã o prazo que marquei para a minha resposta definitiva , respondeu Luna com hezitação . Antes d' isso , não direi nem uma só palavra a tal respeito , perdoe-me . -- Nem mesmo a mim , confidencialmente ! ... -- Nem mesmo a si , pois por mais amavel que quizesse ser , comsigo me-hia de todo impossivel responder-lhe . -- E porque ? -- Porque nem eu próprio ainda sei o que resolva . -- Como assim ? -- posso-lh ' o affirmar . É por tal fórma melindrosa e difficil uma semelhante resolução que , todo o tempo me parece pouco para reflectir e chegar a uma conclusão . -- E será capaz de desagradar á marqueza ? Lembre-se ser ella a mais empenhada em tudo . -- Se me lembro , e tanto assim , que se não fôra o receio de desagradar-lhe , me-hia excusado immediatamente a tal graça . Note , querida condessa , que eu nasci para o movimento , para a independência , sou até meio vagabundo e corredor de aventuras . Uma especie de D. Quixote sem moinho nem Dulcinêa . Ora tudo quanto me possa privar da liberdade , aterra-me ; além d' isso , confesso-lhe egualmente me não seduz demasiado a vida da corte , por artificial e perigosa . -- Ora adeus , isso são historias , invenções dos de fora , despeitos ... A marqueza que se conservara junto ao bufete seguindo com o olhar a conversação da amiga com o coronel , chamou-o de longe . Luna correu apressado . -- Dê-me o braço . -- Temos que conversar , disse . Ao lado , no tennis , estabelecera-se um grande bulicio . As pequenas Limas sustentavam uma brilhante partida contra dois guardas-marinha , loiros e rosados . Em torno , um grupo de convidados excitava-os , e junto ao bufete o marquez engulia sofregamente dúzias de sandwichs . Via-se o Alvaro Negrão , moreno e espadaúdo , com a sua elegância vistosa de rastaquière , o Freixosa , petulante e ouço , belâtre conquistador , antigo marialva do Marrare e do Polimento ; o Alva , efeminado e chic , o mais requintado snob da corte , com pretençôes a litterato e a fidalgo sem o ser , e , finalmente , o lindo conde de Seiva , um dos mais bellos e authenticos nomes de Portugal , que actualmente lhe pertencia pela mulher , como herdeira única dos Seivas e de 600 contos que lhe levara em dote . Esse parecia ter sido feito unicamente para procrear , pois nenhum outro mérito se lhe reconhecia a não ser a bella presença e a numerosa prole . A interessante e espirituosa condessa de Sylves dissera d' elle um dia : -- Quando o Seiva me fita sinto-me gravida . Este dito definia o conde . Mais além , um agrupamento de mulheres formosas , entretinha-se conversando animadamente com os inglezes e varios diplomatas , entre os quaes se salientava pela correcção , o velho marquez de Rimini , discutindo arte com a duqueza d' Alvor , curiosa reliquia da antiga nobreza de Portugal , muito artista e muito mundana . A um canto , um grupo bulhento de semi-virgens , faces afogueadas , olhos vivos , agitando nervosamente os pequenos léques , coqueteavam com o Ribatejo e com o pequeno Luiz Bacalhôa . Tanto o tio como o sobrinho pareciam interessar demasiado as raparigas , visto as gargalhadas francas estalando no ar como cristaes chocando-se . E sobre todo este quadro colorido e buliçoso , pousava levemente como que suspensa , uma poeira d' oiro , luminosa e tremula , coada atravez das espessas ramarias dos platanos e das copadas tilias do parque . Todas as pequenas mordiam delicadamente sandwiches , empadinhas ou frituras , com os seus dentes alvos de cadellinhas sensuaes , humedecendo-os apoz com champagne extra-doay brilhando como oiro nos facetados copos de cristal de Veneza . A marqueza afastára- se com o Luna por uma pequena avenida a meio da qual se deixara indolentemente cahir sobre um amplo banco de marmore . -- Aqui conversaremos melhor , todo esse ruido de festa me enerva , murmurou ella fitando-o com melancholia . Depois desejava dizer-lhe algumas