Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA -- 17.º Volume NOITES DE CINTRA ALBERTO PIMENTEL NOITES DE CINTRA ( 2.ª edição , revista pelo auctor ) 1908 PARCERIA Antonio MARIA PEREIRA LIVRARIA EDITORA Rua Augusta -- 44 a 54 LISBOA Eramos dez , e tinhamos combinado , por desfastio , ir a Cintra , na primavera , ouvir os rouxinoes . Parecerá menos inverosimil este pretexto , quando se disser que todos , então reunidos em Lisboa , haviamos nascido na provincia , onde as volatas dos rouxinoes dulcificaram as nossas primeiras noites de amor , e que o mais velho de nós tinha trinta e sete annos apenas . Ainda assim , como prova involuntaria de que o melhor da nossa vida era já então o passado , não foi approvado o projecto sem uma correcção prosaica . Sim , iriamos ouvir os rouxinoes a Cintra , visto que elles não costumavam fazer-se ouvir nas ruas de Lisboa , mas temperariamos esse devaneio romantico com as queijadas da Sapa , as laranjas do visconde da Arriaga , e o " Collares " do conselheiro Francisco Costa . Como o mais novo de todos era o Gonçallinho Jervis , em cujo espirito bailavam ainda pagens e castellãs n ' uma chorea medieval , e em cujo coração ardiam fogos de poetico platonismo , mettemol- o á galhofa convidando-o a procurar na serra de Cintra um cabello da barba que Bernardim Ribeiro haveria arrepellado ao vêr partir a frota com a infanta D. Beatriz . Para falar verdade , nenhum de nós tinha grande confiança na realisação de tão extravagante projecto , mas sobejou-nos motivo para o applaudir , porque durante mais de dois mezes nos forneceu alegrissimo assumpto sempre que nos juntavamos todos ou pelo menos alguns . Deviamos partir em abril , segundo o programma primitivamente approvado em assembléa geral . Não fomos , e acreditavamos já que não iriamos , quando uma noite , no " Martinho " , resolvemos partir a 20 de maio . O Vasconcellos , muito habituado a viajatas , ficou encarregado de alugar o " char- Ã bancs " , e elle proprio me disse á puridade que tal não faria senão á ultima hora , porque duvidava que se realisasse uma excursão dependente do accordo de dez pessoas , todas ellas mais ou menos atarefadas . Como se tratava , porém , de um divertimento , de uma " partie de plaisir " , como lhe chamava o Leotte , aconteceu que , á hora marcada , apenas faltou um , o Callixto , cuja falta , aliás , foi tida como de bom agouro , visto chamar-se elle Callixto . Tivemos que esperar á porta do Passeio Publico , que era o ponto de reunião , " rendes-vous dizia o Leotte , que o Vasconcellos fosse alugar o " char- Ã bancs " , sendo entretanto votada uma moção de censura a este nosso amigo pela falta de confiança que a communidade lhe inspirava . Eu , por estar na posse do segredo , abstive-me de votar . Um Catão ! Partimos . Aquillo foi como se todos atirassemos canseiras e trabalhos para traz das costas . Os palacios do Passeio Publico estremeceram nos alicerces , sacudidos por um tufão de alegria . A passarinhada fugiu das arvores precipitadamente , como se ouvisse troar uma peça de campanha . A policia não estava accordada ainda ; se fosse um pouco mais tarde , deitava-nos a mão . E affirmava o Vasconcellos que tinha visto as figuras do Tejo e Douro dizerem-nos adeus de dentro do Passeio , muito rapioqueiras . -- Nunca , dizia o Leotte , nunca se fez uma " partie de plaisir " tão honesta . Nove homens ... apenas ! -- Querias mais ! replicava o Vasconcellos fazendo-se desentendido . Não cabiam cá . Olha o pobre Gonçallinho , o nosso doce pagem , que teve de ir na almofada ao pé do cocheiro . Onde querias tu metter mais gente , ó Gonçallinho ? ! -- Que é lá ? respondia elle do alto da almofada . -- Vaes a fazer versos ? -- Ainda não . Mas já planeei um conto . Este ar de primavera é deliciosamente suggestivo . Vocês verão que a minha ideia não é de todo má . Chamar-se-ha " A primeira entrevista " . -- Has de contal-a em Cintra , gritei eu . -- Pois sim , respondeu o Gonçallinho , morto , como todos os novatos , por divulgar as suas composições . -- Em Cintra , alvitrou o Vasconcellos , sempre o mais auctoritario de todos , cada um de nós ha de contar á noite uma historia . Vá feito ? -- Menos eu , protestou o Athayde , que era empregado na Junta de Credito Publico . Eu só estou habituado a contar ... " contos de réis " . -- Isso é modestia . Não péga . -- Has de contar , intimou o Leotte , aquelle caso do principe das Caldas de Vizella , que uma noite te ouvi no Gremio . -- Ah ! esse era o principe Piratinino . -- Não é um conto ... " de réis " ; mas é um conto de principe . Bem , já temos dois contos , disse eu . -- E tu , propoz o Athayde , dirigindo-se a mim , tu , que andas sempre com as mãos na massa , é que has de abrir o torneio . -- Pois seja , com a condição de que onde se lê " massa " se leia " maçada " . -- Leia-se lá o que tu quizeres . Mas olhem vocês , observou o Vasconcellos , que é preciso matar de algum modo as noites de Cintra , que são tão grandes como as de Lamego . Em Cintra só devia haver dia . As noites são frias e humidas . Vocês o sentirão . -- Queres então ouvir rouxinoes ao meio dia ? -- Os rouxinoes são o menos ... -- Pois não viemos nós para os ouvir ? -- Nós viemos para gosar a liberdade que não temos habitualmente , e a alegria que principia talvez a fugir-nos . Viemos tomar um banho de oxygeneo . Elle é bem mau ! -- Que vão vocês a dizer ? perguntou da almofada o Gonçallinho . -- Foi o Vasconcellos que fez uma proposta para supprimirmos do nosso programma os rouxinoes . -- Não ! nunca ! protestou o Gonçallinho . De mais a mais tem vindo a dizer-me o cocheiro que os rouxinoes são aos centos na varzea de Collares . -- Tudo se póde conciliar , sentenciou o Vasconcellos . Ouviremos os rouxinoes e os contos . Mas vamos ao lado pratico do assumpto . Quantos dias se querem vocês demorar ? -- Eu , cinco dias , o maximo . -- E eu . -- Vá lá , e é de mais . -- Oh ! incomprehensivel alma portugueza ! exclamei eu . Já estragamos a nossa alegria . Ainda não chegámos , e já tratamos do regresso ! Se aqui fossem nove francezes ... -- Ou quatro portuguezes e cinco francezas ... reticenciou o Leotte , sempre propenso ao eterno thema feminino . Lembrem-se vocês da historia do nosso amigo conde , quando esteve nos Pyreneos . Ao menos lá não lhe faltavam mulheres ! -- É verdade ! ó Leotte , tu has de contar a historia do conde . Tem graça ! já t ' a ouvi uma vez . -- Vamos ao lado pratico , insistiu o Vasconcellos . Almôço , a que horas ? -- Ás onze . -- E jantar ? -- Jantar ás seis . -- É melhor ás sete . -- Tratem vocês de fazer as noites pequenas . Olhem que são o peor que ha em Cintra . -- Jantaremos então ás sete . -- Isso é melhor . E de dia ou á noite , sentados em Collares , em Seteais ou nas cadeiras do " Victor " iremos contando o nosso " Decameron " , respirando um bom ar , e um pouco de alegria , pelo menos ... O " Decameron " ! exclamou o Leotte . Sabem acaso vocês que os fugitivos da " peste negra " de Florença eram sete mulheres e tres homens ? Isso comprehende-se . -- Ó diabo ! cala-te lá com essa chorata pelas mulheres ! replicou o Vasconcellos . Póde ser que o acaso te depare em Cintra alguma boa fortuna . -- N ' este tempo ! objectou , desconsolado , o Leotte . Se fosse no verão ! -- O verão tambem tem seus inconvenientes . Ha mais espiões , mais fiscaes da moralidade publica . Leve o diabo tristezas . Toca a divertir , rapazes . -- Olhem lá ! gritou o Gonçallinho . -- Que é ? -- Parece-me que já architectei outro conto . -- o que é então ? -- " A morte do bibliophilo . " -- Vejam vocês , disse o Vasconcellos , o que são os poetas portuguezes . Vae aqui um rapaz , na flôr dos annos , cheio de imaginação , em caminho de Cintra , a pensar na morte da bezerra ou do bibliophilo , que o leve ! Rimos todos . E o proprio Gonçallinho , que ouviu o reparo , desatou a rir na almofada . Quando apeamos á porta do " Victor " , estavamos mais ou menos acabrunhados pela fome . -- Por S.