UM CONTO PORTUGUEZ EPISODIO DE+A GUERRA CIVIL A MARIA DE+A FONTE POR MIGUEL J. T.||_Mascarenhas Mascarenhas|_Mascarenhas PORTO Typographia Lusitana 84 -- Rua das Flores-84 1873 . Não ha forças humanas que nos destruam as tendencias . Quando o pae d' um antigo poeta latino castigou severamente o filho por escrever poesias , ouviu do castigado um famoso verso heroico , como promessa de não compôr mais versos . Desde os onze annos de idade que sinto uma irresistivel attracção para as letras . Não frequentei escólas : apenas me ensinaram o -- a , b , c. Em tal ignorancia , como chegar á realisação dos meus ambiciosos sonhos , que todos eram de vêr em letra redonda a minha " letra de mão " ? ! Tive por unicos auxiliares da minha ambiciosa quanto ardua empreza , a muita leitura , de boa ou má digestão , o muito ouvido , a muita vontade , e a muita audacia , que é o fructo da ignorancia . Tenho soffrido decepções amargas , por muitas das minhas impensadas obrinhas : se eu fui escrevedor de gazetas ! ... Remirei os meus peccados , com a publicação d' este livro ? ... Sugeitei a primeira parte do " Conto portuguez " á censura d' um dos mais eruditos litteratos do Minho , que se dignou fazel-a , com a pericia e imparcialidade dignas d' elle . Os seus prudentes e sabios conselhos , a que dei todo o peso , estiveram , por um triz , a matar a obra : depois de ler o bom juizo do meu sensor , tudo que eu havia escripto me parecia horrendo . Resolvi , pois , concluir , e dar publicidade ao meu " Conto " sem continuar o prévio exame da pessoa competente a que me refiro . A rasão d' este proceder , que parece atrevido , está no vehemente desejo de ver publicada a obra , e na minha indole de hoje : tive já tanto de audacioso , quanto agora tenho de poltrão . O estudo , os annos , e tambem as doenças , concorreram para a mudança : vem sempre tarde o perfeito conhecimento da nossa ignorancia . Não curo do concerto , para não desabar o edificio . Se continuasse a apresentar o meu trabalho , como tencionei , ao mesmo excellente critico , e elle como é de crer , lhe notasse os defeitos , -- morria o " Conto " com toda a certeza : morria , porque eu , por um erro apontado , desconfiava que fossem erros todas as palavras . Seria melhor ? ... São exactissimas as citações que faço tanto na parte historica como na romantica , colhidas em livros insuspeitos ; e o que é acção do " Conto " , sem ter allusões determinadas , é , com tudo , verdadeira : são muitos factos , meus conhecidos , desviados das épocas e logares em que se deram , atados e compostos com a arte de que posso dispôr , e postos a cargo de imaginarios personagens . Resta-me dizer que , na pontuação , segui o systema de regular a escriptura pelas pausas do discurso . Regras , deduzidas dos principios ideologicos , e da grammatica geral , não estão ainda assentadas , e já é tarde para o serem . Assim , entendi que não errava , seguindo opiniões esclarecidissimas , que podem ser capitaneadas pela mui douta opinião do nosso immortal padre||_Vieira Vieira|_Vieira , manifestada , por exemplo , n ' este famoso periodo : " Arranca o estatuario uma pedra d' essas montanhas , tosca , bruta , dura , informe ; e depois que desbastou o mais grosso , toma o maço e o cinzel na mão , e começa a formar um homem ; primeiro , membro a membro , e depois , feição por feição , até a mais miuda : ondeia-lhe os cabellos ; aliza-lhe a testa ; rasga-lhe os olhos ; afila-lhe o nariz ; abre-lhe a bocca ; avulta-lhe as faces ; torneia-lhe o pescoço ; estende-lhe os braços ; espalma-lhe as mãos ; divide-lhe os dedos ; lança-lhe os vestidos : aqui desprega ; alli arruga ; acolá recama : e fica um homem perfeito , e , talvez , um sancto , que se póde pôr no altar . " Guimarães , 12 -- Agosto de 1873 . Miguel J. T. Mascarenhas . HONRA " No que o mundo chama " honra " ha muitas vezes mais vaidade que virtude " . ( Dr. Corrêa DE LACERDA ) . UM CONTO PORTUGUEZ . Ao cahir da tarde de um dia que fôra borrascôso , no mez de Maria de 1846 , avistavam-se , em preparados assentos de terreiro povoado de arvores floridas junto do atrio de nobre e vetusto domicilio , no valle de Sousa , das cercanias de Penafiel , tres formosas donzellas em colloquio intimo . O donaire de uma d' ellas e , a par de seu garbo senhoril , a riqueza e o bem posto de seus atavios , estremando-a das companheiras , annunciavam a elevada posição social a que pertencia . A natureza é que fôra egualmente prodiga para todas tres , no tocante a dotes physicos . Possuiam essas feições caracteristicas das nossas mimosas portuguezas -- e não é cego patriotismo esta asserção -- que reunem o que ha de seductor em todos os typos do mundo . Chamava-se a fidalga D. Maria da Gloria da Mesquita Bandeira e Abendanho : por menos euphonico que pareça este ultimo appellido -- seja dito aqui ligeiramente -- é muito nobre e muito peninsular ... D. Maria achava-se no gôso de todas as caricias da familia , porque vira fallecer , um após outro , cinco irmãos varões , ficando a ser , por tal falta , o unico enlevo de seus nobres e abastados progenitores ; como tambem usofruia o respeito admirativo de todos os mancebos de muitas leguas em redor de sua habitação , por ser esbelta ; possuir cintura como de vespa ; pés pequenissimos ; mãos a que todos os poetas -- e os democraticos mais que todos -- chamam aristocraticas , por não encontrarem palavra mais significativa do bello ; rosto comprido ; tez pallido-rosa ; nariz um tanto aquilino ; olhos pretos , rasgados em fórma de amêndoa , e penetrantes ; bocca , ainda que não mui breve , attrahente e engraçada , pelos alvissimos dentes que sustinha , e delicioso sorrir que semeava ; cabellos que se lhe formavam em natural e opulenta corôa ; piso de alvéloa sobre gêlo , e ... mais de trezentos mil cruzados em dote . Digamos em abono de poucos dos frequentadores da morada de D. Maria , que as magnificas e rendosas propriedades da gentil fidalga , entravam , só por ultimo , nos calculos que faziam , e nos sentimentos que manifestavam . A donzella que apresentamos como principal heroina do nosso conto -- que á força de ser verdadeiro ha de parecer inverosimil -- apenas desmentia os seus nobilissimos antepassados na applicação ao estudo , e nos apreciaveis resultados que de tal ia colhendo . Era já mais de mediocremente instruida , e muito além do geral das senhoras portuguezas . Sobre a instrucção , devia a Deus um talento investigador , que , junto ao espirito repentista do sexo , dava á briosa fidalga proveitosas vantagens . Sustamos este bosquejo da nossa estremada heroina , que muita occasião teremos de pôr em relêvo seus dotes e qualidades . As companheiras de D. Maria , chamavam-se Anna de Jesus e Rosa de Lima , estimadas filhas de dous dos muitos caseiros da fidalga . Eram muito parecidas , apesar de não conhecerem parentesco algum entre si , e tão similhantes uma á outra , que muitas vezes as confundiam , e lhes trocavam os nomes . Fallaremos de fugida nos dotes physicos de Rosa e Anna : altas ; delgadas ; fórmas airosas , ainda que incompletas ; tez alva ; olhos azues ; cabellos de fino ouro , e um todo encantador , que os modestos trajes não conseguiam abafar completamente , antes deixavam transluzir suas occultas bellezas . Anna de Jesus era docil ; timida ; e de umas crenças religiosas , que tocavam na beatice . Ao avêsso , Rosa de Lima , era agil ; viva ; falladeira ; sequiosa de saber ; crente , sim , na religião de seus paes , mas desprendida de certas apparencias , a que ella sabia chamar " phantasias sagradas " . Anna , interrogada , demorava as respostas que dava , e sahiam-lhe , por assim dizer , coadas pelo receio de não acertar . Rosa , respondia a tudo com a rapidez do relampago , e algumas vezes , com admiravel acerto . Ambas deviam á boa indole , e amisade de D. Maria , o saberem lêr e escrever , quasi correctamente , pelo que , e tambem pela convivencia com a esmerada e voluntaria preceptora , mostravam uma util superioridade ás demais donzellas da mesma classe . A mais velha das nossas tres heroinas , que era a fidalga , contava apenas dezoito primaveras . Rosa , e Anna , ignoravam a edade que ao certo tinham , sustentando , com tudo , o pueril capricho de que não era mais velha uma do que a outra . Rosa de Lima , mal conhecera o pae , fallecido ha dez annos , que fôra desde rapaz caseiro em uma das propriedades do casal de D. Maria , onde a viuva e a filha foram conservadas , mesmo com prejuizo do bom amanho das terras , como costumavam proceder os bons fidalgos portuguezes , em grata memoria d' aquelles que bem os serviam . A mãe , alquebrada pelos trabalhos mais que pela idade , tudo confiava da sua querida Rosinha . E sempre na filha tivera embebidos os olhos , e a alma presa . Rumorejava o povo contra o extremo maternal da mãe de Rosa , conhecida por Emilia do Adro , attribuindo-lhe causas mysteriosas , o que mais d' uma vez fôra origem de mágoas para o marido , José do Adro , o fallecido pae de Roza . Quasi sempre , o povo condemna sem averiguar , d' onde lhe vem o ser pouco certeiro nos juizos que fórma , embora tenham alvo , proximo ou remoto , os rumores de que se faz echo . Anna de Jesus , vivia na companhia de seus paes , ainda novos e vigorosos , e de quatro irmãos mais velhos , que eram completos homens do campo . Empregava-se no arranjo do bragal , e misteres internos , e quasi desapercebida passava , a existencia da timida Anna , no centro de sua laboriosa e rude familia . Não deve ser estranhada a confiança que D. Maria da Gloria dava , como iremos conhecendo , ás filhas de seus caseiros . E de certo o não estranham , aquelles dos leitores que bem conhecerem a distincta affabilidade no trato da verdadeira nobreza de Portugal , mórmente com as pessoas de condição humilde . Corre um tempo pouco favoravel á nobreza de sangue , no dizer dos que só d' esta herança desdenham . Respeitam-se todos os titulos hereditarios , menos aquelles , que provam uma geração briosa , e heroica ! Porquê ? É facil a resposta , a quem a quizer dar em boa fé : ralha-se do que se não póde ter . Adquirem-se bens de fortuna , distincções , tudo : só não é possivel mudar-se o berço . E quantos o mudariam , se podessem , mesmo na occasião do seu mais frenetico vociferar contra a nobreza herdada ! ... Sejamos justos : haja consideração para tudo que o merece , que o bello é de todas as classes sociaes . Descender de boa extirpe , é indubitavel gloria , e tambem onus , que obriga a muito . Os que hoje adquirem nobreza , -- e é comezinho o accesso , -- se podessem testimunhar d' aqui a trezentos annos os gabos de seus fidalgos descendentes aos heroicos avós , não ficariam repletos de intima alegria ? Abrandem , pois , os propagadores demagogicos , as democraticas íras , em que decerto já tem parte o muito plebeu auctor do conto , e deixem-nos dizer , com um dos nossos doutos portuguezes , que não ha cousa mais estimavel e bella , que a nobreza do sangue , junta á nobreza do coração : é uma saphira engastada em oiro purissimo . O colloquio das tres donzellas , fôra assim : -- Pareces-me hoje mais pensativa , ainda que de costume , minha estimavel Anna , o que tens tu ? -- Pensará talvez nas Ladainhas , e no jejum , fidalga ; -- respondeu , pela interrogada , a falladeira Rosa . -- Ora vamos , travessura da vida ! ... Já te prohibi que me chamasses fidalga , como tambem te fiz vêr , o respeito que se deve a tudo que prende com a religião que professamos . Bem deves conhecer , que tenho auctoridade de mestra , e que posso chamar á palmatoria a discipula rebelde ... -- Diz bem fidal ... snr. ^ a D. Maria ; e aqui tem a mão , sem fazer momices ... mas eu só digo estas coisas no intuito de animar um pouco a nossa Annitas , que parece mesmo a figura da tristeza , quando não ha motivos para lagrimas . -- Tu pódes lá saber , o que vae no coração da nossa amiga , doudinha ? -- Sabe de certo , minha senhora , porque entre nós tres não ha segredos ; -- respondeu a custo a questionada donzella . -- Não ha , não ... Juro por Santa Rosa de Lima , da qual tenho o nome e desejara ter as virtudes , que a nossa scismadora , Anna de Jesus , me tem revelado todos os seus mais vedados pensamentos ... Por exemplo : se tem a desventura de deixar uma noite cahir a candêa , e emborcar o azeite , para logo prevê graves successos , que fielmente me vae narrar ... Se estala um vidro na casa , toda se encolhe , como a sensitiva , empallidece , treme , e diz-me , depois , que grandes calamidades nos esperam ... Se entra no meu casebre , e vê que eu , por melhor disposição ou limpeza , deixei ficar a minha cama com os pés para o lado da porta , faz tal exclamação , que devéras me assusta ; e ... -- Basta , tontinha , basta ... interrompeu D. Maria , entre frouxos de riso . Não será possivel conseguir que tu deixes de atormentar , com as tuas graças , a nossa commum amiga ? -- Deixe-a fallar , minha senhora , que eu necessito ouvil-a , a vêr se perco algum do meu natural acanhamento . Conheço-me defeituosa , e sinto não ter a necessaria força para vencer os meus defeitos . Apraz-me sentir um aviso de Deus , nas jocosas palavras da boa Rosinha . -- Nem tanto , pequena , que me arrependo já ... Fazeres de mim , por obra do Eterno , um propheta de saias , é mais pesado do que ouvir-te quantos preconceitos aprendeste de teus crédulos parentes . -- Se tu confessas que foram aprendidos , como posso eu ter culpa das culpas alheias ? ... Não é assim , minha senhora ? -- Dizes pouco , mas sempre bem . É o resultado de quem pensa o que diz . O favor que me fazes de " tua senhora " , é que eu não queria receber . Chamai-me só D. Maria , já que não quereis habituar-vos a um tratamento mais intimo , e proprio das nossas idades , como eu appetecia . -- Era o que faltava ! As rainhas bem amigas são das damas do paço , e mais estas ajoelham-se para beijarem a mão de sua real ama ... -- Invejo-te a verbosidade e o talento , querida Rosa ... Has-de chegar a muito se fôres bem fadada por Deus . -- Vês , Rosinha , " minha vassalla " , que o mal da inveja tambem toca nas almas como a da nossa Annitas ! ? -- Aquillo , senhora , não é inveja , é mostrar que " pensa o que diz " ... mas é muito de crêr que nem sempre " diga o que pensa " ... -- Com a tua pessoa , em jogo de bons ditos , minha doutora , não ha partido ... Olhai ! ... Se não são visões do crepusculo , o que eu diviso , é muita gente reunida na serra de Guilhufe ! ... -- É muito povo , é , snr. ^ a D. Maria ! Responderam , a uma voz , surprehendidas , as duas amigas da fidalga . -- É caso extraordinario ! A esta hora , e n ' um dia de serviço ! ... Ahi vem o sobrinho do snr. reitor , que nos vai dizer o que significa aquelle ajuntamento ... Interrogado , o recem-vindo , pelas tres donzellas ao mesmo tempo , respondeu , -- precedendo um cumprimento de cabeça , por lhe não darem logar a outro -- é ... a " Maria da Fonte ! " RUGIDO " Não vêdes , que nos destruiremos a nós , e á nossa Republica , se intentarmos cousas , que não podem ser , porque nos hão-de dar na cabeça todos esses remedios ? " ( " Vieira " -- ARTE DE FURTAR . ) Ha palavras , que excitam o espanto dos ouvintes , sem visivel rasão justificativa do enleio : aquellas -- " Maria da Fonte " -- tiveram esse condão . Interrogado , e interrogantes , entraram silenciosos na casa solar de D. Maria da Gloria , em direcção á sala chamada das visitas , onde estavam os velhos senhores d' ella . Não seremos exagerados dando o nome de palacio , á nobre e grande habitação , que fazemos aqui figurar . Antes de se chegar á sala de recepção , encontravam-se immensos salões e repartimentos , tudo a desafiar , pela solidez , a acção do tempo , como são quasi todas as antigas edificações portuguezas . Na sala de visitas , para não desmentir o adagio muito nosso , -- " Em Maio florido , ainda ao brasido " -- havia lume no fogão . Em cima de uma mesa circular , estava um grande candieiro de metal amarello , com quatro bicos ; e postos nas demais mesas , castiçaes de prata , com vélas de cêra : moveis de pau santo , cadeiras de espaldar , com botões de metal e arabêscos esculpidos em sola , e denotando haver sido mudas testimunhas da passagem de algumas gerações . Nas duas portas , que nos topos da sala se defrontavam , estavam pendentes de fortes lanças reposteiros de grossa baêta encarnada , em que se viam bordadas as armas de familia . Ao lado dos reposteiros , occupando parte da parede , pendiam dous grandes quadros , representando , um d' elles , S.