palavras antes de amanhã . Quero saber se é meu amigo e provar-lhe ao mesmo tempo o meu interesse . -- Acaso o póde duvidar ? acudiu o coronel com impaciencia . -- Quasi , em vista da sua indecisão . -- Mas repare , marqueza , que todo o meu futuro depende talvez da minha resolução . Ficar na corte será para mim uma grande honra , confesso , mas será egualmente o anniquilamento de todos os meus projectos . -- E não acha por acaso para si uma nobre missão , o velar pelos seus amigos n ' este momento perigoso em que elles precisam como nunca de affeições sinceras como a do coronel ? A sua voz era triste e Luna commoveu-se . -- Decerto ... decerto , e a sua confiança é para mim a mais grata recompensa que até hoje tenho recebido , acredite ... Ha comtudo um ponto negro que me aterra , confesso-lhe , e me tem trazido até agora hezitante . O coronel que ficara em pé deante da marqueza , torcia nervosamente as luvas entre os dedos , o rosto contrahia-se-lhe denunciando a lucta intima que se travara em si , havia dias . A marqueza estudava-lhe attentamente a physionomia com o seu olhar frio e penetrante . Uma expressão de triumpho esclarecia-lhe o rosto , certa da passividade d' esse homem forte , perante quem todas as vontades se quebravam como vidro . -- E qual é o ponto negro ? interrogou apoz uma longa pausa , maliciosamente . -- O desprezo dos que em mira confiara e a inutilidade do meu sacrificio . Sei infelizmente o quanto pode a intriga , e temo ver-me dentro em pouco tempo , um horaera inutilisado e quem sabe se ridiculo . A marqueza , quero crer , dispensa-me alguma estima como diz . Mas será ella bastante energica para me sustentar . Depois , tenho deante dos olhos constantemente um grande exemplo , e ante elle sinto-me cobarde pela primeira vez na vida . -- Cobarde , um Luna ? -- E porque não ? Acaso não hesitou Napoleão entre o repudio de Josephina e o desejo de dar á França um herdeiro . Não tremeu Numa ante Ersilia , Albuquerque deante da ingratidão humana , Gonçalo de Cordova deante da linda Zuleima ? -- E são esses os espectros que o aterram ? -- Não porque esses já se perdem no passado ; existe um outro mais próximo e frisante . -- Qual ! -- Sebastião Neves ! Pelo rosto da bella marqueza perpassou um remorso . Levantou-se bruscamente do banco e disse-lhe nervosamente : -- Mas esse perdeu-se a si mesma pela falta de energia e por sonhar um impossivel . Hezitou entre dois caminhos differentes sem coragem para seguir por qualquer d' elles . Ora eu faço-lhe justiça coronel , em o julgar um homem , com outra vontade e com outra persistencia . Depois elle era um velho , entende , e o Alvaro é ainda um rapaz . O golpe foi tão certeiro ao coração do Luna que quasi cambaleou . A marqueza sorridente e já sem sombra de colera , estendia-lhe a mão com confiança . -- Acceita , não é assim ? Luna curvou-se sobre essa mão poderosa e alva , e beijou-a demoradamente . Um sim imperceptivel escapou-lhe dos labios . -- Para que se não esqueça , disse-lhe ella entregando-lhe o pequeno ramo de myosotis que trazia á cintura . E emquanto a marqueza se dirigia triumphante para o local da festa , seguia o Luna meio curvado , pela avenida tranquilla , em direcção á rua , levando junto dos labios as pequeninas flores azues . A marqueza seguira em direcção ao tennis . Alli a animação progredia . Os inglezes deixavam-se bater pelas suas formosas adversarias , naturalmente por um requinte de fidalguia britânica . A condessa de a Freixosa approximára- se da marqueza . -- E o coronel ? -- Partiu esbaforido . Depois de pequena lucta declarou-se vencido . O marquez que egualmente se acercara da marqueza , interrogou-a baixinho : -- Então , foi feliz na sua missão diplomática ? -- Acaso o duvidou ? -- Não , certamente , e venho por isso apresentar-lhe todos os meus cumprimentos . Longe de nós , o bom coronel , podia ser-nos