||_Thiago Thiago|_Thiago , e aos bifes ! berrou o Vasconcellos . E o Victor , muito mesureiro , muito amavel : -- Elles hão de estar menos maus . O almôço foi uma devastação , uma hecatombe . Dizia o Vasconcellos que assim era preciso , visto que só se tornava a almoçar ... no outro dia . Quando saímos do hotel eram quasi tres horas . o que se faria ? Por onde se começaria ? Os fumos capitosos do almôço accenderam brios quixotescos no espirito da maioria dos nove . A burro e á Pena ! era o grito do Vasconcellos , reforçado por mais cinco ou seis vozes . -- Mas isso é a semsaboria de toda a gente ! disse o Gonçallinho . -- Ó meu tolo ! replicou com vivacidade o Vasconcellos . Querias talvez fazer versos com o estomago cheio de biffes ! A burro e á Pena ! insistiu . Os burriqueiros , que nos tinham feito um verdadeiro cêrco , largaram a correr para ir buscar os burros . Emquanto esperavamos , dizia-me em tom de confidencia o Leotte : -- Já perguntei no " Victor " , e não ha lá hospeda nenhuma . Mas ha criadas , ao menos . E d' ahi a pouco dizia-me o Gonçallinho , tambem em tom de confidencia , muito contemplativo , olhando para o castello da Pena e para o arvoredo da encosta : -- Como isto é bello ! A burricada á Pena foi , como sempre acontece , uma esturdia hilariante , cheia de episodios comicos . Quando o burro não caía , caía o cavalleiro ; e as mais das vezes caíam ambos . N ' essa folia , que teve muito de carnavalesca , o tempo fugiu despercebido , as horas voaram . Ao fim da tarde , mergulhados n ' um verdadeiro banho de aromas primaveris , estavamos nós sentados junto ao " Chalet de Madame " , quando o Vasconcellos alvitrou auctoritariamente : -- Agora , sim senhor . Agora é occasião propicia de darmos principio ao nosso " Decameron " . Tem a palavra o sr. Fulano , como se combinou . Era eu . Pois não houve meio de resistir . -- Ora então , senhores e ... -- Senhoras não ha infelizmente ! exclamou o Leotte . -- Peço attenção , que eu principio . E principiei . -- O morgado de Muxagata , ou simplesmente o " Muxagata " , como elle era conhecido ha vinte annos no Porto , tinha solar a onze leguas de Lamego , na aldea d' aquelle nome . Por setembro apparecia na Foz do Douro com uma coudelaria inteira , que lhe permittia variar de cavallo seis vezes por dia . Gostava d' isso , e lisonjeava-se de que as mulheres viessem á janella alarmadas pelo tinido aspero das ferraduras nos burgaus da rua Direita e de Cima-de-Villa . Era , de resto , um typo de classe , porque nas praias de Portugal não se perdeu ainda o molde do morgado de provincia com manhas de picador e boleeiro . Ha sempre um para amostra . Todos os dias ia banhar os cavallos á praia dos Inglezes , que era a menos frequentada . Gastava duas horas n ' esse trabalho , e elle proprio era o banheiro dos seus animaes que , á força de acicates , acabavam por investir com a onda . O Muxagata encharcava-se dez vezes em cada manhã desde os pés até aos hombros . Sentia-se satisfeito com essa maçada quotidiana , que sempre attraía alguns espectadores . E todo o seu orgulho consistia em saber-se nomeado como o melhor pé de estribo e a melhor mão de rédea que ginetava na Foz . Eu vi-o pela primeira vez na rua Direita , n ' um predio fronteiro á rua Bella . Morava eu ali perto . Sabia-se que vinha para aquella casa o Muxagata , e um bello dia começaram a chegar criados e cavallos . No outro dio chegaram cavallos e criados . No terceiro dia chegaram criados , cavallos , e palha . Ao quarto dia correu voz de que chegaria o morgado . Os criados e criadas , todos elles atexugados de bom presunto da Gralheira , fizeram o jantar para s . ex.ª Mas s . ex.ª não chegou . No dia seguinte fez-se novo jantar para s . ex.ª E s. ex.ª não chegou ainda n ' esse dia . O grande Muxagata principiava a ser um mytho para muitos banhistas da rua Direita e travessas affluentes . Chega o Muxagata ! Não chega o Muxagata ! Á noite , os criados , vendo que o patrão já não chegava n ' esse dia , comiam o jantar que estava preparado para elle . Passou assim uma semana . Na segunda-feira seguinte sentiu-se ruido á porta do Muxagata . Foi muita gente ás janellas . Não era elle , mas um novo cavallo que chegava . Uma belleza de estampa , que os criados estavam admirando em circulo á porta da cocheira . Soube-se a historia do animal . Muxagata já estava no Porto , e havia comprado aquelle bello exemplar " pur sang " ao Côrte Real de Traz da Sé por tresentas libras . Finalmente , á noite , chegou o Muxagata com o Henrique da Perzigueda e outros amigos . Vinham a pé , todos de esporas e chicote . E antes de subir , foram á cocheira examinar os cavallos . Vi o Muxagata . Era alto , forte , moreno : farto bigode preto , e pera . Foram jantar . O Ricardo Brown , o Côrte-Real e outros " sportmen " caíram logo lá . Depois do jantar , houve jogo . Sentia-se tinir dinheiro . Era o " monte " . Muxagata , depois das libações do jantar , gostava de fazer o seu berlote . Aquillo devia ter acabado noite velha . No dia seguinte , ás 7 horas , já o Muxagata estava na praia dos Inglezes a dar banho aos cavallos . Varias pessoas foram vêr . Outras deixaram-se ficar na praia do Caneiro á espera dos dois melhores espectaculos que os " mirones " apanhavam :o banho do fidalgo||_Padilha Padilha|_Padilha , que entrava no mar preso por uma corda , e o banho da Cacilda , filha do banheiro Leão , que nadava para o mar largo . Foi pelo Henrique da Perzigueda , o qual eu vi morrer annos depois n ' um sótão da rua de S. João Novo , que travei relações com o Muxagata . Eu tinha os meus dezoito , e lisonjeava-me de que o Muxagata , a flôr dos " sportmen " da Foz , me tratasse mano a mano . Quando elle descia a cavallo a explanada do Castello , sendo admirado no seu garbo de cavalleiro pelos hospedes do " Hotel da Boa Vista " , dizia-me adeus com o chicote , e eu parava muito ancho , dando-me ares de entendedor , até o vêr exhibir-se no Passeio Alegre , em frente da casa acastellada dos Maias da rua das Flores , porque ahi era certo passar ás upas . Havia sempre senhoras no balcão de pedra , que tinha um toldo listrado de branco e escarlate . Mezes depois correu fama de que o Muxagata havia raptado uma menina de Lamego . Falava-se que os irmãos d' ella o queriam matar . Mas não morreu ninguem . Em todo o caso o Muxagata deixara o seu solar e viera estabelecer residencia no Porto , na rua das Fontainhas , com a sua bella raptada . A historia do rapto augmentára- lhe a nomeada de fidalgo extravagante . Algumas vezes vi o Muxagata a cavallo ao lado da famosa lamecense , vestida de amazona . Iam ordinariamente á Foz por Lordello do Ouro ; voltavam por Miragaia . Quando recolhiam ao cair da noite pela rua das Flores , os lojistas , sentindo o tropel dos cavallos , vinham á porta . O escandalo d' aquella mancebia publica indignava-os ; não obstante , cumprimentavam risonhamente o Muxagata , que era bom freguez dos ourives e dos mercadores de pannos . Na casa das Fontainhas havia batota todas as noites . Criados de casaca e lenço branco serviam o chá . D. Christina , a bella de Lamego , jogava como um homem entre os homens . " Saltava " nos valetes , e " fazia cerco " ás quinas . Ella odiava os valetes , dizia . Na sua confiança nas quinas mostrava-se uma boa portuguesa de Lamego . Vestia bem : rendas , flores e joias . As joias explicavam os cumprimentos dos ourives da rua das Flores ao Muxagata . Usava o cabello apartado ao lado , com duas " bellezas " . Chamava-se " bellezas " aos anneis de cabello empastados sobre a fronte . Coisa tentadora , que desappareceu da circulação . -- É verdade ! obtemperou o Leotte . Prohibiram- lhe que interrompesse . O pó de arroz , continuei eu , era ainda considerado como um " deboche " de " toillette " . D. Christina punha muito pó de arroz na face , no collo e nas mãos , especialmente nas mãos . Tinha predilecção pela essencia de violeta . Ora os perfumes eram n ' aquelle tempo outro " deboche " de " toilette " . As mulheres não cheiravam a nada ou cheiravam mal . Podem vocês admirar-se de que uma mulher de Lamego se avantajasse dez annos ás outras portuguezas em " mise-en-scène " de " coquettismo " . D. Christina tinha pendor natural para a vida espectaculosa . Estas aberrações não são das terras ; são dos temperamentos . Uma patricia dos presuntos de Lamego póde nascer tão " coquette " a dois passos da serra da Gralheira , quanto uma creatura nascida entre os jardins de Harlem póde sair brutalmente apresuntada por fóra e por dentro . De mais a mais o Muxagata , tendo-lhe conhecido a bossa , desenvolvera-lh ' a. Educára- a como amante . O idillio de contrabando precisa ganhar em aperitivos acirrantes o que naturalmente lhe falta em tranquillidade sincera . As amantes são actrizes de um palco em que se representa a comedia do amor ; as esposas são as sacerdotisas de um culto domestico , que se faz valer por si mesmo . A differença é grande . D. Christina tomava a sério o seu papel de actriz , e esforçava-se por que nos applausos do publico entendido reconhecesse o empresario a conveniencia das aptidões theatraes da artista . Rodaram mais dois annos . A casa da rua das Fontainhas continuava a ser o " rendez-vous " dos estroinas do Porto . Falava-se de perdas e lucros fabulosos na batota do Muxagata , que fazia concorrencia á do D. Marcos . Muxagata galeava ainda o mesmo luxo de cavallos , em competencia com o Ferreirinha ; e a mesma pompa de fatos exoticos á porfia com o Ricardo Brown , porque ambos appareciam às vezes de collete vermelho com botões de ouro . Dizia-se porém que a casa de Muxagata estava empenhada . O milho , sua principal colheita , não chegava para tanto . O vinho não era muito . Legumes , hortaliças , amendoas , sumagre , eram em grande quantidade , mas produziam pequenas receitas . A casa cobrava muitos fóros , n ' uma e outra margem do Douro , desde Lamego até Entre- ambos- os- rios , mas andavam atrazados . Um dia deu-se pela falta do Muxagata . Correu que tinha ido apurar rendimentos , que se ficavam por mãos de caseiros e foreiros remissos . Assim fôra , effectivamente . O Muxagata estava no seu solar ou por ahi perto . D. Christina continuava a habitar a casa da rua das Fontainhas . Não saía a pé nem a cavallo . Pelo tempo das colheitas a minha familia ia para uma quinta no concelho -- Sinfães . No fim de setembro fazia-se a feira do Escamarão , que mettia os pimpões de muitas leguas em redor : o Nascimento pae , o Tameirão , o fidalgo da Cardia , o José Ignacio de Covas , e outros . Eu tinha que matricular-me nas aulas do Porto . Propunha-me estudar introducção aos tres reinos , da natureza , como então se dizia , com o dr.