||_Sebastião Sebastião|_Sebastião , e o outro Santa Isabel , primores de arte do celebre pintor portuguez Affonso Sanches Coelho , que foi protegido pelo snr. principe D. João , pae de El-Rei D. Sebastião , e depois apreciado por Filippe II de Hespanha , onde morreu mui favorecido da côrte . Na parede fronteira a nove rasgadas janellas , que olhavam para um lindo jardim , e famoso vergel de fructiferas arvores , estavam suspensas de grossos cordões de sêda , de côr verde , as arvores genealogicas dos Mesquitas , Bandeiras , Abendanhos , Souzas , e Mellos ; collocados por cima d' ellas , seis antiquissimos retratos de antepassados d' aquelle solar . Pelas mesas da sala , viam-se espalhados alguns livros , e periodicos da época , merecendo especial menção um alto e largo volume , agasalhado em veludo côr de rosa bordado a ouro , que dava a razão dos nobres appellidos da familia , e , minuciosamente , contava as honras , e mercês a ella concedidas , pelos monarchas , e senhores -- Portugal . Sebastião da Mesquita Bandeira de Mello , pae de D. Maria da Gloria , e verdadeiro representante e possuidor d' aquella casa , era um velho fidalgo portuguez , dos rarissimos que chegaram até nós , sabendo fazer acatar a nobreza de sangue , que é ephemera sem a nobreza da alma . Era alto ; direito , apesar dos seus 70 annos ; com fartos bigodes ; olhos grandes , castanhos-escuros ; de olhar suave , que elle sabia , a proposito ; tornar imperativo ; fronte elevada ; cabellos brancos , e ar magestoso . Affavel em extremo , só era Sebastião da Mesquita , intransigivel , com os desvios da honra . Recebia gentilmente em sua casa todos que n ' ella se acolhessem , e mui difficil seria não voltar alli tendo-se lá entrado uma vez . O verdadeiro culto , que prestava á nobreza , levava-o a ser nimiamente sevéro para as fraquezas dos nobres . O que fosse fidalgo , havia de mostral- o mais pelas suas acções do que pela ostentação de seus pergaminhos : era este um dos invariaveis preceitos do velho nobre . Não se attingiam de repente as sympathias de Sebastião da Mesquita . Tratando a todos -- nobres e plebeus -- sem odiosas distincções , sabia occultar as preferencias , que talvez sentisse . Ainda assim , sustentava , sempre que se lhe deparava occasião , conversas demoradas e intimas com Arthur Soares , sobrinho do reitor da freguezia , e , só este , no dizer dos analysadores , merecia ao velho fidalgo reservadas prerogativas . D. Isabel de Abendanho e Sousa , prima e esposa de Sebastião da Mesquita era uma idosa senhora , que deixava ainda entrever alguns traços de belleza , pelo meio das ruinas do tempo , e do soffrimento , com a prematura morte de seus cinco filhos varões . Toda entregue á direcção interna do seu casal , só á noite apparecia na sala das visitas , á hora do chá , servido o qual , as pessoas estranhas á familia da casa , não a viam mais , até á mesma hora do dia seguinte . Manifestava certo respeito ao marido , muito voluntario que não imposto , e adorava a filha , como unico existente penhor do seu inalteravel affecto ao esposo . A todas as pessoas apparecia D. Isabel com um mólho de chaves prêso á cintura , o que lhe grangeou o epitheto de -- " fidalga das chaves " -- dito pelo povo , á bocca pequena , sem o menor intento de offender a virtuosa e velha fidalga . As chaves , companheiras inseparaveis de D. Isabel , provavam unicamente , vigilancia e cuidado de boa dona de casa , que confia mais em si do que nos melhores criados e familiares ; e não diziam , de nenhum modo , avareza , ou mesquinhez . E tanto isto assim era , que o povo igualmente a denominava -- " chaveira dos pobres " , -- em grata allusão ás immensas esmolas , que distribuia , e fazia distribuir , pela freguezia ; além das que diariamente se davam á porta d' aquella nobre casa , que , n ' isto , se assemelhava á portaria d' um convento . Falta apresentar aos leitores , o cavalheiro que vae acompanhando as tres donzellas . Arthur Soares , sobrinho do reitor d' aquella freguezia , era homem de 27 annos de idade ; sympathico ; bem parecido ; insinuante ; grave ; erudito sem affectação ; brioso ; conveniente em todos os seus dizeres , e procedimentos ; sobrio em palavras ; vestindo com modesto aceio , e tratando todas as pessoas com respeito e dignidade . Quando mancebo , frequentara eschola de primeiras lettras ; e o seu verdadeiro estudo principiou aos quinze annos de idade , e teve logar , sem presidencia de mestres , apenas auxiliado pelos livros de seu thio reitor , e pela sua privilegiada intelligencia , e natural talento . Era Arthur conhecido em muitas terras de Portugal , e , por todas ellas , a nobreza de sangue lhe mostrava apparente agrado , desdenhando sempre do plebeu , que entendia saber um pouco de tudo , e que dava seus ares de fidalgo orgulhôso . Os capitalistas , os grandes proprietarios , os modernos titulares , todos os homens de fortuna , emfim , olhavam de soslaio para o litterato sem diplomas , que se atrevia a mostrar indifferença pelo dinheiro , o rei do mundo . Fóra da residencia de seu thio , n ' aquella freguezia , só era visto Arthur Soares em casa de Sebastião da Mesquita , seu padrinho de baptismo , que o considerava do modo que já dissemos . Ao entrarem na sala das visitas , as quatro pessoas que acompanhamos desde o terreiro , ouviram-se badalar as " Ave-Marias " no campanario da terra , o que logo fez pôr em pé os velhos senhores da casa , dos quaes se aproximaram as donzellas , e Arthur , e todos , com a devida reverencia , resaram em côro a conhecida oração da Santissima Trindade . Acabada a resa , foi D. Maria beijar a mão e a face de sua mãe , e , depois , curvando os joelhos , pediu a benção ao pae , que lhe offereceu a face direita , onde D. Maria depositou um respeitoso osculo . As duas companheiras de D. Maria , pediram , de mãos postas , a benção aos velhos fidalgos , que as acariciaram , chamando-lhes as lindas discipulas de Maria , nomes com que Sebastião da Mesquita as dava a conhecer ás suas visitas . Arthur Soares , saúdou D. Isabel , beijando-lhe as extremidades dos dedos da mão direita , e recebeu um amplo aperto de mão do fidalgo , acompanhado das palavras -- bem vindo , afilhado -- e de um certo fitar , que n ' elle demonstrava contentamento , e interesse pela pessoa a quem o dirigia . Estabelecida certa liberdade familiar , promovida pelos velhos fidalgos , occuparam as cadeiras proximas do fogão , Sebastião da Mesquita , D. Izabel e Arthur Soares . D. Maria e as suas discipulas procuraram outro lado da sala , onde podessem confidenciar , á vontade , os mil nonadas , que são os encantos dos annos verdes , e , algumas vezes , até dos já illustrados pelo estudo . Rosa , e Anna , ficaram de pé , aos lados da cadeira , occupada por D. Maria : só tomavam assento na presença dos velhos fidalgos , quando estes imperativamente o ordenavam . Sebastião da Mesquita e D. Isabel -- diga-se a verdade -- não desgostavam d' aquella prova de submissão , e quasi sempre se esqueciam de lhe pôr termo . É que o barro , por mais apurado que seja , tem asperezas , que só em pó se desfazem . Passado pouco tempo , D. Isabel sahiu da sala , e o fidalgo estabeleceu com Arthur o seguinte dialogo : -- Que pesadelo o fez triste , como parece estar , snr. meu afilhado ? -- Tenho que dar a v. ex. ^ a a desagradavel noticia de que o povo se agita em desordem , começada por não sei que " " Maria da Fonte " das proximidades de Lanhôso , e temo que os tumultos cresçam até á altura de revolução , porque a semente lançada pelas paixões partidarias hade produzir os benésses a que miram os curas da imprensa desenvolta . -- É cousa essa , snr. Arthur Soares , que não deve surprehender aquelles que , como nós , acompanharam de longe as dissensões , e os desacertos , da familia liberal , a que não pertenço pela communhão de idéas , mas que desejára , como portuguez , vêr prosperar , para o bem de todos . E o que diz e faz o povo ? -- O povo diz , " que abaixo o ministerio e as contribuições " , e queima os mappas , que se mandaram encher , para um novo systema de contribuições , reprovado , sem analyse séria , pelos partidos da opposição , que incutiram nas massas ignorantes o absurdo de que aquelles papeis serviriam de documentos para hypotheca da propriedade aos inglezes ! -- Quando haverá seriedade nos homens politicos , que assim fazem brinco de uma nação ? ! -- Neguei até hoje , o meu voto aos bandos politicos militantes , que já da gloriosa ilha Terceira vieram eivados do mal , que devia affectar o heroismo de um povo , e d' um rei-soldado . Os feitos praticados dentro das muralhas da invicta cidade da Virgem , dariam assumpto para uma epopéa , se não tivessem a macula de fratricidas ... Perdôe v. ex. ^ a o modo de vêr da moderna eschola , que isto de nenhuma sorte escurece a grandeza , d' aquellas épochas de conquistas , e de independencia , em que nobres antepassados de v. ex. ^ a manejaram a espada , com proveito , e immortal honra d' estes reinos . Bem sabe , que sou liberal ... -- Sei que é homem de bem , snr. Arthur Soares , e não me repugna a liberdade de que V._S._^ V._S._^ V._S._^ a é apostolo . Á licença , ao desenfreamento de paixões interesseiras , ao que promove a desunião da familia portugueza , é que um soldado da independencia , como eu fui , não dará em tempo algum o seu preito . É V._S._^ V._S._^ V._S._^ a o mesmo que confessa , -- e dizem outro tanto todos os liberaes de boa fé -- que muito é para temer a desintelligencia que lavra entre os que tanto precisavam de união . Tambem eu partilho esse receio pelo meu paiz , sem que n ' isto tome parte qualquer tendencia que possa haver em mim , para applaudir outra fórma de governo . O que eu desejo , antes das proprias conveniencias , é o bem geral , o engrandecimento d' este torrão abençoado , em que nasci , e onde queria morrer portuguez . Estas continuadas luctas intestinas , que nos trouxe a constituição , desdizem da felicidade por ella annunciada , e quem sabe o que poderão causar-nos ! ... -- Talvez a perda da nossa autonomia ... É possivel . Mas as grandes transformações sociaes , snr. Sebastião da Mesquita , não se operam sem abalos mais ou menos fortes . Consinta-me V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , que ainda confie no futuro . Entre os vultos liberaes , ha caracteres nobilissimos , completamente devotados á causa nacional . Se conseguirem aproximar d' elles , aos altos cargos da governação publica , todos os homens competentes sem distincções partidarias , póde a náo do estado tomar norte , e trazer-nos éras de paz e de prosperidade . Foi n ' esta altura interrompido o dialogo por um escudeiro de habito de Christo , que vinha dar parte a Sebastião da Mesquita de que se achava o terreiro coberto de povo , e á sua frente o Exc._^ Exc._^ mo Leopoldo de Moraes Lencastre , do Marco de Canavezes , que pedia licença para entrar . Antes de dizermos a ordem que Sebastião da Mesquita deu ao escudeiro , lembraremos de passagem duas cousas : primeira , que não sirva de prejuizo ao cofre nacional , pela falha de direitos de mercê , a noticia de haver " escudeiros " com habito de Christo , porque é facto averiguado que os houve , e não sabemos se ainda existem alguns . Eram homens de merecimento , a maioria d' elles soldados companheiros de seus amos , e de provado valor e lealdade . Segunda : que na rapida descripção que fizermos da guerra civil contemporanea , seremos completamente isentos de sympathias pelos partidos ou grupos que dividem os politicos de Portugal . Respeitamos todos os homens , não temos odios nem invejas , e ajuizamos das cousas com o justo criterio da imparcialidade . Sebastião da Mesquita , levantou-se e disse ao escudeiro , que mandasse entrar toda a gente . D. Isabel , veiu á sala um pouco perturbada , e perguntou ao esposo , para dizer alguma cousa , se queria que fosse servido o chá . Sebastião da Mesquita , respondeu placidamente , que era magnifica occasião de beber agua quando estivesse o povo na sala , porque se viesse com más tenções fugiria d' ella como de sua figadal inimiga ... Via-se que Sebastião da Mesquita , estava ou queria mostrar-se tranquillo e jovial . D. Isabel foi tomar logar no centro das tres donzellas , que ficaram mudas de espanto pela ordem que ouviram dar , e não de todo livres de receio , embora tivessem sempre observado no povo extrema consideração pelo velho fidalgo . Conservaram-se com tudo impassiveis , como estavam costumados a proceder todos os familiares do fidalgo , quando este manifestava a sua vontade . Arthur Soares , collocou-se á esquerda do padrinho com tão natural aspecto , como se fôra a continuar a conversa interrompida . O escudeiro , entrou de novo na sala com uma grande salva de prata e sobre ella uma espada antiga , com cinturão , que , sem dizer palavra , offereceu a Sebastião da Mesquita . O velho fez repentinamente um gesto de espanto , que o escudeiro presenceou sem pestanejar ; em seguida sorriu-se , como se disséra -- lembraste bem , -- e pendurou a espada á cinta , com a pericia propria de um antigo official de cavallaria . Logo depois , era annunciado , e dava entrada na sala , o Exc._^ Exc._^ mo Leopoldo de Moraes Lencastre , que foi recebido friamente : nas tres donzellas , é que se poderia notar a apparição d' um tal ou qual rubor intraduzivel para os circumstantes , ao conhecerem o fidalgo moço . -- Sou o mais dedicado servo de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a meu presadissimo primo e senhor da Mesquita ; -- principiou por dizer o fidalgo||_Leopoldo Leopoldo|_Leopoldo , acompanhando estas palavras de mesura palaciana , a que Sebastião da Mesquita correspondeu com um ligeiro curvar de cabeça . -- Tenho a honra de me dirigir a V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a em nome da soberania popular , para que se digne acceitar o commando dos bravos camponezes da comarca , que na cidade acabam de reduzir a cinzas os vexatorios papeis , que um ministerio obnoxio , pelos actos despoticos que pratíca , semeára pelo reino . A provincia do Minho , ao grito da heroina " " Maria da Fonte " , " está toda revolucionada ; e dentro em pouco chegarão os gritos do povo aos ouvidos da corôa , que deve fazer justiça immediata , como o requerem as anómalas condições em que se acha o systema constitucional . Ninguem mais competente do que V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , meu nobre primo e snr. , para conduzir o povo até ao paço ; logar em que os nossos nobilissimos antepassados já tiveram a honra de sustentar na presença da magestade os direitos da nação , com a coragem revelada n ' aquellas memoraveis palavras , que a historia legou ás futuras gerações : -- " Se não , escolheremos outro rei que melhor saiba governar e dirigir a briosa nação portugueza ! " -- Aguardo as determinações de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , que fielmente serão communicadas aos que por ellas esperam nos proximos salões deste palacio ; bons lavradores que me pediram fosse eu o interprete dos sentimentos d' elles perante V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a Não consenti que entrassem n ' esta sala , para deixar tranquillas as damas , primas e senhoras minhas , ás quaes só agora tenho occasião de tributar o mais respeitoso dos meus cultos e a mais submissa das minhas homenagens , pedindo-lhes humildemente , que se dignem perdoar o não ter eu praticado desde logo este dever , em attenção a que estava pouco senhor de mim com a delicada e obrigatoria missão de que fui encarregado . Quando o fidalgo do Marco deu assim por terminado o aranzel , acenou Sebastião da Mesquita ao escudeiro , que comprehendendo seu nobre senhor , abriu de par em par as portas e reposteiros , dando livre accesso ao povo , que estava agrupado pelos immediatos aposentos . Foram pouco e pouco , como possuidos de acanhamento , entrando na sala os populares , activos e laboriosos lavradores , sempre cortezes como todos os habitantes do Minho , mas faceis de inflammar com perfidas insinuações , principalmente ácerca do perigo que possa correr a religião que professam , e o lar que possuem . Eram variados os trajes d' aquelles homens amotinados , e variadissimas as armas de que cada um estava munido : ainda assim , predominavam os fatos domingueiros a que é obrigada a casaqueta de botões amarellos , e as espingardas de fechos com pederneira . Todos entravam desbarretados e convenientes . Sebastião da Mesquita ia provocando a entrada com as animadoras palavras : -- " Vinde , vinde , bons homens . " E assim que todos o podiam ouvir , virou-se para o mensageiro , e fallou n ' estes termos : -- Ouvi com a devida attenção e serenidade , o que teve a bondade de dizer-me meu primo e snr. de Lencastre . Respondendo ao povo , que me escuta , respondo tambem a v. ex. ^ a Esta espada , que já serviu a nossos avós , para emprezas importantes em prol d' estes reinos , e sempre em defeza do sagrado solo da patria , -- nunca será por mim empunhada contra portuguezes e irmãos . Fui soldado da independencia , e não quero outra gloria . Quem deseja conduzir o povo pelo caminho da revolta contra os poderes bem ou mal constituidos , póde ter ambições a saciar , mas falta-lhe bem dentro n ' alma a nobreza de sentimentos , unica que póde distinguir da massa geral dos homens , os fidalgos e as pessoas illustradas . " Porque os principes , ou aquelles que governam o reino , abusem do seu poder , não é rasão para que os povos abusem dos seus direitos . Os homens prudentes , devem conhecer os demais . Aos não poucos annos que tenho , devo eu o não poder ser facilmente enganado ... Não se queria o meu braço , não , que já mal póde com a espada ... O que se vinha aqui buscar era o bom nome do velho , para servir de joguete a pequenas ambições ... Não precisa o snr. meu primo Leopoldo d' este fraco auxilio . As tendencias que manifesta para tribuno popular , devem leval- o rapidamente ao parlamento , que é o caminho aberto ás modernas glorias ... Seja feliz , e deixe-me descer socegadamente á sepultura . E vós , homens do trabalho , recolhei-vos ao seio de vossas familias , que devem soffrer com os vossos desvarios , e desconfiai sempre dos pareceres que vos levam á porta os voluntarios zeladores dos vossos interesses ... Lembrai-vos , que não se devem despresar as lições da velhice , que são as da experiencia . Minha prima e presada esposa , digne-se v. ex. ^ a mandar abrir a adega , para que esta boa gente mate a sêde . Maria , as tuas interessantes discipulas ficam esta noite a fazer-te companhia , para assim escaparem a algum " discurso " dos campeões de praça ... Snr. Arthur Soares e meu bom amigo , queira ter a summa bondade de acompanhar este bom povo até ao terreiro , e vêr se póde com a sua eloquencia acabar de convencêl- o da verdade encerrada nas minhas trémulas palavras . Meu primo , querendo v. ex. ^ a dar-nos a honra da sua presença , logo que voltem minha mulher e o snr. Arthur Soares mando servir o chá . -- Agradeço , mas não posso acceitar nem conservar-me aqui mais tempo depois do que v. ex. ^ a acaba de pronunciar ... -- N ' esse caso , -- interrompeu Sebastião da Mesquita -- peço as ordens de v. ex. ^ a ... João , acompanha meu primo até ao portal . Ao receber a ordem do amo , o escudeiro foi postar-se atraz de Leopoldo . Este , fulo de cólera açamada , virou a espalda e sahiu com o povo , que escutára o fidalgo com todo o respeito e silenciosa attenção , e que foi tão rapido na sahida como morôso havia sido na entrada . Logo que foi evacuada a sala segundo as ordens de Sebastião da Mesquita , caminhou este até ao pé das donzellas , pôz a mão direita sobre o hombro esquerdo da filha , encarou-a por longo tempo com visivel commoção , e disse-lhe com lagrimas na voz : Deos te dê melhor sorte , Maria ! ... Depois , cingiu Rosa e Anna com o braço esquerdo , e disse a todas com igual ternura : Deos vos proteja , minhas filhas ! ... AO LUAR Leopoldo de Moraes Lencastre , filho segundo da nobre familia dos alcaides móres de Coruche , achava-se -- por fallecimento do primogenito -- na posse do morgadio . Era importante a casa de seus maiores , dispersa por quasi todo o reino . Leopoldo administrava mal e esbanjava muito , sem gastar , ainda assim , mais que o rendimento . Corriam differentes versões ácerca da morte inesperada do morgado , que todas formavam um pessimo conceito do herdeiro forçado d' aquella nobre casa . No entanto , Leopoldo mostrára- se angustiado com a morte do irmão , e parecia gosar a herança com a tranquilidade de espirito propria dos innocentes . Deixára Coimbra quando frequentava o quarto anno da faculdade de direito , para tomar conta da casa , e voltára mais tarde a concluir a formatura . Dotado de um caracter ardente , Leopoldo , era ambicioso de glorias , que sonhava de um modo unico . Sacrificava todos os bons sentimentos , á satisfação do amor proprio . Na consciencia d' elle , havia só logar para a sua personalidade . Nunca encontrou espelho que lhe reflectisse outro objecto , além da sua figura . O mundo era para o fidalgo doutor apenas um palco , destinado a receber-lhe as scenas comicas ou tragicas ; e os espectadores estavam magnetisados , para só attentarem n ' elle e nas suas acções . Não havia torpeza que lhe embargasse o caminho do Capitolio , nem falta que o fizesse exitar no trajecto . Mettia algumas vezes na gaveta das conveniencias a sua altivez , para de lá sahir depois mais furiosa , alcançados que fossem os premeditados fins . Era mais insaciavel com o seu orgulho , do que um miseravel com as suas necessidades : os cuidados , agitações e pesares communs a todo o homem quando se dilata a esphera dos prazeres , affeições e sentimentos , só accommettiam o moço doutor na hora em que se convencia de que o mundo desviava os olhos das suas façanhas . Leopoldo era physicamente favorecido da natureza , e suppríra , com o estudo , o que lhe faltava em talentos . Foi-lhe facil estabelecer escóla sua , e rodear-se de manequins , que serviam magnificamente aos seus desejos . É crescido o numero de parasitas que , algumas vezes , se prestam para caudatarios , e que são sempre tubas , ainda que rouquenhas , de famas adrede . E não se verificava , com relação a Leopoldo , o preceito de ser a lisonja moeda falsa que empobrece quem a recebe ; muito ao avêsso ia logrando insinuar-se na opinião publica , que foi , e é , e ha de sempre ser , a tonta filha das apparencias . Quando Arthur Soares , encarregado pelo fidalgo Mesquita de fallar ao povo , estava desempenhando a commissão , foi interrompido por Leopoldo , que pretendeu ridiculisal- o . Deu isto causa a uma discussão entre os dous , algum tanto animada , que acabou pelo povo ir dispersando , e Arthur Soares deixar bruscamente o adversario fidalgo , entrando de novo no palacio de Sebastião da Mesquita , com o qual passou algumas horas mais . Na sahida para a residencia de seu thio reitor , ao passar por baixo das janellas do quarto de D. Maria , teve Arthur Soares de prestar attenção ao chamado da fidalga senhora , que , com as suas discipulas , estava gosando o luar e a belleza da noite , e lhe perguntára como havia conseguido que o povo recolhesse a suas casas . -- Tudo consegue a prudencia , minha senhora , quando não é capa de occultos interesses . O povo estava illudido por palavras pomposas que eu expliquei em linguagem chã , fazendo-lhe conhecer o sentido interesseiro de quem lh'as havia dito : convenceu-se e tranquillisou-se . O fidalgo , primo de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , é que se não convenceu nem me agradece ... Creio que adquiri n ' elle um verdadeiro inimigo . -- Pouco deve importar ao snr. Soares a inimisade do snr. Lencastre . V._S._^ V._S._^ V._S._^ a tem a nobreza das suas acções , que não podem invejar cousa alguma ás do meu fidalgo primo . -- Não me parece tanto assim , snr. ^ a D. Maria ; -- arriscou-se a dizer a timida Anna -- O snr. Lencastre é pessoa muito estimavel e virtuosa , no meu humilde parecer ... -- Estimavel ; virtuosa e " carinhosa " , deves acerescentar , minha beatinha , porque o tal senhor teve artes para ganhar a tua affeição ... -- Valha-te Deus , Rosa , que vês tudo pelo mau lado ... Eu sou muito amiga do snr. Lencastre , como o seria de qualquer outra pessoa que conhecesse , e que nunca me fizesse mal ... -- Parece-me , menina Anna , que a Rosinha foi mais verdadeira agora do que mordaz ou satyrica , como graciosamente lhe chamam ; -- disse Arthur Soares . -- Se não , haja vista esse denunciativo rubôr que mais de palpite do que auxiliado pelo luar , d' aqui imagino vêr ... -- Peço desculpa de ser contra a sua opinião , snr. Arthur , mas entendo que o pejo , manifestado nas faces , póde ter variadas origens . A Rosinha tambem córou , e talvez eu córasse egualmente , quando meu primo entrou no salão ; e , com tudo , não creio que em nós exista sentimento algum reservado . -- Nunca dei entrada no meu espirito a qualquer suspeita prejudicial á inexcedivel virtude de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , e á que adorna as suas interessantes discipulas , o que não obstou a que eu fizesse reparo -- confesso-o -- em certo embaraço que descobri em todas , na occasião a que V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a se refere . -- Eu explico ao snr. Arthur Soares a razão do nosso abalo ; -- disse repentinamente Rosa . -- Annitas , córou , porque o fidalguinho lhe não é indiferente ... -- Tens cousas ... -- Não me interrompas , que ter coração não fica sul a pessoa alguma , O amor , é toda a historia da vida das mulheres , como diz um livro , que a snr. ^ a D. Maria me ensinou a lêr e entender . -- Eu córei , por que antipathiso solemnemente com uns certos modos do snr. Lencastre , que já me fez a honra de dizer que eu era bonita e espirituosa ... A snr. ^ a D. Maria ... -- Eu , menina , não desejo n ' este momento ter interpretes dos meus sentimentos ... Subiu-me calor ás faces , porque ... estava um tanto indisposta ... -- É já tarde , minhas senhoras , e eu vou até á residencia de meu thio , onde espero conciliar o sômno , vendo o soberbo luar d' esta lindissima noite , atravez dos vidros da janella do meu pequeno quarto . V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , snr. ^ a D. Maria , continue a gosar , em companhia das suas innocentes amigas , o arôma das flôres do jardim e do pomar , a fagueira brisa d' esta bellissima noite de primavera , o suave cantico da voadôra cotovia e da poetica philomella , o murmurio da agua nos proximos tanques , a magestosa pallidez da lua cheia , que tudo isto ajuda a nutrir a imaginação com illusões nascidas da candidez da alma , muito mais carecida de taes alimentos do que a fria razão . -- Quer o snr. Arthur Soares dizer-me com esse trecho poetico , que não gostou de que eu interrompesse a Rosinha ? ... Apreciava bem mais ouvir a franqueza de que sabe usar , do que escutar-lhe um subterfugio , aliás lindissimo na fórma ... Eu , digo-lhe abertamente , snr. Soares , porque não tenho motivos para occultal- o , que o meu pejo procedeu de haver ha muito reconhecido em meu primo Lencastre , qualidades e sentimentos improprios de um cavalheiro . Magôa- me bastante ter de fallar assim de um fidalgo , que é meu parente ; mas não quero que os meus gestos sejam mal avaliados , principalmente por V._S._^ V._S._^ V._S._^ a , que é um amigo d' esta casa , a quem meu pae devéras estima . -- Não me accuso , snr. ^ a D. Maria , de ter provocado a irritabilidade nervosa , que me parece descobrir em V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , porque me diz a alma que eu era incapaz de lhe promover o mais leve desgosto . O dia em que eu me conhecesse origem de qualquer dissabor , para a familia do snr. Sebastião da Mesquita -- póde V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a crêl- o -- seria o ultimo da minha vida . -- O que disse , não foi queixa , snr. Arthur Soares . Quiz apenas " ser eu " , a dizer a V._S._^ V._S._^ V._S._^ a os meus sentimentos ... Se perdeu com isto de ouvir a narrativa com a natural eloquencia e graça de que dispõe a minha amiga Rosa , deixo-os agora á vontade , para ... -- Sou eu que me devo retirar , snr. ^ a D. Maria ... E retiro-me com a convicção bem formada de que " nunca mais " as minhas palavras , dirigidas ao snr. Arthur Soares , poderão melindrar a minha presada senhora , amiga e mestra , porque hei de medital-as muito ... -- Ficam ambas , com certeza , porque uma e outra se encontram empolgadas pelo gavião ! ... -- Disse uma voz sahida do pomar , que todos reconheceram ser a do snr. de Lencastre . Facilmente se avalia a commoção em sentidos diversos , que soffreram todos os actores d' esta scena , ao conhecerem o novo e audacioso interlocutor , sahido de entre as arvores do pomar que o occultavam , e collocando-se sobranceiro á parede do jardim , em frente da janella occupada pelas tres donzellas , ficando alguns metros separado de Arthur Soares . -- Não me surprehende , continuou a dizer o fidalgo moço , dirigindo-se para a janella , -- que a snr. ^ a Rosa concebesse um arranjinho de vida commodo , fazendo presente do seu coração e de seus volumosos espiritos ao snr. Arthur Soares ; e que este eminente litterato tome posse de tudo , para cada vez dar maior brilho ao seu verniz de urbanidade e brios ... Agora , o que devéras me faz descrêr de quantas virtudes podem honrar o coração humano , é o vêr que a snr. ^ a D. Maria da Gloria esqueceu rapidamente a distancia que a separa de um plebeu , embora um tanto polido , que nunca se atreveria a pensar sequer na honra de conseguir , á custa dos maiores sacrificios , o que V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a tão de barato lhe concede ! ... Manifestar " ciumes " ao snr. Soares , minha nobre prima , é declarar-lhe que o ama ! ... -- Eu já sabia , snr. de Lencastre , que uma certa grosseria de habitos formava a base do seu codigo cortezão ; mas nunca me persuadi que V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a quizesse lá escripta a villania de um procedimento como o que acaba de ter ! Os nossos lacaios , se alguma vez são apanhados a devassar alheias causas , fogem espavoridos da feia acção que commetteram ... O meu nobre primo " afidalga-se " com um manifesto de curioso , e delator das vidas alheias , abrindo com chave de mui duro e enferrujado ferro , o coração de uma senhora , que lhe não deu o direito de se tornar seu vigia , e muito menos seu mentor . Só a meu pae quero dar conta dos meus procedimentos , e nenhum receio me dominava