perigoso , perto , será mais um passivo instrumento como os demais . Obrigado , marqueza ... obrigado . Afastou-se risonho , mordendo o charuto , para junto de Mercêdes de Lima que , toda afogueada , limpava o suor ao pequenino lenço bordado . A orchestra executava a symphonia da Carmen , e o sol declinava lentamente sobre o mar infinitamente azul , apparecendo ao longe por entre as ramarias verdes . O Coronel Luna , no seu vasto gabinete de trabalho , sentado á secretaria , o rosto appoiado ás mãos , tinha os olhos cravados sobre um grande volume aberto o qual parecia absorver-lhe por completo a attenção . Era a famosa edição do século XVII do D. Quixote , de Cervantes . N ' uma jarrinha esguia de crystal , perto d' elle , o pequeno ramilhete de myosotis , dadiva da marqueza n ' essa tarde , conservava ainda todo o viço injenuo da sua côr suave . Um candieiro de azeite de metal branco com o globo verde , derramava em torno uma semi-obscuridade melancholica . E as gravuras e retratos suspensos das paredes , cubertos d' um estofo cinzento , pareciam contemplar da sombra o rosto palido e contrahido do seu companheiro quotidiano , estranhando n ' elle , essa expressão angustiosa da qual não comprehendiam o motivo . Seu avô||_D._Luiz_de_Luna D.|_D._Luiz_de_Luna Luiz|_D._Luiz_de_Luna de|_D._Luiz_de_Luna Luna|_D._Luiz_de_Luna , parecia do seu canto sofifrer das mesmas incertezas e duvidas . Na figura placida do grande liberal , divisava-se alguma cousa de amargo e triste . E em face , um retrato de Cervantes olhava-o com amor , como se n ' elle visse resuscitada a sua alma triste de eterno sonhador , para quem a bondade e o génio somente tinham sido causas de desgraça e dores ; personificação da bondade altiva e intelligehte entre a turba venal , grosseira e egoista . Apenas o rosto de Napoleão , que uma explendida gravura de Goupil representava na sua impassibilidade de estatua , assistindo á tremenda batalha de Jena , conservára essa mascara eterna do mais tremendo egoista da humanidade . E eram esses os favoritos de Alvaro de Luna , dois grandes liberaes generosos e bons , amordaçados pela utopia do preconceito , e um immenso despota cujo valor consistira apenas no amplo conhecimento dos homens e no desprezo que lhes votara . Elle , Luna , participava dos tres : herdando dos primeiros a illusão cavalheiresca , a crença , o preconceito , o patriotismo , e do ultimo o voraz appetite da conquista . De quando em quando o seu olhar dirige-se para o retrato de Cervantes , como que a pedir-lhe o segredo envolto na alma complicada do triste cavalleiro manchego , e recorda-se da vida attribulada do grande escriptor , do quanto elle havia sentido a odiosa verdade da celebre sentença do poeta latino : " nil habet paupertas durius -- se , quam quod ridiculos homines facit ; " a pobreza tem a dura particularidade de tornar os homens ridiculos . Acabava de ler justamente o capitulo que narra a passagem de D. Quixote e Sancho pela corte da duqueza , e das palavras murmuradas por este a respeito do amo , apoz haver contado todas as suas loucuras , e pancadas recebidas por culpa d' elle , fome , maus tractos e desillusoes . " Pois apezar de tudo , diz Sancho Pança , a ninguem mais estimo no mundo , e nada será capaz de nos separar , até que a mesma pá e a mesma enchada nos cavem o ultimo leito " . Estas palavras sublinhadas por Luna á margem do livro haviam-n* ' o feito longamente meditar . Nenhumas tão a propósito poderiam agital- o n ' esse momento . Ellas representavam a maior das fidelidades e dedicações ; por ellas affirmára Cervantes a dedicação do povo hespanhol aos seus reis e tradicções . E alli estava esse pequeno ramo de myosotis , exigindo d' elle uma egual dedicação , e a resuscitar-lhe um ideial de amôr , pela intangivel Dulcinêa , para a qual caminhava como o errante cavalleiro . O seu coração romântico