||_Almeida_Pinto Almeida|_Almeida_Pinto Pinto|_Almeida_Pinto . Fui para a feira , e d' ahi devia embarcar para o Porto , em companhia do meu condiscipulo Alfredo Leão . A feira abrira muito animada . O feminino montesinho concorrera em abundancia . De morgados havia para cima de um quarteirão . E de ourives do Porto estavam armadas sete barracas . Comia-se , bebia-se , batoteava-se á grande . As melancias tinham , como refresco , um consumo extraordinario . O regedor Antonio Pedro , emquanto os cabos de policia dormiam á sombra das arvores , " micava " no rei . Creio que foi o Tameirão que deu a boa nova de que o Muxagata estava na feira . disseram-m ' o . No meio da minha tristeza por ter que partir para o Porto , agradou-me a noticia . Fui procural- o . -- Que sim ; que estava ali para cima a jogar . -- Mas que veiu elle cá fazer ? -- Anda aos fóros . Quer dinheiro . N ' isto fui abruptamente interrompido pelo Vasconcellos : -- Meninos , apostrophou elle , olhem que a Pena já começa a pôr o seu barrete de nevoa . É a " toilette " de noite . Vamos indo para baixo . Depois de jantar se acabará o conto . -- Depois de jantar vamos ouvir os rouxinoes , atalhou o Gonçallinho . -- Isso é lá como quizerem . Que não esqueça o fio da historia . O Muxagata estava na feira e queria dinheiro -- como eu . -- Como nós todos ! gritaram uns poucos . -- A burro e ao jantar ! commandou o Vasconcellos . -- Ó filho ! pelo amor de Deus ! deixa os rouxinoes para ámanhã , dizia o Vasconcellos , depois de jantar , ao Gonçallinho Jervis . -- Aqui da janella não se ouve nenhum ! Já estive á escuta . -- Pudera ! Imaginavas então que uma tão poetica ave principiava a amar logo depois das ave-marias , como um caixeiro que fecha a loja e vae metter-se n ' uma escada a gargarejar para defronte ! Tem juizo , Gonçallinho . Para irmos a Collares ouvir os rouxinoes , precisavamos ter prevenido os trens . Deixa isso para ámanhã , e vamos á historia do Muxagata . Assim foi resolvido por unanimidade ... menos um . Era o Leotte , que foi á cozinha recommendar que lhe puzessem lamparina no quarto : pretexto para ver as criadas do " Victor " . -- Vamos lá ao conto , ordenou o Vasconcellos : o Muxagata estava na feira . -- Estava effectivamente na feira , continuei , jogatinando com outros morgados e alguns lavradores ricos de Castello de Paiva e Arouca , n ' uma casa humilde do Escamarão , que não as ha lá melhores . Como o jogo nivella todas as condições , os nobres e os ricaços abancavam em familiar camaradagem , como se a uns valesse o direito do nascimento , e a outros o do ouro . As mãos de todos elles eram grandes e queimadas do sol ou do cigarro . Lembrei-me , de repente , das mãos finas e brancas de D. Christina , polvilhadas de pó de arroz . Que falta que ellas faziam ali , as mãos de Christina , para brilharem pelo contraste no meio d' aquelle enorme conflicto de manapulas de granadeiros , que ora se estendiam semeando dinheiro , ora se retraíam recolhendo-o ! E pelo meu espirito passou a idéa de que o Muxagata nem por sombras se lembrava , n ' aquelle momento , das mãos patriciamente batoteiras da sua bem amada de Lamego . Fui injusto . Uma hora depois , Muxagata punha ponto no berlote . Levantava-se da banca , que por tal signal era de pinho , ganhando cerca de setenta libras . Varios lavradores e outros morgados haviam perdido o valor das suas juntas de bois e das suas varas de porcos . Quasi todos elles , os morgados e os lavradores , estavam congestionados das repetidas commoções do jogo . Mas o sorriso triumphal dos felizes principiava a calmar-lhes as feições perturbadas . O Muxagata estava n ' este caso . Irradiava-lhe na face o lampejo aureo de setenta libras . Foi depois de acabada a jogatina que elle me deu maior attenção . Perguntou-me se me demorava na feira ou se recolhia á noite . Disse-lhe que , a meu pesar , partia duas horas depois para o Porto , por causa das matriculas . -- o que ? ! exclamou elle . Você vae para o Porto ? ! Os seus olhos accusavam uma certa satisfação , que esta noticia lhe causára . Respondi affirmativamente . -- Muito bem . N ' esse caso ha de fazer-me um favor : levar quarenta libras á D. Christina , que , coitada ! deve estar muito precisada de dinheiro . Mas , meu rapaz , pontualidade de cavalheiro : as quarenta libras serão entregues logo que você chegue ao Porto . E em tom de maior confidencia : Eu suspeito até que ella e a pequena ( referia-se a uma filhinha de dois annos ) não terão tido que comer . Esta revelação causou-me triste surprêsa : caiu como um raio fulminador sobre as roseas illusões que eu nutria relativamente ao romance dos raptos . Pois que ? ! pensei . É então para não ter talvez que jantar que uma mulher , bem nascida e formosa , abandona o seu farto lar paterno , perdendo todo o direito á estima da familia e ao respeito da sociedade ? ! Os poetas d' aquelle tempo costumavam dizer : -- " O teu amor e uma cabana " . Mas a realidade parecia ir muito mais longe do que os poetas , porque , comquanto a casa das Fontainhas não fosse propriamente uma cabana , o que era certo , pela inesperada revelação do Muxagata , era que não havia lá que comer ! E depois se eu não tivesse apparecido ali n ' aquelle dia e n ' aquella hora , D. Christina e a filha ver-se-iam-condemnadas a soffrer por mais algum tempo ainda as suas duras privações ? ! E o esplendor da casa das Fontainhas , os criados de casaca e lenço branco , os cavallos do passeio até á Foz , as joias e as rendas de D. Christina era tudo isso a mascara ficticia da pobreza , o ouropel postiço da ruina , que esperava os acasos felizes da batota para ter pão na mesa e pó de arroz nas mãos ? ! Eu estava assombrado por todos estes pensamentos que em tropel se precipitavam no meu espirito , e não sabia se devia rir-me da comedia do mundo , se chorar das desgraças e dos raptos alheios . Á hora marcada , o barco rabello do Ramiro descia mansamente o Douro e abicava ao areio do Escamarão . Alfredo Leão fazia as suas despedidas . Eu recebia as quarenta libras do Muxagata , e saltava para dentro do barco . Momentos depois o lenho da " espadella " rangia , os remos chiavam na madeira secca das cavidades que n ' aquella especie de barcos substituem as forquilhas , e nós desciamos o Douro deslisando sobre a grande serenidade das aguas , que montanhas áridas e alcantiladas marginavam silenciosamente . Impressionou-me o contraste d' essa placidez austera com a realidade turbulenta das paixões humanas . E quando a noite começou a cair dos cerros alterosos , que rara casa branca povoava , eu tinha envelhecido moralmente vinte annos . Chegamos ao Porto cerca da meia noite . Desembarcamos no caes da Ribeira , que nunca me pareceu mais triste do que n ' essa hora . Subimos os dois a rua de S. João , entramos na rua das Flores , ambos muito solitarios , mas ao chegarmos ao largo da Feira de S. Bento encontramos dois estudantes do lyceu que , tendo andado á tuna , se dirigiam viciosamente para a batota do D. Marcos em Cima de Villa . Convidaram-nos a seguirmol-os . Eu alleguei que tinha de ir á rua das Fontainhas entregar o dinheiro a D. Christina . Responderam-me que áquella hora já D. Christina estaria , como todas as mulheres , raptadas ou não , dormindo profundamente n ' um poço de virtude . Que embora , respondi . Iria bater á porta para lhe levar o ouro da perdição . Pois sim , que fosse , mas que não me custava nada passar cinco minutos pela batota do D. Marcos . Fomos . Do dinheiro que eu tinha para despêsa de matriculas , livros e hospedagem , perdi quatro mil réis instantaneamente . Fiquei sobreexcitado com a perda ; sedento de desforra . Tive , confesso-o , o pensamento de ir jogando todo o dinheiro que trazia até abrir brecha na banca . Queria uma vingança formidavel . Mas quando eu estava n ' esta tortura , hesitante entre a febre e a honra , um braço invisivel , fosse o pulso do anjo da guarda ou o impulso da consciencia , como que me arrastou para fóra , não sem que os pés se me pegassem ao soalho . Nunca me custou tanto ser homem de bem . Corri á rua das Fontainhas . Surprehendeu-me vêr luz na escada e nas janellas . E dizerem os outros que D. Christina dormiria áquella hora como um poço de virtude ! Bati . Um criado de casaca e lenço branco , o Miguel , veio abrir . Que sim , que a senhora estava a pé , ceando , e que tambem lá estava o sr.