se o santo velho fosse um dos espectadores d' esta scena , só pouco edificante desde que V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a entrou n ' ella ... Peço ao snr. Arthur Soares , que seja completamente alheio ás palavras e acções do snr. meu primo ; peço-lhe&lhes+o pela amisade que tem á minha familia . -- É esse o mais espinhoso dever , que V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a me podia impôr ... -- Socegue o paladino da nobre castellã , que não tem de medir armas comigo , porque lhe não acceito o repto ... E V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , nobilissima snr. ^ a D. Maria da Gloria , fique sabendo que a um perfeito acaso devi o ficar conhecendo dos adiantados , prósperos e sublimes amores de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a , com o sobrinho do senhor reitor ... Se me interesso por alguem , não é de certo por V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a ... Ha talvez ao lado da minha nobre prima quem saiba nutrir aspirações mais fidalgas ... Muitas vezes acontece haver discipulos , que podiam ensinar os mestres ... -- Das lições de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a é que ninguem aproveita ... disse sacudidamente Rosa , que ha muito ardia por fallar , e que era contida pelo respeito devido á fidalga , e por se achar affectada com a inesperada direcção d' estes acontecimentos , que lhe descobriram o coração . -- Já me tardavam as provas de seu despeito , menina ... Apraz-me têl- a por inimiga : das mulheres formosas , só nos deve magoar a indifferença ... -- E o despreso , snr. meu primo ? ... -- V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a despresa- me , minha nobre prima ? ... Tanto melhor , que posso usar sem constrangimento dos meus direitos de fidalgo e de parente de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a para annunciar ao mundo do bom tom , que a snr. ^ a D. Maria da Gloria Mesquita Bandeira de Abendanho , está ligada pelos vinculos " do mais apertado amor , com dispensa de sacramentos " , ao sobrinho do snr. reitor da freguezia ... Ainda o snr. Leopoldo não tinha acabado de pronunciar bem a ultima palavra do insulto , e já o som de uma estrondosa bofetada echoava nos ouvidos de todos . As discipulas de D. Maria deram um abafado grito e retiraram-se da janella , a um pequeno impulso que lhes deu D. Maria . A fidalga , julgando ter sido Arthur Soares que déra o castigo ao insolente , ficou sobresaltada , e dirigiu-lhe , ainda que meigas , algumas censuras , a que o brioso mancebo respondeu , que outra mão , mais prompta que a sua , castigára o desaforado fidalgo . Fôra o caso , que João Vidal , o escudeiro , andando na sua costumada ronda pelas cercanias do palacio , e ouvindo parte do dialogo , aproximou-se cautelosamente do sitio onde estava Leopoldo , e lá se conservou até ao momento em que o insulto feito á sua nobre ama , o levou a estender a mão na cara do petulante com força tal , que o snr. de Lencastre cahiu redondamente no chão do pomar . Logo que se levantou , ardendo em ira , partiu para o escudeiro de punhal na mão . João Vidal , suspendeu-lhe o braço homicida e arrancou-lhe da mão a arma cobarde , em menos tempo , tudo isto , do que se gasta a contal- o . Vendo-se abatido , sem armas , e marcado pelo mais ignominoso ferrête que um homem póde imprimir n ' outro homem , Leopoldo vociferou : -- Por um escudeiro ! ... Vergonha eterna ! ... Juro que a vingança ha de ser superior á affronta ... Não posso medir-me comtigo , villão , mas quero e hei-de vingar-me ... Vingar-me de todos ... Ouviram ? ! De todos ! ... E a ti , canalha ... escudeiro infame ... hei de afogar-te como se afoga um cão vadio ! ... Proferidas aquellas selvagens ameaças , retirou-se o possesso , a passos accelerados , não dando assim logar a maior castigo . João Vidal , com toda a submissão e respeito , pediu á sua joven senhora desculpa para o que fizera sem premeditação , e levado unicamente pela violencia do insulto . D. Maria agradeceu-lhe com palavras vehementes , e ordenou-lhe que entregasse o punhal ao snr. Arthur Soares , o que o escudeiro fez , sem exitação , pedindo depois licença para retirar-se . Arthur , surprezo com a ordem e a entrega , perguntou a D. Maria , que uso devia fazer d' aquella arma . -- Guarde-a -- lhe disse a fidalga -- até que eu lh'a peça . -- É perigoso este instrumento na minha mão , senhora , desde que me vejo causa involuntaria das mágoas de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a ... Esta noite foi para mim ao mesmo tempo a vida e a morte ... Tive sempre horror ao crime , e vejo-me levado pelo destino a ser necessariamente criminoso ! Acolhendo em meu peito sentimentos , que nem ao dominio dos meus sonhos quereria que pertencessem , terei de luctar e de punir , de caminhar para a incerta felicidade por cima do cadaver de um inimigo , vilissimo é verdade , mas bem nascido e poderoso ... o que devo fazer em tão apertada como temivel conjunctura ? ! ... Não devo escolher entre dous crimes , aquelle de que só eu venha a soffrer as fataes consequencias ? ! ... Nunca me persuadi de que havia de chegar uma hora em que assim fosse abalada a minha austeridade em principios religiosos ! ... Nunca imaginei que seria forçado a praticar , o que sempre tenho rebatido com todas as forças de uma profunda convicção ! ... Adeus , snr. ^ a D. Maria da Gloria ! ... Amanhã será entregue a V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a esta arma por pessoa de confiança Peço-lhe que ao recebel-a se lembre com alguma saudade do martyr de umas certas crenças , talvez irrisorias n ' esta epocha de ... progressos ... Adeus ! ... -- Ordeno-lhe que fique ! ... Disse D. Maria com um tal assento de voz , que obrigou Arthur a ficar como petrificado . -- O snr. Arthur Soares , pensar em suicidar-se ? ! ... Onde escondeu a fortaleza do seu espirito robustecido pelo estudo ? ! Como assim esqueceu os salutares conselhos de sua boa mãe , que o snr. Soares muitas vezes me tem repetido ? ! Que fez das arreigadas crenças na religião de nossos paes , que o snr. Arthur dizia ser a mais racional e acceitavel de todas as religiões , mesmo desprendida do que n ' ella ha de mysterioso e divino ? ! ... Ah ! snr . Arthur Soares , que me parece imperdoavel essa allucinação ! ... Já não quero fallar-lhe no abandono em que deixava as pessoas amigas , só pelo egoismo de não soffrer na lucta ! Isso prova que as melhores almas tambem têem suas fraquezas ... Lembre-se , senhor , que á vida de V._S._^ V._S._^ V._S._^ a póde estar presa alguma outra vida ; e que , querendo fugir a matar um inimigo vil , quando seja absolutamente indispensavel o fazel- o , póde assassinar " alguem " com o seu suicidio ... -- Pois V. Exc. ^ a ? ! ! ... -- Adeus , snr. Arthur Soares ! Durma tranquillo e guarde bem essa arma que deve ser entregue por V._S._^ V._S._^ V._S._^ a " em pessoa " a mim , ou , de minha ordem , á minha amiga e discipula Rosa ... Ditas estas palavras , retirou-se D. Maria da janella , que fechou de manso . Arthur permaneceu no mesmo logar por largo espaço de tempo , immovel , com os olhos fitos na formosa lua cheia , e o pensamento entregue ao vago de estranhas e indecifraveis sensações . Accordou d' este delicioso e pungente lethargo , á voz amiga de João Vidal , o escudeiro , que o acompanhou á residencia do thio . MÃE E MADRE " Espero que essas pedras , que em outras foram de escandalo , sejam em v. m. padrões de espirituaes exemplos . " ( " Fr. Ant. das Chagas " -- CARTAS ESPIRIT . ) Pelos fins do mez de janeiro -- 1807 , um cavalleiro envolto em larga capa , acompanhado de seus lacaios e creados a pé , desmontou , seria meia noite , defronte da portaria do convento e mosteiro , da invocação de Nossa Senhora das Candêas , de freiras -- S. Bento , que fundou , nas casas em que nascêra na villa -- Moimenta da Beira , o doutor||_Fernão_Mergulhão Fernão|_Fernão_Mergulhão Mergulhão|_Fernão_Mergulhão , filho de Vasco Mergulhão e de sua mulher D. Leonor de Lucena , pessoas nobres e de vastos rendimentos . O cavalleiro , bateu tão de rijo com a aldrava do portão , que a communidade inteira accordou ao estrondo produzido pelos repetidos embates da massa de ferro . Em quanto as noviças alvoroçadas perguntavam em voz baixa umas ás outras , o que poderia significar uma visita a taes deshoras , e que a muito respeitavel abbadessa se erguia com inquietação , foi repetidas vezes renovado o chamamento com furia egual , se não superior , á das primeiras pancadas , até que a soror rodeira , toda espavorida , tendo-se vestido precipitadamente e sem esperar as ordens da superiora , desceu até onde podésse ser ouvida e , com a maior força que podia dar á sua voz septuagenaria , perguntou : -- Quem , a esta hora , vem assim perturbar o repouso da vida claustral ? ! -- Muito digna soror rodeira , tende a bondade de annunciar á senhora abbadessa , a urgentissima necessidade de escutar , por um pouco , a um de seus mais proximos parentes e ao mais humilde de seus servos . A este tempo , já a madre abbadessa estava ao lado da soror rodeira e , reconhecendo a voz que a invocara , mandou que abrissem a porta sem demora . Introduzido o cavalleiro no palratorio , depois de ter alcançado a benção da abbadessa , fallou assim : -- Minha muito respeitavel e estimadissima thia e senhora ! Venho aqui , a horas bem importunas , implorar de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a a minha tranquilidade domestica , porque ha já mezes que me é insupportavel a vida ao lado de minha esposa e prima D. Leocadia . Não sei porque artes minha mulher descobriu a existencia do João , d' esse filho do peccado , que a minha boa thia e senhora quiz ter a caridade de recolher dentro d' estas sagradas paredes . E , desde que o sabe , ameaça-me de separar-se de mim e de levar todo o seu dote , que é , como V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a sabe , a maior parte da minha casa , se eu não entregar o pequeno ao destino que ella lhe queira dar . Eu conheço o coração de Leocadia , e sei que ella é incapaz de maltratar o Joãosinho , e por isso ... -- Suspenda , snr. meu sobrinho , suspenda o seu desnaturado pedido , que lh'o roga esta velha , em nome do Nosso doce Salvador Jesus . Entregar a uma inimiga declarada , o meu querido filho adoptivo , o innocentinho a quem salvei a vida com desvélos e cuidados , que talvez custem -- quem sabe ? -- indelevel mancha ao convento de que sou indigna superiora ? ! ... Nunca , snr. ! Nunca espere semelhante acção de sua thia ... Deu-me ha tres annos , por uma hora igual a esta , seu filho recem-nascido . Considerei-me , quando me vi forçada a recebel- o para evitar escandalos , escolhida pelo Nosso bom Deus , para exercer uma de suas infinitas obras de misericordia . Vi-me attribulada para conseguir mitigar a sêde ao anginho , que dava gritos dolorosos ! Fui eu mesma aos curraes buscar o leite necessario , e apartar depois a mais formosa das nossas cabrinhas , para servir de ama ao innocentinho ... Não me foi possivel occultar por muito tempo , ás virtuosas madres minhas santas companheiras , a existencia do menino n ' este recinto protector . Todas ellas tem affecto egual áquelle que eu dedico ao nosso bello Joãosinho . O nome , que recebeu no sagrado baptismo , é o do milagroso santo padroeiro d' esta villa , que ha de abençoal- o e protegel- o ... É o enlevo de todas a triste creancinha ; é o cofre em que depositamos as joias das nossas affeições mundanas . Este nosso affecto , não póde offender nem diminuir o que votamos ao nosso doce esposo e bom Jesus , que é todo caridade , todo amor , todo misericordia , todo compaixão para as fracas creaturas de que é pae extremosissimo ... Assim que o meu querido filho adoptivo completar dez annos , hei de separar-me d' elle , ainda que um rio de lagrimas me custe a separação , porque não póde , nem deve , continuar a viver aqui ; mas eu escolherei o destino do abandonado infante . Pedirei ao nosso bom Deus , que me inspire , e tenho fé em que hei de acertar ... É esta , meu sobrinho , a minha irrevogavel resolução . Recorde-se de que lhe ouvi , n ' aquella noite assignalada da entrega que me fez de seu innocente filho , a inaudita blasphemia de que , se eu o não recebesse , o deixaria a qualquer canto de uma estrada ! ... Um pae que profere taes palavras , perde , desde esse momento , os direitos da paternidade ... Snr. meu sobrinho ! Digne-se Deus esquecer os seus erros ! ... Assim fallando , com um tom imperioso e sêcco , deixou a madre abbadessa interdicto o seu interlocutor , que teve de retirar-se , não sem protestar haver pela força e violencia , o que á boa paz não pudéra conseguir , ameaças que ainda foram ouvidas pela respeitavel abbadessa . Era fama por todo o Portugal , fundada em apparencias mais ou menos falsas , que as noviças e senhoras religiosas do convento de Moimenta da Beira attrahiam ás suas grades a flôr da mocidade das provincias da Beira e Minho , não só pela notavel belleza de muitas d' ellas , mas , principalmente , pelo modo affavel com que recebiam as suas visitas . Dos mais assiduos frequentadores d' aquelle claustro , era um mancebo elegante , distincto em acções e nascimento , que já havia sustentado bastantes galanteios , com donzellas de todas as classes sociaes . Logo ao principiar a juventude , creára compromissos de homem feito ; e declarava a sua vida intima , a todas as pessoas que o escutavam , com a leviandade propria dos annos ainda verdes . Fôra muitas vezes , sem elle o saber , espreitado pela respeitavel madre abbadessa , em occasiões que se tornava expansivo com uma das mais lindas noviças d' aquelle convento , que o attendia e mimoseava , ao palratorio , com golodices e innocentes amabilidades . Certo dia , foi-lhe alli entregue uma carta urgente , que pediu licença para lêr . O contheúdo no escripto , fizera-o mudar o semblante tão salientemente , que a formosa noviça não resistiu á tentação de perguntar-lhe , que má novidade o pozéra assim . -- Está muito doente , um filhinho que tenho ... -- Pois o snr. , que é solteiro , tem um filho ? ! ... -- Tenho , e quero-lhe tanto como se elle houvesse nascido do mais legitimo matrimonio . Amo as creanças em geral , e estremeço aquella a que dei a existencia . Todos os sacrificios seriam insignificantes para mim , quando se tratasse de salvar innocentes creancinhas . Sou novo , mas quer-me parecer que em tempo algum perderei os sentimentos de que já me orgulho . Só reconheço a legitimidade do sangue , que é perfeitamente igual nos bastardos como nos filhos do mais santo hymeneu . -- Graças , meu doce Senhor||_Jesus Jesus|_Jesus , que já encontrei o que fervorosamente pedia á vossa infinita bondade ! ... Disse uma voz , sahida do interior das grades , que ambos reconheceram ser a da senhora abbadessa . Appareceu á grade , acto seguido , a trémula e veneranda cabeça da respeitavel superiora d' aquelle sagrado recinto , resplandecente de uma auréola de luz divina , e pediu , com a mais terna affabilidade , á noviça , que a deixasse ter um segredo com aquelle bondoso e nobre cavalheiro . Revelou a santa velhinha ao mancebo , como em seu poder cahira do céu o pequenino João , que alli escapára ao abandono de paes desnaturados . Disse-lhe que muito receiava que o pae do innocente , movido por vil interesse , tentasse apossar-se do filho pela violencia , o que não seria difficil conseguir em uma terra certaneja , onde não havia segurança nem para o asylo sagrado das esposas de Jesus Salvador . Pediu-lhe pelas sagradas dôres de Maria Santissima , que tomasse a seu cargo o futuro d' aquelle infeliz , que ella , amando-o como carinhosa mãe , confiaria do seu cavalheirismo , porque uma voz occulta , que nunca lhe mentira , lhe dizia que podia confiar . E quando , em algum dia dos poucos que tinha para viver , podesse haver ás mãos documentos que aproveitassem ao seu querido filho adoptivo , lh'os faria entregar por modo seguro . Logo que os soluços e as lagrimas da santa freira deram logar a ser ouvida do mancebo , a quem fizera tão estranha revelação e ponderoso pedido , disse-lhe , com uma solemnidade inesperada , que podia ficar tranquilla , em relação ao futuro da creança , que elle , desde aquelle momento , tambem adoptava por seu filho . Ás onze horas da noite d' aquelle dia , quem penetrasse até á porta das cellas das religiosas benedictinas de Moimenta da Beira , sentiria lá dentro lagrimas abundantes , porque todas choravam a ausencia de Joãosinho , fragil e inoffensiva creatura , que aquellas bondosas senhoras amavam com maternal affecto . Ha sempre , mórmente em terras de poucos e incultos habitantes , vigias nocturnas , homens morcêgos , que devassam os mais insignificantes acontecimentos da rua , e que levam a sua audacia até ao ponto de pretenderem sujar o sanctuario da familia com inducções calumniosas , tiradas dos incidentes presenceados , a que não sabem nem podem dar verdadeira interpretação . O fallar-se dentro do convento a deshoras , o bulicio de homens e cavallos , por occasião da entrada e tambem da sahida da creança , alguns indicios da existencia do pequeno João junto das freiras , o bom gasalhado que as trataveis madres davam ás suas visitas , e os commentarios exageradissimos dos vadios indagadores , -- foram causas , tão indignas como infundadas , da extincção d' aquelle convento . É assim , muitas e repetidas vezes , a justiça dos homens . Ao leitor attento , escusado talvez seria declarar , que o mancebo a quem foi entregue o pequenino João , se chama , n ' este conto , Sebastião da Mesquita . E a creancinha , salva da sanha de uma terrivel madrasta e da cobardia de um indigno pae , pela santa abbadessa , -- madre e mãe adoptiva -- tem aqui os nomes de João Vidal , o escudeiro . UM LEVITA ( " J. de Deus " -- FLOR . Do CAMPO . ) Em Santiago de Esporões -- antiga vigairaria do arcebispado bracarense , onde Martim Ribeiro fundou uma capella chamada de Nossa Senhora da Caridade , e estabeleceu um celleiro para os pobres , com dinheiro por elle adquirido no Brazil -- residia , no anno de 1799 , uma honesta familia de pequenos proprietarios lavradores , composta de marido , mulher e um filho de nome Alvaro , rapaz de cinco para seis annos de idade . Os apoucados lavradores , por mais de uma vez em tempo de más colheitas , tiveram de recorrer ao celleiro dos pobres , restituindo o emprestimo , quando mais farto era o anno , com o " avanço " de seu alvitre , segundo o uso e lei do estabelecimento de Martim Ribeiro , que não marcou limite ao juro para os que o queriam e podiam dar . É de mui antigas éras o costume portuguez , pronunciadissimo na provincia do Minho , dos paes imporem o destino aos filhos , quasi ao sahirem da pia baptismal . Este erro , -- que tem origem na falta de illustração do povo , e tambem , o que peior é , em calculadas conveniencias familiares , -- dá em resultado a troca de vocações , padrinho mal de muitas immoralidades e ruinas . Algumas vezes sem o quererem , na idêa até de evitarem imaginarios prejuizos , são os paes que forjam a completa desgraça de seus filhos , marcando-lhes , sem escrupoloso exame , a estrada a proseguir no transito da vida , trilho sempre difficil de aplanar , e impossivel de vencer sem desastres , para os que o percorrem violentados . Os pobres lavradores de Esporões , convencionaram fazer do seu unico filho um vigario . Ter um padre na familia , ouvir-lhe a primeira missa e vêl- o cura d' almas , é a suprema ambição dos camponezes . Alvaro , havia de ser padre , porque seus paes o queriam . Tinham feito todos os calculos ; as propriedades que possuiam chegavam para o patrimonio ; e para as despezas da ordenação , quando minguassem os rendimentos , passariam fome se tanto fosse necessario . As fortes e decididas vontades , não conhecem obstaculos . Chegou a hora de Alvaro tomar logar nas aulas de Braga . Alcançara-lhe o pae alojamento na rua de S. João do Souto , em casas da morada de uma viuva bem reputada e muito moça ainda , que havia calculado augmentar o pequeno rendimento de seus poucos haveres com o lucro proveniente de apatroar um estudante . É d' este modo que bastantes familias , nas populações onde ha lyceus e aulas publicas , diminuem as suas occultas necessidades . Chamava-se Eugenia Soares a viuva , que o era de um alferes do exercito portuguez , e contava vinte e duas primaveras no anno em que acolheu ao seu lar o estudante Alvaro da Cunha . Este , havia completado 16 annos de idade , e preparava-se para fazer exame do latim , que principiara a estudar na sua aldeia , tendo por bom professor o parocho da freguezia . Eugenia , não houvera filhos do seu matrimonio , nem conhecia parentes proximos que lhe fossem amparo . Vivia em companhia de uma creada , que já o fôra de seus paes antes d' ella nascer , que lhe queria como a filha , que todos os dias recordava as virtudes de seus velhos e fallecidos amos , e que era a sua unica conselheira e amiga . Antes de resolver a entrada de um estudante em sua casa , consultára Eugenia a sua Theresa , que apenas objectára dever ser o admittido ainda rapaz e não homem feito . N ' aquelles felizes tempos , só depois dos trinta annos completos se gosava o nome de homem . Quando a velha Thereza precisava de sahir ás compras , Eugenia e Alvaro prestavam-se mutuo auxilio nos afanos domesticos . Nasceu assim entre elles uma innocente intimidade , que os deleitava . Succedia repetidas vezes ter Alvaro a delicadeza de preceder a patrôa no amanho das iguarias , confundindo o seu trabalho com o de Eugenia , e dando isto logar a toques de mãos tão singelos como perigosos nas edades em que o calor do sangue traspassa a cuticula , e póde , pelo contacto , communicar as doenças physicas e os ardores moraes : d' aquellas , e d' estes , ha a temer , após a communicação , a reciprocidade de padecimentos , sendo o amor o mais fatal de todos , por ser incuravelmente nervoso . A viuva e o estudante adoeceram da terrivel molestia , que se não cura tendo a séde na alma . Decorreram cinco annos . Faltava ao ordinando um exame , para completar o seu estudo e ficar preso á egreja . Mais alguns mezes passados , e acabaria o engano das almas de Eugenia e Alvaro , que já durava muito , livre de vicissitudes e de impurezas . Chegou o menorista , de ter passado as férias grandes na sua aldeia , sem grande pesar de haver deixado a companhia dos paes , que trocava por outra havida por mais terna : é assim o coração humano . O estudante deparou com Eugenia physicamente mudada , e sobresaltou-o tão rapida alteração . Viu pallida , magra , chorosa e pensativa , a mulher bella , como sempre nos parece a do amor , que deixara , quarenta dias antes , com todo o viço de uma feliz mocidade . Fez-lhe um montão de perguntas , e só teve lagrimas em resposta . As gotas de humor aquoso que sáem a pares dos olhos da mulher estimada , transformam-se em ferros agudos , a rasgarem fundo na alma do homem que as sente . Seccaram-se as lagrimas : como ? Ao sol do amor , que o menorista fez nascer do soffrimento . A mudez de Eugenia promoveu a de Alvaro . Em casos taes , o silencio é o requinte do sentimento . A noite d' aquelle dia passou-a o estudante a scismar . Quando pelas fendas da janella do seu quarto conheceu o alvorecer , vestiu-se e sahiu . Não fez reparo em achar apenas cerrada a porta da rua , por que a sua preoccupação estava sobranceira aos factos materiaes . Caminhou sem direcção premeditada . Ao passar no largo da Sé , viu aberta uma porta lateral da egreja , e foi orar . Acabada a oração , reparou n ' um vulto encostado a um confissionario , em posição de penitente , e estremeceu : não a vira , adivinhara Eugenia n ' aquella confessada . o que atravessou o espirito do ordinando por aquelle encontro ? Nem elle o saberia dizer . Só com grande esforço , conseguiu recolher-se a casa e deitar-se vestido sobre a cama . Passadas horas , e já quando se tornou reparada a falta de Alvaro á primeira refeição , entrou a velha Thereza no quarto do estudante e perguntou-lhe se estava doente . -- Doente , e muito . Diga á snr. ^ a D. Eugenia , que estou vestido , como vê , e que lhe peço a mercê de vir fallar-me . Eugenia , entrou no quarto de Alvaro , e aproximou-se do leito com sobresalto . O doente , levantou rapidamente a cabeça e , sem dar tempo a perguntas , disse : -- A senhora tem a bondade de mandar a Thereza procurar um portador que vá já buscar meu pae ? -- Para quê ? ! -- Para sahir d' esta casa e d' esta terra immediatamente , a vêr se posso curar-me do mal que me assaltou esta manhã , e passar o resto da vida como a passam meus paes ... Já não quero ser ... " padre " ! -- Foi " elle " , foi , Alvaro , que me aconselhou a despedir-te ! ... Mas eu amo-te , ouves ? e não quero que me fujas ... Deus não póde ser tão severo como diz " aquelle " seu ministro ; ora não ? ... E eu morria se tu me faltasses ; tenho a certeza de que morria ... Vês ? Só agora , que deveria proceder de modo bem opposto , se attendesse aos dictames do meu confessor , é que rompo o véu do meu coração ! ... A severidade , talvez egoista , de um padre indelicado , accelerou o natural desfecho d' aquellas relações . A missão melindrosa do confissionario , mais ainda que a do pulpito , só devia ser confiada a cabeças muito sãs , e a purissimas almas . Alvaro , ficou e sarou logo : bem dever era , que ficava e que sarava . Depois de scenas assim expansivas , é que nós não " ficamos " pela continuação da pureza no sentimento . Na epocha propria , fez o estudante o exame que lhe faltava , e ficou habilitado a tomar ordens ecclesiasticas . Seguraram-lhe os paes o patrimonio em todos os seus bens , e vieram pernoitar á cidade , em companhia do filho , na vespora do dia em que elle devia ficar para sempre ligado á egreja , que houve por bem condemnar os seus ministros á mais terrivel das solidões , -- á solidão d' alma ! Chegada a hora da ceremonia , foram vêr o religioso e solemne apparato , os paes de Alvaro , acompanhados por Eugenia e pela creada Thereza . Quando o ordinando appareceu revestido do habito clerical , cahiu a desditosa Eugenia , com o sangue gelado , nos braços de Thereza . A boa da serva , ficou tambem semi-morta . Estavam finalmente realisados os ambiciosos sonhos dos velhos lavradores de Esporões . Alvaro , era presbytero ! CELIBATO " Deus me livre de discutir materia tantas vezes disputada , tantas vezes exhaurida pelos que sabem a sciencia do mundo , e pelos que sabem a sciencia do céu ! " " Alex . Herc . " -- EURICO . O padre||_Alvaro Alvaro|_Alvaro , foi residir , em companhia de seus paes , para a terra da sua naturalidade , onde cumpria rigorosamente todos os deveres de seu ministerio sagrado , procurando os infelizes para os consolar com a palavra e com a esmola , fazendo colheita de lagrimas , e escondendo de todos as que lhe vertia o coração . Vivia só para a caridade e para a dôr . Decorando , no Evangelho , a vida de Christo , identificou-se com Elle no amor da humanidade . Conseguiu augmentar ao casebre do seu patrimonio um novo e separado repartimento , na solidão do qual , fóra das horas obrigadas aos seus deveres , fechava cuidadosamente as suas mágoas . O soffrimento de um filho , não póde ser , por muito tempo , estranho aos que lhe deram a vida . Os bondosos lavradores de Esporões , conheceram , mais por instincto do que por sagacidade , que seu filho padecia , e quizeram profundar a causa de suas tristezas . Espreitaram-no a horas mortas , e ficaram surprezos do que viram . -- Que peregrinação será aquella do nosso querido Alvaro , em noites de tempestade , Maria ? ! -- Perguntava o velho a sua esposa , ambos de volta de suas pesquizas . -- Eu sei-te lá , homem ! Só te digo , que isto tudo me faz chorar ... Elle come quasi nada , anda tanto por esses montes e outeiros , vae pelas cabanas á cata dos necessitados , passa o pouco tempo que lhe resta de dia a lêr e a escrever , e ainda sahe de noite e com um tempo assim ! ... Deus me perdôe , mas quer-me parecer que o nosso filho se fez padre de mais ! -- Não ha gosto perfeito n ' esta vida , é certo . O prazer com que lhe ouvimos a primeira missa , farta recompensa de todos os nossos sacrificios , desandou , dentro em pouco , n ' estas lagrimas ! Mas deixa estar , que eu ainda tenho vigor , e não canço nas minhas pesquizas , que podem trazer-nos tranquillidade . D ' aqui por deante , quero ser eu só a vigiar o nosso Alvaro , porque fico mais á minha vontade . Tu , entretanto , ficas na cama a pedir a Deus por nós , sim ? -- O que tu queres , quero eu sempre , Antonio . Uma das noites em que Alvaro foi espreitado pelo pae , entrou este , após a sahida do filho , no repartimento da casa habitado pelo padre . Analysou , com olhos paternaes , os mais insignificantes indicios de soffrimento , physico e moral , que por alli estavam dispersos . Entre outros , pareceu-lhe descobrir signaes de que o seu Alvaro cuspia sangue , supposição que fez verter da testa , ao triste pae , esse humor rubro que nos circúla nas arterias e veias . Encontrou no chão um papel com letras , que não sabia lêr , e guardou-o . Na madrugada do seguinte dia , foi o lavrador á residencia do seu parocho e velho amigo pedir-lhe o favor de lêr o escripto . Resava assim : " Não , disse S.