de meridional , educado na religião , no preconceito e no dever para com os reis , não podia deixar de ser arrastado por esse ideial aristocratico . De tudo por elle se sentia capaz , e apesar de aperceber nitidamente o seu futuro perdido , todos os seus longos serviços inutilisados , a sua missão impotente no meio d' essa corte carunchosa e derruída ; a reprovação muda dos amigos e da própria familia , na acceitação d' esse cargo servil de cortezão , a sua ideia subsistia ainda assim , firme e inabalavel . Era uma alma antiga , habitando um corpo moderno , uma creatura do passado atravessando um lodaçal corrompido , cynico e descrente , civilisado apenas na apparencia , onde passaria incomprehendido e seria fatalmente arrastado a um fim ignominioso . E porque lamentavel cegueira elle , tão perspicaz no conhecimento dos homens , elle que a sangue frio declarara ultimamente , atravessar o paiz uma crise egual á da França em 1830 , prevendo ao Nunes , egual fim ao de Polignac , tendo a visão nitida de Cherbourg , prevendo a revolução popular , tarde ou cedo , em vista das futuras e fataes medidas reaccionárias do Nunes , a quem uma vaidade hysterica do poder ensandecia dia a dia ; elle , o descendente de liberaes , trocava o sympathico destino d' um Lafayette , pelo apagado e pouco honroso mister de cortesão ? Nem elle proprio o saberia explicar . Talvez essas flores azues fossem mais eloquentes que o seu proprio pensamento ou o psycologista mais profundo . Ainda n ' esse ponto Luna se confunde com o heroe de Cervantes , ou com o proprio Cervantes para melhor dizer . Existe em D. Quixote um patriota cuja visualidade contraria por vezes o enthusiasmo , reside n ' elle um liberal algemado pelos prejuízos nacionaes . Hoje porem , se Cervantes existisse seria um revolucionário , um libertário ; porque mysteriosa razão pois Luna sendo um liberal , continuava escravo d' um throno ? ... Egualmente como Cervantes , Luna padecia de egual misanthropia , raro era rir e raras cousas o divertiam . Andava habitualmente triste e pensativo , e a sua verdadeira preoccupação era talvez a gloria , o amor dos seus e da patria . Prodigamente generoso , d' uma rectidão incomparável e d' uma audácia temeraria . Chegara a casa ainda sob a impressão poderosa das ultimas palavras da marqueza : " Não será uma nobre missão o velar pelos seus amigos n ' este momento perigoso ? " Haviam sido estas ultimas e perigosas palavras , que o tinham convencido , mais que as declarações terminantes do Nunes a seu respeito , e as intrigas do ministério da marinha . Não poderia voltar a Africa n ' esse momento , esperaria . O ministério actual seria de pouca dura , não o duvidava , só lhe restava pois ter paciência . Era esse o seu disignio quando ainda tentara luctar com a marqueza . Ella porém vencera-o como o venceria sempre . Sentia-se por ella completamente subjugado e um terror intenso e misterioso minava-o surdamente . " Seria um sentimento de amor essa inqualificável fraqueza a dominal- o ? Interrogava-se a medo sem ousar responder a tal pergunta . Se assim fosse , era um homem perdido , inutilisado , ridiculo , para o qual somente a morte seria remedio eficaz . Esta ideia nunca o aterrara . Exposera mil vezes a vida como quem se expõe a um raio de sol , sem recêo nem hezitação . A morte , pelo contrario , parecia atrahil- o pela grande tranquilidade . O ficar eternamente dormindo , sem dôres , sem preocupações , nem alegrias . Quantas vezes elle não afirmara a todos , ser o seu maior prazer a inamobilidade , permanecer longas horas estendido na chaise-longue , o olhar aberto sem ver , pensamento funccionando inconscientemente , sem pensar . Ao chegar de Africa , trazia comsigo mil ambições que perdera . O engrandecimento das colonias tornava-se impossivel perante a rotineirice ignorante dos ministros , o indiferentismo condemnavel