||_Antonio_Falcão Antonio|_Antonio_Falcão Falcão|_Antonio_Falcão , do Marco . Embuchei . Pois a indigencia que o Muxagata me havia annunciado refestelava-se , depois da meia noite , n ' uma ceia a dois , servida pelo Miguel de casaca e lenço branco ? ! Pois as consequencias deploraveis do rapto , o quadro negro da fóme transmudavam-se n ' essa orgia de bacchante perdularia , em que o Antonio Falcão do Marco era conviva suspeito ? ! E emquanto subia as escadas envelheci moralmente outros vinte annos . A mesa da ceia resplandecia de loiças e cristaes . As joias de D. Christina não resplandeciam menos do que os cristaes e as loiças . E ella propria , na sua belleza acirrante , resplandecia mais que tudo aquillo . Disse-lhe eu que era portador de uma encommenda para ella . Não ousei , por uns restos de pudor , dizer que a encommenda eram quarenta libras . D. Christina perguntou quem mandava a encommenda . Esta pergunta foi a minha ultima surpresa . De quem poderia ella esperar encommendas depois da meia noite ? Ri-me para dentro , não obstante parecer-me que a pergunta , sendo muito melindrosa para o Muxagata , não o deixava de ser tambem o seu tanto ou quanto para mim . Que era o morgado quem mandava ... aquillo . D. Christina não levou a sua impudencia até ao ponto de perguntar qual morgado era esse . Entendeu ou fingiu entender que seria o Muxagata . -- Como está elle ? perguntou . Eu respondi com alguma atrapalhação , que parecia troça : -- Bom . Muito obrigado . E , do lado , o Falcão do Marco : -- Esse diabo de homem já se não lembra de nós , nem da filha ! Nunca vi uma cabeça assim ! Em tendo cartas e " pontos " não quer saber de mais nada ! Pois já tinha motivos para ter juizo ! Nem uma carta tem escripto á D. Christina , que estaria para aqui sósinha com a pequena , se não fosse eu ! Levantei-me , puz as quarenta libras , descaradamente , á borda da mesa , sobre a toalha . -- Ah ! é dinheiro ! disse D. Christina cortando esquirolas de marmellada . -- São quarenta libras , respondi . -- Pois então faça-me o favor de lhe mandar dizer que ficaram entregues . -- Perdão ! repliquei com certa rudeza . A sr.ª||_D._Christina D.|_D._Christina Christina|_D._Christina vae escrever isso mesmo n ' um bocado de papel , que eu mandarei ao morgado . -- Sim ... farei isso . Mas primeiro acompanhe-nos a cear . Agradeci , rejeitando . Então D. Christina disse ao Miguel que lhe trouxesse papel e lapis . E escreveu em lettra de collegial : " Recebi as quarenta libras . " " Tua do coração " " Christina . " Mais nada . Saí , e respirei com soffreguidão a brisa fresca do Douro , que soprava do Passeio das Fontainhas . Uma tenue nebrina emplumava as arvores que ladeiam a rua . E eu , de mãos nas algibeiras , entregava-me dolorosamente , calçada acima , a esta cruel philosophia : " Onde hei de ir arranjar os quatro mil réis que perdi ? ! " Soube pela manhã que os outros tinham continuado a jogar , e ganharam . Ora no decurso de dois annos succederam cousas que seriam espantosas se não fossem humanas . D. Christina passou definitivamente do Muxagata , quando o sentiu irremediavelmente arruinado , para o Falcão do Marco , que por sua vez se arruinou tambem . A lei de 1863 extinguiu os vinculos em Portugal , mas os ultimos exemplares da raça privilegiada dos morgados ainda hoje florecem , entre as Christinas indigenas , nas praias de Portugal , em proesas tradicionaes de batota , de femeaço e de gineta . No inverno os mais d' elles desapparecem no fundo dos seus solares cultivando as batatas , que no verão seguinte hão de resuscital-os . O morgado nacional , depois que a phylloxera lhe comeu as vinhas , ficou reduzido ás batotas . Mas o Muxagata foi a phylloxera de si mesmo : comeu logo de uma vez as vinhas e as batatas . Como todo o bom morgado , conservou , ainda na pobreza , o seu enthusiasmo pela equitação . E não tendo já cavallos para montar , cavalgava , ao longo dos vastos corredores no ruinoso solar de Muxagata , n ' um cabo de vassoura . Um bello dia morreu , e não foi por desastre do seu ultimo cavallo ... de pau . " Finis , laus Deo " , perorei . O Leotte , que tinha voltado á sala e ouvido o final da historia , perguntou : -- Da D. Christina nunca mais soubeste ! Expludiu uma gargalhada geral . -- Olá ! exclamei . Que novas nos trazes da tua exploração ? -- Por ora ... nada . Mas opportunamente farei o meu relatorio . -- Pois o mesmo não posso eu prometter a respeito da D. Christina . Nunca mais soube d' ella . -- E da filha o que foi feito ? perguntou sentimentalmente o Gonçallinho . -- Tambem não sei . Se viver deve ter agora os seus dezenove annos . -- Como era o nome todo do Muxagata ? -- Nunca lh'o soube . Por morgado de Muxagata era que toda a gente o tratava . -- Então , se não vamos ainda hoje ouvir os rouxinoes , tambem eu quero contar o meu conto , disse o Gonçallinho Jervis . -- Sim , senhor , concordou o Vasconcellos . -- Mas qual dos dois contos que nos annunciaste pelo caminho ? perguntou o Athayde . -- " A Primeira entrevista . " Tenho porém a prevenir o respeitavel publico , para evitar uma pateada , que o meu conto , ao contrario da historia do Muxagata , não aconteceu nunca . É uma phantasia que só poderia ter-se dado no paiz azul dos sonhos ... -- Ditosa idade em que se pensam essas tolices ! exclamou o Vasconcellos . -- Mau ! protestou o Gonçallinho . " Se ralhas , não conto . " -- Tem a palavra o poeta , que poderá sonhar á vontade sem que ninguem o interrompa . Fez-se silencio . E o Gonçallinho , romanescamente , depois de ter mettido os dedos pelo cabello para levantar a gaforina , usou da palavra : -- Custou muito -- disse , elle -- a planear a primeira entrevista . Era preciso illudir a vigilancia de tanta gente , inventar tantas mentiras , saltar por cima de tantos embaraços ! Mas , finalmente , o programma , laboriosamente organisado , tinha sido acceito pela credulidade das pessoas que se lhe poderiam oppôr . Ainda assim , Fanny não ficou inteiramente tranquilla . Durante os dias que medearam entre o da elaboração do programma e o da entrevista , andava desconfiada , escutava pelos corredores receosa de que falassem d' ella , parecia-lhe ouvir dizer o seu nome e cochichar depois em segredo ... O olhar das pessoas de familia incommodava-a , como se todas essas boas pessoas tivessem realmente a intenção de observal- a por desconfiança , de lêr-lhe nos olhos esse audacioso plano de uma entrevista no campo . É verdade que ao mesmo tempo que se sentia atormentada de receios , de vagos sobresaltos , pensava na delicia d' esse primeiro dia de liberdade no amor , sem testemunhas , sem disfarces , sentada com " Elle " á sombra das arvores , ouvindo cantar os passaros a sua canção de estio , vendo doudejar no ar as borboletas de grandes azas coloridas , cujo vôo independente tantas vezes ambicionára ... Mas se um obstaculo imprevisto sobreviesse ! Quanto esta ideia terrivel a amargurava ! A doença de uma pessoa de familia , a carruagem que podia faltar , a chuva que poderia vir n ' esse dia ... Como isso era horrivel ! Mas Fanny lembrava-se , para tranquilisar-se , de que a fortuna ajuda os audazes e de que , como premio á sua audacia , ouviria finalmente cantar os passaros a sua canção de estio nas grandes arvores sombrias . Toda a base do seu programma era essa velha desculpa , sempre acreditada , a doença de uma antiga companheira de collegio , que está a ares no campo , e á qual se quer dizer o ultimo adeus . Fanny tinha effectivamente uma amiga de collegio , que estava tysica , e como as duas familias se não visitavam , o pretexto pareceu-lhe excellente , o segredo não viria a descobrir-se . Mas se a pobre doente morresse antes do dia marcado para a entrevista ? O egoismo dos felizes não conhece limites : que morresse no dia seguinte , e tudo seria pelo melhor . Morrer antes , deixar de soffrer menos alguns dias , nem por pensamentos Fanny o queria admittir . E todavia , no collegio , as duas amigas haviam sido muito dedicadas , mas o tempo passára e só de longe a longe , de anno a anno talvez , se lembravam uma da outra . Com o coração de oratorio , como um condemnado que treme de todas as sombras , que tem medo do rumor de todos os passos , Fanny esperou que esse desejado dia chegasse . Dormiu mal , somnos curtos e agitados . Parecia-lhe ouvir assobiar o vento nas ruas , bater a chuva nas vidraças . Um temporal seria o maior de todos os contratempos : não a deixariam sair , e , se deixassem , o campo estaria encharcado , o idillio perderia muito do seu encanto , não poderiam sentar-se os dois debaixo das velhas arvores ouvindo cantar os passaros a sua canção de estio . Mas , ó felicidade ! tão certo é que a fortuna protege os audazes : o dia amanhecera esplendido , o sol brilhava no céu como um rubi , e o calor do estio começava a cair como o halito ardente de uma