||_Gregorio Gregorio|_Gregorio , que o laço do matrimonio era o nucleo do genero humano , o esteio da vida e o centro da piedade ? " Para quê , os concilios d' Elvira e de Trento ? ... " Celibato puro ! ! ... " Para quê , decretar contra a natureza ? ! ... " Oh Christo ? Não quizeste Tu nascer de Maria ? ... Se não tivesses por consorte a Cruz da Redempção humana , fugirias Tu a completar , quando homem , a Tua existencia no mundo ? ... " Porque não ha de ser para todos os filhos do peccado , a mulher , resumo do bem possivel , a casta mensageira entre o céu e a terra ? ! ... " O parocho , que era um padre intelligente e bondoso , pediu á sua ovelha , que fosse depositar aquelle papel no mesmo sitio em que o achara , e passou , depois , largas horas em colloquio amigo com o pae do que fôra seu discipulo . Quinze dias depois da conferencia do parocho com o velho Antonio , ao cahir da tarde , chegava o lavrador , na rua de S. João do Souto , á cabeceira do leito em que Eugenia , cadaverica , estava recostada . Houve um longo silencio : ambos temiam o rompimento . Animou-se finalmente o velho a dizer : -- Então de que mal padece a snr. ^ a Eugenia , não me dirá ? As mulheres sempre são muito fracas ! Pois a molestia que tem , é lá cousa para estar com esses quebrantos ? ! Será isso mimo ? ... -- Vou dizer-lhe tudo por uma vez , snr. Antonio , antes que as forças me faltem ... Amo seu filho e sou amada por elle ... Um padre e uma viuva ! ... Deus castiga-nos , e bem o tinha agourado o meu confessor ... " Elle " , está cavando a sepultura , bem o vejo ; e eu quero , e hei de morrer antes ... -- Em quanto viverem os velhos como eu , não podem morrer assim depressa os novos como vossas mercês , descancem ... Mas porque não fallaram a tempo ? ! Porque não confiaram de mim esses incuraveis amores , quando fossem ainda horas de os legitimar aos olhos do mundo ? ... -- Não o quiz eu , snr. Antonio , porque tive mêdo de ajuntar ao meu crime o seu odio , ou de praticar novo crime , levando Alvaro á desobediencia . -- Foram bons sentimentos esses , foram ; mas fôra melhor que ambos tivessem mais alguma confiança nos corações dos outros ... Em fim , isso lá vae , e o que não tem remedio remediado está . Agora , cumpre fazermos todos da nossa parte para se viver o melhor possivel , o que se hade conseguir com o favor de Deus ... A este tempo sentiu-se rumor á porta do quarto , e ouviu-se distinctamente a voz de Thereza dizer : " É seu pae ! ... " -- Entra , Alvaro ; -- disse em voz clara e de modo a ser ouvido de fóra , o sympathico e honrado velho . Entrou o padre , ajoelhou aos pés do pae , e titubeou a palavra : -- Perdão . -- Levanta-te , que és mais infeliz do que culpado , e para os infelizes reservou Deus a sua divina misericordia . Sei tudo , e tambem o sabe tua mãe . Não te louvamos nem condemnamos ; choramos as tuas dôres , que são as nossas , e procuramos-lhe allivio . É preciso que vivas , e que viva tambem a snr. ^ a Eugenia . Eu mando , pela voz da religião que tenho n ' alma , pela do sangue e pela da honra , como a entendem os homens do campo . Se fôr condemnado pelos fanaticos , já tenho a absolvição do meu santo pastor , que mais vale . A um pobre , que sempre foi honrado , não falta a Providencia nas occasiões precisas . Tu , meu Alvaro , vaes ser nomeado reitor da freguezia -- Santo Adrião de Penafiel , que assim m ' o prometteu o snr. fidalgo de Porto Carreiro , que nunca faltou á sua palavra . É um presente que me faz , disse elle , por eu lhe ter pago com toda a pontualidade , ha quarenta e cinco annos , um fôro , de dois carros e meio de pão meiado , limpo e sêcco . É um fidalgo ás direitas , que sabe conhecer o que vale o suor da pobreza . Ora , a reitoria , fica lá para o valle de Sousa , nas proximidades de Penafiel , muito longe d' aqui . Eu e tua mãe de certo lá não poderemos ir ; mas tu , que estás na força da vida , virás amiudadas vezes visitar-nos . O snr. padre reitor de Santo Adrião , tem na aldeia da sua naturalidade uma irmã viuva , que póde ter um filhinho que talvez precise do auxilio do thio padre ... Repito , eu mando , e quero ser obedecido . Não sei o que dizem os livros sagrados nem os profanos , porque me não ensinaram a lêr : tenho só aprendido o que me diz a minha consciencia honrada . No tribunal do Deus justo , darei eu as contas por tudo isto . Do escandalo , é que as não hei-de dar , porque tenho toda a segurança nos bons sentimentos d' aquelles que preferiam a morte , á quebra publica dos seus deveres . Quando Antonio acabou de insinuar as suas ordens , dadas n ' um tom prophetico e inspirado , é que fez reparo no quadro que , havia já minutos , alli se via . Estavam a seus pés , ajoelhados , cada um de seu lado , regando-lh ' os de lagrimas doces , os amnistiados da paternidade , que representa Deus na terra . Era bello de vêr-se a mocidade cadaverica pelo mal d' amor , abraçando commovida até ás lagrimas , a honra envelhecida no rude trabalho do campo , fresca e vigorosa como a carvalheira secular liberta da podridão das cidades ! ... No dia 27 de agosto de 1819 , recebia o primeiro sacramento da egreja , na cidade -- Braga , um recem-nascido do sexo masculino , a que foi posto o nome de Arthur . Os padrinhos , por procurações de Sebastião da Mesquita Bandeira de Mello e de D. Isabel de Abendanho e Sousa , foram Antonio da Cunha e Maria de o Espirito Santo , os honestos lavradores de Esporões , que deram a existencia ao reitor de Santo Adrião de Penafiel . Estava o padre||_Alvaro Alvaro|_Alvaro ha mais de tres annos de posse da reitoria , sendo acatado e tido na conta de exemplar pelo povo , quando recolheu na sua residencia uma irmã viuva com um filho . Cresceu o amor e o respeito do povo pelo padre reitor e pela familia , na razão directa do augmento de beneficios e de consolações que recebia . Eram seis mãos sempre abertas á pobreza , e duas santas boccas a semearem palavras animadoras aos dous sexos , o que o povo encontrava na residencia do reitor de Santo Adrião de Penafiel . Por isso , o reitor , irmã e sobrinho , ganharam a estima geral , ao ponto de fazerem dividir , nos corações de todos os habitantes do valle de Sousa , a antiga e bem fundada sympathia pela familia do fidalgo||_Sebastião_da_Mesquita Sebastião|_Sebastião_da_Mesquita da|_Sebastião_da_Mesquita Mesquita|_Sebastião_da_Mesquita . Um dia , chegou ao conhecimento do publico , que havia luto na residencia do padre||_Alvaro Alvaro|_Alvaro . Foi lá toda a gente da povoação . O reitor , leu , commovidissimo , ao seu rebanho , uma carta que recebera do seu amigo e mestre , o parocho de S.||_Santiago_de_Esporões Santiago|_Santiago_de_Esporões de|_Santiago_de_Esporões Esporões|_Santiago_de_Esporões . Dizia assim : " Dei hontem sepultura a dois cadaveres , Alvaro , e dou hoje cumprimento a uma triste imposição da amisade . Está devoluta a residencia do teu patrimonio . Teu pae morreu ás dez horas , e tua mãe á uma da tarde do mesmo dia . Presenciei a morte de dois justos . Disseram-me , para te communicar , que iam pedir a Deus por ti ... Resignação . " As lagrimas do padre confundiram-se com as de todos que o escutavam . Arthur , que então teria sete annos , trepou aos joelhos do sagrado pastor , pousou-lhe os rosados e frescos labios nas faces crestadas pelo fogo das lagrimas , e disse-lhe : -- Não chores , thio , que os avós estão no Céu . Sabes o que hasde fazer ? Manda occupar as casas , que elles deixaram , pelos pobresinhos lá d' essa terra , sim ? -- Pois sim , querido amor , e hei de dizer-lhes que foste tu o da lembrança ... Arthur andou nos braços de todos , e foi devorado com beijos . N ' esta occasião , deu entrada na sala o fidalgo||_Sebastião_da_Mesquita Sebastião|_Sebastião_da_Mesquita da|_Sebastião_da_Mesquita Mesquita|_Sebastião_da_Mesquita , acompanhado de uma creada , que trazia ao collo uma interessante menina de treze mezes de idade . O povo formou respeitosamente duas alas , e o reitor recebeu , com agrado , mais aquella visita . -- Que fez o meu afilhado para merecer tantos affagos ? -- perguntou o fidalgo , depois de ter saudado a todos . -- o que havia de ser , snr. da Mesquita ? ... O rapaz parece não ter mau coração : destinou a habitação dos avós fallecidos para residencia das pessoas mais necessitadas da freguezia d' elles ; e as boas almas d' estes meus filhos todos , pagaram-lhe a lembrança em fartas caricias . -- Então já assim caminhamos para o Céu , snr. meu afilhado ? ! Muito bem , muito bem ! ... Vou dar-lhe a primeira paga da sua nobre acção ... -- E assim fallando tomou Arthur nos braços e , aproximando-o da filhinha , fez com que se beijassem os dous innocentes ... Treze annos depois d' estas scenas , em dia de trabalho , e por horas em que estão dezertas as egrejas das aldeias , entrava Sebastião da Mesquita no templo parochial -- Santo Adrião , e batia de manso nas costas de um padre , que estava curvado sobre uma sepultura . Ao levantar-se o padre , tremeu involuntariamente o fidalgo , de encarar nas transtornadas feições do seu amigo . -- Nem tanta penitencia nem tamanha dôr , padre||_Alvaro Alvaro|_Alvaro , que podem não ser do agrado de Deus . Não precisa , Arthur , agora mais que nunca dos seus cuidados ? -- Basta-lhe a protecção do nobre e honrado padrinho ... A minha vida , está n ' esta sepultura , onde talvez cahisse uma condemnada ás penas eternas ! ... -- Não conta com a bondade do Pae para com seus filhos , e por uma culpa involuntaria , desvanecida por innumeras virtudes , só quer vêr o castigo , em vez do perdão ? ! -- E as leis da egreja ? ! ... -- E as leis da natureza ; a misericordia divina ; os votos de seus honrados paes ; a consideração , a estima , o respeito geral ; as bençãos dos infelizes e a tranquillidade da consciencia , pelo que toca a todas as demais acções da sua vida ? ... -- Viverei , snr. Sebastião da Mesquita , e o tempo que me sobrar da penitencia dal- o-hei á sua heroica amisade ! RAPTOS " Que póde valer á hebrêa Sentir n ' alma chamma infinda ? como a linda Ester ser linda , e amada como Rachel ? Se o coração da judia se entre-abre do amor aos lumes , não lhe dá tempo aos perfumes o seu destino cruel . " ( " T. Ribeiro " -- SONS QUE PASSAM ) . " O vicio está por tal fórma naturalisado que não ha razão para espantos nem sequer para censuras . " ( " Camillo C. B . " -- O CONDEMNADO . ) Foi ephemero o triumpho para a revolução do Minho , denominada -- Maria da Fonte . -- Cahiu o ministerio ao rugido popular , foi certo ; mas a seis de outubro do mesmo anno , o governo constituido ao grito dos revoltosos , teve , por vontade régia , sorte igual á do seu predecessor . A esse facto , que se deu fóra das praxes constitucionaes , chamou-se -- " emboscada palaciana " -- e deveu-se a mais formidavel das guerras civis portuguezas . A heroica cidade da Virgem foi o centro da resistencia ao chamado governo de facção , constituindo dentro de seus muros , a nove de outubro de mil oito centos quarenta e seis , uma " junta provisoria do governo supremo do reino " , que ousou prodigios bem dignos de causa mais santa , como seria a defesa da patria contra estrangeiro dominador . Exaltaram-se os partidos , e de todos os angulos do paiz voava a mocidade portugueza a alistar-se sob as bandeiras hasteadas em guerra fratricida . O enthusiasmo guerreiro tocou o delirio . Raro , bem raro , seria encontrar-se um portuguez de braços cruzados ante o flagicio geral . Além dos bandos constitucionaes , achou tambem ensejo de desfraldar bandeira o velho e respeitavel partido absolutista : respeitavel na sua quéda , e ostracismo sem limite , pela coragem da abnegação , e pelo inquebrantamento da sua fé . Este ultimo grito de revolta , chamou tambem os velhos ao campo da batalha . Acabaram então os indifferentes : todos os portuguezes , cada um a sabôr das suas paixões , ficaram empenhados na luta . Sebastião da Mesquita foi convidado por um general estrangeiro -- Mac-Donnell -- , que se dizia commissionado do snr. D. Miguel de Bragança , a tomar parte activa no pronunciamento ante-dynastico . Recusou-se . Pediu-lhe o general que fizesse , ao menos , parte do seu estado maior , para lhe dar conselho e força moral , e apresentou-lhe um autographo do principe proscripto , que fez abalo na rigidez do velho fidalgo . Esta conferencia teve logar nos primeiros dias do mez de novembro de mil oitocentos quarenta e seis ; e não se passaram muitas horas depois d' ella , sem que o aventureiro general visse caminhar ao seu lado , para Villa Real , o respeitavel pae de D. Maria da Gloria , tendo previamente recommendado ao seu afilhado , Arthur Soares , que auxiliasse a esposa na vigilancia do seu casal . Quem podesse espancar as trevas da tempestuosa noite de dezoito do mez e anno referidos , e penetrar no terreiro da frente do palacio de Sebastião da Mesquita , veria alli tres liteiras e seus guias , um formidavel cortejo de lacaios , e cêrca de cem homens armados , todos recolhidos ao maior silencio . O capitão d' aquella força e apparato , era o fidalgo||_Leopoldo Leopoldo|_Leopoldo . Conseguira aquelle posto no exercito da rainha , em batalhão addido á brigada do commando de um general que , por aquella epocha , se aproximou da cidade do Porto , no intuito de lhe serem abertas pela traição , que se dizia combinada , as fortes linhas defensivas do baluarte da Liberdade . Não podemos averiguar como o snr. de Lencastre conseguira desviar aquella força da sua direcção para as cercanias do Porto . O que sabemos é que aquella gente caminhara de noite , por verédas escusas , no manifesto intento de evitar encontros com os sublevados . O mais , ficou sendo um segredo do voluntario capitão , e do general commandante da brigada . No interior do palacio , e no quarto reservado a D. Maria da Gloria , onde tambem estavam Rosa e Anna , que ficaram sendo constantes companheiras da fidalga desde a ausencia de Sebastião da Mesquita , á mesma hora da chegada ao terreiro do já descripto e bellicoso apparato , -- havia uma conversação , a que o leitor , ainda hoje , tem direito de assistir : -- Conheço agora , minhas boas amigas , toda a verdade do rifão -- " diz-me com quem vives , saberei os fracos que tens . " -- Estou supersticiosa com a nossa Annitas ! Não sei o que me adivinha o coração ... A ausencia do meu illustre pae e do João Vidal , e o escrupulo do snr. Arthur Soares , em não querer pernoitar n ' esta casa , são naturaes acontecimentos , bem o conheço , mas despertam-me uns certos receios que até hoje não conhecia em mim ! ... -- Querem vêr que ainda lhe lembra a má catadura do irritado primo n ' aquella noite de luar ? ! ... Não pense em tal , minha querida snr. ^ a D. Maria , que a tempestade , se o foi , passou sem resultados fataes , e só deve restar d' ella , ao seu auctor , o pesar de a ter provocado . -- É de certo pela minha natural timidez que eu , partilhando os sustos da snr. ^ a D. Maria , vejo cahir sobre nós a tempestade , como a Rosa lhe chama , e fazer-nos victimas do seu louco furor ... -- Por melhor o fará Deus , Anna ... Comtudo , parece-me prudente não desprezar estes presentimentos , accordar a minha presada mãe e senhora , e pôr os criados de atalaia ... -- Credo ! o que ahi vae ! ... E o mais é que são capazes de reunir em mim , ao pêso d' esta tenebrosa noite de inverno , o mêdo do terror de que as sinto possuidas ... E as tres donzellas , como se fossem tocadas por occultas molas , saltaram fóra dos leitos , e vestiram-se apressadamente . Ao mesmo tempo que se manifestava nas tres donzellas o máu presentimento revelado no dialogo a que fizemos assistir o leitor , sentira igual panico a velha fidalga D. Isabel de Abendanho e Sousa . Não são virgens estes casos . Muitos exemplos attestam o ter sido uma familia atacada de funestas ideias , e de iguaes padecimentos physicos , em alguns de seus membros ao mesmo tempo , vivendo até distanciados uns dos outros . Não sabemos se ha sciencia que explique o phenomeno ; mas é certo que se tem dado . Fez a dona da casa levantar os criados , que collocou de sobre-aviso , indo em seguida escutar á porta do quarto da filha , para certificar-se de se havia por alli em que fundar os seus receios . Na mesma occasião era aberta a porta por D. Maria e , juntas as quatro habitadoras do palacio , confidenciaram os seus mysteriosos sustos . Teriam apenas tempo de trazer a lume a mais diminuta parte de suas apprehensões , quando sentiram tropel de criados , tomando a direcção do quarto , que procuravam a senhora fidalga , para , entre temerosos e espantados , lhe darem parte de que o palacio estava cercado de tropa . Foi então que aquellas quatro mulheres , tímidas momentos antes por ideias de imaginarios perigos , mostraram que o sangue frio e a coragem , quando chegam as verdadeiras tempestades da vida , não são qualidades alheias ao sexo chamado fragil . Era , com tudo , tarde para se tomarem acertadas providencias contra qualquer aggressão . Um dos serventes da casa , comprado pelo ouro de Leopoldo , abrira uma das portas do palacio . Foram , pois , surprehendidas as tristes senhoras pela multidão de homens armados , á testa dos quaes se via o imprudente auctor d' aquelle attentado , e impossibilitadas de resistir aos intentos de seus perseguidores . Entre alguns dos criados do palacio , e a força violadora d' aquelle lar , houve uma pequena luta -- até aquelles serem subjugados pela vantagem numerica -- perecendo apenas n ' ella o criado traidor , ás mãos dos assalariados por aquelle que lhe comprára a fidelidade . As tres donzellas foram brutalmente amarradas e conduzidas ás liteiras . A velha fidalga presenceou tudo com denodo varonil , sem fazer o mais leve rumor , representando , na sua mudez e aspecto sublimes , uma perfeita estatua de concentrado soffrimento . Era