do chefe -- Estado , a intriga lavrando entre o exercito , a marinha , as secretarias , a completa desmoralisação da tropa , os portos mais elevados , alcançados na preguiça dos gabinetes ministeriaes ou ante-camaras do paço , a atitude humilhante do paiz perante a Inglaterra , vivendo apenas da politica internacional , do favoritismo incomprehensivel de diplomatas , a quem somente as mulheres haviam servido de pedestal ; todo emfim este estado de degradação moral e ignorância , lhe havia immediatamente demonstrado a inutilidade dos seus esforços , e exitos alcançados á custa de mil sacrificios , e perigos . Para que existia pois , para que vivia ? Essa mesma mulher , por quem estava prestes a sacrificar as mais caras ambições , mereceria por acaso o seu sacrificio ? Seria ella como elle a sonhara , uma creatura ideal e pura , capaz de grandes acções e victima apenas d' um marido egoista e do meio corrompido em que era forçada a viver ? Quantas versões corriam a tal respeito ! ... Não pretendiam ter sido ella a causa da apostasia do Neves , rodeando-o de lisonjas e hypocrisias , fazendo das suas graças um iman sempre prompto para servir as intrigas palacianas . Não affirmavam egualmente á sua predilecção criminosa pelos amores saphicos , apontando até a Freixosa como a paixão dominante da sua vida ! ... E tudo isto era appoiado por argumentos irrefuctaveis . A sua educação n ' um meio beato e dissoluto , viciado desde creança pelas amigas , ávidas amantes do seu corpo alvo e arredondado ; o mysticismo característico de todas as grandes invertidas . Depois , viera o casamento mais tarde a desilludil-a cruelmente do homem , o soffrimento da gravidez tendo o doloroso pano por epilogo , tudo era fim que desgosta a mulher do macho , a lança na pratica das sensualidades mais requintadas , mais ardentes e menos perigosas . " Se assim fôra , não seguiria elle na vida cego á luz da razão ? Não o levaria a uma maior dôr o seu inutil sacrificio ? Depois , tinha deveres ; estimava profundamente a mulher , a familia , tremendo ante a só idéa de lhe causar o minimo desgosto . Todas estas considerações o lançavam n ' um mar angustioso de contradicções , duvidas , incertezas e indecizôes . Quem triumpharia , quem ? Fechou o livro favorito , e machinalmente , procurou outro . O primeiro era o Plutarcho francez , fechou-o com força ; um segundo e um terceiro , a Vida de Napoleão e os Commentarios -- Affonso d'Albuquerque , tiveram egual sorte . Só o quarto lhe mereceu attenção ; era um volume de Fourier , sobre socialismo . Parecia desejar afastar todo o passado , procurando a cura do seu attribulado espirito nos modernos ideiaes . Por algum tempo o leu com certo interesse , folheando-o aqui e acolá . Mas acabou também por enfastial- o . Decididamente não podia concentrar o pensamento em outro qualquer assumpto que não fosse aquelle que tanto o mortificava . Demais conhecia todas essas lindas doutrinas , desde Saint Simeon , Owen e Bentham , até ao socialismo christão de Lamennais e de Tolstoi . E havia ingenuos capazes de acreditarem na educação moral d' essa fera a quem chamavam o homem . Se por um lado concordava na immensa desegualdade humana , e o seu coração generoso lhe segredava a necessidade de a corrigir , por outro repugnava-lhe instinctivamente essa promiscuidade precisa , e patriota como era , não podia comprehender a fusão de todas as raças n ' uma só familia , a completa abolição de todas as fronteiras e nacionalidades . Era tudo utopia , loucura ; e de repente , surgiu-lhe a grandiosa visão da Hespanha dos reis catholicos , de Fernando e Isabel , esses modelos da realeza e da virtude . Só assim poderiam as nações attingir o mais elevado grau de felicidade e grandeza . A resolução do problema politico era para elle uma só : um bom monarcha ; achado elle , tudo resurgiria de novo . Foi como que uma