forja . Primeiro dia de liberdade no amor ! tu és tão saboroso como a guloseima que o collegial devora em segredo na sombra de um corredor ou n ' um recanto da cêrca . Tu és o fructo prohibido em que podemos finalmente saciar a nossa voracidade de Tantalos famintos . A carruagem chegára a horas , a familia , já disposta de ante-mão , não oppuzera obstaculos . Fanny descera unicamente acompanhada de uma antiga criada , que fôra sua ama de leite , e quando entrou na carruagem nem sequer fez reparo n ' esse pequenino " groom " de cabello louro , faces rosadas , que com os olhos postos no chão , n ' uma attitude reverente e humilde , se não era hypocrita , lhe abrira a portinhola do trem . Fôra elle , o pequenino " groom " louro e rosado , que lhe acommodára a orla do vestido dentro do " coupé " e que , fechando-o cuidadosamente , esperára , sempre de olhos postos no chão , ouvir a ordem da partida . O coração de Fanny batia como o de um canario agarrado na mão de uma creança . Ella não via , não ouvia , disse ao " groom " , sem fazer reparo n ' elle , uma palavra . O " groom " saltou para a almofada com a ligeireza que só as azas podem dar , e a carruagem partiu n ' um trote largo , rasgado , batido . As arvores da estrada principiavam correndo aos lados do trem , fazendo os seus cumprimentos n ' uma alacridade funambulesca . As arvores pareciam alegres , trocistas , ironicas , como se estivessem de posse d' aquelle doce segredo . Fanny , vendo-as passar rapidamente , cuidava ouvir-lhes dizer : -- Mil felicidades , excellencia ... E córava de pejo , engolfada em maviosos pensamentos , sem haver trocado com a sua velha ama uma unica palavra sequer . Os passaros cantavam n ' uma estridula folia matutina , e toda essa onda de alegria musical parecia inundar o coração feliz de Fanny , enchendo-o de canticos festivos , que resoavam como n ' um ecco interior . Ao cabo de hora e meia de caminho a carruagem parára , não á porta da quinta onde a amiga de Fanny agonisava , como ella por disfarce dissera ao " groom " ao sair de casa , mas á porta de um velho castello desmantelado , a que se seguia um parque extenso , coberto de grandes arvores sombrias , onde os passaros cantavam em liberdade a sua canção de estio . Era o logar da entrevista . E Fanny , vendo parar ahi a carruagem , e apear-se o " groom " , sempre com a ligeireza de um genio alado , rosado e louro , com os olhos postos no chão , teve uma vaga suspeita de que esse " groom " , que ella só agora vira , fosse um confidente encarregado expressamente por Edmundo de desempenhar tão alta missão de confiança . E , emquanto ella descera , o " groom " , n ' uma attitude sempre reverente e humilde , com a mão na portinhola do trem , ajudara-lhe a desprender do estribo a orla do vestido branco e fresco , ligeiramente mosqueado de pequeninas flores de myosote , azues e microscopicas . Uma deliciosa serenidade alegre alastrava-se por todo o parque n ' uma solidão encantadora . Dir-se-ia-que o fim do mundo era ali e que , dados mais alguns passos , por detraz das ultimas arvores do parque , deveria o ceu pousar na terra . Edmundo lá estava no seu posto , fazendo sentinella á sua propria felicidade e , quando Fanny chegou , a arvore que o abrigava como que distendeu os seus longos braços verdes para envolver tambem na mesma sombra o corpo de Fanny . A velha criada afastou-se , moendo o tempo na contemplação das flores campestres e da larga cóma das arvores , ora dobrando-se , ora olhando para cima , e de vez em quando um melro velhaco -- era decerto um melro -- zombava da ignara situação moral d' aquella mulher desfeiteando-lhe o asseio do seu antigo chapeu de palha de Italia . Uma ironia de melro ! Á sombra da grande arvore , que tinham escolhido , Fanny e Edmundo , enleiados pela cintura , bebiam a pequenos goles de liberdade a sua primeira taça de amor e , quando erguiam a taça aos labios , estalava-lhes na bocca um beijo demorado . As horas passaram rapidamente , a velha criada já não tinha mais hervas que reconhecer , mais arvores que observar , e os proprios melros estavam aborrecidos de troçal-a . Era preciso partir , o sol declinava , a tarde fugia . Mais um gole colhido nos labios , mais um beijo que se arrastava n ' uma extensa melodia amorosa . Finalmente , Fanny pôz o pé no estribo da carruagem e o " groom " , rosado e louro , com um olhar altivo , triumphante , abriu-lhe , de cabeça erguida , a portinhola do " coupé " e , quando a fechou , antes de subir para a almofada , pousou o dedo pollegar da mão direita sobre a ponta do nariz e espalmou a mão no ar , agitando os dedos . Era o Amor , disfarçado em " groom " , que celebrava a sua victoria como um gaiato de collegio . -- " C ' est gentil ! " exclamou o Leotte . -- Bravo ! mavioso Gonçallinho ! conclamaram sete vozes . E o Vasconcellos , logo reposto nas suas funcções austeras de dirigente , advertiu a assembléa de que onze horas e cinco minutos eram tempo muito conveniente para que em Cintra cada um pensasse em dormir . -- Onde estará o " groom " da tua ballada , ó Gonçallinho ? perguntou o Leotte . -- Nos intermundios de Epicuro ... respondeu o Athayde . -- Em cascos de rolhas ... commentou o Vasconcellos . -- É que eu queria , concluiu o Leotte , que elle viesse accender-me a lamparina do quarto . E , rindo , cada um de nós foi para a cama -- ás onze e dez , noite velha no paraiso de Cintra , a 20 de maio . No dia seguinte , quando saímos do " hotel " depois de almoço , era quasi uma hora da tarde . Convencemo-nos mais uma vez de que não ha nada tão bom para gastar o tempo ... como não ter nada que fazer . Fomos a Collares , em burro . Só o Leotte pediu licença para ficar . Concedida ; -- sob condição de que daria conta ás côrtes do uso que fizesse d' esta auctorisação legal . -- O Leotte traz grande empresa entre mãos . -- Empresa de cozinha , que póde esturrar-se facilmente . -- Saberemos depois ... dizia o Vasconcellos , fustigando as orelhas do burro rebeldemente ronceiro . A varzea de Collares estava realmente encantadora n ' aquelle dia . Pairava no ar uma serenidade saturada de bucolismo e de limpidez campestre , capaz de inspirar idillios á alma de um agiota . As arvores floridas perfumavam o ambiente . As aguas do rio das Maçãs dormiam como a superficie de um espelho . Passaros cantavam entre o arvoredo , mas não eram certamente rouxinoes , o que desesperou o Gonçallinho Jervis . Fomos seguindo para o mar , na direcção do Cabo da Roca . Muitos rapazitos de Collares acompanhavam-nos , correndo , pulando adeante de nós . Iam na esperança de que quizessemos velos descer pela Pedra de Alvidrar , como aconteceu . A mim horrorisou-me velos deslisar ao longo d' esse rochedo empinado , que mergulha no mar ; a cada momento me parecia que os pés ou as mãos lhes faltariam , e que , n ' um abrir e fechar d' olhos , elles desappareceriam entre a espuma das ondas , que ali se despedaçam com estrondo . Tambem fomos vêr o Fojo , esse grande funil de rocha bruta , que communica com o mar , cujo estampido sinistro exerce em nós uma estranha influencia de repulsão . Foi bello todo esse passeio através de uma região encantadora , onde ninguem nos incommodava n ' aquella occasião , e onde insensivelmente tudo haviamos esquecido de quanto nos pudesse n ' este mundo dar cuidado ou desgosto . -- O tolo do Leotte perdeu isto ! -- o que térá elle feito ? ! Soubemol- o depois , quando recolhemos ao Victor , noite fechada . -- Foi um achado ! exclamou elle , mal que nos viu . -- Então ? -- Isso é para depois . Durante o jantar , nem palavra , por causa dos criados , ouviram ? -- Está dito . Quando , findo o jantar , viemos para o salão do Victor , soubemos que o nosso amigo Leotte tinha descoberto no " hotel " uma criada originalissima . -- Uma fidalga extraviada do grande mundo ! disse-nos elle . -- Como assim ? ! -- Chama se Maria de Alarcão , está aparentada com muitas familias nobres do paiz , e viu-se reduzida , pela pobreza que herdou de seu pae , um tal D. Alvaro , a ser criada de todas as suas primas e primos , que venham hospedar-se no Victor . -- Mas quem é então esse D. Alvaro ? -- Morreu . Perguntei-lhe se sabia os nomes dos avós , e ella respondeu-me que os seus avós tinham sido " gentis guerreiros " . -- E ella respeita as cinzas de seus avós ? -- Ella estava-me contando a sua triste historia , quando outra criada a veiu chamar , gritando : ó Rosa ! ó Rosa ! -- Então é Maria , e chama-se Rosa ? -- Essa pergunta fiz eu a mim proprio . Mas ella , de relance , percebendo a minha surprêsa , explicou que Rosa era o seu nome de guerra , e D. Maria de Alarcão o seu nome de familia . -- Eis o que tu apuraste em todo o dia ! -- E já não foi pouco . Talvez que vocês tenham achado muitas criadas cujos avós fossem " gentis guerreiros " ! ... -- Para isto , exclamou o Vasconcellos , deixou este tolo de ir passear a Collares ! -- Estou vendo , disse eu , que a tua Rosa é tanto Alarcão como era principe aquelle