uma " Vilhena " a meditar vingança condigna de tão atroz delicto . Ao arrancarem-lhe as donzellas , disse-lhes D. Isabel com voz severa : -- A infamia não vence a honra . Sabei morrer sem vergonha , que eu vos abençôo como Deus vos abençoará . Adeus , Maria ! ... Retirados que foram os assaltantes com as suas presas , ficou o palacio occupado pelos fieis creados , agglomerados em volta de sua ama D. Isabel . Esta heroica matrona , teve força para recolher ao coração as lagrimas da saudade , o fel do desespero e do seu justificado odio ao malvado parente que a deshonrava , e para dizer com apparente tranquillidade aos que a cercavam : " Quizera antes ter de vos lamentar mortos , e de vos mandar suffragar as almas , do que vêr-vos aqui sem aquellas em defesa das quaes deveriam todos acabar seus dias , porque eram vossas amas , vossas enfermeiras , e vossas amigas ... Já agora não ha tempo para mais reflexões . Apparelhae todos os cavallos que estão nas cavallariças , -- um d' elles para que eu o possa montar -- soltae os animaes recolhidos nas lojas , colhei todos os retratos de familia que encontrardes , e deitae immediatamente fogo a este palacio . Não deve mais ser visto de meu marido , o logar onde um fidalgo villão insultou a mulher e a filha de um verdadeiro nobre . Reparae que eu " quero " caminhar para a residencia do snr. reitor , alumiada pelas chammas da casa que foi habitação de meus avós ! ... " Foram rigorosamente cumpridas as ordens da fidalga , que effectivamente caminhara para casa do reitor ao clarão que despedia o fogo lançado de seu mando ao seu solar , e ao som do toque de sinos a rebate , que o incendio provocara . A meio caminho da residencia encontrou D. Isabel Arthur Soares , que o toque dos sinos despertara , ao qual referiu o succedido . Duas horas depois das scenas narradas , quem fosse á sala do oratorio da residencia , encontraria uma senhora e um homem -- dous velhos -- ajoelhados , a orarem ao Creador . Eram o reitor e a fidalga D. Isabel . Á mesma hora , passeava Arthur Soares , como louco , no seu quarto , brandindo um punhal , aquella detestavel arma , já conhecida do leitor , que D. Maria lhe legára . COMBATE " O homem debatia-se ahi nas vascas da morte , e o sol passava involto na sua gloria sem corar das angustias d' aquelles , que em seu ridiculo orgulho se chamavam monarchas e conquistadores do mundo ; sem lhe importar se os vermes vestidos de ferro , chamados guerreiros , se despedaçavam uns aos outros com o delirio insensato das viboras no momento dos seus amorosos ardores . " ( " A. Herculano " -- EURICO . ) Em Porto Manso , logar situado pouco abaixo das Caldas de Arego , no dia 19 de Novembro de 1846 -- o seguinte áquelle das scenas descriptas no capitulo precedente -- estavam postados á margem do rio Douro , em fortes posições , uns quinhentos homens commandados pelo aventureiro general Mac-Donnell , espreitando a passagem rio abaixo de um bravo , mutilado e honradissimo militar do tempo do cêrco , que servia ás ordens da junta , e que recolhia , com a força de seu commando , á invicta cidade do Porto . Desprevenido da cilada , soffreu o liberal guerreiro de muitas e bem feridas batalhas , um vivissimo fogo de fuzilaria , despejado sobre as suas tropas embarcadas , pela emboscada guerrilha . Travou-se combate . No mais vivo da peleja , dirige-o um cavalleiro o seu corcel a toda a brida em direcção onde se achava o general da guerrilha , e segredou-lhe : -- General ! Não é d' este modo que se batem os defensores de uma causa justa e sancta . Esta espera traiçoeira a uma força que nos não aggride nem mesmo podemos ter como inimiga declarada -- é procedimento condemnado pelos bons estimulos , por todas as regras , e pelo decoro da briosa carreira militar . Se não manda já cessar o fogo , e tocar a retirar , retiro-me eu immediatamente . -- Faça o que lhe aprouver fazer , snr. Sebastião da Mesquita , que eu não desisto do meu empenho em aprisionar o " manêta " . -- Não o conseguirá . A Providencia , que muitas vezes parece dormir , é sempre protectora dos opprimidos . Recolho a minha casa , general , e não creio que nos tornemos a encontrar . Verificou-se o vaticinio do nobre fidalgo . Poucas horas depois d' aquelle curto dialogo , retirava a guerrilha de Mac-Donnell em completa debandada , deixando no campo do combate 17 mortos e 9 prisioneiros , escapando com difficuldade de ser tambem aprisionado o seu aventureiro commandante . Quando Sebastião da Mesquita , acompanhado do seu fiel escudeiro João Vidal , seguia caminho de sua casa , viu ao largo , caminhando em direcção a elle , uma cavalgada que , sem atinar com o motivo , lhe fez profunda sensação . Ao aproximarem-se os dous grupos de cavalleiros , não pôde suster o velho fidalgo uma exclamação de espanto , reconhecendo sua mulher , o reitor , Arthur Soares e todos os seus criados . Apeiaram-se silenciosos . Era um descampado o sitio do encontro . D. Isabel abraçára seu marido , debulhada em lagrimas . Todos os rostos exprimiam a mais profunda tristeza . Houve um longo e doloroso silencio . Sebastião da Mesquita interrogou sua mulher com um olhar , que D. Isabel comprehendeu e revelou ao inquieto esposo o attentado do seu palacio , e as suas consequencias , sem esquecer a mais pequena circumstancia do occorrido . O velho ficára por instantes como fulminado . Quando pôde fallar , disse á esposa : -- Isabel ! Acabas de dar-me , com a má nova , mais uma prova do quanto és digna do meu affecto . Procedeste como honrada mulher que és . O que resta a fazer , compete-me a mim , e crê que Deus me ha-de conservar a vida para a desfórra . As nossas filhas -- chamo assim a todas -- se não morrerem , hão-de voltar com honra ao nosso poder . A educação e o sangue , são , n ' estes casos , melhores guardas do que o mais poderoso exercito . Socega . -- Padre Alvaro , póde voltar a pastorear o seu rebanho . Não lhe agradeço o que fez , porque a verdadeira amisade vexa-se com agradecimentos . -- Arthur Soares , sei lêr nos seus olhos a sua vontade e por isso lhe digo que militará desde hoje ao lado de seu padrinho . Faço-me coronel ou general , e dou-lhe o posto de meu ajudante ... -- E para mim , snr. Sebastião da Mesquita , -- interrompeu o velho reitor -- reclamo o de padre capellão do seu regimento e , se fôr indeferida a minha pretenção , como estamos em tempos anormaes , despacho-me a mim mesmo , e sigo-o , ainda contra vontade de v. exc . ^ a. As minhas ovelhas ficaram entregues a um bom pastor , que eu previra a demora da snr. ^ a D. Isabel , e comprehendi que o meu dever era não me apartar um só instante da nobre senhora , que me honrara procurando o abrigo do meu tecto . Não tente demover-me d' este proposito , snr. Sebastião da Mesquita , que deve conhecer a mágua que a reluctancia de v. exc . ^ a me causava . -- Obrigado , padre||_Alvaro Alvaro|_Alvaro . Seja como quer , que deve ser como Deus manda . Durante o tempo que durou este encontro , explicações e pactos , foram-se agglomerando em volta do grupo os guerrilhas que vinham fugidos do combate , e que haviam reconhecido em Sebastião da Mesquita o ajudante do general " inglez " , como elles chamavam a Mac-Donnell . O velho fidalgo perguntou-lhes se queriam continuar a militar sob o commando d' elle , proposta que todos receberam com exclamações da mais expansiva alegria . Dentro em pouco reuniu o ex-ajudante , ou antes conselheiro , do aventureiro general , debaixo do seu commando , quasi toda a força de que Mac-Donnell dispunha antes do combate . Dispoz Sebastião da Mesquita em acção de guerra toda a sua tropa , e proclamou-lhe a conveniencia de uma rigorosa disciplina , declarando-se-lhe intransigivel e inimiamente severo para qualquer infracção . Estavam já em disposições de marcha , para pernoitarem na mais proxima povoação , quando o novo commandante viu aproximar-se-lhe um official a cavallo , que chegára alli á desfilada . Déra a tropa caminho ao recem-vindo , por não haver que temer de um só homem , e pelo instincto de que havia utilidade n ' aquella apparição . A um signal do esbaforido official , mandou Sebastião da Mesquita fazer campo , em que ficaram um tanto isolados da força o recem-chegado , elle e a familia . Não cabe nas forças de um escriptor do nosso pulso , pintar satisfactoriamente as gratas impressões e o delirante contentamento de todos , ao reconhecerem , n ' aquelle supposto mensageiro , a intrépida Rosa ! Fôra o caso , que chegando Leopoldo com as tres roubadas donzellas ao Bom Jesus do Monte , dos arrabaldes -- Braga , e recolhendo-as á hospedaria , teve Rosa artes para communicar , por uma varanda , com o quarto immediato ao que em prisão lhe fôra dado , onde a sorte quiz que houvesse um completo fardamento de official ajustado ao corpo da nossa heroina . Conceber o seu plano , despojar-se dos feminis vestidos , substituil- os pela farda , descer á cavallariça , ordenar em tom positivo ao curador que apparelhasse o seu cavallo , montal- o e fugir -- foram tudo actos tão seguidos e repentinos , quanto vigorosa e ardida era a vontade da donzella ! Contou Rosa a historia da sua fuga com as variantes e variadas peripecias a que forçosamente havia de sujeital-a a sua inexperiencia , narrou os succedimentos que da liteira poude presencear após os raptos , e foi no fim abraçada por todos com frenetico enthusiasmo . No rosto de Arthur Soares , ao reconhecer Rosa , havia transparecido um raio de alegria , que foi de novo sumido nas trevas da sua profunda tristeza , mal que terminára a narrativa . -- Esta , já está salva ! e hade ser o primeiro mobil da salvação das outras nossas filhas , Isabel ! -- Disse Sebastião da Mesquita , cheio do jubilo que em taes circumstancias podia abrigar no peito . AMOR AMOR é a palavra , o brado eterno Solto por Deus ao vêr já feito o mundo , Que fez tremer as abobodas do inferno E o sol ficou da côr d' um moribundo : A primavera , estio , outomno , inverno , Terra , céu , alma pura , bicho immundo , Tudo ahi cabe á larga de tal modo Que n ' essa concha Deus se fecha todo . " ( " João de Deus " -- FLORES DE+O CAMPO . ) Á margem de uma estrada que serve de transito entre Vianna e a praça de Valença no alto Minho , em aprasivel e pittoresca posição , olhando as viçosas e celebradas cercanias do nosso poetico Lima , -- está situado um sumptuoso palacio com suas suberbas fachadas das ordens Toscana e Dorica , esta decorando a frente principal , e aquella a do primeiro jardim , como tambem as suas respectivas torres ou pavilhões . A escada principal d' este edificio , rivalisa com a do palacio episcopal da cidade do Porto . A capella ostenta um elegante zimborio e grande profuzão de maravilhosos ornatos . Os seus aprasiveis parques e bellissimos jardins , com magnificas e espaçosas ruas , tornam aquella vivenda verdadeiramente encantadora . O interior corresponde ao exterior , se não o excede , na vastidão , luxo , e boa ordem com que está decorado . Fôra para aquelle paraiso , que o sr.||_Leopoldo_de_Lencastre Leopoldo|_Leopoldo_de_Lencastre de|_Leopoldo_de_Lencastre Lencastre|_Leopoldo_de_Lencastre fizera conduzir D. Maria e a sua discipula Anna , conservando-as separadas , ignorando a existencia ali uma da outra , e na maior vigilancia , para evitar outra fuga como a de Rosa . Viviam as duas donzellas n ' aquelle privado carcere rodeadas do mais asiatico luxo , e como feudaes princezas a que , no exilio , fosse concedido o eden por homenagem . Anna facilmente se coadunára com a nova e extraordinaria existencia a que fôra levada pelo crime , por que -- já o sabe o leitor -- no seio de sua virginal pureza despontára um sentimento a ella desconhecido , de que o seu roubador fôra alvo , e que devia leval- a a debater-se na labareda que elle fórma , ou a consumir-se nas cinzas que essa mythologica chamma , denominada amor , conserva eternamente nos corações martyrisados pela voz do dever e da consciencia . Outro era o estado -- D. Maria da Gloria . A convivencia desde o berço com Arthur Soares , o cotejo que muitas vezes , e insensivelmente , fizera das qualidades moraes do sobrinho do reitor com os de mais frequentadores do seu solar -- o que sempre dava em resultado innumeras vantagens para aquelle -- e , sobre tudo , esse mysterioso aquecer do sangue ao girar perto de nós em natural fluido o de alguem que o bafeja , e essa constante e seductora visão da alma semelhante á nossa em corpo da nossa sympathia , -- haviam sido outros tantos estimulos a conduzirem a fidalga moça á posse de um reservado e verdadeiro affecto por Arthur Soares , que ella julgava poder sempre ter sepultado no fundo do coração , em respeito ao culto da nobreza que herdára e que lhe fôra inoculado ao entrar na vida pelos seus educadores , reserva esta já trahida n ' outra crise , e que d' esta vez corria gravissimo risco de acabar completamente . N ' este estado , fôra-lhe tyrannico , sobre ser infamissimo , o cobarde e violento procedimento do fidalgo primo . Leopoldo , estava apanhado na sua propria rêde . Levado por maus instinctos , e por sêde de vingança , premeditou e levou á execução , sem ao menos preceder o circumspecto exame da maldade precavida , o arrojado e perigoso projecto de roubar as donzellas . A primeira contrariedade soffreu-a elle immediatamente com a fuga de Rosa , á qual votava entranhado rancor , e anciava humilhar cruelmente , e abortára- lhe esse prazer . A segunda quebra dos seus devaneios veiu-lhe com a nimia facilidade que encontrou em sujeitar a timida e docil Anna a todos os seus caprichos , desfazendo-se-lhe d' este modo , como fatua bolha de sabão , um mal definido e peior agasalhado sentimento que , por aquella rapariga , lhe parecia a elle ter no peito . Muitas d' estas velleidades , cunha a sociedade com o pomposo nome de amor , confundindo o appetecido contacto das epidermes com esse sentimento moral que subjuga o homem , que é o principio creador de todos os seus heroismos , que é a razão , o genio , a harmonia , o acto supremo da alma , a inspiração de Deus ! ... O terceiro e o mais fatal de todos os castigos de Leopoldo cahira sobre o coração do desgraçado em frecha envenenada , que já começava a tolher-lhe as funcções moraes e o vital respiro da sua vida physica : amava o infeliz , sem bem o saber ainda , e amava D. Maria da Gloria ! Que terrivel lucta ! Fascinado a seu pesar pela belleza da fidalga prima e pelo seu nobre orgulho , abatido pelo desprezo que sentia merecer á sua victima , dominado pelas rijas impressões a que vivem subordinadas as paixões humanas , louco de furor pela certeza de existir um rival , um miseravel peão , preferido no coração do seu idolo , e sem poder , pelo seu caracter , elevar-se , no infortunio e no martyrio , á sublime condição dos espiritos privilegiados que o idealismo purifica -- tormentos eram estes que a Providencia destinou a Leopoldo com o seu amor por Maria ! Achava-se o voluntario capitão das tropas da rainha fazendo parte de uma força militar que então occupava Vianna do Castello . Dispozéra tudo de modo a ter segurança na forçada posse das donzellas , que visitava sempre que podia , ignorando as encarceradas as repetidas ausencias a que era obrigado o seu fidalgo carcereiro . Entremos com Leopoldo , chegado de Vianna , no palacio encantado , que elle escolhera deslumbrante no intento de maravilhar D. Maria da Gloria . Acabava de anoitecer : penetrou o elegante fidalgo na parte da casa destinada aos seus cómmodos , e , sem descançar um só instante da fadiga da jornada , attendeu desde logo ao esmero e atavios da sua pessoa e vestuario , como se tivera de comparecer n ' um baile de côrte . Assim disposto , tomou direcção dos aposentos de D. Maria da Gloria . Na ante-sala proxima d' aquella em que estava recolhida a fidalga moça , sentiu-se Leopoldo repentinamente assaltado de um mau- estar , d' uma fraqueza , d' uma indecisão e de uns receios taes , que o levaram a tomar assento n ' uma poltrona que , do acaso , ficava fronteira de um riquissimo espelho . Ao vêr copiado no preparado vidro o seu transtornado aspecto , mudou Leopoldo de tenção , e dirigiu-se com paços ainda mal seguros para a parte do palacio , occupada pela docil Anna . Deixemos sem testimunhas os faceis protestos do mentido amor , proferidos sobre-posse , áquella que já não podia nem sabia regeital-os , pelo homem que a seduzira e arrebatara , e entremos no salão em que D. Maria da Gloria gemia saudades e nutria , a par de sublimes affectos , esperança de proxima salvação : -- as paredes estavam forradas de setim verde ; as janellas todas adornadas de custosas cortinas de côres branca e amarella ; os reposteiros eram de damasco encarnado com os cordões e as borlas de fio de prata , e os moveis todos de pau preto almofadados de setim branco . Se uma dama de caprichosa imperatriz tivera sido a encarregada de dispôr , alli como em todas as salas do aposento de D. Maria , e collocar em ordem essas infindas e minuciosas commodidades de uma senhora de régia estirpe , -- não deslumbraria mais aquelle recinto . Lá dentro , era D. Maria senhora absoluta , obedecida por aias e criados ao mais leve aceno , sem que aquellas e estes deixassem de ser outros tantos vigias e guardas de seus movimentos e acções . Os grilhões , eram com effeito de ouro do mais subido quilate . Estava a joven captiva a uma das janellas , olhando pela milesima vez os arrebatadores jardins d' aquelle palacio , quando sentiu cahir a seus pés um objecto arremessado de fóra , que se apressou a apanhar . Desfez o embrulho , e encontrou um punhal acompanhado de um papel escripto d' este modo : " Ha mais de sessenta dias que apenas vivo para a vingança , cogitada de instante a instante no meio de torturas espirituaes que dementam ! " Descobri finalmente este infernal paraiso que a retem . Queria ser eu sósinho o salvador de v. exc . ^ a , mas as cautelas tomadas pelo infame obrigam-me a metter na melindrosa empresa o snr. " Sebastião da Mesquita . " Esse estylete é inutil nas minhas mãos e póde convir nas de v. exc . ^ a. Para a desaffronta dum homem , não deve servir a arma que se esconde em bolço falso como o sicario nas trevas da noite . A senhora||_D._Maria_da_Gloria D.|_D._Maria_da_Gloria Maria|_D._Maria_da_Gloria da|_D._Maria_da_Gloria Gloria|_D._Maria_da_Gloria comprehenderá melhor do que eu como póde fazer entrega do vil instrumento no malvado que o sabe usar . " Está a soar a ultima hora do captiveiro . Creio em v. exc . ^ a como creio em Deus . " " Arthur " . Ao terminar a leitura do bilhete de Arthur Soares , que enchera de felicidade a D. Maria , correu-se um reposteiro e entrou na sala o fidalgo||_Leopoldo Leopoldo|_Leopoldo . Ao sentil- o , tomou a donzella , junto do fogão que ardia na sala , uma attitude de rainha quando concede audiencia aos seus subditos . Vira Leopoldo o papel nas mãos de sua prima , e a suspeita dera-lhe animo para fallar : -- Vejo que a minha nobre prima tem por estes sitios correio amoroso ! ... Poderei ter a honra de saber o conteudo n ' esse papel ? Por unica resposta lançou D. Maria o bilhete á chamma do fogão . -- Continua a ser cruel , senhora , e eu submisso sempre ! Vê como o amor torna os homens bons e generosos ? Qual de nós é o captivo ? ... -- Infame ! ... -- Sempre esse burguez adjectivo ! E porque sou eu infame ? ! Pois se o amor governa o mundo , podem-se por ventura impor deveres aos impulsos da alma ? ! ... Solte a minha nobre prima uma palavra de esperança , e verá transtornado em manso cordeiro aquelle que imaginou ser um feroz tigre ... O sentimento verdadeiramente moral que me domina , é sincero e augusto ... Nasceu subitamente e nem por isso é possivel a sua cura ... Conheço , desde que a avalio , toda a grandeza , todo o poder , toda a irresistivel força dos seus naturaes encantos , toda a magnitude da sua nobilissima alma ... Amo-a e soffro muito , minha prima , tendo para mim este sofrimento na conta do maior prazer ! ... Adoro-a até no seu despreso por mim ! ... -- Infame ! ... -- É muito , senhora ! ... Não será prudencia abusar d' esse modo de uma paixão que deve conhecer verdadeira , e que é capaz das maiores virtudes como dos mais negros crimes ... A par d' esta loucura que faz escorregar para o mais medonho precipicio , ou que nos salva d' elle , todas as differentes paixões da vida são uns simples brinquedos ... Fechado na sua formosa mão , tem a minha nobre prima o meu destino e o de todos os seus ... Até lá está tambem o esquecimento para dous homens que me fizeram ultrages , que só o amor tem o poder de perdoar ... Abra essa mão , senhora , que em abril- a desponta-lhe a felicidade ... Serei um escravo humilde da sua mais caprichosa opinião ... Domarei todos os instinctos , todos os appetites , todas as tendencias que possam ir de encontro aos seus desejos ... Somos ambos poderosos , somos fidalgos , somos parentes ... A nossa união não póde ter obstaculos legaes e , que os tivéra , todos eu saberia dissipar pela força d' este amor que é a minha vida , ou que hade ser a minha morte ... Quer sahir d' esta casa ? Quer levar em sua companhia as suas discipulas ? Quer um cortejo de princeza para acompanhal-a , em que eu serei o ultimo de seus servos ? ... Pois basta , para tudo isto se fazer immediatamente , que a minha nobre prima me dê uma simples palavra , uma singela esperança ... -- Infame ! ... -- Oh ! que é de mais ! ... N ' esta altura da entrevista , e quando talvez Leopoldo estivesse para ceder á violencia da sua paixão atrozmente insultada pelo sangue frio da nossa heroina , sentiram-se palmas cadenciadas , e tres vezes repetidas , na proxima ante-sala . Ao ouvir aquelle signal , de certo convencionado por elle , retirou-se precipitadamente o infeliz capitão , o senhor d' aquella casa , e por sem duvida o mais infeliz dos seus habitadores . O chamamento fôra a communicar-lhe a urgencia de acudir a Vianna , para recolher com toda a força militar ao Castello , d' onde o commandante resolvera resistir a numerosas forças do exercito da junta do Porto , que se aproximavam , e do povo , que se reunia para as coadjuvar . Recebida a ordem , quasi com indifferença , voltou Leopoldo á presença de D. Maria , para lhe dizer com voz pausada e debil : -- Senhora ! ... Retiro-me por algum tempo d' esta casa , na qual V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a fica substituindo o meu poder . Conservo as ordens dadas aos meus criados , e servos de V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a para a guardarem com profundo respeito , mas altero-as ordenando-lhes , que não resistam a qualquer força que tente libertar a minha nobre prima ... É possivel que seja esta a ultima vez em que a minha presença lhe provoque esse invencivel tédio ... Este " malvado " , que podia ter colhido com novas violencias os fructos a que pareceu mirar pela primeira imprudencia , pede-lhe o seu perdão com " lagrimas " de sincero arrependimento ... -- Lave com ellas os pés de meu honrado e nobre pae , que deve ser o primeiro , senão o unico , a perdoar-lhe os desvarios ... Agora que o considero inutil como defeza da minha honra , porque acredito nos seus remorsos , tome conta d' esse punhal , que lhe pertence , e que nunca deveria ter servido nas emprezas a que está vesado . E com magestoso porte , atirou D. Maria ao meio da sala a arma villã . Leopoldo , depois de alguns momentos de recolhimento , que lhe valeram seculos de indiscriptivel soffrimento , agitou o cordão de uma campainha e esperou o resultado d' esta sua acção . Appareceu um escudeiro , vestido na mais rigorosa etiqueta , que aguardou silencioso as ordens de seu amo . -- Pegue n ' aquelle punhal , vista-lhe o cabo com um panno preto , e pendure-o á cabeceira do meu leito ... Quem de hora ávante dá ordens n ' esta casa é minha prima e senhora||_D._Maria_da_Gloria D.|_D._Maria_da_Gloria Maria|_D._Maria_da_Gloria da|_D._Maria_da_Gloria Gloria|_D._Maria_da_Gloria . Faça-o saber a todos os seus companheiros . Póde retirar-se . Sahiu o escudeiro e Leopoldo ficou immovel e calado por alguns minutos . Depois , como se após intima lucta se fizesse luz no seu espirito , levantou repentinamente a fronte , encarou a donzella , d' esta vez sem acanhamento , e disse-lhe : -- Sou ... serei um infame ! mas um infame que a ama como V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a nunca por outrem será amada , juro-lh ' o ! ... Adeus , senhora||_D._Maria_da_Gloria D.|_D._Maria_da_Gloria Maria|_D._Maria_da_Gloria da|_D._Maria_da_Gloria Gloria|_D._Maria_da_Gloria ! ... Ao retirar-se o attribulado mancebo , proferiu D. Maria , como para só d' ella serem ouvidas , estas significativas palavas : -- " Ao menos foi uma hora verdadeiro fidalgo ... " D' aqui a levar a sua clemencia ao ponto de perdoar ao primo os insultos que d' elle recebera , havia só a transpôr a barreira de Arthur Soares , que ella não queria nem podia vencer ! RELIGIÃO " O mundo que nos tira até o que Deus nos deu , que nos não póde dar o que Deus nos tirou , que não tem bem que dure nem cousa que permaneça , -- que cultos merece ? que estimações se lhe devem ? " ( " Fr. A. das Chagas " -- C. Espirituaes . ) Entreteve Sebastião da Mesquita a gente do seu commando , em marchas vagarosas , e por logares desoccupados de outras forças , porque era seu unico fito perseguir o insultador da sua familia , para libertar as donzellas raptadas ; e não podéra seguir-lhe a pista com a ligeireza que requeria a sua anciedade paternal , por estar todo o Minho revolucionado , e pejado de tropas dos tres partidos em guerra . Em um dos seus forçados estacionamentos , teve Sebastião da Mesquita occasião de prestar um relevante serviço ao respeitavel ancião que por aquella epocha era arcebispo de Braga . Depois da terrivel mortandade que um general das tropas da rainha , em ataque ás forças realistas , mandara fazer na manhã do memoravel dia vinte de dezembro de 1846 nas ruas da cidade -- Braga , que ficaram juncadas com cerca de quatrocentos cadaveres ! -- fizera o mesmo general , ingloria e tristemente vencedor , intimar o venerando prelado da diocese bracarense para o acompanhar na sua marcha . Aterrado o bondoso padre por aquella inqualificavel violencia , após o luctuoso espectaculo que a precedera , fugira em direcção a uma das suas quintas das cercanias de Coimbra , fuga em que fôra auxiliado pela pessoa de Sebastião da Mesquita , e pela sua gente , tendo antes os dois velhos passado algumas horas em secreta e intima conferencia . Havia-se operado em Arthur Soares uma completa transformação : o seu physico , como reflexo do soffrimento moral , alterou-se ao ponto de não parecer o mesmo homem ; para o que tambem muito concorrera a repentina mudança de habitos . Os raptos das donzellas , por elle moralisados sob as indeleveis impressões d' aquella noite de luar , em que D. Maria da Gloria levantara uma nêsga do véu que lhe cobria o coração , eram por elle vistos como offensas directas de um rival abjecto . A sua alma sempre aberta a todos os sentimentos generosos , estava quasi entregue ao odio e á vingança . Sabia elle , porque desde infante o escutara diariamente ao padre||_Alvaro Alvaro|_Alvaro , que a religião manda perdoar , e que a doutrina da egreja quer que se recebam as humilhações em justa expiação das faltas commettidas ; mas tambem não ignorava que , algumas vezes , sob as proprias vestes sacerdotaes , se encobrem violentas e desapiedadas cóleras . A sua razão , um pouco obscurecida pelas dôres , fluctuava , pois , á mercê das paixões mundanas ; e de pouco proveito lhe eram os prudentes conselhos que a todo o momento lhe estava dando o padre||_Alvaro Alvaro|_Alvaro , inquieto com os estragos do corpo , e da alma , que elle via estampados nas faces de Arthur Soares . Eram constantes da parte do apaixonado mancebo as deserções do seu arraial , das quaes nenhum caso parecia fazer Sebastião da Mesquita , porque possuia a quasi certeza da razão que as promovia . A intrepida Rosa , com permissão do velho fidalgo , continuava usando do seu uniforme salvador , e a ser tida pelos estranhos á familia por um elegante e joven official . Calculadamente se affastava o mais que podia de Arthur Soares , sem deixar de notar as suas desapparições , e de as commentar mentalmente . Chegara Sebastião da Mesquita com a força de seu commando ás alturas de Vianna , e fôra alli obrigado , conjunctamente com o povo , e a tropa da junta , a sitiar o castello , onde estavam refugiados muitos empregados publicos do partido do paço , e os militares de que fazia parte Leopoldo de Lencastre . Não se viu grandemente contrariado Sebastião da Mesquita , em ser levado ao extremo de batalhar , porque já lhe era um tanto sympathica a causa popular , principalmente pelos factos de Leopoldo pertencer ao partido da rainha , e da maior parte dos chefes dos bandos realistas , depois da morte de Mac-Donnell , se terem reunido ao exercito da junta do Porto . N ' um dos intervallos do assédio , recebeu Sebastião da Mesquita da bocca de Arthur Soares a boa nova de ter descoberto o carcere das donzellas , que elle julgava ainda guardado pelo raptor em pessoa . Reuniu o velho fidalgo a toda a pressa o maior numero da sua gente em disponibilidade e , acompanhado tambem por toda a sua familia , voou a libertar as filhas . Chegados que foram ás portas do palacio , e tudo disposto para n ' elle entrarem á viva força , viu Sebastião da Mesquita , com espanto seu , ser-lhes a entrada franqueada . Tremeu o valente do receio de já não encontrar alli a quem buscava , e só recuperou o perdido animo quando susteve em seus braços a D. Maria da Gloria , e viu a seus pés banhada em pranto a seduzida Anna . Foram expansivas , como natural era que o fossem , as demonstrações de regosijo intimo , em todos os membros d' aquella nobre familia , alfim de novo reunida . Depois de ter dado o necessario tempo ás largas do contentamento de todos , dirigiu Sebastião da Mesquita a palavra a D. Maria da Gloria , n ' estes termos : -- Maria ! ... Podes continuar a viver na companhia de teus paes ? ... -- Essa pergunta , meu presadissimo pae e senhor , devia V._Exc._^ V._Exc._^ V._Exc._^ a fazel- a ao meu cadaver ... -- respondeu com firmeza a nossa heroina . -- Muito obrigado , Maria ! Paguem-te estas lagrimas do mais puro amor , a nobreza e honradez da tua resposta ! ... Ao passo que o pae assim fallava , cobria a moça fidalga de beijos e caricias maternaes , a respeitavel matrona D. Isabel de Abendanho . -- E tu , Anna , foste da mesma sorte feliz ? A timida interrogada , ficou silenciosa e interdicta ... O velho fidalgo , tomado instantaneamente de uma pallidez assustadora , alçou assim a voz : -- Padre Alvaro ! Disponha immediatamente a capella d' esta casa , para uma solemne ceremonia religiosa . -- Snr. Arthur Soares , dê busca a todo o edificio e traga-me já aqui o infame possuidor d' este lupanar ! -- Anna ! ... Prepare-se para o mais serio acto da sua vida , com a coragem que lhe faltou para resistir á seducção ! ... Apressaram-se todos a cumprirem as ordens dadas , que bem de conhecer era o não admittirem réplicas . N ' esta situação , fôra ouvido ao longe da estrada , que passava em frente do palacio , um extraordinario bulicio . O pae de D. Maria da Gloria , mandou ao unico official de ordens que alli tinha -- a metamorphoseada Rosa -- que fosse reconhecer o barulho , e aguardou impaciente a chegada de Arthur Soares .