revelação grandiosa a deslumbral- o . A sua missão defenia-se ; bastava empregar todos os esforços da existência até se preciso fosse , para encaminhar esse rei , mostrar-lhe o dever , a gloria do engrandecimento do paiz , a felicidade suprema de praticar o bem , tornando felizes á força de leis sadias nobres e justas , os cinco milhões d' almas que governava . E pensara elle em voltar para Africa quando o seu logar era alli , junto d' aquelle a quem via todos os dias afundar-se cada vez mais na lama do seu culpavel indifferentismo . Não , ficaria ; e esse homem seria forçado a escutal- o , a obedecer-lhe em nome dos mais nobres princípios da humanidade . Esquecera o Nunes , reacionario , vaidoso , estupido e cruel , toda essa camarilha ignorante e vã , toda a corrupção incuravel e atavica do balôfo Bacalhôa , incapaz de o ajudar no seu sonho de illudido . Voltava por um instante a habitar n ' elle a alma romanesca e pura de D. Quixote , e como elle de novo tomaria os moinhos por gigantes e os mais pacíficos transeuntes por filhos de Satanaz . Dava-se n ' elle , agora , esse phenomeno inexplicável mas vulgar ás grandes almas : uma espécie de semi-loucura arrastando-as inconscientemente aos actos mais inverosímeis na realisação d' um ideal , impelidas por um destino mysterioso . Puzera de parte uma utopia , para correr atraz d' outra mil vezes mais impossível e confusa . Creancice e cegueira , tudo por causa d' um frágil ramilhete de flôres azues sem perfume . Assim são as creanças , os poetas e os bondosos . D ' esta vez a marqueza podia estar certa do seu triumpho . No salão familiar , austero e sobrio , o esguio candieiro de bronze , velado pelo immenso abat-jour de seda verde , projecta uma luz tenue e dôce , contra as tapeçarias purpura cahindo em longas pregas sobre os portaes , e vestindo as cadeiras de espaldar , plians e sophás , que guarnecem o aposento . Um raio de luz , depois de se espraiar de movel em movel , de tapiz em tapiz , vai expirar entre os labios risonhos d' uma formosa dama retractada , cujo rosto altivo e nobre , surge graciosamente d' uma gargantilha de finas rendas . Perto d' ella , parecendo contemplal-a amorosamente , um grão-mestre -- Calatrava , de rosto moreno e enérgico -- D. João de Luna -- seu esposo , -- descança a valorosa mão sobre o punho d' aço da espada Toledana . Quasi em frente , entre um coronel de milicias do Reino -- D. Vicente de Luna -- o valoroso caudilho liberal mais tarde , ministro -- D. Pedro IV -- um guerreiro coberto d' aço -- ainda um Luna -- destaca-se do fundo escuro do quadro . E heroe da grande familia que teve Castella por berço , o vice-rei da India , Pero Affonso de Luna y Gusman , valido predilecto de Filippe 2.o e tenente general das armadas hespanholas . O seu rosto sêcco e anguloso , o fino bigode á mosqueteiro , e sobre tudo a côr azulada do olhar melancholico , contrastando singularmente com a altivez endurecida que lhe acentua os traços physionomicos , revestem d' um encanto especial essa figura attrahente de guerreiro . E parece , que a natureza , por um d' esses mysteriosos caprichos de atavismo inexplicaveis , se compraseu em marcar trezentos annos depois , com as mesmas grandes qualidades moraes e o mesmo encanto physico , ao seu actual representante , o coronel D. Alvaro de Luna y Gusman . O traço principal dos Lunas -- o labio inferior sensual e desdenhoso , marca acentuadamente o ultimo herdeiro d' essa velha geração de guerreiros , defensores intransigentes da Realeza e da Religião . Algumas panoplias guarnecidas de lanças , punhaes , arcabuzes e espadas , completam o adorno das paredes , assim como dois contadores indianos ricamente embutidos . A um canto do salão , resguardada por um biombo japonez de côres vistosas , repousa uma mesa redonda , sobre a qual a luz da alampada desce directamente innundando-a de claridade ;