heroe , da historia que sabe o Athayde , que appareceu nas Caldas de Vizella . -- É verdade ! quero ouvir a historia do Athayde , observou imperativamente o Vasconcellos . Meus senhores , está aberto o " Decameron " . O Athayde fez-se algum tanto rogado , mas contou : -- Era um domingo calmoso de agosto . Todos os hospedes do " Hotel do Padre " , nas Caldas de Vizella , estavam sentados á sombra do parque do " hotel " , conversando , lendo , jogando , " flirtando " . Nenhum d' elles ousára ir á estação esperar o comboio . Os passarinhos , se não pudessem encontrar um doce refugio nas arvores marginaes do rio Vizella , cairiam do ceu assados e depennados . Com uma soalheira d' aquellas , não havia nada que apetecesse tanto como o descanso e a sombra . De repente ouviu-se o silvo da locomotiva . -- Lá chegou o comboio ! -- Pois deixal- o chegar ! -- Quem vier , cá virá ter . Vinte minutos depois , paravam á porta do " hotel " duas " americanas " , poeirentas e escanceladas . E um sujeito de fato de flanella branca , chapeu branco , acompanhado por uma senhora da sua idade -- vinte e quatro a vinte e cinco annos -- , atravessou olympicamente o parque do " hotel " sem cumprimentar ninguem . Da segunda carruagem apearam-se duas criadas e dois criados , com pequenas malas na mão . Este acontecimento causou certa sensação entre os hospedes do " Hotel do Padre " , visto não haver acontecimentos de maior polpa . -- Quem será isto ? perguntava-se . -- É um principe ! dizia ironicamente um janota de Guimarães . -- Um principe e uma princeza , acrescentava do lado um banqueiro portuense . -- Com os respectivos veadores e damas , observou bonacheironamente o padre||_José_Maria José|_José_Maria Maria|_José_Maria , que possuia uma graça simples , quasi patriarchal , e que era um dos hospedes mais estimados no " hotel " . Depois , emquanto a sombra caía das arvores , todos continuaram conversando , lendo , jogando , " flirtando " . Á hora do jantar , a princeza e o principe foram vistos já sentados á cabeceira da mesa , silenciosos e graves . Os seus dois criados , de casaca , postados por detrás da cadeira do " principe " e da " princeza " , conservavam-se immoveis como estatuas . Todos os outros hospedes , que iam chegando , trocavam entre si sorrisos , olhares de intelligencia . Padre José Maria arregalou os olhos , franziu o beiço , sentou-se . As senhoras diziam segredos umas ás outras . Os homens , de vez em quando , arriscavam em voz alta uma allusão disfarçada . Findo o jantar , o " principe " e a " princeza " levantaram-se ; os seus dois criados , muito direitos , arrastaram-lhes as cadeiras . Não cumprimentaram ninguem . Então a galhofa expludiu , os epigrammas estalaram . Padre José Maria teve pilhas de graça . Um hospede aventou a idéa de que se pedisse o registo do " hotel " para saber-se o nome do recem-chegado . Veio o registo . Dizia simplesmente isto : " Commendador Piratinino e sua esposa . " -- Pois , srs. , observou padre||_José_Maria José|_José_Maria Maria|_José_Maria , é mais a salsa que o peixe ! Riram todos , e novos epigrammas rebentaram n ' uma grande hilaridade desenfadada . Mas o janota de Guimarães teve uma lembrança feliz : que em tom de confidencia se dissesse aos criados do hotel que o commendador Piratinino era nada mais e nada menos que um principe disfarçado . -- E Piratinino é um bello nome para principe ! observou uma senhora . -- Principe ... de magica , pelo menos , acrescentou alguem . -- Mas se nos perguntarem d' onde o homem é principe , que responderemos ? -- Que é principe da Ribária . -- E onde ficará geographicamente a Ribária ? -- Sim ... isso ... -- A Ribária ficará na peninsula dos Balkans , entre a Rumélia e a Bulgária , se quizerem . Nas Caldas de Vizella pode haver tudo , menos um mappa da Europa . Ninguem irá verificar ; soceguem . -- Magnifico ! -- Maravilhoso ! Ficou tratado que Piratinino era o principe da Ribária , e que a Ribária ficava nos Balkans . Dois minutos depois , fazia-se a revelação aos criados , pedindo-lhes a maxima reserva , para não comprometter o " incognito " do principe . Quatro minutos depois os criados tinham revelado o segredo ás criadas do " hotel " e , passada uma hora , constava em toda Vizella que no " Hotel do Padre " estava hospedado um principe estrangeiro muito rico . Á noite , em todos os circulos de conversação , acrescentava-se : Fabulosamente rico . E sabia-se já em toda a villa que , depois do principe , havia chegado uma carroça com bagagens , suspeitando-se que a maior parte das malas traziam joias da princeza , porque um terceiro criado as vinha guardando como o dragão de cem cabeças guardava os pomos de ouro do jardim das Hespérides . Diziam alguns , com uma certeza convicta , que na Ribária havia minas de metaes preciosos , e outros , por inculcarem sciencia ou por espirito de hyperbole , acrescentavam que no principado da Ribária jámais houvera " deficit " . Corria tudo ás mil maravilhas . N ' essa tarde , os principes não saíram a passeio , e d' este modo lográram inconscientemente a justa curiosidade do povo de Vizella , que se tinha agglomerado nas vizinhanças do " hotel " . Mas no dia seguinte pela manhã suas altezas foram tomar o seu banho á Lameira , o povo pôde vêl-os , contemplal-os , os pobres filaram-n* ' os , os curiosos seguiram-n* ' os , e o principe , voltando-se para trás , disse a um dos criados que désse+esse esmolas aos pobres e ás creanças . O criado distribuiu para cima de dezoito vintens em cobre . Por um tris que o principe e o criado não apanharam " vivas " . Mas desde aquella hora , toda a gente , incluindo os hospedes que tinham inventado a " blague " , ficou capacitada de que Piratinino era realmente um principe . Suas altezas saíram de tarde a passeio . Os hospedes do " Hotel do Padre " esforçavam-se a explicar que na Ribária a etiqueta era muito rigorosa , e que o principe não podia saudar senão os fidalgos do seu paiz . Foi preciso inventar isto , porque o povo de Vizella , que tinha visto uma vez em Guimarães el-rei||_D._Luiz D.|_D._Luiz Luiz|_D._Luiz cumprimentar toda a gente , estranhava o facto . Em compensação , todos os populares cumprimentavam suas altezas , e eu pendo a acreditar que o proprio Piratinino se ia sentindo principe ... cada vez mais . A coisa constou . Vieram pobres de Guimarães , de Negrellos , de Santo Thyrso , de modo que foi preciso , no " hotel " , prohibir-lhes a entrada no parque . Mas elles , illudindo a ordem , penduravam-se das arvores , para serem os primeiros a lobrigar e a assaltar sua alteza o principe da Ribária . De cada vez que saía , o excelso principe tinha uma despêsa obrigada , de dezoito vintens pelo menos . E os hospedes do " hotel " saboreavam em segredo , n ' uma risota permanente , o bom exito da sua invenção . Um dia o criado do principe pediu informações aos criados do " hotel " sobre a navegabilidade do rio Vizella . Aquelle a quem a pergunta fôra feita veio , com a melhor boa fé d' este mundo , dizer aos hospedes que sua alteza ia n ' aquella tarde para o rio . -- Para o rio ! exclamaram os hospedes . E padre||_José_Maria José|_José_Maria Maria|_José_Maria observou do lado : -- Para o Rio ... de Janeiro , talvez . O principe sente-se arruinado pela mendicidade das Caldas de Vizella e seus arredores . Vai talvez restaurar a fortuna . Mas o criado explicou : Que não . Que o principe tinha dinheiro como milho . Que ia mas era para o meio do Vizella divertir-se com um barco que trouxera . -- Onde está o barco ? perguntaram . -- Está dentro de uma grande mala , que veio na carroça . Com effeito , um dos criados do principe chamou um homem , que foi ao hotel buscar a mala grande , e dirigiu-se com elle para a beira do Vizella . Pouco depois saiu o principe , todo vestido de branco , sua " toilette " favorita , pelo que já algumas pessoas lhe chamavam -- " o principe branco " . Deu-se rebate no " hotel " , e todos os hospedes , repartidos em diversos grupos , se encaminharam para as margens do Vizella , seguindo uns pela Lameira , outros pelo Mourisco . O boato saíra verdadeiro . O principe estava effectivamente no meio do Vizella , pescando á linha dentro de um barco de lona , um pouco similhante áquelle , se bem que mais pequeno , em que o general Caula atravessou o Tejo n ' uma experiencia feita em agosto de 1874 . Na margem ficára o criado , e a mala cuja tampa estava levantada , aberta . Comprehende- se que um principe não permittisse ao criado a honra de tomar assento a seu lado dentro do mesmo barco . Já sabemos que na Ribária a etiqueta é muito rigorosa . Toda a população de Vizella , a fluctuante e a permanente , pôde saciar seus olhos curiosos na contemplação d' esse quadro inteiramente novo ali : um principe estrangeiro pescando á linha dentro de um barco de lona . Só os hospedes do " Hotel do Padre " se riam , porque os do Cruzeiro do Sul , que não estavam na confidencia , e os bons populares ingenuos tomavam o caso muito a serio , e contemplavam encantados o " principe branco " pescando . Escusado será dizer que sua alteza não pescou coisa nenhuma . Quem pesca são os pescadores , porque teem obrigação d' isso . Os principes divertem-se , e enfadam-se . Foi o que aconteceu a sua alteza , porque , naturalmente enfastiado , quiz abicar a terra . Mas o barco começou a rodopiar , a oscillar , e o principe , já um pouco impaciente , redobrava de esforços , de pressão . Toda a gente sabe com que facilidade , n ' estas condições , se volta um barco . Foi o que aconteceu ao do principe . Sua alteza fizera um movimento menos cauteloso , e o barco tombou . Era um vez um principe n ' um charco . Grande grita se levantou de entre os populares . Os hospedes do " Hotel do Padre " riam a bandeiras despregadas . Um rapazito atirou-se ao rio , para ir salvar sua alteza , que barafustava na agua . Cheirava-lhe a grande gorgeta , ao rapazito ; nadava como um desesperado . Foi-lhe facil trazer para terra o principe , e o barco . Mas o principe , que estava de fato branco , precisava mudar de " toilette " . A decencia reclamava-o . E emquanto o criado corria ao " hotel " , a pedir outro fato para sua alteza , o desgraçado principe da Ribária , mettido dentro da mala , só com a cabeça de fóra , evitando olhar para qualquer parte , esperava humilhado ... -- E eu que sei quem elle é ! apostrophou o Maldonado , que era o mais silencioso de todos nós . Achámos graça á observação , espicaçámos o Maldonado . Elle explicou que tinha estado n ' aquelle anno no Porto e que tambem lá tinha apparecido o commendador Piratinino , de fato branco , o qual seguiu d' ali para as Caldas de Vizella . Era ... disse-nos o nome , que não vem para o caso . Mas como o Maldonado houvesse quebrado o seu silencio habitual , o Vasconcellos intimou-o a dar qualquer pequeno contingente para o nosso " Decameron " . Que não ; que não sabia historia nenhuma . Que não tinha geito para contar . E a assemblea insubordinada : -- Que contasse alguma coisa , senão que o levaria o diabo . -- Que de mais a mais o Maldonado não era baldo de gosto litterario : conhecia os poetas gregos , lia muito Theócrito . -- Que , finalmente , contasse alguma coisa obrigada a Theócrito . Muito instado , cedeu . -- Pois ahi vae um caso , offerecido ao Leotte . -- Oh ! -- Uma lição de moralidade para quando elle fôr avô . -- Que genero ? -- Genero realista . Eu , infelizmente , não tenho a imaginação do nosso Gonçallinho . Conto o que aconteceu . E , sem mais preambulos , ahi vae . -- Eram dois velhinhos , seccos e rosados , alegres e gaiatos , muito amigos , socios na patuscada , sempre de mãos dadas , como dois banqueiros do amor , nos sindicatos do prazer . Ambos casados , os marotos , mas azevieiros como Anacreonte . Tendo sugado na flôr do matrimonio todo o mel de uma longa lua nupcial , deitaram a correr aventuras , de braço dado , por amor da variedade , beijando , como borboletas insaciaveis , o nectario de todas as flôres que encontrassem na sua marcha triumphante . Calados como ratos , de muito segredo e de muita ronha , iam saboreando a vida e zombando da velhice , que apenas ousava nevar-lhes os cabellos , respeitando o coração e o mais . Tiveram filhos canonicos e souberam educal-os . Conciliando os seus deveres de chefes de familia com os seus apetites de uma mocidade perpetua . Sempre muito dissimulados , toda a gente os tinha por impeccaveis . Mas elles , a sós , um com o outro , riam-se de toda a gente . Eram solidarios : e confidentes nas suas rapaziadas inverniças , e fechavam a sete chaves o segredo das suas funcçanatas serodias . Um tivera uma filha , que casou ; o outro tivera um filho , que tambem casou . Mas a filha do primeiro não casou com o filho do segundo , por accôrdo dos dois velhos . -- Não quero o teu filho para a minha filha , disse o primeiro ao segundo , em segredo , porque receio que elle saia ao pae , e largue a fazer infidelidades como tu . E riram os dois , dando-se pansadinhas , -- " eh ! -- eh ! " -- como se estivessem em plena verdura da mocidade . Mas em casa , deante do genro e deante da nora , não ousavam falar em Theócrito , a não ser para reproduzir algum verso casto do bucolico grego , como por exemplo aquelle em que a pastora diz a Daphne : " O casamento não tem penas nem dôres ; mas sómente alegria e danças . " Secretamente , no fundo da sua consciencia , elles estavam de accôrdo quanto ás " danças " do casamento , porque varias vezes se tinham visto mettidos n ' ellas por causa da sua libertinagem , receosos das consequencias de alguma conquista aventurosa . Intimamente , rezavam pela cartilha de Theócrito , não quando elle preconisava as alegrias do casamento , mas quando , por exemplo , fazia o elogio do beijo roubado a uma pastora sem a responsabilidade do matrimonio . Cada um dos dois velhos teve um neto . Agradeceram muito á Providencia o favor de lhes dar netos do sexo masculino , porque os lisonjeava a ideia de que os netos lhes honrariam , por hereditariedade , a tradição patusca . Á medida que os rapazes foram crescendo , mais os dois velhinhos frascarios se fecharam em maior discreção , de modo que das suas aventuras serodias não pudesse chegar noticia aos netos . Pela primavera , quando as arvores rebentavam e os campos erveciam , sentiam-se renascer , vibrar ; e sempre que o pé lhes escapava para a folia , cuidadosamente afivelavam a mascara , para não serem apanhados com a bocca na botija . Os rapazes estavam uns homensinhos , de cara penugenta , e os dois avós concertaram entre si ir-lhes dando algum dinheiro , para que não guardassem toda a mocidade para a velhice . -- Como nós ... dizia um . -- Eh ! eh ! respondia , rindo , o outro . E ao cabo de alguns momentos de meditação : -- Isto tem que ser por força ... exclamava um . -- Isto , o que ? -- Dar com a cabeça pelas paredes , e fazer tolices . Portanto , quanto mais cedo a tempestade passar , melhor . Eu bem o sei ... Comecei muito tarde , é o que foi ... -- E eu ! ... ponderava o outro . Ora a verdade era que elles tinham começado desde o principio , que é a maneira mais logica e chronologica de começar . Os rapazes gastavam dinheiro , que os velhos lhes davam , e como a mocidade não é mais do que a primavera da vida , elles tinham , a respeito dos avós , a vantagem de não precisarem esperar pelo calendario . Atiravam-se . A primavera do anno chegára , e os dois velhos , galvanisados por ella , deitaram-se a farejar conquistas por toda essa Lisboa galante . Mas , como dois gastronomos do amor , que sempre foram , já estavam um pouco aborrecidos de bons petiscos , e o que elles agora queriam , a proposito de petiscos metaphoricos , era achar iguarias optimas . -- Achei ! disse uma vez um velho ao outro . -- Aonde ? -- Longe , mas bom . -- Aonde ? -- Á Penha de França . -- Irra ! que é longe ! Mas dize lá . -- Vinte e quatro annos . Formas redondas , linhas esculpturaes , frescura , belleza , mocidade . Uma alface , que a gente tem vontade de trincar , para refrescar-se . -- Já o sabes ? -- Suspeito-o , pelo que vejo . Mas tenho aqui um bilhete de apresentação para nós ambos . -- Bravo ! excellente ! Lá iremos ... E á noite , das nove para as dez horas , os dois velhinhos passaram por entre filas de lojas illuminadas , desceram honestamente o Chiado sem olhar para as " estrellas cadentes " , que lhes davam encontrões , tão honestamente como se fossem á " Baixa " comprar bolos moles para as esposas desdentadas . Muita gente os cumprimentava , e elles correspondiam ao cumprimento com a gravidade austera de duas pessoas idosas que fossem caminhando para um " lausperenne " . Mas , lá por dentro , no que elles pensavam era no alto da Penha : uma casinha de um andar , menos mal alfaiada , com rotulas verdes no " rez-de-chaussée . E n ' um passinho curto , mas rendoso , atravessaram a Baixa , passando honestamente por entre filas de lojas illuminadas , foram andando , andando , ganhando o largo do Intendente , galgando para Arroyos , sempre a rir lá por dentro -- " eh ! eh ! " -- até que começaram a marinhar lentamente pelo Caracol da Penha , aonde o perfume do prazer lhes parecia chegar já , como o bom cheiro de uma cozinha , que se sente ao longe . Chegaram ao alto da Penha . -- É ali , disse um . -- Ha luz no " rez-de-chaussée , observou o outro . E espionaram , que não fosse alguem suspeital-os . Depois , cautelosamente , aproximaram-se das janellas de rotulas verdes . Ouviram conversar , rir . Na Penha de França , ás dez horas da noite , o vicio tem confiança na solidão : não é preciso fechar as portas das janellas . -- Espreitemos e ouçamos . -- Sim ... ouçamos e espreitemos . E após um momento de silenciosa contrariedade : -- Ha homens , e eu conheço as vozes . Depois , puxada a gola ás faces , os chapeus enterrados na cabeça , continuaram escutando . E , de subito , caminhando para o intervallo das janellas , medrosos , desapontados , disseram , com os labios colados á orelha um do outro : -- São os nossos netos ! De repente , como se ambos obedecessem ao mesmo pensamento , deitaram a descer por ali abaixo , a descer , fazendo da fraqueza forças . Só na rua direita de Arroyos tornaram a parar . Certificando-se de que não eram seguidos , exclamaram de novo : -- E esta ! Eram os nossos netos ! ... Foi abraçado o chronista , que realmente nos soubera prender a attenção . O seu numeroso amigo Leotte , em agradecimento da dedicatoria , pegou no Maldonado ao collo . Uma ovação ! A breve trecho , o relogio do Victor dava meia-noite . -- Mas então , apostrophou o Gonçallinho , a gente ha de ir-se embora sem ouvir os rouxinoes ? ! Vozes , ao levantar da feira : -- Amanhã ! -- Amanhã ! O Gonçallinho Jervis disse-me que ia para o seu quarto escrever . -- o que vaes tu escrever , meu lyrico ? -- Vou , antes que me esqueça , dar forma ao outro conto que pensei pelo caminho . -- Ah ! " A morte do bibliophilo " ? Pois vae , e ámanhã o lerás . Ia eu para deitar-me , quando o Leotte , muito intrigado ainda com a historia de D. Maria de Alarcão , entrou no meu quarto , procurando certificar-me de que , para desenvencilhar mysterios de mulheres , tinha elle faro como ninguem . Que eu veria ; que ou a rapariga tinha falado com sinceridade ou que elle era um grande tolo , do que não estava convencido . Depois pegou a contar casos do seu tempo de Coimbra , memorias de condiscipulos e já eu tinha perdido o somno quando elle abordou a historia do seu condiscipulo Barcellos . -- Quem era esse ? perguntei . Como lhe dei trella , foi um gosto ouvil- o . Barcellos , o grande , passou quasi desconhecido fóra de Coimbra , onde se doutorou , e fóra de Salvaterra de Magos , onde nasceu . Bohemio e improvisador como Bocage , fez a sua lenda em Coimbra , no meio de uma sociedade de rapazes em que a falta de talento era tida como rarissima falha de toque denunciada na contrastaria intellectual da Universidade . Na terra dos cegos , quem tiver um olho é rei . Mas o Barcellos galgou ao primeiro premio e ao primeiro logar através de uma basta legião de sujeitos em que os anonymos eram pequenissima excepção . O Barcellos apenas differia de Bocage em não reproduzir pela escripta as suas composições . Falou ; toda a sua vida se foi n ' isso : falar . Teve improvisos felicissimos , extraordinarios , principalmente em prosa . " Verba volant . " Os seus discursos não foram fixados pela stenographia . Não são conhecidos no paiz . Mas aquelles que lh'os ouviram , jámais poderão esquecel-os . De copo em punho , a graça , a verbosidade , a satyra e a anecdota emergiam da onda rubra do Bairrada como Venus do seio da vaga azul do oceano . Uma belleza ! um primor ! A Universidade quiz doutoral- o . Elle respondeu que em Salvaterra de Magos um capello era a insignia mais inutil d' este mundo . Redarguiram-lhe que um capello equivalia a uma cathedra . Lá isso não ! elle só tinha geito para ser estudante , respondeu . Visto que deixava de ser estudante , iria para Salvaterra annullar-se . Mas a Universidade teimou em dar-lhe o annel de doutor . Elle enfiou-o no dedo , e tratou de annullar-se em Salvaterra . Metteu-se em casa . Saía da cama para ir jantar , e ás oito horas da noite , de charuto ao canto da bocca , apparecia na botica , que o esperava com interesse . Tomava a palavra , monopolisando-a , logo que lhe lembrassem um assumpto , qualquer que fosse . Falou-se uma noite da intelligencia dos cães . Um caçador da localidade contou , como quem lança á terra uma semente para que se reproduza , a historia de uma perdigueira , que tinha a idolatria da caça . Em passando um caçador de arma ás costas , ainda que lhe fosse desconhecido , a perdigueira seguia-o . Em ouvindo assobiar , punha-se de orelha fita , e partia . Era um estranho que a chamava ? Não se lhe dava d' isso : acompanhava-o . O seu gosto , o seu enthusiasmo era a caça . O caçador disparava o primeiro tiro . Acertava ? caía uma perdiz ? A perdigueira pulava de contente , estava alegre e interessada para todo o dia . Falhava o tiro ? A perdigueira começava a olhar desconfiada para o caçador . Falhava um segundo tiro ? A perdigueira amuava , aborrecia-se . Mas se o terceiro tiro falhava , a perdigueira desandava para casa , abandonando o caçador . O grande Barcellos ouvia sorrindo , aquecendo , vibrando , como Bocage nos mais felizes raptos da improvisação . Lançado o assumpto , apanhava-o no ar , senhoreava-o , fréchava- o de glosas em que a imaginação refervia torrencial . -- Não me admiro , disséra n ' essa noite o Barcellos , erguendo-se e passeando , muito peripoletico e muito jovial . Eu lhes conto o que me aconteceu em Coimbra , a proposito da intelligencia dos cães . Era no meu sexto anno . Estava-me preparando para defender theses . Uma estopada que a Universidade me metteu pela porta dentro ! Recolhia uma noite para casa , na rua do Correio , paredes meias do predio onde o Mata-frades nasceu . Á esquina da Sé Velha , oiço ganir dolorosamente um canito na escuridade . Aproximo-me , curvo-me ... E , de cocoras , elle representava , como um actor consummado , a sua narrativa . -- Encontro effectivamente um cão , um pequeno cão vadio , um desherdado da fortuna , com uma perna partida . Pobre animal ! Levanto-o cautelosamente , chego-me a um candeeiro , examino a fractura . Sinto na minha alma esse generoso impulso de caridade que todo o racional completo sente pelo irracional incompleto . A gente ri-se às vezes de um homem coxo : mas sente-se abalado perante um cão que anda de perna no ar . São segredos da nossa incomprehensivel natureza , que difficultam o principio theorico da fraternidade universal . Entro em casa , deponho delicadamente o canito sobre a minha cama . Vou á estante . Tiro o primeiro livro encadernado em que puz os dedos . Era um Michelet . Deixal- o ser . Tanto melhor ! Um philosopho humanitario estava a calhar para uma acção meritoria . Rasgo a encadernação . Corto-a em tiras , e applico as talas á perna quebrada . Ligo-a . Ponho o cão sobre uma cadeira , cubro-o com a minha capa de estudante . Deito-me . Adormeço . O grande Barcellos accendeu outro charuto , afastou do pescoço o seu alto collarinho engommado , e proseguiu : -- Ao cabo de vinte dias de tratamento , a fractura tinha solidificado . Tiro ao cão o apparelho cirurgico , e elle , sem lamber a mão que o havia beneficiado , rompe pela porta fóra , desce a escada , safa-se pela rua abaixo de rabo caído . A ingratidão dos cães ! meditei eu . Nem um olhar , nem uma caricia , uma demonstração qualquer de agradecimento ! Fosse um homem , e me-. Fosse uma mulher , e me-. Era um cão : safou-se como quem era . Ah ! meus amigos , que errado juizo este ! Cerca de dez dias depois , estava eu , de papo para o ar , lendo uma d' aquellas coisas que a gente só lê em Coimbra : um doutor . Um doutor que tem escripto é a praga maior que se conhece . Sinto arranhar na porta do quarto : primeira vez , segunda vez , terceira vez . É um gato ! disse eu . Atirei fóra o doutor , saltei da cama , pego no meu bastão da noite e abro a porta disposto a enxotar o gato impertinente . Sabem os srs. quem era ? Era o " meu " cão da perna partida , são como um pêro . Mas trazia outro , trazia outro cão , que tambem quebrára uma perna . Achei-lhe graça . " Com que então , disse eu voltando-me para o ingrato canito de que tão cuidadosamente havia tratado , tu pensas que isto aqui é casa de algebista ? Achas mais barato do que ir ao " endireita " ? Abriste conta corrente comigo ? Mas quando pagas tu , refinadissimo tratante ? Safaste-te á franceza : nem uma , nem duas ! e trazes-me agora um amigalhote coxo para que eu o concerte ? " E o " meu " cão crivava o seu vivacissimo olhar em mim , como a perguntar-me se eu entendia o sentido da sua visita . O outro , de perna no ar e focinho no chão , esperava pela consulta . " Mas no fim de contas , disse eu , tu tens ao menos uma qualidade nobre : és amigo do teu amigo . Elle quebrou uma perna , é teu parceiro na bohemia , sabes que eu concerto pernas , e vieste cá . Pois vamos lá a isso , meu ingrato de uma figa . " Tiro outro livro da estante , e ponho duas talas de papelão na fractura do canito . Deito-o sobre uma cadeira , mando-lhe dar de comer , mas emquanto espero que a servente traga umas sopas , o introductor safa-se pela escada abaixo . Não está má esta ! reflexiono . Com que então isto é chegar , vêr e vencer ! Mas ... mas pensei que talvez um sentimento de delicadeza obrigasse o " meu " cão a retirar-se : quereria porventura poupar-me ao sacrificio de sustentar dois hospedes . Seria ou não seria . No dia seguinte vejo-o entrar de repente . Põe-se do chão a olhar para o outro , que estava na cadeira , certifica-se de que elle tem as talas , de que está em tratamento , de que eu sou um " endireita " acabado e um philantropo inexgotavel . Sái . Durante oito dias ninguem o vê mais , talvez para me significar que confiava plenamente na minha cirurgia .